I – Segurança jurídica e certeza do direito. Realidade ou Utopia num Estado Democrático de Direito?
O desafio que pretendemos enfocar, longe de impor ou mesmo sugerir soluções, mas apenas trazer à tona tema palpitante e envolvente da busca de segurança jurídica e a certeza do direito na medida do necessário para que se alcance a Justiça.
No século XVIII, a expressão Estado de direito designava a administração interna do Estado ou ciência da polícia, compreendendo as finanças, a economia pública e privada, o comércio, a estatística e matérias políticas e jurídicas. O Estado de direito da época tinha por objetivo principal o bem comum ou felicidade da vida, a segurança e a prosperidade do Estado, de acordo com os ditames da política ou arte do governo.
Na segunda metade do século XIX veio à luz a concepção de Estado de direito, vinculada ao contexto de idéias políticas então existentes.
Estado de direito é, portanto, o Estado que submete seus atos em relação aos cidadãos, às decisões judiciárias. O Estado de direito é aquele que reconhece os direitos individuais, cuidando de acatar e fazer cumprir o direito por ele mesmo instituído.
O Estado em consideração segue a linha do direito, se auto-limitando, protegendo as liberdades individuais, contrapondo-se ao estado de poder, ou totalitário, sendo constitucionalmente organizado.
Os dois fundamentos do Estado de Direito são a segurança e a certeza jurídica.
A segurança e a certeza do direito são indispensáveis para que haja justiça, porque é óbvio que na desordem não é possível reconhecer direitos ou exigir o cumprimento de obrigações.
Segundo Carlos Aurélio Mota de Souza[1]:Segurança é fato, é o direito como factum visível, concreto, que se vê…
A segurança se traduz objetivamente (Direito objetivo a priori), através das normas e instituições do sistema jurídico (como a norma agendi dos romanos). Já a certeza do direito (como um posterius se forma intelectivamente nos destinatários destas normas e instituições (a facultas agendi, embora esta analogia não seja completa). … Desta forma, a Segurança objetiva das leis dá ao cidadão a Certeza subjetiva das ações justas, segundo o Direito.[2]
Assim, fala-se em certeza do direito quando o sistema tende a abolir lacunas da lei, obscuridades, complicação dos dispositivos legais, excesso de legislação, a demora nos julgamentos, o direito livre como forma de instabilidade, a mutabilidade ou a multiplicidade indiscriminada das leis.
A segurança e a certeza do direito são necessárias para que haja justiça — como já demonstramos — porque é óbvio que na desordem não é possível reconhecer direitos ou exigir o cumprimento de obrigações.
Segundo Carlos Aurélio Mota de Souza[3]: Segurança e Justiça, portanto não se contrapõem, mas enquanto esta é um poder moral, desarmado, sua garantia de efetivação no direito repousa na materialidade objetiva da segurança jurídica.
Acima da segurança está sempre, como valor supremo, a justiça, não sendo de repetir-se com apoio a frase de Goethe: "Prefiro uma injustiça à desordem", como têm feito vários desses autores, porque revela um profundo egoísmo burguês, um medo das transformações sociais e prega um conformismo inadmissível. Radbruch[4] sustentou em 1932 que a segurança está acima da justiça, mas depois que viu os horrores do nazismo, pregou a volta ao direito natural, reconhecendo que a injustiça é sempre injustiça, ainda que apresentada sob a forma de uma lei.
Formalmente a segurança jurídica é assegurada pelos princípios seguintes:[5] irretroatividade da lei, coisa julgada, respeito aos direitos adquiridos, respeito ao ato jurídico perfeito, outorga de ampla defesa e contraditório aos acusados em geral, ficção do conhecimento obrigatório da lei, prévia lei para a configuração de crimes e transgressões e cominação de penas, declarações de direitos e garantias individuais, justiça social, devido processo legal, independência do Poder Judiciário, vedação de tribunais de exceção, vedação de julgamentos parciais, definitividade das relações jurídicas, etc.
Segundo Leib Soibelman[6] , como decorrência natural da adoção do Estado de direito, resulta que tanto o Estado, quanto os indivíduos são sujeitos de direitos subjetivos de natureza pública: Estado e indivíduo exigem-se reciprocamente o cumprimento de obrigações e prestações que leis de direito positivo estabelecem a favor de um e de outro.
Ora, dizer que o Estado e o indivíduo devem acatar o direito positivo é o mesmo que se afirmar o princípio da segurança jurídica numa via de duas mãos.
Subjetivamente os direitos públicos se manifestam pela faculdade de um ou outro (Estado e indivíduo) invocarem a lei em seu favor para exigir da outra parte uma conduta a que têm direito (leia-se certeza do direito). Não existe Estado de direito sem o reconhecimento de direitos públicos subjetivos. Eles constituem também uma grande garantia para as liberdades públicas, porque implicam no reconhecimento pelo Estado da eminente dignidade da pessoa humana do cidadão.
Jellinek[7] classificou os direitos públicos subjetivos em quatro categorias ou status: subjectionis, libertatis, civitatis e activae civitatis.
Santi Romano divide esses direitos em: a) direitos de supremacia, b) direitos de liberdade, c) direitos cívicos, d) direitos políticos, e) direitos públicos patrimoniais.
Sílvio Longhi apresenta outra classificação: a) direitos de liberdade (status libertatis), estado negativo, obrigação de não fazer do Estado; b) direitos cívicos (status civitatis), prestação positiva do Estado; c) direitos políticos, incluindo os eleitorais: d) estados de sujeição ou dependência (status subjectionis), que não admitem o exercício pelo indivíduo de nenhum direito contra o Estado.
Já Canotilho[8] os classifica em a) Direitos strictu sensu correspondendo uns aos chamados status positivus, e outros aos status negativus, isto é, direitos inerentes ao homem como indivíduo ou como participante da vida pública; b) Liberdades, que correspondem ao status negativus, apontando por isso para a defesa da esfera dos cidadãos perante os poderes políticos e c) Garantias, que recobrem o chamado status activus processualis, traduzindo-se basicamente na ordenação dos meios processuais adequados para a defesa desses direitos e liberdades no seu conjunto.
Em resumo, pode-se afirmar que a segurança jurídica e a certeza do direito integram o acervo do direito público subjetivo exigível de parte-a-parte entre indivíduo e Estado.
Faz-se necessário nos tempos atuais tentar se explicitar o que funda a idéia de justiça e as suas relações com o direito, bem como o papel fundamental do intérprete e aplicador como verdadeiro realizador do direito. Notadamente no chamado Estado Social onde os direitos fundamentais inerentes à Constituição apresentam-se com um determinando sistema cultural ou de valores de um povo. Estes assinalam, no século XX, a passagem do Estado de mera função protetiva e garantidora, a uma função promocional.
O que deva entender-se por Estado de Direito Democrático, o legislador não o diz. Tratar-se-á, todavia, da consagração constitucional do Estado Social de Direito como formação histórica resultante da integração, mais ou menos harmônica, dos processos intervencionistas dos poderes públicos no modelo originário do Estado Liberal, vinculando a uma certa estabilização o modelo democrático de sociedade coincidente com essa intervenção, como preconizou Nadales[9].
Entre a positividade da norma e o sentimento de justiça situam-se algumas das vertentes do pensamento jusfilosófico contemporâneo sobre aquilo que funda as suas assertivas para além dos atos meramente descritivos das práticas institucionais destinadas ao exercício histórico relacionado com a garantia da justiça. Certamente não há como prescindir do diálogo com a milenar questão do direito natural, nas suas manifestações contemporâneas. Se os princípios jurídicos supremos estão assentados no direito natural, é natural que eles sejam situados á luz do historicismo em geral e em confronto com a própria historicidade do homem.
Direito e justiça dizem do alcance da realização humana. Dizem da vida da cultura e da história. Dizem do processo de maturação, superação e desenvolvimento.
É inegável o fato de que a questão dos fundamentos do direito e da justiça se exalta hoje acima de quaisquer outras preocupações no universo jurídico, onde quer que circule pensamento. É necessário se lançar o olhar para além da banalidade do cotidiano jurídico alicerçado na ordem jurídica vigente que sustenta as instituições dela decorrentes. Não que se abrigue quaisquer preconceitos. Mas pelo simples fato de que a ordem jurídica, a justiça e o direito devem ser pensados para além das práticas cotidianas, dominadas pelos jogos políticos marcadamente protetores de interesses de grupos de pressão e, não raro, relegando a segundo ou último plano os direitos daqueles que, a despeito de terem voto, não têm voz.
Direito e justiça nem sempre andam juntos e estão submetidos à vida política, nas suas mais variadas manifestações. Há que se colocar em foco o direito justo e o direito injusto, supostamente alicerçado no princípio da segurança. É certo que o direito é instrumento de segurança e como tal tem sido vivenciado historicamente. Toda a garantia do indivíduo, no mundo civilizado, está depositada na ordem jurídica. Mas daí a acreditar que a ordem jurídica reflete o direito e a justiça e que esta segurança se fundamenta na eventual impossibilidade do titular do direito buscar tutela quando lesado ou ameaçado de lesão por ter deixado transcorrer um determinado lapso temporal estabelecido discricionariamente pelo legislador, vai uma distância abissal.
Justiça e Direito são conceitos que se subordinam ao universo das filosofias da consciência, da subjetividade, ou devem ser realçados como pertencentes ao domínio da linguagem, na ordem do conhecimento e da ação?
É nesse cenário de constatação, filtragem, triagem do instituto da prescrição ante os direitos fundamentais da pessoa humana, que pretendemos abordar o tema do perecimento do direito ou da pretensão, quando presentes dois elementos formatadores, quais sejam, a inércia do titular e a fluência do tempo, notadamente quando tal perecimento se confrontar com a necessidade da garantia de direito fundamental.
II. DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA.
II.a – Rápido Histórico
HAMURABI (cronologia controversa: 1792,1750 1728 ou 1730-1686 a. C.) foi rei da Babilônia e depois de unificar os seis estados rivais que disputavam a hegemonia naquela região, fundador do Império Babilônico.
O grande Império Babilônico submeteu os sumérios, os acádios e os assírios. Para governar povos tão diferentes, HAMURABI fez editar o primeiro código escrito de leis de que se tem notícia, o CÓDIGO DE HAMURABI. Esse código foi gravado numa stela de basalto negro por volta do século XVIII a. C., stela esta encontrada em Susa entre 1901 e1902, e hoje no museu do Louvre, em Paris.
O CÓDIGO DE HAMURABI defendia basicamente a vida e o direito de propriedade; mas também contemplava a honra, a dignidade, a família e a supremacia das leis em relação aos governantes. E embora contivesse dispositivos que continuam aceitos até hoje, como a Teoria da Imprevisão, fundava-se, sobretudo no principio de talião: "olho por olho, dente por dente". Previa, portanto castigos desumanos como o afogamento, o empalamento e o arrancamento da língua e de outras partes do corpo, por exemplo.
A partir desse primeiro código, instituições sociais como a religião e a democracia, ou concepções como a filosofia, contribuíram para humanizar os sistemas legais. Assim é que os gregos defenderam a existência de um Direito Natural anterior e superior às leis escritas, e os romanos editaram a Lei das Doze Tábuas, considerada no mundo ocidental como sendo o primeiro conjunto de leis consagradoras da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos dos cidadãos.
Bem mais tarde, a junção dos princípios religiosos do cristianismo com os ideais libertários da Revolução Francesa deram origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris em 10/12/1948. Ela representa a primeira tentativa da humanidade de estabelecer parâmetros humanitários válidos universalmente para todos os homens, independentes de raça, sexo, poder, língua, crença, opinião política, etc., e foi adotada e proclamada pela Resolução no. 217 da Organização das Nações Unidas. O Brasil assinou esta declaração na mesma data da sua adoção e proclamação.
O filósofo italiano Norberto BOBBIO sustenta, entretanto que não existem quaisquer "Direitos Naturais" ou "Fundamentais" aos quais o homem faça jus por sua simples condição de ser humano. Defende antes que os Direitos Humanos são conquistas resultantes de longas e por vezes sangrentas lutas dos homens contra as várias formas de opressão; conquistas estas legitimadas depois pelos legisladores, pelos tribunais e pelos juristas. Bobbio defende também que a cada direito conquistado corresponde a perda de poder de um determinado segmento da sociedade que se mantinha naquela posição pelo exercício da opressão. Assim é que o direito à liberdade religiosa implicou na perda do poder da Igreja de impor a sua fé, e o enfraquecimento do Absolutismo permitiu a transformação dos súditos em cidadãos, que lutaram pela proteção dos seus direitos de cidadania. Daí se conclui que os Direitos Humanos são conquistas da civilização; e que, portanto uma sociedade é tanto mais civilizada quanto mais os Direitos Humanos são nela protegidos e respeitados.
A maior parte das constituições modernas, inclusive a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, espelham-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Mas isto não significa dizer que as sociedades que se regem por cartas magnas que rezam pelos cânones da Declaração Universal de 1948 sejam necessariamente sociedades democráticas de fato, vivendo em um legítimo Estado de Direito. Muito pelo contrário, o que se observa é que os Direitos Humanos só são protegidos, respeitados e efetivados verdadeiramente nas sociedades onde os cidadãos permanecem vigilantes e participantes, sem delegar apenas ao Estado a proteção e a aplicação desses direitos. Isto significa dizer que a cidadania é uma via de mão dupla onde os cidadãos têm direitos, pois que os conquistaram. Mas também têm deveres em relação aos seus semelhantes, entre os quais o de permanecerem vigilantes e participantes, construindo conscientemente sua história individual e coletiva, numa perspectiva que considere inclusive as gerações futuras.
II.b – Conceito e Características[10]
O conjunto dos Direitos Humanos Fundamentais visa garantir ao ser humano, entre outros, o respeito ao seu direito à vida, à liberdade, à igualdade e à dignidade; bem como ao pleno desenvolvimento da sua personalidade. Eles garantem a não ingerência do estado na esfera individual, e consagram a dignidade humana. Sua proteção deve ser reconhecida positivamente pelos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais.
As principais características dos direitos fundamentais são:
Imprescritibilidade: os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso de prazo. Eles são permanentes;
Inalienabilidade: não se transferem de uma para outra pessoa os direitos fundamentais, seja gratuitamente, seja mediante pagamento;
Irrenunciabilidade: os direitos humanos fundamentais não são renunciáveis. Não se pode exigir de ninguém que renuncie à vida (não se pode pedir a um doente terminal que aceite a eutanásia, por exemplo) ou à liberdade (não se pode pedir a alguém que vá para a prisão no lugar de outro) em favor de outra pessoa.
Inviolabilidade: nenhuma lei infraconstitucional nem nenhuma autoridade pode desrespeitar os direitos fundamentais de outrem, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal;
Universalidade: os direitos fundamentais aplicam-se a todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica;
Efetividade: o Poder Público deve atuar de modo a garantir a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, usando inclusive mecanismos coercitivos quando necessário; porque esses direitos não se satisfazem com o simples reconhecimento abstrato;
Interdependência: as várias previsões constitucionais e infraconstitucionais não podem se chocar com os direitos fundamentais. Muito pelo contrário, devem se relacionar entre si de modo a atingirem suas finalidades;
Complementaridade: os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta, com a finalidade da sua plena realização.
III – DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988[11]
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos:
· Direitos individuais e coletivos;
· Direitos sociais · Nacionalidade;
· Direitos políticos · Partidos políticos.
A classificação adotada pelo legislador constituinte estabeleceu, portanto cinco espécies ao gênero – direitos e garantias fundamentais:
1. Direitos individuais e coletivos – correspondem àqueles direitos ligados diretamente ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, tais como os direitos à vida, igualdade, segurança, dignidade, honra, liberdade e propriedade. Eles estão previstos basicamente no artigo 5º e seus incisos.
2. Direitos sociais – São as liberdades positivas dos indivíduos, que devem ser garantidas pelo Estado Social de Direito. São basicamente direito à educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. Têm por finalidade a melhoria das condições de vida dos menos favorecidos, de forma que possa se concretizar a igualdade social que é um dos fundamentos do Estado Democrático brasileiro. Os direitos sociais estão elencados à partir do artigo 6º .
3. Direitos de nacionalidade – Nacionalidade "é o vínculo jurídico político que liga um indivíduo a um certo e determinado Estado, fazendo deste indivíduo um componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado, capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao cumprimento de deveres impostos"; ³
4. Direitos políticos – São direitos públicos subjetivos que permitem ao indivíduo exercer sua cidadania participando de forma ativa nos negócios políticos do Estado.. A constituição regulamenta os direitos políticos no artigo 14.
5. Direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos – Regulamentados no artigo 17, a constituição garante a autonomia e a plena liberdade dos partidos políticos como instrumentos necessários e importantes na preservação do Estado Democrático de Direito.
IV – AS SUCESSIVAS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Baseando-se na ordem histórico-cronológica do seu surgimento, vários autores estabelecem sucessivas gerações para os Direitos Humanos, que podemos resumir da seguinte forma:
1. Seriam da primeira geração os Direitos da Liberdade: liberdade religiosa, liberdade política, liberdades civis clássicas como o direito à vida, à segurança, etc.
2. De segunda geração seriam os Direitos da Igualdade: proteção do trabalho contra o desemprego; direito de instrução contra o analfabetismo; assistência para a invalidez e a velhice; direito à saúde, ao lazer e à cultura, etc.
3. De terceira geração seriam os Direitos da Fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, etc.
4. De quarta geração seriam os Direitos da Responsabilidade: promoção e manutenção da Paz, promoção e manutenção da Autodeterminação dos Povos, promoção da Ética da Vida defendida pela Bioética, etc.; bem como os direitos difusos.
V – A BUSCA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ATRAVÉS DA FORÇA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.
Mesmo admitindo que o indivíduo, pela importância transcendental deve ser considerado e valorizado consigo próprio, independentemente de estar envolvido em qualquer relacionamento com outro, quer seja de ordem familiar, negocial, profissional, etc, não se pode negar, no entanto, que é exatamente no contexto da socialidade que surgem os conflitos de interesses. Mas, o que se pretende demonstrar é que, independentemente desse relacionamento, o homem existe e compete consigo mesmo, no sentido de estar permanentemente em crescimento como pessoa. A busca pelo aperfeiçoamento e aprimoramento da individualidade se constitui na razão básica da existência dos direitos da personalidade. É o homem evoluindo num processo de mudança permanente rumo a si mesmo, movimento incessante de mudança e, exatamente por isso, uma das características do direito da personalidade é sua vitaliciedade e, quando ganham o status de estarem inseridos na Constituição Federal, passam à categoria de liberdades públicas e recebem todo o sistema de proteção próprio.
Ou, como prefere Manuel da Cunha Carvalho[12]:
a personalidade é o pressuposto de todos os direitos. Em outras palavras, podemos dizer, na personalidade tem-se em potência todos os direitos. Lembre-se: os direitos de personalidade compõem um conjunto mínimo de direitos indispensáveis à aquisição e ao exercício de todos os demais direitos. Os direitos personalíssimos passam da potência de ser algo (os outros direitos) ao ato de sê-lo quando, por meio do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico, eles adquirem atualidade no sentido de, podendo dar origem à aquisição e ao exercício de todos os demais direitos, acabam incorporando-se indiretamente a eles.
Este posicionamento, no entanto, conduziria a afirmação de que há primazia absoluta do princípio da dignidade da pessoa e da proteção dos direitos humanos sobre quaisquer outros, o que há de ser entendido com parcimônia e mediante a utilização do método tópico, pelo qual a preferência pela adoção com maior intensidade de um determinado princípio constitucional em lugar de outro ficará condicionada às circunstâncias do problema concreto, ocasião em que se terá de realizar a ponderação de todos os valores (princípios) existentes no sistema (método sistemático), que terão maior ou menor influência, de acordo com todas as circunstâncias envolvidas (históricas, econômicas, sociais, psicológicas, tecnológicas etc).
Como ressaltou Tércio Sampaio Ferraz[13]:
A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significados em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras fórmulas de procura de solução de conflitos.
