O segredo profissional[1] é, em alguns casos, o cerne de determinados ofícios. Imagine-se um padre[2] ou um psicanalista boquirroto, ou um advogado que revelasse à parte contrária informações pessoais de seu cliente, ou ainda um funcionário público que não guardasse o sigilo dos dados confidenciais de interesse da Administração, a que teve acesso.
Pelas hipóteses descritas, constata-se de plano a necessidade social de proteção do segredo profissional. A prevalência de impunidade para as indiscrições abalaria, além da intimidade da pessoa prejudicada, a ética profissional e o próprio interesse público, pois é de máxima valia para a sociedade que as pessoas e mesmo o Estado tenham ao seu dispor profissionais responsáveis que velem pelas informações que têm acesso em decorrência do ofício.
Afora esses, outros bens, interesses e direitos igualmente proeminentes se alevantam, como, por exemplo: a segurança dos enfermos em relação aos profissionais da saúde; a ampla defesa e o contraditório em relação aos advogados; a moralidade pública e a segurança do Estado em relação aos funcionários públicos; a honra, a intimidade, a privacidade, a imagem e a dignidade das pessoas, além de muitos outros direitos específicos de determinadas profissões.[3]
No que tange ao segredo médico, inúmeros exemplos denotam a sua importância para as pessoas. Assim, podemos constatar casos de rejeição e até de exclusão social de portadores de doenças estigmatizantes e de seus familiares, como as pessoas acometidas pelo vírus HIV, cujos filhos, muitas vezes, são discriminados nas escolas.[4]
Há casos em que os trabalhadores são submetidos a testes de saúde e, em seguida, despedidos por estarem com alguma doença incurável ou incapacitante.[5] [6]
E, ainda, uma preocupante tendência em se exigir testes de predição genética para contratação de trabalhadores pelas grandes empresas e para se firmar contratos de seguro pelas companhias do ramo.[7]
Noutras situações, os doentes temem procurar os serviços médicos por receio de serem denunciados: é o caso, dentre outros, de imigrantes ilegais que evitam os médicos por temor de serem descobertos e expulsos do país ou da mulher que se submeteu a um aborto clandestino e corre risco de vida, mas não procura a assistência médica regular para não se sujeitar a uma desonra ou ação criminal.
No Brasil, registra-se em relação ao segredo médico a pioneira decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, proferida nos autos do HC nº 39.308, Relator Ministro Pedro Chaves, julgamento em 19.09.62, DJ de 06.12.62, cuja ementa tem o seguinte teor:
“Segredo profissional. Constitui constrangimento ilegal a exigência da revelação do sigilo e participação de anotações constantes das clinicas e hospitais. Habeas corpus concedido.”
Além disso, o dever de confidencialidade médica está positivado no ordenamento jurídico brasileiro por regras jurídicas insculpidas nos arts. 102 a 109 do Código de Ética Médica (Res. CFM nº 1.246, de 8 de janeiro de 1988) que, apesar de ser uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, tem força de lei em face do disposto no art. 30 da Lei 3.268/57, conforme já decido pelo STJ no RESP 159527/RJ, em acórdão cujo relator foi o Ministro Ruy Rosado de Aguiar.
Assim, é dever do profissional médico manter o sigilo das informações a que tem acesso, mormente porque há um direito fundamental em jogo – o direito à intimidade.
Esse dever de segredo não beneficia apenas o titular dos dados médicos. Devido ao conteúdo público de propiciar, por meio de difusão social, o respeito à profissão e à confiança dos cidadãos em procurar os médicos sem receio de terem sua intimidade violada, a confidencialidade médica alcança ampla dimensão de utilidade geral ao atingir indistintamente toda a coletividade, constituindo-se, assim, num importante dever funcional[8] para os profissionais da área médica.[9]
O dever de sigilo médico é extensivo a toda a equipe de profissionais que compartilhem o acesso às informações (inclusive o prontuário médico).[10] De tal sorte, qualquer pessoa, médica ou não, que componha o grupo de atendimento ao paciente está obrigada a preservar a discrição dos dados a que tenha acesso durante o tratamento.
De acordo com a Declaração de Genebra (1948) e o Código Internacional de Ética Médica (1949), a ultratividade temporal ou pós-eficácia da obrigação do segredo médico perdura, inclusive, após a morte do paciente e beneficia também a família do enfermo, quando se tratar de enfermidade hereditária ou cuja revelação possa causar constrangimento ou prejuízo de qualquer ordem.[11]
Desse modo, a Portaria do Ministério da Justiça e Interior da Espanha, de 06 de junho de 1994, dispõe sobre a supressão do dado relativo à causa morte na certidão de óbito, por entender que o dado concernente ao motivo da morte é alheio à atividade registral. Segundo a norma espanhola, para efeito de se provar a morte, é necessário constar somente a data e o lugar do falecimento, isso sem prejuízo de que as informações do atestado médico de óbito constem nos boletins estatísticos e sanitários adequados, assegurando-se o seu conhecimento geral sem individualização das pessoas, de maneira a preservar a intimidade dos cidadãos.
