Resumo: O trabalho inicia fazendo registro das raízes históricas da Culpa Conjugal. Registra também como a questão é tratada em alguns outros países. Faz breve histórico do exame da culpa conjugal no Direito Brasileiro desde o anterior Código Civil (1916) até o atual Código Civil (2002). Fornece também as tendências atuais do Direito de Família na questão do exame da Culpa Conjugal. Observa a ausência de proveito prático da discussão da Culpa Conjugal. Faz registro dos estudos cruzados de Direito e Psicanálise especialmente na questão da Culpa Conjugal pela Separação. Entende desnecessário o exame da culpa para decretação de separação judicial no Direito Brasileiro atual. Mas registra que cada cônjuge é livre para pedir ou não o exame da culpa. Indica a mediação como um caminho para os litígios conjugais antes da decisão pelo litígio judicial. E entende que na prática processual judiciária há que se respeitar a vontade dos cônjuges materializado no pedido da petição inicial da ação de separação ou de divórcio.
Separação e divórcio sem culpas e a questão processual
“Conta Vítor Reina [na obra Culpabilidad Conjugal u Separatión, Divórcio o Nulidad] que o exame da culpa conjugal encontra sua origem no direito canônico, de um tempo de prevalência do direito cogente que dominava toda matéria matrimonial, sendo desígnio legislativo de que nada ficava à livre vontade das partes. […] e assim também acontecia no Brasil ao tempo do desquite regulado pelo Código Civil, que as soluções de casamentos rotos permaneciam entorpecidas, dado que os cônjuges estavam obrigados a esta vida em comum, e se esta obrigação não se regula exclusivamente por um direito privado correlativo, porque seu principal fundamento era a moralidade e a ordem pública, não podiam os cônjuges, por sua exclusiva vontade, se divorciar ou se separar. A sociedade e seus mais caros interesses quedariam entregues às paixões ou ao capricho dos cônjuges desavindos ou cansados do cumprimento de seus deveres. Foi a Igreja Cristã que trouxe ao mundo romano a concepção do casamento indissolúvel, por Cristo que veio restaurar a ordem sobrenatural transtornada pelo pecado de Adão e Eva, revelando, também, a vontade de Deus acerca da integração do homem e da mulher numa união inquebrantável das núpcias.” (apud Madaleno, 1999, p. 173).
Você sabe que o anterior Código Civil (1916) tratava da separação judicial (desquite) nos artigos 315 a 324. E o desquite litigioso, promovido por um dos cônjuges, só teria lugar por adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave e abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos contínuos (artigo 317), mediante exame da culpa. Ao lado havia o desquite consensual (artigo 318). (cf. Alves, 1917, p. 257-262).
Depois os mencionados artigos do Código Civil, com o advento da Lei do Divórcio (1977), foram revogados expressamente (cf. Lei 6515/1977, art. 54) e o artigo 5.º previu a possibilidade de separação judicial litigiosa, quando um dos cônjuges imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum. Sem exame de culpa veio a separação consensual para casos de ruptura de vida conjugal de mais de cinco anos consecutivos. (artigo 5.º, § 1.º) e o divórcio indireto, por conversão da separação judicial (artigo 25).
Posteriormente a Constituição Federal de 1988 autorizou o divórcio indireto, por conversão de ação de separação, após um ano da separação e autorizou também o divórcio direto quando comprovada separação de fato por mais de dois anos (artigo 226, § 6.º).
E no início do ano de 2003, entrou em vigor o novo Código Civil, Lei 10406, de 10.01.2002, que trata da separação e do divórcio nos artigos 1571-1582. E permanece a idéia de exame da culpa conjugal na separação litigiosa, estabelecendo o artigo 1572 que qualquer dos cônjuges poderá propor ação de separação judicial imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum. No artigo 1573 o novo Código enumera motivos que podem caraterizar a impossibilidade da comunhão de vida, entre os quais (I) adultério, (II) tentativa de morte, (III) sevícia ou injúria grave, (IV) abandono voluntário do lar conjugal durante um ano, (V) condenação por crime infamante e (VI) conduta desonrosa. Ainda no parágrafo único estabelece que o juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.
Como se nota consolidam-se dispositivos do Código Civil de 1916, da Lei do Divórcio de 1977, acrescentando-se a condenação por crime infamante, conduta ainda não tipificado no Direito Penal, expressão tomada de empréstimo do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Brasil, Estatuto da Advocacia, Lei 8906/1994, art. 34, XXVIII).
Sem a idéia de exame de culpa consolida-se a separação consensual, desde que haja ruptura da vida em comum há mais de um ano consecutivo (artigo 1574) e o divórcio indireto, por conversão da separação judicial (artigo 1580) e o divórcio direto consensual por separação de fato há mais de dois anos (artigo 1580, § 2º).
Veja Você que, pela legislação vigente, numa interpretação positivista, só escapam ao exame da culpa as ações de separação consensual, de divórcio direto consensual e de divórcio indireto, por conversão de ação de separação judicial anterior.
Porém a tendência atual é de que se diminua ao máximo a busca da culpa nas ações de separação e de divórcio. Assim o Estado, pelo Judiciário, não precisa se imiscuir na intimidade das relações familiares. Ainda mais quando se sabe que os verdadeiros motivos dos litígios judiciais não são aqueles elencados nos autos dos processos judiciais. Pelo olhar da Psicanálise, os verdadeiros motivos são outros. É possível perceber, em situações de litígio conjugal, que as bases do litígio são estruturadas fora do campo jurídico. É de ordem subjetiva. (Barros, 1997, p. 827).
Essa tendência se torna cada vez mais concreta, graças aos estudos cruzados de Direito e de Psicanálise, especialmente nos últimos anos, no espaço das discussões jurídicas, como forma de repensar o direito, pois a racionalidade jurídica, segundo François Ost, produtora de um discurso coerente e completo, sustenta-se não na lógica da qual deriva sua eficácia técnica, mas na sua inscrição em um mundo mítico que apela à crença do desejo dos sujeitos (Philippi, 1998, p. 30).
Fazendo uma abordagem psicanalítica diz Rodrigo da Cunha Pereira, falando da busca das causas da separação, que, se aparece uma terceira pessoa na relação conjugal, isto pode não ser a verdadeira causa da separação, mas a conseqüência de um relacionamento que já deixara espaço para isto e que apresentava sinais de deterioração (Cf. 1995, p. 12).
Sendo assim, como saber quem é o verdadeiro culpado? Será que existe um culpado?
Logo, se o casamento fracassou, não há motivo para se apurar quem é o culpado. Se morreu o casamento, façam-se os funerais e reorganize-se a vida de cada ex-cônjuge. Não falemos de culpa … não existe culpado uma vez que a escolha é sempre inconsciente e os atos deflagrados durante o exercício da conjugalidade, muitas vezes, são sobredeterminados pelo romance familiar registrado inconscientemente. (Barros, 1997, p. 828).
Segundo Rolf Madaleno, na Alemanha …
“há muito, foi completamente abolida qualquer possibilidade processual de ser pesquisada a culpa dos cônjuges pela derrota do seu matrimônio, pois, entendem os juristas alemães que a máquina judiciária estará muito melhor aproveitada se concentrar seus esforços e recursos, com equipes multidisciplinares, ensinando àqueles que se separam, como deverão enfrentar suas renovadas experiências afetivas, corrigindo para suas novas núpcias, ou mesmo para suas relações informais, as falhas que tenham porventura provocado dentro do relacionamento conjugal, por inocência, cisma, ingenuidade ou cizânia, já que nada, na seara do amor, é realmente inalterável quando houver vontade para crescer como pessoa e para fortalecer suas relações” (1999, p. 180-181).
Para Madaleno, …
“a lenta e desgastante pesquisa da razão culposa da separação, se é que existe cônjuge responsável e outro inocente, então, deste, a demanda só atrasa no tempo a sua prestação jurisdicional, servindo o feito aos interesses mesquinhos da parte que quiser se utilizar do processo como instrumento de vingança de seus ressentimentos, ou de suas frustrações como esposo, apresentado-se todo este entrevero processual nada produtivo aos efeitos objetivos da separação e que respeita justamente a ordenar guarda, alimentos e visitas da prole, quando esta existe e ainda é incapaz pela idade; e repartição dos bens” (1999, p. 182-183).