Neste sentido, é possível traçar um paralelo da tópica com a incidência e aplicação dos princípios que expressam mandados de otimização; isto é, seu comando normativo terá maior ou menor aplicação em razão da hipótese concreta, nas palavras de Alexy[14], ou na definição de Crisafulli[15]:
Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.
Esta possibilidade de variação dos significados, em razão dos fatos concretos a ser interpretados conduz à dificuldade de se estabelecer o próprio conceito de pessoa (lembre-se, apenas a título de exemplo que, num dado momento histórico, pessoas eram consideradas menos do que coisas – escravidão) e, por conseqüência, o conceito de direitos humanos e, sobre este tema reconhece Habermas[16] a existência de uma tensão entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições locais para a sua concretização, asseverando, em seu artigo (O discurso intercultural sobre os Direitos Humanos) que os Direitos Humanos devem ter uma validade para todas as pessoas. Habermas[17] questiona ainda se por detrás do conceito de direitos humanos não haveria uma falsa universalidade que o mundo imperialista ocidental gostaria que prevalecesse.
Se o conceito de direitos humanos deve ser sensível à cultura, não podemos chegar a um conceito universalmente válido de direitos humanos, nem à definição do que seja dignidade da pessoa humana, ao menos não um conceito unívoco e universal e, nesse sentido não parece apropriado que um texto jurídico, ainda que constitucional que busque definir os limites do conceito de dignidade da pessoa, eis que ele estaria atrelado a circunstâncias momentâneas e geográficas, e deve ser concretizado pela observância de direitos sociais, os quais têm um custo econômico, como alerta Alexy[18]:
O problema desses direitos sociais a custo de terceiros, no caso, do empregador, é que cabe ao próprio mercado decidir sobre sua efetividade. Aqueles que não encontram emprego não podem reivindicar esse direito.
Por mais romântica e legítima que possa parecer a defesa da primazia dos princípios que tenham como finalidade a preservação do núcleo essencial do ser humano, as vontades dos seres humanos não se comportam de tal forma. Outros valores também motivam os indivíduos. A necessidade de preservação de seu capital, de sua propriedade, a necessidade de competir irrestritamente, a busca incessante pelo poder e a riqueza também pautam o espírito humano.
Para superar esta aparente dificuldade, ensina Luis Roberto Barroso[19] que “o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo”, o que, no entanto, não justifica a permanência das previsões constitucionais principiológicas, apenas no campo abstrato, necessitando sua concretização o que é obra, como dito antes, de todos, governantes ou não e, principalmente, do intérprete.
Ou, como acentua Konrad Hesse[20]
Toda Constituição, ainda que considerada como simples construção teórica, deve encontrar um germe material de sua força material no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, necessitando apenas de desenvolvimento (…) a constituição, entendida aqui como constituição jurídica, não deve procurar construir o Estado de forma abstrata. Ela não logra produzir nada que já não esteja assente na natureza singular do presente. Quanto mais o conteúdo de uma constituição lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.
Nessa linha de raciocínio é que vamos encontrar o princípio da dignidade da pessoa humana fortalecido e amparado pela Constituição Brasileira que, na ponderação a que todos os princípios devem estar submetidos, sobreleva-se a outros, de forma que a existência digna da pessoal como valor indispensável para a pacífica vida em sociedade (contrato social) está a indicar o caminho para que seja preservada a identidade e o direito à personalidade de cada pessoa, sob pena de se estar amesquinhando e diminuindo o valor maior sobre o qual se constrói uma sociedade justa e humana, qual seja o próprio direito à vida.
E, se assim o é, a ascensão do Direito Constitucional no Brasil e da própria Constituição a elemento central de todo o sistema jurídico, ao incluir o direito à dignidade humana entre os direitos fundamentais subordinou e condicionou todo o restante das normas legais, pré ou pós existentes à “filtragem” de forma que “a Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como “filtragem constitucional”, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão da Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.[21]
O direito de personalidade, como direito fundamental vai buscar suas origens no cristianismo, visto que na Grécia, conhecida como o berço da civilização e da democracia, este sequer era considerado e, segundo informa Maurício Beuchot[22], a filosofia grega não conhece o homem como ser de subjetividade por completo, visto que o pensamento dos filósofos helênicos acabou por sempre atrelar o homem seja ao destino ou ao objetivismo, não se alcançando uma noção de pessoa como indivíduo racional e possuidor de uma vontade atuante no mundo fático.
Lembra ainda o Prof. Diogo Leite de Campos[23] que somente eram tidos como pessoas individualizadas em sua subjetividade na sociedade antiga aquelas que ocupassem os primeiros papéis na sociedade, ou fossem os grandes heróis das guerras ou os vencedores dos Jogos.
Já, em Roma, afirma-se que a plena personalidade jurídica em Roma advinha da reunião dos três status: a) status libertatis; b) status familiae e c) status civitatis. Cada status indica a posição da pessoa em relação ao Estado (como homens livres e cidadãos romanos) e à família (como pater familias ou filius familias).[24]
Em Roma, o cidadão podia sofrer a capitis deminutio que era assim a "mudança de estado ocasionada pela perda do status libertatis, civitatis ou pela mudança do status familiae. Sendo a personalidade jurídica integrada por estes três elementos – libertas, civitas, familia, a deminutio pode recair sobre cada um deles, dando origem, então, a três espécies de capitis deminutiones – a máxima, a média e a mínima."[25] Em síntese perfeita o eminente professor Ebert Chamoun[26] escreveu que "havia, portanto, três capitis deminutiones: a máxima ou perda da liberdade, a média ou perda da cidadania e a mínima ou perda da família. A capitis deminutio maxima ocasionava também a perda da cidadania e da família, e a capitis deminutio media acarretava ainda a perda da família."
Será o Cristianismo a força motriz que trará o homem mitigado na filosofia pré-socrática para a posição de pessoa dotada de subjetividade. Esta figura da pessoa como valor essencial de todo um complexo ético-jurídico se torna sólida tão somente com a união das filosofias antigas, com uma ainda incipiente teologia cristã. Como diz o professor Juan Castan Tobenãs[27], foi o cristianismo que desde seus primeiros momentos afirmou o indivíduo como um valor absoluto, exaltando o sentimento de dignidade da pessoa humana e proclamando uma organização da sociedade que viesse a permitir o total desenvolvimento de sua personalidade, sem prejuízo para o bem comum, ao revés, colaborando para o desfrutar deste.
Fundada então nesta concepção de pessoa está aberto o campo para a fomentação de seus direitos inicialmente através do pensamento cristão, "ao determinar este a dessacralização da natureza e da sociedade, libertando o homem de ser objeto para o transformar em sujeito, portador de valores (pessoa)."[28] Para a doutrina cristã, o fiel é aquele que está em relação com Deus, e este fez o homem à sua imagem e semelhança. Contudo o ser humano é dotado de livre arbítrio e deve conduzir na vida terrena suas ações de acordo com esta liberdade, permitindo assim um juízo de apreciação meritória no agir do indivíduo, pois agindo de forma correta encontrará o fiel a Salvação.
Os direitos da personalidade como intrínsecos à razão humana só foi efetivamente ganhar força com as revoluções, notadamente a francesa.
A ideologia que irá sustentar as revoluções burguesas do século XVIII começa a surgir já no humanismo renascentista (XVI). Voltados para o período clássico, onde buscavam inspiração, os humanistas centram suas questões no homem e no mundo em que este habita. A Reforma, por sua vez, ao associar o sucesso no mundo à salvação espiritual, em muito contribuiu para o fortalecimento do individualismo, em cujo desdobramento se vislumbraria a crescente reivindicação do direito à liberdade (religiosa).[29] O ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, é ser auto-suficiente, pois dotado de razão.[30] Assim, no plano político, separam-se Igreja e Estado e afirma-se o direito do indivíduo à liberdade de consciência.
Entre os séculos XVI e XVIII, surgem as doutrinas contratualistas, cuja maior contribuição será a de retirar de Deus a origem dos Estados, para situá-la em um pacto celebrado por indivíduos que viviam nos primórdios em estado de natureza. Portanto, é este pacto fundador a origem das liberdades políticas e dos direitos e deveres dos cidadãos, que não o podem descumprir sob pena de retornar ao estado pré-político, com seus inúmeros inconvenientes. Segundo Rousseau, as cláusulas deste pacto refletiriam a "vontade geral", união das vontades de cada indivíduo isoladamente, que legitimaria a existência do Estado político. Logo, o ser humano é fundamento constitutivo de qualquer sociedade, e sua degradação implica necessariamente a degradação social.[31] Infere-se daí a proeminência de se resguardar os direitos inerentes à pessoa humana, anteriores à existência do próprio Estado.
A partir do contratualismo, Grócio enfatizará a teoria do Direito Natural[32], que traz em seu seio a revalorização da individualidade de cada homem, obscurecida durante toda a Idade Média. A razão é comum a todos os homens e os guia no sentido de uma secularização crescente do saber, donde a proeminência logo concedida ao direito de liberdade de expressão, conforme será observado durante todo o curso das revoluções liberais burguesas, a partir da Americana.[33]
No âmbito jurídico, refletindo as mudanças ideológicas que se processavam no interior da sociedade, surge a expressão "direitos fundamentais", na França, por volta de 1770. Estes se restringem, nesta época, aos direitos individuais, o que nos permite a aproximação e o exame de seu histórico ainda que o ensejo desta etapa da pesquisa seja os direitos da personalidade, que são tutelados na esfera privada. É preciso salientar, ademais, que a positivação destes direitos tem lugar em situações revolucionárias, donde a esfera pública de sua tutela preceder a particular (o fenômeno da codificação do direito civil dar-se-ia um pouco mais tarde). Cumpre destacar que outras expressões foram por vezes utilizadas indistintamente para designar estes mesmos direitos, como, por exemplo, na Constituição Francesa de 1793, que fez uso da forma "liberdades públicas" quando tratava das esferas de autonomia em favor do indivíduo face ao Estado. Imprescindível é salientar que atualmente a expressão "direitos fundamentais" abarca outros direitos ademais dos individuais, a que ora damos ênfase.
No âmbito internacional, cunhou-se na Idade Moderna a expressão "direitos humanos", na qual estão incluídos todos aqueles inerentes à pessoa humana e que merecem, portanto, proteção no âmbito internacional. As diversas teorias a respeito da origem desta expressão nos ajudam a esclarecer quais os valores que à época se desejava tutelar. Dufour[34] classifica as teses em: a) política – fundamenta o nascimento destes direitos na vontade de protesto coletivo, numa alusão inequívoca às Revoluções Americana e Francesa; b) religiosa – credita a origem destes direitos ao desenvolvimento do pensamento fruto da Reforma Religiosa nos EUA; c) puramente contingente da natureza histórica – o aparecimento seria a elaboração doutrinária em um momento histórico privilegiado vivido pelos colonos americanos de direitos historicamente já existentes; d) baseada no direito natural – estes direitos seriam anteriores à formação dos Estados.
A teoria dos direitos humanos bebeu profundamente nos filósofos jusnaturalistas do século XVIII e se afirma em oposição aos costumes e privilégios que marcaram o abismo intransponível entre nobres e desfavorecidos enquanto perdurou o regime feudal. O surgimento efetivo destes direitos é, todavia, matéria controversa, que gerou caloroso debate entre Boutmy e Jellinek, uma vez que o primeiro afirmava terem os direitos humanos sido apontados originariamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, enquanto o segundo atribuía tal feito à Declaração de Virgínia de1776, promulgada quando do processo de independência das 13 colônias.
Na modernidade, é crescente a importância dada à necessidade de se tutelar o maior número de projeções da pessoa humana, em seus aspectos físicos, psíquicos e intelectuais. Entretanto, tais projeções não podem ser vistas como taxativas; ao contrário, é imprescindível que o direito proteja também aquelas não especificamente positivadas. A personalidade deve ser entendida como um valor ilimitado a ser tutelado, o que não impede que o ordenamento jurídico expressamente regulamente suas vertentes mais relevantes, visando a facilitar a aplicação do direito[35]. Proteger a dignidade do ser humano é possivelmente a mais nobre função do direito.
O direito evolui através da história, buscando aperfeiçoar-se. Desde que os direitos econômicos e sociais vieram ao ordenamento positivo com a Constituição de Weimar de 1919, é crescente a importância a eles atribuída. Quando de sua concepção, foram encarados como direitos fundamentais em face do Estado. Atualmente, teorias os têm consagrado também como inerentes à condição de ser humano, sendo por isso passíveis de tutela no âmbito privado. Cabe a cada membro da sociedade agir de modo a prover aos demais condições condignas de existência, incluindo-se, neste momento, entre os direitos da personalidade o direito à saúde física e psíquica, o direito ao trabalho, o direito ao meio ambiente. O contínuo desenvolvimento das relações interpessoais em sociedade levará possivelmente ao elenco de novos direitos no âmbito da personalidade humana.
Portanto, é preciso se afastar do individualismo radical. O conflito entre direitos da personalidade de sujeitos distintos precisa ser melhor regulado, pois corre-se o risco de se transformar a tutela da personalidade em um jogo de poder, no qual a vontade do mais forte irá inelutavelmente prevalecer. No equilíbrio entre o individual e o social se realiza a justiça nas relações do homem em sociedade. Assim, à guisa de ilustração, o direito do homem à própria vida não permite que dela disponha, pois, por uma identidade de razão, para que ele respeite e defenda a vida de todos os demais, é preciso que preserve a sua. É desde o ponto de vista da incessante procura por um melhor convívio entre os indivíduos que cumpre avançar no estudo dos direitos da personalidade.
A doutrina jusfilosófica do personalismo, como diz o prof. Castan Tobenãs, tem alcançado grandes triunfos na defesa da dignidade da pessoa humana, notadamente há de se destacar o trabalho de Lask e Radbruch na teoria jurídica alemã, em França, distinguindo-se indivíduo de pessoa, representam também o personalismo os estudos de autores como Mounier e Maritain. A parte deste debate jurídico deve-se lembrar ainda que o tema da pessoa e seus valores tem ocupado cenário destacado nas filosofias de autores deste século como Max Scheller e Nicolai Hartman, além de estar também tal temática presente nas especulações existencialistas de Kierkegaard e Heidegger.
O personalismo contemporâneo visa a correção dos excessos cometidos pelo individualismo burguês, intentando-se uma conciliação entre os aspectos individuais e sociais da pessoa, tendo como base noções de caráter comunitarista. A problemática de se defender os direitos da personalidade em meio à uma sociedade contemporânea que oprime em seu crescimento vertiginoso constitui-se no desafio que aguarda atualmente a reflexão jusfilosófica. Toda a trajetória até aqui exposta visa justamente fornecer fundamentos para aqueles que sejam estudantes ou profissionais do Direito percebam a nova realidade que se apresenta. Superadas as concepções jusnaturalistas e positivistas, cumpre ao indivíduo, força motriz do fenômeno jurídico, dirigi-lo de forma a assegurar o total desenvolvimento da personalidade e seus direitos inerentes dentro de um espaço social cada vez mais complexo, onde apenas um agir pautado pela comunicação entre seus agentes poderá prosperar e fazer valer seus direitos.[36]
A dignidade pressupõe igualdade, ausência de preconceitos e, se não fossem iguais, os homens não seriam capazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, nem de prever as necessidades das gerações futuras. Mas também, se não fossem diferentes, os homens dispersariam o discurso ou a ação para se fazerem entender, pois com simples sinais e sons poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas. A pluralidade humana, afirma Hannah Arendt[37] tem esse duplo aspecto: o da igualdade e o da diferença.
Exatamente essa diferença pode se constituir no sucesso ou no fracasso da experiência da passagem do ser humano pela terra, em razão e conseqüência direta da efetiva disposição de nos ajudarmos mutuamente, na aplicação diuturna do princípio da solidariedade como forma de consecução de objetivos comuns de felicidade e plenitude e, em última análise, da própria preservação da espécie humana.
VI – O PAPEL FUNDAMENTAL DO PODER JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS DA HERMENÊUTICA.
O que se pretende, se busca frenética e incessantemente é a aproximação da Justiça com a Justiça (O Poder Judiciário com a equidade), resguardados os direitos e prerrogativas individuais considerados como inatos à toda e qualquer pessoa humana.John Rawls[38], em seu Uma Teoria da Justiça, procurando dar conta da afirmação inicial de que cada pessoa tem a inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade pode anular, de forma que numa sociedade justa, os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à barganha política ou ao cálculo de interesses sociais, escreve:
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior compartilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual, são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis.
Ademais, não se pode esquecer que a melhor aplicação da norma jurídica é aquela que se coaduna com o momento em que se interpreta. Essa a função do jurista moderno, atual, ligado e conectado ao seu tempo, ao seu mundo e aos que o rodeiam.
O direito do século XXI será diferente do direito dos anteriores séculos, exatamente porque o jurista de hoje tem uma atitude muito diferente da atitude do jurista de séculos anteriores.
E é este homem do direito atual que relê o que efetivamente restou de perene, após o desmoronamento de uma secular estrutura de dogmas, afastando de si a segurança da fossilização e da estagnação de conceitos e de normas, para admitir a abertura de castelos – ou de prisões – em prol da atenção às transformações geradoras da crise, em prol da vivificação dos valores da vida e dos anseios do homem de hoje, este ser de incansável movimento e de infinitos sonhos. Sua vivacidade, sua inteligência ímpar, sua aguda percepção dos fenômenos, sua supremacia na escala biológica, tudo isso que o colocou em pé, uma primeira vez, prossegue agigantando-se em seu espírito, não lhe conferindo paz, serenidade ou repouso, mas, antes, incitando-o eternamente a caminhar além, a esmiuçar segredos e a constranger costumes ancestrais.
Este caminhar desvenda-lhe outros mistérios, inova-lhe o espírito, estabelece novos horizontes de contemplação de sua ambientação jurídica. Fá-lo novo e faz novos os seus projetos. Por isso, novo há de ser também o direito que dimensiona e organiza a sua vida privada. O desafio – profetiza Fachin[39] – consiste em trocar práticas de medievo pelos saberes construídos às portas do terceiro milênio. E este é apenas o singelo ponto de partida rumo ao que abre o terceiro milênio.
Não se há, contudo, de destruir e desconstruir o que se tem até agora, mas sim de se remodelar, de se lançar um novo olhar a partir da perspectiva de se colocar como centro de todo o sistema, o próprio ser humano, e não mais a propriedade, o contrato, o patrimônio ou qualquer outro valor típico do liberalismo e do individualismo que, não se duvida nem se questiona, teve seu momento e seu valor histórico, mas não pode ainda ser aceito num mundo moderno, globalizado e acima de tudo, que se quer solidário e humano.
Aliás, a função primordial do intérprete e hermeneuta no Direito atual, cada vez mais relevante e mesmo essencial no sentido de que interpretar seja explicar porque determinadas palavras podem fazer várias coisas, e não outras ou, nas palavras de Larenz[40], “interpretar é uma atividade de mediação, pela qual o intérprete traz à compreensão o sentido de um texto que se lhe torna problemático” e, para tanto, o saber jurídico ocupa papel de relevo, pois não se restringe a um conjunto de códigos, mas tem de ser concebido como um processo de diálogo, de troca entre o ser e o mundo, necessariamente entendido como uma reação ao positivismo.
A própria norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, a sua essência reside no fato de que a relação por ela regulada venha a ser concretizada na realidade.[41] E, complementando com a idéia de interpretação trazida por Häberle[42], de que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada, e sustenta que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública, inclusive com espaço para participação das potências públicas pluralistas, concretizando-se uma “interpretação democrática”.