Em Portugal, a causa da morte é considerada um dado sensível, ou seja, um daqueles dados a que o cidadão tem direito à salvaguarda contra a devassa ou difusão em obediência aos preceitos estabelecidas no art. 26º, item 1, da Constituição de 1976, definidos por Oliveira Ascensão como princípios de realização da personalidade. Nesse contexto, o Dec.-Lei nº 54/90, de 13 de fevereiro, eliminou a causa da morte nos assentos de óbito para salvaguardar a reserva da intimidade da vida privada das pessoas falecidas (no atual Código de Registro Civil, o art. 201º manteve a orientação do referido decreto).
No Brasil, a Lei de Registros Públicos (L. 6.015/73) dispõe, no seu art. 80, que o assento de óbito deverá conter, dentre outras informações, “se a morte foi natural ou violenta e a causa conhecida”, podendo, qualquer pessoa, nos termos do art. 17, “requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou funcionário o motivo ou interesse do pedido”.
Numa primeira vista, pode-se argumentar pela inconstitucionalidade da norma em epígrafe por estabelecer imotivada exposição da intimidade do falecido, porquanto o dado concernente ao motivo da morte é alheio à atividade registral, uma vez que, para efeito de se provar ou registrar civilmente a morte, só é necessário constar a data e o lugar do falecimento, à semelhança do que sói acontecer na Espanha e em Portugal.
A solução da questão é obtida pela aplicação da interpretação conforme a constituição, cuja definição foi lavrada pelo Tribunal Constitucional Alemão nos seguintes termos:
“Se a norma contrariar um princípio, seja qual for a interpretação possível, considerar-se-á inconstitucional. Mas se a norma admitir várias interpretações, que em parte conduzem a uma conclusão de inconstitucionalidade, e por outra parte se compatibilizem com a constituição, é a norma constitucional, e como tal se aplicará de acordo com a constituição.”[12]
Assim, há de se excluir as alternativas interpretativas incompatíveis.[13] Ou, ainda, reconhecer uma inconstitucionalidade parcial de maneira a aferir uma conformidade material e formal consentânea ao parâmetro superior da constituição.
É notório que o segredo médico perdura mesmo após a morte do paciente. Os dados clínicos, nisso incluído a causa mortis, por representarem a intimidade da pessoa falecida, somente podem ser revelados judicialmente, mediante justificável ponderação dos valores constitucionais em jogo, ou a pedido da família, nos termos da legitimação conferida pelo parágrafo único do art. 12 do Código Civil que atribui proteção jurídica para os direitos da personalidade depois da morte do titular.
Desse modo, os dados médicos do registro civil deverão ser protegidos contra a sua divulgação pública com base no art. 17 da LRP, que é aplicável somente para as informações de caráter público não abrangidas pela confidencialidade médica, que encarta o direito à intimidade. A situação é um típico caso de interpretação conforme a constituição das normas em análise (arts. 17 e 80 da LRP), porquanto se restringe à amplitude do art. 17 da LRP, excluindo-se a alternativa interpretativa que contraria a constituição.
Deve-se, assim, sob o pálio do direito à intimidade, interpretar a Lei à semelhança do sistema espanhol, em que os dados médicos relativos à natureza da morte devem constar no assento, mas apenas para fins de pesquisas estatísticas ou sanitárias, emitindo-se certidões, neste caso, para conhecimento geral, sem identificação das pessoas.
Na mesma linha interpretativa, a certidão de óbito individualizada, expedida pelo cartório de registro civil, não deverá conter os motivos que ensejaram a morte, salvo se expressamente solicitado pelos familiares ou se motivadamente requisitado por autoridade judicial. Ademais, o dever de confidencialidade médica está positivado no ordenamento jurídico brasileiro por regras jurídicas insculpidas nos arts. 102 a 109 do Código de Ética Médica (Res. CFM nº 1.246, de 8 de janeiro de 1988) que, apesar de ser uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, tem força de lei em face do disposto no art. 30 da Lei 3.268/57.[14]
Essa interpretação dos arts. 17 e 80 da LRP tem duas grandes vantagens: permite a preservação do sigilo médico e a conformação das normas citadas com o direito à intimidade previsto no art. 5º, inciso X, da Constituição da República, com uma aplicação que propicia a harmônica aplicação da lei registral, sem violação dos dados médicos do falecido e da sua intimidade e, portanto, sem qualquer inconstitucionalidade.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Procópio Bandeira de Melo
Juiz de Direito na Paraíba e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa