Segundo capítulo – Não fui eu que libertei Edna, foi Edna que me libertou

De todas as decisões que proferi, nenhuma se tornou tão conhecida quanto a decisão através da qual libertei Edna, a que ia ser Mãe.

A decisão em torno de Edna, acrescida de inúmeros comentários, está largamente presente na internet, numa centena de localizações.

Apresentações artísticas do texto, com acréscimo de som e imagens, foram feitas como, por exemplo, o trabalho realizado por Odair José Gallo, um outro trabalho produzido por Mari Caruso Cunha e uma versão sonora, sem imagens, realizada pelo advogado Doutor Adriano Cardoso Cunha, de Cabo Frio (RJ).

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No Instituto de Letras, da Universidade de Brasília, a acadêmica Elaine Cristina Oliveira Sousa produziu um primoroso texto acadêmico, olhando a decisão que libertou Edna, não sob o aspecto jurídico, mas sob o ângulo lingüístico. O trabalho de Elaine Cristina foi realizado dentro da disciplina “Introdução à Análise do Discurso”, com a Professora Francisca Cordélia, do Departamento de Línguas Clássica e Vernácula, do Instituto de Letras, da UnB. Propôs-se Elaine Cristina Oliveira Souza a fazer uma leitura da ideologia presente no texto. Na percepção da brilhante estudiosa, o mais importante, no caso, não é apenas o discurso ideológico, mas principalmente a prática discursiva e sua relação com a prática social. Elaine Cristina desdobrou a decisão em diversos fragmentos, fazendo profunda análise de cada um.

Dramatizações foram produzidas, debates foram promovidos, em diversas faculdades e noutros espaços, chegando ao meu conhecimento apenas uma fração dessas iniciativas.

A sentença inspirou a alma de poetas.

Stellinha Mattos, poetisa de grande sensibilidade, falecida no Rio de Janeiro, em 2006, depois de ter completado 100 anos, escreveu:

Bendita seja
mulher, fonte de vida,
por um grande juiz
compreendida
e por seu coração absolvida!
Que se afastem as pedras do caminho,
que se afastem todos os espinhos,
na estrada
por onde ela passar.”
João Udine Vasconcelos, advogado e poeta, residente em Fortaleza, produziu este soneto, a que deu o título de “O bom juiz”:
“Só das almas autênticas, serenas,
Flui a verdadeira e pura luz:
Clarão de paz das razões amenas
Emanadas do doce Cristo Jesus!
 
E dessas almas sinceras, leais,
Como é bela e digna a de um Juiz
Que julga homens não como animais
Mas com alma e paixão em despacho feliz.
 
No uso da Hermenêutica, o coração
Pulsa forte e amoroso, derramando
Em sangue a Justiça em reta emoção.
 
No Alvará em que o fogo do amor arde
À mulher grávida, em crime banal,
Colocando-a com o feto em liberdade.”

Sobre o despacho de Edna recebi centenas de cartas e mensagens eletrõnicas, todas guardadas no meu arquivo.

Por muitos caminhos (caminhos misteriosos, a meu ver), o despacho de Edna tem chegado a milhares de pessoas, sem que eu tenha meios de aquilatar a dimensão dessa divulgação.

Dei a decisão no meio de um expediente forense trepidante, com muitas audiências designadas na agenda.

O caso de Edna entrou em pauta mais ou menos às três horas da tarde.

O despacho foi proferido verbalmente. Eu fui ditando e a diligente Escrivã Valdete Teixeira foi datilografando.

Quando concluí a decisão, Edna, que tudo acompanhou palavra por palavra, indagou:

– “Doutor João, estou livre?”

Respondi:

– “Está.”
– “Doutor João, se meu filho for homem ele vai se chamar João Batista.”

Redargui:

– “A senhora sabe como João Batista morreu?”
– “Não sei não”, Edna respondeu.
– “Cortaram a cabeça dele”, expliquei.
– “Não tem importância. Ele vai se chamar João Batista mesmo.”

Mas nasceu uma menina que recebeu o nome de Elke, em homenagem a Elke Maravilha.

O despacho em favor de Edna encontrou eco, na consciência das pessoas, desde o momento em que foi prolatado.

Eu não me apercebera, no instante da proferição, de que a decisão contivesse um apelo emocional forte.

Quando terminei as audiências do dia e passei pelo Cartório Criminal, para me despedir dos funcionários, o Dr. Henrique Francisco Lucas, titular do cartório, disse-me:

“Doutor João, já tirei mais ou menos trinta cópias xerox do despacho de Edna, solicitadas por pessoas que queriam guardá-lo consigo.”

Respondi então ao Dr. Henrique:

“Vamos ver então o que há nesse despacho.”

E o li calmamente para sentir o motivo pelo qual causara essa reação, já que nunca acontecera que de uma decisão minha fossem tiradas trinta cópias xerox, solicitadas por trinta pessoas diferentes.

Fatos ulteriores convenceram-me de que alguma coisa especial aconteceu naqueles minutos em que libertei Edna, a começar pela própria Edna que simplesmente deixou a prostituição, como vim a saber pela boca da própria Edna:

“Quando o senhor me soltou, Doutor João, eu decidi: posso passar fome, mas prostituta eu não serei mais.”

Em e-mail que me mandou no dia 11 de março de 2005, o jornalista Chico Pardal, do jornal “A Gazeta”, de Vitória, manifestou seu desejo de escrever uma matéria sobre o “caso Edna”.

Eu respondi ao e-mail do jornalista, nestes termos:

Não sei onde Edna estaria hoje. Não sei se uma matéria em grande jornal não iria constrangê-la. Só vejo ser essa matéria possível se isto não a incomodar, se a matéria não lhe trouxer qualquer mal (a ela e à filha).
Posso lhe dizer que Edna me fez mais bem do que eu a ela.
Edna me ensinou a ser juiz e depois do encontro com ela nunca mais fui o mesmo.
Se não tive medo de libertá-la diante dos dogmas dominantes;
se não tive medo de libertá-la numa fase histórica em que os magistrados estavam privados de suas garantias;
se não tive medo de arrostar o “figurino” obrigatório que fazia da maconha, mesmo o simples consumo, um delito gravíssimo porque através desse delito os jovens não simpáticos ao regime podiam ser colhidos;
se não tive receio de todos esses perigos, não poderia, dali para a frente, ter qualquer outro tipo de medo.
Por isso, concluo: eu libertei Edna e Edna também me libertou.
Nunca escrevi isto que estou dizendo a você neste e-mail. Estou abrindo minha alma, queridíssimo Chico Pardal.

 


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Informações Sobre o Autor

 

João Baptista Herkenhoff

 

Livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo e escritor

 


 

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