Fica-se aqui, com o primado de Bonavides[43], para quem a interpretação jurídica, em si, é a reconstrução do conteúdo da lei, sua elucidação, de modo a operar-se uma restituição do sentido do texto viciado, obscuro ou não condizente com a realidade temporal-geográfica. Em verdade, a interpretação mostra o Direito vivendo plenamente a fase concreta e integrativa, objetivando-se na realidade. E, “se é verdade que a Modernidade não cumpriu com suas promessas emancipatórias à civilização ocidental, cumpre verificar como podemos conviver e solucionar os impasses que se apresentam no âmbito das demandas sociais emergentes, todas dizendo respeito á necessidade de concretização dos direitos assegurados pelas Cartas Políticas vigentes”.[44]
Invoca-se a responsabilidade de todos nós, intérpretes do direito, quer na condição de profissionais ou de participantes da forma democrática de interpretação para a conclusão de que num Estado Democrático Constitucional de Direito, notadamente em sistemas de cláusulas abertas como o incorporado pela Constituição e pelo Código Civil, v.g. conceitos como “pessoa”, “direito subjetivo”, “bem jurídico”, “regular funcionamento das instituições democráticas”, etc podem se modificar, alterando todo o direito sem necessidade de se modificar a lei “positiva”.[45]
É exatamente nesse contexto que Rawls[46] avança com a distinção entre um conceito de justiça e as diversas concepções de justiça. As regras jurídicas, afirma, tanto podem conter preceitos bem precisos, que não requerem nenhuma interpretação especial, posto que o seu significado é sempre o mesmo, as chamadas “concepções”, que o legislador quis que perdurassem como decisões globais de sistema, como podem incorporar ainda temas vagos, referências a padrões ou condutas, cuja concretização depende essencialmente das idéias do momento, os chamados “conceitos”, que reclamam dos juizes e dos tribunais uma complementação ou concretização posteriores.
VII – O DESAFIO DA APLICAÇÃO DO DIREITO DE FORMA SOLIDÁRIA.
Maria Celina Bodin de Moraes[47] diz que Em 1911, Gioele Solari[48] afirmava: “o direito de ser homem contém um direito que ninguém me impeça de ser homem, mas não o direito a que alguém me ajude a conservar minha humanidade” e prossegue dizendo que: A mudança de paradigma pode ser expressa através do antagonismo a esta melancólica locução, incompatível com a função atulmente atribuída ao Direito. Pretende-se hoje, ou melhor, exige-se que nos ajudemos, mutuamente, a conservar a nossa humanidade.
E, essa interação, esse ajudar mútuo, solidário e recíproco constitui-se, em verdade, num ponto de contato e similitude até mesmo entre duas formas de governo absolutamente diversas, e mesmo antagônicas, como são o liberalismo e o socialismo que, na visão atualizadíssima de John Rawls[49] consiste no fato de que
A idéia de utopia realista reconcilia-nos com o nosso mundo social, mostrando que é possível uma democracia constitucional razoavelmente justa, existindo como membro de uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa. Ela estabelece que tal mundo pode existir em algum lugar e em algum tempo, mas não que tem de existir ou que existirá. Ainda assim, podemos sentir que a possibilidade de tal ordem política e social, liberal e decente, é inteiramente irrelevante enquanto essa possibilidade não é concretizada.
Embora a concretização, não seja, naturalmente, destituída de importância, creio que a própria possibilidade de tal ordem social pode, ela própria, reconciliar-nos com o mundo social. Ela não é uma mera possibilidade lógica mas uma possibilidade que se liga às tendências e inclinações profundas do mundo social. Enquanto acreditarmos, por boas razões, que é possível uma ordem política e social razoavelmente justa e capaz de sustentar a si mesma, dentro do país e no exterior, poderemos ter esperança razoável de que nós ou outros, algum dia, em algum lugar, a conquistaremos.
Este, enfim, é o desafio que nos é colocado na, assim chamada, modernidade e, no que interessa diretamente ao campo de atuação profissional do Direito, com muito mais razão, se nos pode mesmo ser exigido pela sociedade, atuação eficaz na concretização e efetivação dos direitos humanos fundamentais e, entre eles, o direito à plena personalidade, da forma como inserido na Constituição Federal de 1988.
VIII – O SISTEMA JURÍDICO CIVIL-CONSTITUCIONAL EM CONSTRUÇÃO.
Não há como se negar que o direito privado – e, notadamente, o Direito Civil incluindo-se aqui os institutos da prescrição e da decadência com toda a força preceptiva de serem considerados como extintivos de direitos – é um “um sistema em construção”, recheado de cláusulas gerais, que deverão se interpretar, aplicar e complementar de conformidade com as alterações e evoluções sociais e humanas ou, como assevera Judith Hofmeister Martins-Costa[50].
dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. […] Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social, tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar – até que consolidada a jurisprudência – certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos.
Não se ignora, também, que, para estruturar o direito com cláusulas abertas e gerais, faz-se necessário um Poder Judiciário atento às vicissitudes da população e conectado às alterações da malha social e, principalmente, atento às alterações comportamentais que acarretam a modificação da própria noção de certo e errado das pessoas.
A cláusula geral, portanto, exige do juiz uma atuação especial, e através dela é que se atribui uma mobilidade ao sistema, mobilidade que será externa, na medida em que se utilizam conceitos além do sistema, e interna, quando desloca regramentos criados especificamente para um caso e os traslada para outras situações.[51]
Parece que não restam dúvidas de que, em termos de direitos fundamentais, ao menos enfocados sob a ótica de sua respeitabilidade efetiva e concreta, ainda estamos engatinhando, a despeito de, como afirmou Paulo Mota Pinto,[52] juiz do Tribunal Constitucional de Portugal e docente da Faculdade de Direito de Coimbra, que
O reconhecimento a todo o ser humano do valor de pessoa é hoje um verdadeiro postulado axiológico do jurídico, que não deve sofrer contestação relevante, pelos menos ao nível das proclamações. A personalidade do Homem é para o direito um prius, que o Direito encontra, não cria, e que deve ser reconhecido e tutelado pela ordem jurídica. Tais direitos são, assim, essenciais, uma vez que a própria personalidade humana quedaria descaracterizada se a proteção que eles concedem não fosse reconhecida pela ordem jurídica. É exatamente sob esse aspecto que se procurou, neste trabalho, confrontar o direito à vida, do qual é subproduto o conhecimento da existência e origem da existência, a colocação social, afetiva e biológica da pessoa no mundo, no momento do nascimento e posteriormente e o auto-reconhecimento da pessoa como ser humano do sexo masculino ou feminino, criando-se o impasse jurídico-sociológico quando a verdade internalizada afronta e digladia-se com aquela exteriorizada pela anatomia.
Conclui-se, assim, que as relações civis, que têm como pressuposto lógico e axiológico a própria existência das pessoas, são muito mais profundas do que o direito privado a estudava, enfocava e analisava até muito pouco tempo atrás, distinguindo-as, de forma marcada, dos assim chamados direitos públicos. Tanto assim que se vivencia no país o forte movimento de constitucionalização do direito privado e, notadamente, do Direito Civil. Para tanto, é necessário reconhecer que os valores da sociedade atual não são mais aqueles pregados pelo Direito Civil do Estado Liberal. Em vez da autonomia da vontade e da igualdade formal, sobrepõem-se os interesses de proteção de uma população que aguarda providências e prestações estatais. Esses valores que outrora estavam no Direito Civil estão agora nas constituições. A Constituição, que no paradigma burguês era desinteressada quanto às relações sociais, passa a preocupar-se com elas, incorporando os valores que, ao mesmo tempo, vão sendo expressos no ordenamento. A lei fundamental, então, é que positiva os direitos concernentes à Justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança etc. Antes, eles estavam no Código Civil ou, como diz Pietro Perlingeri[53],
O direito civil constitucional parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, da regulação patrimonial que sempre pretendeu ser – não se projetam a expulsão e a redução quantitativa do conteúdo patrimonial no sistema jurídico e naquele civilístico em especial. O momento econômico, como aspecto da realidade social organizada, não é eliminável. A divergência, não certamente de natureza técnica, concerne à avaliação quantitativa do momento econômico e à disposição de encontrar, na existência da tutela do homem, um aspecto idôneo, não a humilhar a aspiração econômica, mas, pelo menos, a atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.
Não há, por assim dizer, qualquer possibilidade de simplesmente se ignorar, diante da notável evolução do direito como instrumento de tutela da pessoa humana, o seu valor matricial e fundamental na ordem existencial do mundo, as origens biológicas e afetivas da pessoa, seu reconhecimento interno e externo perante a sociedade, o mundo e as demais pessoas e a necessária convivência com outras pessoas, num microssistema constituído pela família, berço, amparo, reduto seguro, ponto de partida e chegada, porto seguro de todos nós, mas, de qualquer forma, reconhecendo a insuficiência de conceitos, princípios e conhecimentos para a exata valoração do ser humano ou, como afirmou Luiz Edson Fachin[54],
Cogita-se agora, pois, de aprofundar uma revisão crítica principiada e não terminada, dado que não basta mais revelar a franca decadência que sofreram as bases sobre as quais se edificaram os institutos jurídicos. Não se trata de uma crise de formulação, eis que o desafio de um novo ou renovado Direito Civil está além de apenas reconhecer o envelhecimento da dogmática. Um recomeço, cujo fim principia e acaba num ponto de partida. [Destaque inexistente no original].
E, não há como deixar-se de reconhecer que os institutos da prescrição e da decadência estão a merecer definições e conceitos mais ligados aos direitos fundamentais e interpretados sob a ótica constitucional da preponderância de tais direitos sobre quaisquer outros.
IX – AS CLÁUSULAS ABERTAS E A RESPONSABILIDADE DO INTÉRPRETE
Partindo-se da premissa certa de que o Novo Código Civil adotou, como critério filosófico e forma legislativa, a inserção de cláusulas abertas permitiu que o sistema civil estivesse sempre e constantemente em construção, pela possibilidade de recolher e regular mudanças e criações supervenientes. Como afirma a profa Judith Hofmeister Martins Costa[55] que a razão de visualizar o novo texto legislativo à luz de suas cláusulas gerais responde à questão de saber se o sistema de direito privado tem aptidão para recolher os casos que a experiência social contínua e inovadoramente propõe a uma adequada regulação, de modo a ensejar a formação de modelos jurídicos inovadores, abertos e flexíveis. Em outras palavras, é preciso saber se, no campo da regulação jurídica privada, é necessário, para ocorrer o progresso do Direito, recorrer-se sempre a uma pontual intervenção legislativa ou, se o próprio sistema legislado permitir, poderia, por si, proporcionar os meios de se alcançar a inovação, conferindo aos novos problemas soluções a priori assistemáticas, mas promovendo, paulatinamente, a sua sistematização.
