Sigilo bancário e atuação do COAF


A questão do sigilo bancário veio à baila tendo em vista a divulgação pela imprensa das informações acerca das movimentações financeiras feitas pelos diferentes Tribunais de Justiça, informações essas repassadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF – ao Conselho Nacional de Justiça, com a omissão de nomes e das origens. Mas, ao que tudo indica houve indevida menção à natureza dos gastos feitos por conta dos recursos financeiros movimentados. Não é propósito deste artigo abordar a matéria sub judice perante o Supremo Tribunal Federal.


Essas informações fornecidas pelas instituições financeiras, têm amparo no art. 5° da LC n° 105/01 que comete ao Executivo a regulamentação quanto à periodicidade e aos limites de valor e os critérios de informações a serem observados.


Mas, o seu § 2°, vedou de antemão a inclusão de dados que permitam a identificação da origem e da natureza dos gastos, limitando-se as informações aos dados relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados.


O Decreto n° 4.489/02 regulamentou a matéria exigindo, dentre outras obrigações, informações a serem prestadas pelas instituições financeiras ou a elas equiparadas acerca das movimentações bancárias superiores a R$ 5.000,00 mensais em se tratando de pessoas físicas, e a R$ 10.000,00 em se tratando de pessoas jurídicas.


O art. 5° da LC n° 105/01 não prevê, pois, exatamente a quebra do sigilo bancário, que está disciplinado no art. 6° da mesma lei, impondo dois requisitos impostergáveis: a existência prévia do processo administrativo instaurado, ou procedimento fiscal em curso e a indispensabilidade do exame de dados a juízo da autoridade administrativa competente. Esse artigo 6° foi regulamentado pelo Decreto n° 3.724/01.


Nessa questão da quebra do sigilo bancário o STF, de início, não exigia a existência de ordem judicial. Satisfazia-se com a observância do devido processo legal no plano administrativo. Porém, a Corte Suprema sempre afastou essa prerrogativa aos membros do Ministério Público, ressalvando apenas a atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito por causa da expressa previsão constitucional.


Contudo, no RE n° 389.808-PR, Rel. Min. Marco Aurélio, onde se questionava o art. 6° da LC n° 105/01 e os arts. 4° e 5° do Decreto n° 3.724/01, o Plenário do STF, por maioria de votos, decidiu que a quebra do sigilo de dados bancários está sob reserva de jurisdição, nos termos da ementa abaixo:


“SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte” (RE 389808, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15-12-2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218).


Na ocasião, o eminente Min. José Celso de Mello proferiu percuciente voto para concluir que “a inviolabilidade do sigilo de dados, tal como proclamada pela Carta Política em seu art. 5°, XII, torna essencial que as exceções derrogatórias à prevalência desse postulado só possam emanar de órgãos estatais – órgãos do Poder Judiciário (e, excepcionalmente, as Comissões Parlamentares de Inquérito), aos quais a própria Constituição Federal outorgou essa especial prerrogativa de ordem jurídica.”


Se dúvida não mais existe quanto à aplicação do art. 6° da LC n° 105/01 mediante determinação judicial, em relação ao art. 5° dessa mesma lei pairam dúvidas e incertezas.


Podem as instituições financeiras, sem ordem judicial, transmitir o montante global mensal das movimentações financeiras dos titulares das operações com a omissão apenas da origem dessas movimentações e da natureza dos gastos efetuados? Essas informações podem ser repassadas de um órgão para outro?


Sabe-se que essas informações são transmitidas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF – órgão de inteligência do Ministério da Fazenda (art. 14 da Lei n° 9.613/98).


O § 3° desse artigo 14 prescreve que “o COAF poderá requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras das pessoas envolvidas em atividades suspeitas.”


A inteligência desse parágrafo pressupõe que órgãos da Administração Pública podem repassar dados bancários protegidos pelo sigilo.


Ora, já se acha superada no STF a antiga tese de que a transmissão de dados não implica quebra de sigilo, desde que feita essa transmissão com a reserva de sigilo. A tese não tinha mesmo consistência jurídica, pois se a autoridade ou órgão que recebe a informação sigilosa deve guardar segredo fica prejudicada a utilização daquela informação.


Esse § 3°, do art. 14 deve ser interpretado em harmonia com o art. 10, inciso III, que subordina a requisição da informação feita pelo COAF à ordem judicial. Senão vejamos:


“Art. 10. As pessoas referidas no art. 9°: (…)


III – deverão atender, no prazo fixado pelo órgão judicial competente, as requisições formuladas pelo Conselho criado pelo art. 14, que se processarão em segredo de justiça”.


Em outras palavras, as instituições financeiras não podem informar ao COAF as movimentações financeiras de seus clientes sem prévia ordem judicial. Na prática, é o Banco Central quem fornece as informações ao COAF. Nem pode o COAF repassar as informações sigilosas regularmente recebidas a outros órgãos, com subtração da atuação jurisdicional. Muito menos pode ele repassar informações sigilosas recebidas sem a interferência do Poder Judiciário, pois o próprio recebimento dessas informações já configura infração legal e constitucional.


Disso resulta que a aplicação do art. 5° da LC n° 105/01, também, depende de ordem judicial.


Realmente, não faz sentido a devassa das operações financeiras do cliente, apontando nomes e valores mensalmente movimentados, com omissão apenas da origem dessas movimentações e da natureza dos gastos efetuados.


A imputação de movimentação financeira global e mensal a uma determinada pessoa, física ou jurídica, implica ipso fato a quebra do sigilo de dados bancários, independentemente de apontamento da origem dos recursos financeiros movimentados e da natureza dos gastos efetivados. Aliás, a omissão da origem e da natureza dos gastos, em muitos casos, pode até piorar a situação de quem teve divulgado o montante mensal e global de suas movimentações financeiras. Podem surgir sombras duvidosas sobre movimentações absolutamente legítimas e legais.


Por isso, não é razoável a interpretação de que a aplicação do art. 5º da LC nº 105/01 independe de ordem judicial. É bom que se lembre, por oportuno, que a razoabilidade é um limite que se impõe à ação do próprio legislador.


Entretanto, essa é uma questão que cabe ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra, se e quando provocado.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


logo Âmbito Jurídico