Doutro lado, se os cônjuges desejam a separação sem discussão da culpa, que fará o decisor judicial frente à realidade de um casamento roto, acaso deseje dar dramaticidade à separação, cuidará de caçar responsáveis pela falência da sociedade nupcial, esticando no tempo a ansiedade e a indescritível angústia dos que se separam? (Madaleno, 1999, p. 183).
Ora, …
“negando o decreto separatório, porque não lhe foram identificados os culpados, não só presta um desserviço social pela recusa da prestação jurisdicional, por teima e apeguismo à causa subjetiva da dissolução, como também provoca uma separação de fato unilateral, como solução precária, já que sua eficácia fica dependendo do lapso de tempo exposto na lei, a facultar a separação ou o divórcio, pela tão-só constatação do tempo fático de ininterrupta separação” (Madaleno, 1999, p. 183).
Nas palavras de Víctor Reina, …
“toda matéria de culpa conjugal se ressente de um enfoque inicial, a saber, não haver considerado que o matrimônio como realidade social e civil é radicalmente uma coisa a dois, e quando quebra este pressuposto por parte de um ou de outro, o Direito não tem outra opção que reconhecê-lo roto, sendo inútil, e inclusive prejudicial, qualquer tipo de solução legal que pretenda manter artificialmente uma convivência impossível” (apud Madaleno, 1999, p. 183).
E Rolf Madaleno também se alinha entre os juristas que entendem que deve ser desdramatizada de plano e de pronto, esta tão traumática forma litigiosa de separação judicial, desobrigando seus participes da necessidade de alegarem qualquer causa de dissolução, que não seja a própria vontade como manifestação (1999, p. 183).
Dito isso, entendemos que a legislação positiva atualmente vigente possibilita que o Judiciário acolha pedidos de um dos cônjuges e decrete separação judicial de casais sem discussão da culpa, bastando a alegação de impossibilidade da comunhão, por tornar-se insuportável a vida em comum (Brasil, Cód. Civil (2002), art. 1572, final e art. 1573, parágrafo único).
Entendemos igualmente que atualmente, processualmente falando, a pesquisa da culpa nas separações, de acordo com nosso Direito de Família, não traz nenhum proveito prático aos cônjuges na discussão e fixação das cláusulas da separação ou do divórcio. Na questão dos alimentos para um dos cônjuges, predomina a teoria objetiva, baseada na necessidade. Na questão da partilha de bens independe a culpa. Observa-se o regime de bens adotado. Na questão da guarda dos filhos, face ao princípio constitucional da igualdade entre os cônjuges (CF/1988, art. 226, § 5.º), decide-se, em caso de litígio, segundo os interesses da criança, independente do exame da culpa, especialmente depois da Constituição Federal de 1988 (art. 227) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069, de 13/07/1990), bem como em atenção ao novo Código Civil (2002), artigos 1584 e seguintes. A questão do nome dos cônjuges, pelo novo Código Civil, artigo 1.578, depende mais do interesse das partes, nos termos da parte final do artigo 1.578, seus incisos e parágrafos. Antes do novo Código Civil o entendimento era praticamente o mesmo (cf. Welter, 2000, p. 29-30).
Doutro lado, assim entendemos, olhando do ponto de vista da Psicanálise, não existem culpados pela separação. O casamento é uma construção cultural. Cada cônjuge é um sujeito que entra para o casamento trazendo seus costumes, suas heranças familiares. Cada cônjuge sofreu a instituição da Lei de uma forma diferente. Cada um vem para o casamento com suas heranças, seus significantes, resultado do modo como sofreu as interdições pelo exercício das funções paterna e materna para constituir-se em sujeito. E isso pode tornar difícil ou impossível o entendimento. Por isso, resumindo, para a Psicanálise não existe um culpado pela separação.
Os estudos cruzados de Direito e de Psicanálise auxiliam os juristas nas soluções de casos jurídicos, especialmente na área do Direito de Família. Mas é preciso não confundir as coisas para não praticar injustiças. A Psicanálise isenta o sujeito de culpa por ato praticado. Mas não o isenta da responsabilidade. Para o jurista falar em responsabilidade é falar em culpa (culpa penal, culpa civil, culpa contratual, culpa conjugal, etc.). É necessário termos presente que o conceito de responsabilidade para a Psicanálise não é o mesmo utilizado pelo Direito.