Parece indubitável que o Código abandonou a idéia absolutista da tematização e estabelecimento de regras herméticas e casuísticas que têm a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos devidos na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida civil em um mesmo e único corpo legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura, e parece que foi exatamente o que almejou Miguel Reale[56], ao utilizar a expressão “modelos jurídicos”.
Nunca se consegue atravessar o rio e chegar à outra margem sem uma boa dose de risco e incerteza, que, sem dúvida, são características existentes na opção do legislador do Novo Código Civil em inserir um grande número de princípios e cláusulas gerais, não ignorando que, segundo informou Miguel Reale[57], uma lei não deve ser interpretada segundo a sua letra, mas, consoante o seu espírito, leva a considerar o conjunto de diretrizes que norteou a obra codificadora, “constituindo o seu travamento lógico e técnico, bem como a base de sua fundamentação ética”.
Essa ética há de ser norteada pelo fato de que em primeiro plano está o ser humano valorado por si só, pelo exclusivo fato de ser pessoa – isto é, a pessoa em sua irredutível subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular e, por isso mesmo, titular de atributos e de interesses não mensuráveis economicamente – passa o Direito a construir princípios e regras que visam tutelar essa dimensão existencial na qual, mais do que tudo ressalta a dimensão ética das normas jurídicas. Então, o Direito Civil reassume a sua direção etimológica e, do direito dos indivíduos, passa a ser considerado o direito dos civis, dos que portam em si os valores de civilidade.[58]
Absolutamente não como um todo acabado e imutável, mas como um sistema cíclico, translúcido, que se deixa influenciar, oxigenar, amadurecer e atualizar pelas constantes mutações sociais, fruto da natural e saudável natureza humana de buscar, inovar e descobrir e, afinal, não permanecer estagnado, renunciando às mudanças e, via de conseqüência, ao progresso, ao desenvolvimento e à aprendizagem. E, o que é a aprendizagem, senão o movimento entre aquilo que fui há instantes atrás e aquilo que ainda não sou?
Aprender é um embate, é um ranger de espadas. Aprender é um risco atraente… é o risco de estarmos novamente e a cada instante, além de nós mesmos, além do que é conhecido, além do que já fomos, além do que somos.
Faz-se vivo o ensinamento de Michel Serres[59] de que
Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à idéia dos usuários, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parte, divide-se em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e reverenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente como o universo que, no início, explodiu-se, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa. Partir, sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros modos de ser e expor. Porque não há aprendizagem sem exposição.
X – PODER JUDICIÁRIO E A LEGITIMIDADE DE SUAS DECISÕES ATRAVÉS DA FUNDAMENTAÇÃO VOLTADA Á CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Os Direitos Humanos poderiam ser considerados como uma conquista da cidadania, ou esta afirmação seria mera utopia?
Como já se deixou transparecer em diversas passagens anteriores, acredito, com Hannah Arendt[60], que “a igualdade não é um dado, mas um construído”, de forma que a todos cabe enfatizar a busca da aplicação e da concretização dos direitos humanos, notadamente quando alçados ao status constitucional que, num regime democrático de direito impõe, possibilita e conta com a participação ativa e efetiva de todos.
Há um sem número de conceitos propostos por doutrinadores pátrios e alienígenas para o que possa vir a ser direitos humanos, concluindo que são aqueles inerentes à pessoa humana, que visam resguardar a sua integridade física e psicológica perante seus semelhantes e perante o Estado em geral, de forma a limitar os poderes das autoridades, garantindo, assim, bem estar social através da igualdade, fraternidade e da proibição de qualquer espécie de discriminação. Como ressaltou Flávia Piovesan[61], discriminação
significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.”
Ao passo em que se percebe um grande número de conceitos abertos, que envolvem a convocação da Justiça à complementação e aprimoramento tendentes à concretização, revela considerável dose de utopia, não na definição vernacular do termo (projeto irrealizável, quimera[62]), mas como apregoa Herkenhoff[63] que não existe em nenhum lugar (origem grega). A utopia é o contrário do mito, ou seja, utopia é a representação daquilo que não existe ainda, mas que poderá existir se o homem lutar para sua concretização. E, prossegue afirmando que a utopia é a consciência antecipadora do amanhã. O mito ilude o homem e retarda a História. A utopia alimenta o projeto de luta e faz a História. Herkenhoff vê o pensamento utópico como o grande motor das revoluções, idealizador do Princípio da Esperança que anima o mundo.
Não se ignora a massificação da agressão e da própria suplantação dos direitos humanos, tanto local, quanto universalmente, basta que se abram os jornais que trazem diariamente demonstração de miséria, violência, discriminação, prepotência, corrupção, para se concluir que o ser humano clama por justiça, igualdade e fraternidade ou como ainda ensina o mesmo Prof. Herkenhoff[64] as pessoas têm uma dignidade humana que tem que ser reverenciada. O Direito não pode ser instrumento legitimador da exploração do homem pelo homem. Direito que legitima a espoliação não é Direito, mas corrupção do Direito.
Urge, em conseqüência, reconstruir os valores humanos, desde suas raízes e transformar cada indivíduo, cada estudante e cidadão consciente e exigente da salvaguarda desses valores.[65] E, este atuar envolve não só os movimentos sociais, organizados ou espontâneos, passando pela legitimação da atuação dos representantes eleitos pelo povo, membros dos Poderes Executivo e Legislativo, até a exigência de um Poder Judiciário independente, atento e apto a fazer valer os direitos humanos e interromper qualquer tipo de agressão que possa estar sendo impingida à pessoa, a teor do que está previsto no Novo Código Civil nos artigos 12 (Pode-se exigir que cesse a ameaça ou a lesão, a direito da personalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei) e 21 (a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma), incluindo-se também, sob este aspecto, a prerrogativa de argüição de inconstitucionalidade de lei, por qualquer pessoa, como forma de exercício de seu direito à cidadania.
Uma análise, ainda que por demais sucinta, da nossa conformação constitucional, revelará, de plano, que o sistema difuso é um mecanismo de controle de constitucionalidade que já fixou firmes raízes na prática institucional brasileira, densificando-se, na atualidade, essencialmente através do Recurso Extraordinário (art.102, III), demonstrando ser um valioso instrumento processual de dinâmica constitucional, com o qual os cidadãos podem levantar as suas pretensões e seus questionamentos, contribuindo para a formação do que Häberle[66] chamou de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição.
Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade pode dar-se como preliminar de mérito em qualquer processo, cível ou penal, de tal forma que todo cidadão tem o direito de se opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e todo juiz ou tribunal, da primeira à última instância, não só pode, mas deve, como atividade típica e função intrínseca à jurisdição brasileira, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo de qualquer espécie, negando a aplicação de ‘comando’ eivado de inconstitucionalidade."[67]
No sentido inverso, uma forte corrente capitaneada pelo Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes pugna pela ampliação e predomínio do controle concentrado, empregando um sofisticado arsenal teórico para restringir o controle difuso, pretendendo demonstrar que o modelo concentrado propicia maior segurança jurídica, pois mais célere e uniforme em termos processuais, afirma que a Constituição Federal de 1988, ao aumentar o número dos que possuem legitimidade ativa para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, como acima exposto, reduziu sensivelmente o alcance do controle incidental/difuso, "permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas,"[68] até porque, da forma como é composto o Supremo Tribunal Federal, possibilita que venha ele a se transformar em longa manus do Poder Executivo, a quem os ministro devem suas próprias nomeações a tão altos cargos e, pessoas de fina formação, sem dúvida não se permitirão serem considerados como ingratos, e exatamente aí está o temor das chamadas súmulas vinculantes.
A meu sentir, as abordagens jurídicas que fortalecem demasiadamente o controle jurisdicional concentrado, em detrimento do tipo difuso ou incidental, o qual, em razão de sua maior abertura e proximidade com a coletividade, permite uma constante e salutar atualização interpretativa do texto constitucional, que em um paradigma democrático de direito, como o consubstanciado na Constituição de 1988, deve estar sempre apto a ser relido e tematizado por todos os interessados e destinatários do mesmo até porque estão inseridos, no campo paradigmático do Estado Democrático de Direito encontrado na Constituição "cidadã" de 1988, o qual marca uma profunda ruptura com as concepções jurídicas anteriores, já que, à luz dos princípios consagrados constitucionalmente, tomam enorme vulto garantias processuais fundamentais e inafastáveis de participação dos cidadãos, seja tanto na esfera política como na jurisdicional, revelando que todos estamos autorizados a sermos intérpretes do texto constitucional, respaldando a nossa tradição de controle difuso. Em outros termos, como ensina Cattoni de Oliveira[69], há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser tão-somente um problema de experts para se tornarem questões de cidadania.
Verifica-se a dificuldade em se admitir que a sociedade civil, como um todo, seja co-intérprete necessária do texto maior, além de vislumbrarmos a crença iluminista em que um método ou racionalidade infalível, no caso em questão, a ADC, seria capaz de produzir, ontologicamente, certeza e segurança jurídica, na ilusão de que uma decisão, por si só, apenas por se fundamentar no argumento da "autoridade qualificada"[70] , se impusesse, em uma inútil tentativa de se exorcizar o risco da divergência, não reconhecendo que a democracia requer esse potencial dissenso em um consenso.
Como diria o próprio Peter Häberle[71]:
Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição.
Daí, que a possibilidade de uma participação/interpretação o mais difusa possível é considerada requisito essencial para se ter um sujeito constitucional democrático, e os instrumentos processuais, abrindo espaço de discussão e argumentação a todos, são mecanismos centrais para o direito moderno, permitindo que sejam aplicadas, através de um efetivo procedimento contraditório, as normas aos casos concretos, assegurando a plenitude ao devido processo legal, reconhecendo que só nas situações de aplicação devem-se fundamentar as decisões judiciais, em uma noção processual de justiça, isto é, tomado sob esse ângulo, o processo é um segmento de uma atividade comunicativa de uma sociedade, o confronto de argumentos diante de um tribunal constituindo um caso admirável do uso dialógico da linguagem.[72]
Salienta-se que todas essas afirmações possuem como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual deve-se buscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro, aferindo que a democracia é um projeto em contínua construção, onde a sociedade civil organizada é compreendida, em si mesma, como esfera pública, possuindo, desta maneira, a tarefa de estar em vigília contra essa reiterada possibilidade de privatização.
