Sexagem: a escolha de sexo dos filhos numa perspectiva ético-jurídica

Resumo: No presente trabalho faz-se uma breve contextualização da normatização ética e jurídica sobre a sexagem – seleção de sexo -, além de uma análise concisa dos limites da seleção sexual sob a luz de princípios constitucionais e princípios bioéticos clássicos a fim de responder à questão: deve ser permitido aos pais selecionar o sexo dos filhos? [1]


Palavras-chave: Reprodução assistia. Sexagem. Escolha de sexo.


INTRODUÇÃO


Os progressos acelerados e espetaculares da biotecnologia, marcadamente acentuados a partir do final do século XX, em especial das técnicas de reprodução assistida, trazem consigo inúmeras questões antes inexistentes, as quais suscitam questionamentos e controvérsias.


A evolução das ciências biotecnológicas propiciou a seleção de sexo (sexagem), por meio da Reprodução Humana Assistida (RHA), podendo ser conceituada como a técnica ou intervenção planejada para aumentar a probabilidade de concepção, gestação e nascimento de uma criança de um sexo em detrimento de outro[2].


As razões para selecionar o sexo do filho podem ser de cunho “não médicas”, “não terapêuticas”, equilibrar a frequência entre os sexos em uma família ou por motivações culturais, sociais, econômicas, pessoais; ou “médicas”, “terapêuticas”, caso em que casais portadores de graves doenças hereditárias ligadas ao cromossomo X, as quais afetam predominantemente o sexo masculino, recorrem à procriação assistida visando a assegurar que tais males não sejam transmitidos à prole.


São conhecidas mais de duzentas doenças com herança ligada ao sexo, as quais “comprometem uma em cada mil crianças nascidas” (BADALOTTI, 2004:14). Exemplificam essas doenças: hemofilia A, distrofia muscular de Duchenne e adrenoleucodistrofia.


A seleção de sexo é polêmica e nos remete a discussões éticas e jurídicas, tendo sido o tema tratado no recém-publicado livro de nossa autoria “Sexagem: a escolha de sexo dos filhos numa perspectiva ético-jurídica” e no site www.sexagem.com.


1 sexagem: regulamentação ético-jurídica


No Brasil, no que tange à sexagem, vislumbram-se normas éticas presentes na Resolução n. 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM), a qual dispõe sobre a reprodução humana assistida, e no Novo Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução CFM n. 1.931/2009, em vigor desde 13 de abril de 2010.


No tocante à seleção de sexo, a Resolução n. 1.957/2010 proíbe a aplicação de técnicas de reprodução assistida, cuja intenção seja “selecionar o sexo (sexagem) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer”.


A Resolução n. 1.957 entrou em vigor em 06 de janeiro de 2011, revogando a Resolução n. 1.358 de 1992, que compilava as normas éticas a respeito da procriação assistida, já prevendo, dentre outras matérias, a proibição da aplicação de técnicas de reprodução assistida com o objetivo de “selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças”.


O Novo Código de Ética Médica, por sua vez, documento que reúne normas e princípios a orientar o exercício da Medicina, abordou questões vinculadas à RHA.


No que tange à seleção do sexo, o Código veda ao médico, no Artigo 15, § 2º, inciso III, a realização da procriação medicamente assistida para criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras.


Inexiste no Brasil legislação especial que regule a utilização das novas tecnologias reprodutivas. Diante de tal ausência, os centros de procriação humana assistida proliferam e trabalham conforme suas próprias convicções éticas (QUEIROZ, 2001:82).


Ressalta Borges, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), in Mascarenhas (2005), que inexiste lei no país acerca do assunto: “o que existe é uma sugestão de conduta que deve ser seguida por todos aqueles que pertencem à classe médica. Quem fizer estará faltando com a ética profissional, mas não infringirá a lei”.


Sobre o tema, Fachin (2003:247) observa que, “não obstante a realidade social e econômica não seja congruente com o fulgor tecnológico, centros de fertilização atuam onde o Direito ainda não alcançou.”


2 SEXAGEM: LIMITES


A lei deve ser sempre privilegiada diante dos avanços científicos.  Entretanto, é impossível disciplinar, mediante formulação de leis, todas as novas tecnologias. “Desta feita, não obstante a ausência de legislação acerca da reprodução assistida, vários são os princípios constitucionais que tutelam expressamente a pessoa e, consequentemente, podem ser invocados para a solução de conflitos” (GONÇALVES, 2003:42). 


Se a formulação de leis não acompanha o acelerado avanço dos progressos científicos, tal fato não significa que possa haver um desrespeito aos princípios da República Federativa do Brasil, bem como aos princípios orientadores da discussão bioética.


Os princípios expressam valores defendidos pela sociedade e são enunciados genéricos que condicionam e informam a criação, a interpretação e a aplicação das normas jurídicas. Na ausência de legislação específica sobre determinada matéria, devem orientar a interpretação do intérprete.


A liberdade de procriar é um direito subjetivo, personalíssimo, o qual não pode ser exercido de forma absoluta, encontrando, pois, limites na ordem jurídica.


A teor de tais limites, destacam-se o princípio da dignidade humana e o princípio da paternidade responsável como limitadores lícitos ao exercício do planejamento familiar, consoante o texto constitucional, permitindo a imposição de restrições e de medidas protetoras. 


O princípio da dignidade da pessoa humana, como o mais alto princípio geral do nosso ordenamento jurídico, deve orientar toda e qualquer discussão no campo da reprodução assistida e, assim, em torno da viabilidade jurídica de selecionar o sexo do bebê.


O recurso à sexagem, sem a existência de um motivo relevante, deve ser tolhido. A utilização da biotecnologia com finalidades que acarretem na reificação do filho e na bestificação da vida não é aceitável do ponto de vista ético e jurídico. Considerando-se que a “vida humana não é um joguete, progenitores não podem, por capricho, ter o condão de predestinar uma vida” (VIEIRA et al., 2007:12). O filho não pode ser visto como um simples meio de realização dos desejos e das preferências dos pais.


A ciência, na medida em que realiza desejos, deve ser ponderada, pois o ser humano não pode ser um simples objeto científico, sendo necessário preservar o sentido humano em uma sociedade cada vez mais dominada pela biotecnociência.


Em outra perspectiva, tendo em vista o princípio da beneficência, se a escolha do sexo do bebê visar a contribuir para a saúde da criança que irá nascer, por evitar doenças hereditárias, deve ser vista como benéfica e, logo, deve ser permitida. As técnicas de reprodução assistida devem ser usadas para o bem-estar do ser humano e limitadas aos casos em que haja indicação terapêutica: tratamento de esterilidade e de infertilidade, bem como diante de riscos, comprovados por especialistas, de transmissão de enfermidades de origem hereditária diretamente relacionadas aos cromossomos sexuais, mais especificamente ao X.


Não se pode, contudo, esquecer que, de todo modo, os pais devem ser informados sobre os riscos e as limitações inerentes ao uso das técnicas de reprodução humana assistida.


O princípio da paternidade responsável, por sua vez, consagrado no texto constitucional como limitador do planejamento familiar, deve ser sempre observado, de modo a atender ao melhor interesse da criança. À criança deve ser assegurado o direito de não nascer de forma baseada em seleção de características físicas ou intelectuais, como mero produto dos interesses paternos, e de não ser um agente perpetuador de preconceitos e discriminações.


Entendendo que as novas tecnologias reprodutivas, assim como todo o avanço científico, devem ser vistas sob o prisma do princípio da solidariedade e da precaução, as ações humanas devem se vincular aos interesses e às responsabilidades da humanidade. Por essa razão, todas as práticas que ameacem o futuro da natureza da espécie humana devem ser coibidas, independentemente de ainda não podermos vislumbrar concretamente tais ameaças, uma vez que a reprodução humana não pode, em hipótese alguma, desvincular-se de seu caráter humano.


CONCLUSÃO


Por tudo isso, respaldamos o teor da Resolução n. 1.957/2010, do Conselho Federal de Medicina: as tecnologias reprodutivas devem ser restritas aos casos de infertilidade e esterilidade, bem como ao tratamento de doenças ligadas aos cromossomos sexuais, de modo que a seleção do sexo deve ser restrita às hipóteses em que se busque evitar enfermidades graves e, portanto, não deve ser permitida por outros motivos.


 


Referências

AGUIAR, M. Direito à filiação e bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

AMORMINO, T. C. F. Sexagem: a escolha de sexo dos filhos numa perspective ético-jurídica. Belo Horizonte: BookJvris, 2011.

BADALOTTI, M. Seleção de sexo: aspectos médicos e biológicos. In: CLOTET, J.; GOLDIM, J. R. (orgs.). Seleção de sexo e bioética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

FACHIN, L. E. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

GONÇALVES, D. W. Reprodução assistida, clonagem terapêutica e o Direito. Revista Consulex, ano VII, n. 152, 15 de maio de 2003.

 “Human Fertilisation and Embryology Authority”. Sex selection: choice and responsibility in human reproduction. London, 2002. Disponível em: http://www.hfea.gov.uk/docs/Sex_Selection_choice_and_responsibility.pdf. Acesso em: 24 de maio de 2011.

MASCARENHAS, F. Sexo de bebês sob encomenda: Sexagem é o nome da polêmica técnica médica que possibilita a escolha de um filho menino ou menina. A Tarde, 13/10/2005. Disponível em: http://www.saocamilo-ba.br/clipping/CLIP05216.htm. Acesso em: 22 de maio de 2008. 

QUEIROZ, J. F. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

VIEIRA, T. R. Bioética: temas atuais e seus aspectos jurídicos. Brasília: Revista Consulex, 2006.

 

Nota:

[1] Artigo oriundo do livro “Sexagem: a escolha de sexo dos filhos numa perspective ético-jurídica”. Belo Horizonte: BookJvris, 2011. “Human Fertilisation and Embryology Authority”. Sex selection: choice and responsibility in human reproduction. London, 2002. Disponível em: http://www.hfea .gov.uk/docs /Sex_Select on_choice_ and_respons ibility.pdf. Acesso em: 24 de maio de 2011.


Informações Sobre o Autor

Tatiana Costa de Figueiredo Amormino

Advogada formada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais


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