É preciso que haja a lei jurídica e que seja obrigatória para todos. É necessária intervenção da lei onde não há ordem que possibilite a inserção do sujeito no laço social, para barrar o excesso de gozo. (Barros, 1997, p. 830).
Precisamos deixar claras as diferenças. Segundo Jacques Lacan, na obra Introdução às Funções da Psicanálise em Criminologia (1950), a Justiça parte do suposto de que todo indivíduo sabe a letra da lei que o concerne. (apud Barros, 1997, p. 831).
Diz Fernanda Otoni de Barros que, Hans Kelsen declara que a legalidade do Direito não está em alguma substância e sim na relação pura entre um ato e uma norma. Não mais pergunta sobre os incertos motivos do crime. Somente o crime. “O conteúdo das normas jurídicas não se relaciona com as pessoas e sim com seus atos.” (1997, p. 831). Para Barros, Hans Kelsen resgata a necessidade da lei em fazer valer a norma, em barrar os excessos disso. Não interessam os motivos, as razões, mesmo que inconscientes. A legalidade do Direito está simplesmente em fazer operar a lei. É proibido cometer atos contra a norma dada anteriormente pela letra da lei. (1997, p. 832).
Porém é preciso considerar que …
assistimos ao declínio do sonho do racionalismo absoluto que encontra-se bordejado pela emergência do sujeito do inconsciente. No Direito, este estranho acontecimento aparece tanto no ato delitivo, nos atos que infringem a lei, tanto no ato de julgar, atravessando a escuta do eminente julgador.
A noção de sujeito cartesiano que atravessa e fundamenta o ordenamento jurídico, o homem como autor de suas idéias, que domina as suas ações graças à sua consciência e à sua vontade, não se sustenta mais. Este homem do ordenamento jurídico aparece como uma ficção do direito, uma construção amparada na boa intenção filosófica, um homem não encontrado na realidade dos tribunais. As manifestações do inconsciente batem às portas do Judiciário diuturnamente, apontando a pregnância de sua determinação nos atos da vida cotidiana. Este acontecimento, uma vez escutado pela Psicanálise, coloca ao Direito impasses quanto à noção de culpa e responsabilidade.
O Direito sabe como aquele homem ficcional deveria agir. Ação de acordo com as normas do Direito. Mas o Direito não sabe, diante do ato fora da norma, se o sujeito naquele momento poderia agir de outra forma, se ele poderia não ter agido da forma como agiu. Se ele é culpado por seus atos ou se a determinação inconsciente atravessou o universo das boas intenções e das normas instituídas, deflagrando o mal-estar e o caos.
Como julgar a responsabilidade do sujeito pelo ato, se muitas vezes este ato o ultrapassa?
Talvez ele não seja culpado, pois não tinha consciência do seu ato, era uma resposta do inconsciente à emergência do real, mas isto não o exime de sua responsabilidade. (Barros, 1997, p. 830).
Nota-se que é preciso fazer distinção entre o conceito de culpa e o conceito de responsabilidade. Pode o sujeito, para a Psicanálise, não ser culpado, mas ser responsável.
Jacques Lacan em seu texto “A Ciência e a Verdade” (1965) deixa muito clara essa questão:
Da nossa posição de sujeitos somos sempre responsáveis. Que chamem isto, onde se quiser, de terrorismo. Eu tenho o direito de sorrir, pois não é em um meio onde a doutrina é abertamente matéria de transações, que eu temeria ofuscar alguém formulando que o erro de boa-fé é, de todos, o mais imperdoável. (apud Barros, 1997, p. 832).
Esse é o desafio. E é neste contexto, atravessados pelo acontecimento que faz encontrar o Direito e a Psicanálise no campo da experiência, interface que legitima esse encontro inusitado, que aqueles que estão implicados nesta abordagem encontram-se numa posição de produzir saídas aos impasses apresentados, ou seja, conjugar norma jurídica e subjetividade para o Direito e inconsciente e responsabilidade do sujeito para a Psicanálise. (Barros, 1997, p. 832).
Dito isso, a culpa que falamos, é a culpa que entendemos chamar de culpa conjugal. A culpa-condição para ajuizamento da ação de separação litigiosa. A culpa que, caso ausente da inicial de ação de separação, poderia gerar uma decisão preliminar, de extinção do processo por carência de ação, usando a linguagem do nosso Código de Processo Civil.