Em outras palavras, em um Estado Democrático de Direito plural, no qual convivem projetos de vida os mais diversos possíveis, uma saída possível para lidarmos com a complexidade que a modernidade impõe é ampliarmos e reforçarmos o nosso modelo de controle de constitucionalidade difuso, tornando plausível que quaisquer temas ou interesses sejam nele levantados e discutidos, visualizando a democracia como um processo interminável, sem exigir uma segurança definitiva, onde os membros desse mesmo Estado Democrático de Direito consigam reconhecerem-se como autores do ordenamento jurídico ao qual se submetem, em uma efetiva autolegislação[73].
Finalizando esta etapa “utópica” que, ao ver daqueles que não desejam ou não têm coragem para mudanças, mesmo que a situação atual não guarde mais qualquer conexão com o bom senso, reacionários que consideram utopia qualquer proposta de mudança, invoco a lição de Eduardo Galeano[74] segundo quem
A utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte se distancia dez passos mais além. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.
Mas, de qualquer forma, mudanças não haveria nunca, não fossem os obstinados, não fossem os que, ainda que de forma inconsciente seguem a lição do Corão: Vá em busca do que o estiver inspirado e seja paciente, saber que é necessário continuar aprendendo, desfrutar os desafios e tolerar a ambigüidade pois, em definitivo, não existem certezas e, de qualquer forma o que estiver sendo feito, com convicção, com dedicação, com seriedade, ética e desprendimento, será muito mais importante do que aquilo que efetivamente for conseguido e, pelo simples fato de o estar fazendo, já será suficiente para a sensação de se estar participando do desenvolvimento do direito, visto como ciência da humanidade, voltada a atender as necessidades e expectativas do ser humano. Basta, por ora, a certeza da necessidade do caminhar, do descobrir, do porvir para evitar a assertiva de Thomas A Edison[75] – A nossa maior fraqueza reside em que temos a tendência a abandonar. A maneira mais segura de conseguir os objetivos é sempre: tenta uma vez mais. Manter-se em vigília, permitir-se ser invadido por novas idéias e novos ideais, se dar o direito de refletir, pensar, questionar e eventualmente mudar de opinião – este parece o papel do jurista da modernidade, despido de conceitos pré-concebidos, de feições imodificáveis, de verdades absolutas como, por exemplo, a resultante da força da coisa julgada, sob o argumento místico e não necessariamente correto de que está ela sempre fundamentada na necessidade de definição das situações e das relações entre as pessoas, definição acorrentada pelo nó da imodificabilidade, ainda que totalmente desconexa de uma realidade, ainda que fundada em premissas falsas, ainda que a olhos nus possa se concluir sem muito pensar que aquela verdade construída é como um castelo de cartas – pasta um sopro para que desmorone. Não há qualquer valor científico, cultural e humano em manter-se alienado, alheio e de olhos fechados para as significativas mudanças que vem sendo verificadas em todo o mundo e, principalmente nas relações familiares e afetivas.
Afinal, a verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos (Marcel Proust).
Assim como os Códigos (Civil, Penal, etc) se fundamentam na idéia e na aspiração à perenidade e à completude, frutos de uma época, a época da segurança, na feliz locução de Natalino Irti[76] parece possível encontrar razões para sintetizar o momento atual como uma época de insegurança, uma época de incertezas. Até porque o sentido de segurança surgiu das estruturas profundas da sociedade. A exigência de estabilidade ou de previsibilidade, quanto aos comportamentos individuais passou a ser o pressuposto intrínseco das relações jurídicas, na medida em que a burguesia francesa, vitoriosa da Grande Revolução, se tornava a nova classe dirigente, portadora da tábua de valores na qual toda a sociedade foi chamada a reconhecer-se. O mundo da segurança é, portanto, o mundo dos códigos, os quais consubstanciam, em ordenada seqüência de artigos, os valores do liberalismo do pacífico século XIX.
Ruídos os pilares desse mundo de segurança, o que se ergue em seu lugar? Quais as implicações sociojurídicas decorrentes deste estado de dúvida e de perplexidade, tão marcadamente presente no espírito da virada do milênio?
É esse questionamento que se buscará clarear no próximo tópico, enfocando a participação decisiva e fundamental do Poder Judiciário nessa mudança de paradigmas.
XI – PO DER JUDICIÁRIO E SEGURANÇA JURÍDICA.
Em conseqüência, o que se espera é um Judiciário forte o suficiente para não se deixar corromper pela força financeira, altaneiro o necessário para não se rebaixar ou se deixar levar pela vontade de agradar ou se pautar por interesses e valores outros, menos morais, que não seja a busca de sua função precípua de distribuição de Justiça de forma eqüitativa, equilibrada e isonômica.
E este Poder Judiciário, com certeza, está bem distante do que temos hoje, do que foi herdado dos tempos de força, de épocas em que representava nada mais do que o “braço armado” do Poder Executivo, servil, submisso, dependente e sem qualquer estatura que o caracterizasse como verdadeiro Poder.
É deste Judiciário frágil, estigmatizado pelo privilégio, arcado pela decadência de escândalos do tipo “Lalau” que o cidadão já está por demais enfastiado e pugna veementemente por reforma, até para que possa ver o resultado final de seus processos ainda durante sua vida, ao contrário do que ocorre atualmente.
Muitos paises estão colocando as reformas legais e judiciais como parte de seus programas de desenvolvimento. Isso é resultado do crescente reconhecimento de que o progresso econômico e social não é atingível de forma sustentável sem respeito às regras fixadas nas leis e à consolidação democrática, e sem uma efetiva proteção dos direitos humanos amplamente definida; cada um desses pontos requer um bom funcionamento do Judiciário, que interprete e dê força às leis, equânime e eficientemente. Um Judiciário efetivo é previsível, resolve casos em um tempo razoável e é acessível ao público.[77]
De outra sorte, para aceitar as mudanças técnicas, é necessária uma mudança cultural, que vem desde a formação dos profissionais em direito, em especial com a desformalização do processo ao mínimo necessário e a redução do garantismo excessivo com o respectivo aumento no grau de confiança nas próprias decisões.
E, concluindo com o jovem e brilhante magistrado fluminense Paulo Mello Feijó[78]
Enfim, o Judiciário e seus integrantes têm que se adequar aos novíssimos tempos, observando com atenção a mensagem publicitária do anúncio da gigante IBM: se nos tornarmos profissionais ultrapassados e não aprendermos a solucionar nossos problemas só nos restará recorrer ao divã, sob o risco de virarmos peças de museu ou de nos afogamos.
Enquanto estivermos de pé, tentando conter a maré, vamos sempre fraquejar e nunca atingiremos nossos objetivos. Talvez, se conseguirmos mergulhar e nadar, possamos nos aproveitar das boas ondas, acompanhar o ritmo do mar, dialogar com os que nele estão at[e mesmo nadar com os tubarões. Apenas é certo que muros de areia, por melhor que sejam suas fundações, não param a maré.
Todavia, parece-me que os institutos da prescrição e da decadência são importantes garantias processuais e, como tal, verdadeiros direitos fundamentais, como instrumentos indispensáveis à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo e no caput do artigo 5º da Constituição de 1988, tal qual a definitividade da coisa julgada material. A segurança não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também e principalmente a segurança jurídica.
Valho-me aqui das preciosas lições do eminente Professor da Universidade de Santiago de Compostela, CÉSAR GARCÍA NOVOA [79], que se aplicam inteiramente ao Direito Brasileiro.
Diz ele:
“La seguridad, uma de las principales aspiraciones humanas, sólo puede entendersetomando em consideración la dimensión humana se puede definir como la pretensión de todo sujeito de saber a qué atenerse em sus relaciones com los demás. Cuando a la seguridad la adjetivamos de ‘jurídica’, estamos pensando em la idoneidad del Derecho para lograr esse saber a qué atenerse”.[80]
A segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travas relações jurídicas válidas e eficazes.
Quando uma dessas normas jurídicas se torna controvertida e o Estado, através do Poder competente que é o Judiciário, declara quem tem razão, atuando a vontade da lei, ele revela e impõe ao demandante e ao demandado a norma que licitamente eles devem respeitar como representativa na vontade do próprio Estado, não sendo lícito a este, depois de tornada imutável e indiscutível essa manifestação de vontade oficial, desfazê-la em prejuízo das relações jurídicas e dos respectivos efeitos travados e produzidos sob a égide da sua própria decisão.
Mas é claro que a segurança jurídica não é um direito absoluto, como absoluto não é nenhum outro direito fundamental, nem mesmo a vida, que pode ser sacrificada para salvar outra vida, por exemplo.[81]
Por mais valiosas do que os institutos da prescrição e da decadência a eles devem sobrepor-se a vida e a liberdade do ser humano e, por isso, a declaração de inconstitucionalidade deve determinar sempre a anulação de qualquer condenação criminal anterior com base na lei invalidada pelo reconhecimento da mácula de inconstitucionalidade, por exemplo.[82]
As pedras fundamentais em que se assenta toda a organização política do estado Democrático de direito são a dignidade humana e o respeito aos direitos individuais e sociais dos cidadãos, conforme destacado no preâmbulo e no artigo 1º da nossa Carta Magna.
Não é o Estado que cria e define o alcance dos direitos fundamentais. São os direitos fundamentais que justificam a partilha de poderes e a organização estatal e condicionam as ações do Estado.
Conforme acentua BACHOF[83] os direitos fundamentais deixaram de ser vazios ou outorgados por concessão do Estado, tornando-se direitos diretamente aplicáveis. Antes os direitos fundamentais só valiam no âmbito da lei; hoje as leis só valem no âmbito dos direitos fundamentais.
Desde que o mundo civilizado conheceu o processo, como meio de resolver os conflitos, a coisa julgada ocupou lugar de grande destaque em meio aos institutos jurídicos.
Em sendo indissociável a ordem jurídica da garantia da coisa julgada, a corrente doutrinária tradicional sempre ensinou que se tratava de um instituto de direito natural, imposto pela essência mesma do direito e sem o qual este seria ilusório; sem ele a incerteza reinaria nas relações sociais e o caos e a desordem seriam o habitual nos fenômenos jurídicos.[84]
É certo que a afirmação era exagerada e não poderia ser acolhida, racionalmente, como absoluta. Incontestável, porém, que no sistema jurídico "a necessidade de certeza é imperiosa"[85]
Por isso, deve-se ver na prescrição "uma exigência política e não propriamente jurídica: não é de razão natural, mas de exigência prática". Nada obstante, é notório que, em matéria de direito processual, "a evolução legislativa é cada dia mais voltada para uma marcha rapidamente acelerada em busca de uma sentença que decida de uma vez por todas e de forma definitiva o conflito pendente"[86]
A certeza do direito "é uma exigência essencial dos ordenamentos modernos" – como observa Mario Vellani.[87]
A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora às vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo ou de espírito mais vivo que outro, ainda assim, quando tudo é considerado em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é tão considerável para que um deles possa, por causa disso, reivindicar para si algum benefício ao qual outro não possa aspirar, tal como ele. Porque, no que tange à força do corpo, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, por maquinação secreta ou pela aliança com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
E, quanto às faculdades do espírito, encontra-se igualdade ainda maior entre os homens. O que talvez possa tornar essa igualdade incrível é apenas a concepção presunçosa da própria sabedoria, que quase todos os homens acreditam possuir em maior grau do que o vulgo; isto é, em maior grau do que todos os homens menos eles próprios e alguns outros poucos que, pela fama ou por concordarem com eles, mereceram sua aprovação. Mas isso prova que os homens são iguais nesse ponto, e não desiguais. Não há, em geral, maior sinal de distribuição igual de alguma coisa do que o fato de cada homem estar contente com a sua parte. Dessa igualdade de capacidade, origina-se a igualdade de esperança de atingirmos nossos fins.[88]
No caso em tela, instiga-me o desejo de voltar novo olhar para aos institutos da prescrição e da decadência, desvinculado dos preconceitos que historicamente os mantiveram enclausurados, nos estreitos limites da legalidade e da preservação do patrimônio capitalista. A esse respeito, cumpre lembrar que, forma modelar da imparcialidade, a história não se apresenta como neutralidade e indiferença. A imparcialidade,escreve Hannah Arendt[89]:
… e com ela toda a historiografia legítima, veio ao mundo quando Homero decidiu cantar os feitos dos troianos não menos que os dos aqueus, e louvar a glória de Heitor não menos que a grandeza de Aquiles. Essa imparcialidade homérica ecoa em Heródoto que decidiu impedir que os gregos e bárbaros perdessem seu devido quinhão de glória (…) Não apenas deixa para trás o interesse comum no próprio lado e no próprio povo que até nossos dias caracteriza toda historiografia nacional mas descarta também a alternativa de vitória ou derrota, considerada pelos modernos como expressão do julgamento objetivo da própria história e não permite que ela interfira com o que é julgado digno de louvor imortalizante.
É, assim, consciente da ausência de parcialidade estigmatizante, paralisante, alienante que, invariavelmente, ofusca e cega, impedindo que se veja e se caminhe adiante, talvez fruto da vaidade que dificulta o reconhecimento de que posicionamentos até então tidos como certos, podem não ser assim tão corretos, ou possa haver outros, melhores, mais indicados – que se buscou, nesta pesquisa, convocando a parceria do leitor e dos diversos mestres mencionados, implantar ou aprofundar o princípio da liberdade de pensar, que envolve e imbrica, de forma direta e objetiva, o próprio conceito de democracia. Mais uma vez, é oportuno recorrer a Hannah Arendt no ensaio: O que é a liberdade? quando a ilustre doutrinadora esclarece que o tema só começou a despertar o interesse dos filósofos quando a liberdade não mais foi experimentada no fato de agir e de associar-se com outros, mas no querer e no comércio consigo mesmo, em síntese, quando a liberdade se tornou livre-arbítrio. A liberdade só se manifesta, conclui quando o eu quero e o eu posso coincidem. Isto é, não apenas desejo contra desejo, o que é próprio do livre arbítrio, mas junção de desejo e poder.
De qualquer forma, é na cidade e, principalmente nas grandes metrópoles, que inventa e se desenvolve a democracia, mas, é nelas também que se manifestam os entraves ao exercício da liberdade.
O homem nasceu livre, escreveu Rosseau, mas é preciso que a independência do indivíduo natural não lhe seja roubada, quando entra na sociedade e se torna um cidadão. Nessa linha de pensamento, o problema consiste em encontrar um sistema social em que as exigências da ordem e da liberdade não sejam contraditórias.
É, pois, o desafio dos nossos tempos: hoje, as grandes cidades concentram o melhor e o pior, o justo e o injusto, o novo e o velho, o natural e o artificial, a liberdade e a ordem e, principalmente, o simulacro através das novas normas de comunicação. Qualquer discussão sobre a democracia e liberdade que não tome como ponto de partida as cidades modernas e os problemas vivenciados notadamente originados do relacionamento entre as pessoas, tende a ser mais uma abstração.[90]
De qualquer sorte, o paradoxo reside em que essa liberdade que se busca, pela qual que tanto se aspira é também aquela em cujo nome já se desencadearam guerras, mortes, ódios e rancores que atravessam séculos. Pensando nos tempos atuais, basta lembrar a recente invasão americana ao Iraque, por motivos absolutamente econômicos e expansionistas, mas, maculada sob o apanágio da proteção à liberdade do povo daquele país…
A despeito dessas distorções, é forçoso recordar que a liberdade tem sua força transcendental e reforça-se na época contemporânea como essencial e inafastável ao ser humano, eis que deve conduzir à utopia de criação de uma sociedade solidária. Não deve conduzir ao isolamento, à solidão, à competição, ao esmagamento do fraco pelo forte, ao homem-lobo-do-homem, à ruptura dos elos. Essa ruptura leva tanto à esquizofrenia individual, quanto à esquizofrenia social.
Garantir a liberdade dentro de uma sociedade solidária é o desafio que se coloca. Liberdade para todos e não apenas para alguns. Liberdade que sirva aos anseios mais profundos da pessoa humana. De modo algum a liberdade que seja instrumento para qualquer espécie de opressão.[91]
É interessante assinalar que essa tendência só passou a ser aceita com um pouco menos de reação nos últimos anos. Nesse sentido, é por demais relevante a corajosa contribuição de estudiosos como Ronald Dworkin, Robert Alexy, John Rawls e Canotilho.
Considerando, portanto, sua aplicabilidade direta e imediata, os princípios impregnam, com toda sua carga valorativa, as normas jurídicas, relacionando-se de forma mais próxima com os direitos da personalidade e os direitos fundamentais.
Par e passo com essas idéias, ganharam força as normas legais de conteúdo aberto, o enfoque do ordenamento jurídico permeável, necessitando sempre da complementação, integração e atualização, função do intérprete. Também é forçoso admitir que essa mudança de paradigma não ocorre sem muita e forte reação de um segmento reacionário mas, infelizmente, majoritário, que atua no Direito.
A função preponderante do homem como elemento central de todo o ordenamento jurídico, envolvendo suas relações das mais diversificadas espécies, inclusive a afetiva, solenemente ignorada pelo legislador – ouso invocar os ensinamentos do mestre LUIZ EDSON FACHIN[92] que, com a coragem dos guerreiros, a simplicidade dos sábios e a generosidade e humildade dos gênios, vem atuando no sentido de abrir os olhos de todos quantos atuem no mundo jurídico, inclusive e, talvez, principalmente no meio acadêmico – para o fato de que o Direito Civil da atualidade é outro, remodelado, com novos paradigmas, constitucionalizado e oxigenado por valores e fundamentos diversos daqueles que apoiavam e alicerçavam o Código Civil de 1916, fruto do liberalismo exacerbado que elegeu a propriedade e o patrimônio como forças centrais do ordenamento legal.
Este Direito Civil “repersonalizado” que se ancora em princípios e fins
para além da suposta autonomia e pretensa igualdade; sem carpir-se no futuro acontecido ontem, saudar o reconhecimento da pessoa e dos direitos da personalidade, mesmo que seja para prantear os não reconhecidos, os excluídos de todos os gêneros; no véu da liberdade contratual encontrar mais responsabilidade que propriedade, menos posse na formação epistemológica do núcleo familiar; e fotografar a legitimidade da herança e direito de testar na concessão que também outorga personalidade jurídica aos entes coletivos. E aí filmar o roteiro das tendências contemporâneas.[93]
Na mesma senda, pode-se colher o ensinamento colecionado de Orlando de Carvalho[94] que, explicando o significado de “repersonalização” afirmou que
é esta valorização do poder jurisgênico do homem comum – sensível quando, como no direito dos negócios, a sua vontade faz lei, mas ainda quando, como no direito das pessoas, a sua personalidade se defende, ou quando, como no direito das associações, a sua sociabilidade se reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua afetividade se estrutura, ou quando, como no direito das coisas e no direito sucessório, a sua dominialidade e responsabilidade se potenciam – é esta centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do Direito Civil o foyer da pessoa, do cidadão puro e simples.
É dizer com os poetas, a vida é a arte do encontro, apesar de tantos desencontros (Vinicius de Moraes), e só vale a pena, se a alma não for pequena (Fernando Pessoa) e permitir que o aconchego e afetividade sejam as forças motrizes de um construir constante do ser humano pleno, digno, realizador e concretizador dos anseios de modernidade, que resultará, finalmente, num homem feito à imagem e semelhança daquele que nos criou a todos e que por tanto tempo insistimos em ser exatamente o contrário do que nos foi ensinado.
Notas
Informações Sobre o Autor
Mauro Nicolau Junior
Juiz de Direito, Mestre em Direito Público e Evolução Social, Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes e professor palestrante da EMERJ-Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.