Isso quer dizer que, se o cônjuge ajuíza a ação de separação sem acusar o outro de culpado pela separação e sem pedir que o outro seja julgado culpado pela separação, seu processo nem poderia seguir adiante, pois ausente uma condição para separar-se – a culpa do outro a qual denominamos culpa conjugal.
Nossa legislação familial exigia essa busca da culpa como condição da ação de separação, tanto no Código Civil (1916), artigo 317, como na Lei do Divórcio (1977), artigo 5.º, primeira parte.
E o novo Código Civil retorna à exigência, pelos termos dos artigos 1.572, primeira parte, 1.573 e 1.578, primeira parte.
Porém, entendemos que é preciso fazer distinção entre as espécies de culpa – culpa penal, culpa civil e culpa conjugal. É que os juristas costumam trabalhar sempre com as conseqüências do fato. Para o Direito Penal, se houve um fato ilícito, antijurídico e culpável, é preciso encontrar o culpado, para fazer recair sobre esse culpado as penas da lei. Resumindo, é a culpa penal.
Isso veio também para o Direito de Família. O Código Civil (1916) inclusive toma de empréstimo os tipos penais do Direito Penal, pois estabelece o artigo 317 que o desquite só poderá ser promovido por adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave. (cf. Alves, 1917, p. 257-262). Poderia ser promovido ainda por abandono do lar por mais de dois anos, único motivo sem tipificação do Direito Penal. A culpa civil segue a teoria da culpa, tanto pelo descumprimento de contrato como pela responsabilidade civil, tomando de empréstimo os princípios, teorias e conceitos de culpa do Direito Civil.
No Direito de Família, especialmente nos casos de separação judicial litigiosa, aplicavam-se os conceitos de culpa penal e de culpa civil. Já a Lei do Divórcio (1977), artigo 5.º, primeira parte, abandonou os tipos penais, estabelecendo que a separação pode ser promovida pelo cônjuge que imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento (cf. Brasil, Código Civil, 2000, p. 614).
E o novo Código Civil (2002), com saudades dos dispositivos do antigo (1916), novamente busca os tipos penais como motivos para separação (artigo 1573), embora faça mesclagem com os dispositivos da Lei do Divórcio (1977) e do Estatuto da Ordem dos Advogados (1994).
Fora dos motivos já tipificados e ou conceituados no Direito Penal ou no Direito Civil, os dispositivos do atual Código Civil (2002) deixam ao intérprete conceituar insuportabilidade da vida em comum (artigo 1.572, final) e impossibilidade da comunhão de vida (artigo 1.573, cabeça e parágrafo único), no exame de cada caso concreto, não ficando preso somente aos tipos penais e aos conceitos de culpa penal e ou de culpa civil. Nesses casos, bastaria encontrar a culpa conjugal.
Porém na atualidade, quando já temos claro que a Família é baseada no amor, no afeto, na busca da felicidade, essa culpa conjugal, essa culpa-condição para ação de separação, não precisa ser buscada para decretação da separação ou do divórcio. Basta interpretar a parte final do artigo 1.572 e o parágrafo único do artigo 1.573 do Código Civil (2002) para entender isso.
A separação há que ser decretada sempre que houver pedido de um dos cônjuges, quando entender que a vida em comum tornou-se insuportável e ou impossível. Basta constatar que a vida em comum tornou-se insuportável.
Não há necessidade de atribuir culpa ao outro! Terminou o amor, terminou o afeto! Basta isso!
É assim que entendemos.
Porém não se pode fazer o chamado uso perverso da psicanálise ou uso perverso do Freudismo, e dizer simplesmente que, se terminou o amor ou terminou o afeto não existe culpado. Não existe um culpado para a Psicanálise, mas para o Direito ou para a lei jurídica existe um culpado, que os psicanalistas chamam de responsável.
Esse alerta foi feito por Jacques Lacan, como já registrado:
Da nossa posição de sujeitos somos sempre responsáveis. Que chamem isto, onde se quiser, de terrorismo. Eu tenho o direito de sorrir, pois não é em um meio onde a doutrina é abertamente matéria de transações, que eu temeria ofuscar alguém formulando que o erro de boa-fé é, de todos, o mais imperdoável. (apud Barros, 1997, p. 832).
Também Norberto Carlos Irusta faz o alerta:
“Não podemos admitir que recursos ao inconsciente, às pulsões ou ‘instintos’, anunciem nos tribunais que ninguém é culpado ou responsável, usando o pensamento psicanalítico como um tolerante véu de compreensão: uso perverso do pensamento freudiano. A vulgarização de teses psicanalíticas pode ter contribuído para sustentar uma ideologia do descompromisso do sujeito com os efeitos do seu desejo e com seus atos.” (apud Barros, 1997, p. 831).
Um cônjuge pode não ter culpa pelo término do amor, segundo a Lei psicanalítica, porém pode ter culpa conjugal por ter cometido infidelidade conjugal, por violação de dispositivo de lei jurídica, que o obriga a ser fiel enquanto casado, nos termos do atual Código Civil (2002), artigo 1.566, I.
Queremos dizer que, se o amor terminou há que promover a devida ação de separação antes de cometer infidelidade. Não se deve atribuir Culpa Conjugal pelo término do amor; porém se pode atribuir pela responsabilidade frente ao texto da lei jurídica; se terminou o amor mas comete infidelidade (antes de separar-se), incide a culpa conjugal; se terminou o amor e promove a ação de separação sem cometer infidelidade não há necessidade do exame da culpa conjugal.
É assim que entendemos.
Entendemos também, que os juristas de Direito de Família devem colocar aos cônjuges em litígio conjugal, antes ou durante o litígio judicial, o proveito de buscarem os serviços de profissionais especializados em mediação (cf. Barros, 1997, p. 827-829), para depois decidir sobre os encaminhamentos e rumos do litígio.
Porém é preciso respeitar a vontade de cada sujeito, de cada cônjuge. A separação, e ou o divórcio, pode ser decretada sem ou com pesquisa da culpa. Depende, em cada caso, da pretensão ou do pedido da parte, do sujeito, do cônjuge.
Dito isso, entendemos que os dispositivos dos artigos 1572 e 1573 do atual Código Civil (2002) devem ser interpretados de tal forma que respeite a vontade de cada cônjuge. Há de ser deixada liberdade para aqueles que, para desatar o nó do litígio real conjugal necessitem também ser atravessados pela sentença judicial com exame da culpa conjugal ou até da culpa civil, quando se pretende dano moral, por exemplo, resultado do litígio conjugal.
Para distinguir os casos, observado o pedido, podemos, para facilitar o entendimento, distinguir por denominar as ações de separação da seguinte forma: ação de separação quando não se pede apuração de culpa; ação de separação litigiosa, quando se pede a apuração de culpa; ação de separação consensual, quando as partes conjuntamente pedem separação, sem pedido de apuração de culpa, por óbvio; ação de divórcio direto (ou indireto), quando não se pede apuração de culpa; ação de divórcio (direto ou indireto) litigioso, quando se pede exame de culpa; e ação de divórcio consensual (direto ou indireto), quando as partes conjuntamente pedem o divórcio, sem pedido de apuração de culpa, por óbvio.
Entendemos ainda, que na prática processual judiciária é preciso ater-se ao interesse ou à vontade dos cônjuges, traduzido no pedido da petição inicial da ação de separação ou da ação de divórcio.
Significa dizer que, se uma parte propõe ação de separação sem pedido de decretação de culpa da outra cabe ao Judiciário simplesmente ater-se ao pedido de decretação da separação, e abster-se do exame de culpa.
Por outro lado, se a parte requerida, no prazo para defesa, além de contestar promove reconvenção com pedido de exame de culpa, a parte autora reconvinda ao contestar a reconvenção pode ainda alegar que a culpa é da parte requerida reconvinte e faze a fundamentação de fato e de direito dessa culpa; e o Judiciário pode julgar procedente a ação e improcedente a reconvenção, e simplesmente decretar a separação sem examinar a culpa; também pode o Judiciário, se assim entender e se ficar provada a culpa, julgar procedente a ação e improcedente a reconvenção e decretar a separação por culpa da parte requerida; e pode ainda, de acordo com o entendimento e a prova, julgar improcedente a ação e procedente a reconvenção e decretar a separação por culpa da parte autora; pode até decretar a separação por culpa de ambas as partes.
Porém não pode o Judiciário simplesmente julgar a ação e a reconvenção improcedentes e abster-se de decretar a separação.
Informações Sobre o Autor
José Pizetta
Mestre em Educ. nas Ciências, concentração em Direito, dissertação em Direito de família, UNIJUI, RS (2000); especialista em Direito Civil, Faculdade de Direito de Cruz Alta, RS (1978); bacharelado em Direito, pela Faculdade de Direito de Cruz Alta (1976); coordenador do Núcleo de Prática Jurídica, FASB, BA (2004/2, 2005/1 e 2005/2); professor orientador do Escritório Modelo de Advocacia da FASB, BA (2005/1 e 2005/2), professor de direito civil (Família, Sucessões e Coisas), FASB, BA (2004/2, 2005/1 e 2005-2); professor orientador do Escritório Modelo de Advocacia, UNIVALI, SC (2002/1, 2002/2, 2003/1, 2003/2, 2004/1); professor orientador de Prática Jurídica do Escritório de Prática Jurídica, URI, RS (1997/2 a 2001/2); professor de Direito Ambiental e Agrário, URI, RS (1997/2); professor de Direito Civil (Coisas), UNICRUZ, RS (1997/1); professor de Direito Civil (Obrigações), Dir. Processual Civil e orientador de Prática Jurídica do Escritório Modelo, UNIJUI, RS (1989-1996); advogado em Santa Catarina (2002/2004 e 2006), na Bahia (2004/2005) e no Rio Grande do Sul (1977/2001); autor de, entre outras: Direito das sucessões dito diferente. 4ª impressão. revisada e ampliada. Florianópolis: inédita, 2007. 466 p. (fl. A4, digitada); Direito processual civil dito diferente. Volume 1. Processo de conhecimento e procedimento comum: comentários pontuais de interpretação ao Código de Processo Civil (1973); questões polêmicas, crítica jurídica e política do direito. Florianópolis: inédita, 2006. 171 p. (fl. A4, digitada, em elaboração); Direito processual civil dito diferente. Volume 3. Procedimentos cautelares: comentários pontuais de interpretação ao Código de Processo Civil (1973); questões polêmicas, crítica jurídica e política do direito. Florianópolis: inédita, 2006. 120 p. (fl. A4, digitada); Direito de família dito diferente: Comentários pontuais de interpretação ao Código Civil (2002) e ao Código de Processo Civil (1973); questões polêmicas, crítica jurídica e política do direito. Barreiras: FASB, inédita, 2006. (fl. A4, digitada, em elaboração); Direito das sucessões dito diferente: Comentários pontuais de interpretação ao Código Civil (2002) e ao Código de Processo Civil (1973); questões polêmicas, crítica jurídica e política do direito. 3ª impressão. revisada e ampliada. Florianópolis: inédita, 2006. 455 p. (fl. A4, digitada); Direito das sucessões dito diferente: Comentários pontuais de interpretação ao Código Civil (2002) e ao Código de Processo Civil (1973); questões polêmicas, crítica jurídica e política do direito. 2ª impressão. revisada e ampliada. Barreiras: FASB, inédita, 2005/2. 408 p. (fl. A4, digitada); Direito das sucessões dito diferente: Comentários pontuais de interpretação ao Código Civil (2002) e ao Código de Processo Civil (1973); questões polêmicas, crítica jurídica e política do direito. 1ª impressão. Barreiras: FASB, inédita, 2005/1. 408 p. (fl. A4, digitada); O não dito no direito de família. Ijuí: Editora UNIJUÍ. 2004. 240 p. (Coleção trabalhos acadêmicos científicos. Série dissertações de mestrado, 22). É (des)necessário o exame de culpa conjugal nas ações de separação e de divórcio. [In: Revista Novos Estudos Jurídicos. n. 15, dez/2002. Itajaí: Editora UNIVALI. 2002. p. 169-180]; O Sonho vai ao Tribunal. (Peça de Teatro). Santo Ângelo: Inédito. 2000); Políticas Públicas, Direito e Exclusão Social. In: BONETI, Lindomar Wessler e FERREIRA, Liliana Soares. (org.). Educação e Cidadania. Ijuí: Editora UNIJUÍ. 1999. p. 85-104; Revisão da Constituição e Poder Constituinte. In: Revista Direito em Debate. n. 3, out/1993. Ijuí: Editora UNIJUÍ. 1993. p. 65-75.