Sistema de cotas para negros e pardos: hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia

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Palavras-chave: Direito Constitucional; Inconstitucionalidade; Direitos Fundamentais; Direito de Igualdade; Hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia.

No dia 18 de março de 2004, um jornal de uma rede nacional de televisão noticiou que a UnB era a primeira Universidade Federal a reservar, para negros e pardos, uma cota de suas vagas, aumentando a discussão já bastante acalorada sobre a questão da constitucionalidade deste tipo de ação afirmativa.

Na verdade, tem razão Pierre Souto Maior Coutinho Amorim (em artigo intitulado “Sistemas de cotas”), ao afirmar que “temos, como principais argumentos a favor da implantação do sistema de reserva de vagas nos concursos públicos e nos vestibulares das faculdades públicas, o débito estatal em relação à forma de recolocação social dos negros na fase de pós-libertação, o princípio da igualdade, em sua acepção material, e a possibilidade da instituição de políticas compensatórias, albergadas pela Constituição da República”.

Maior razão, ainda, assiste ao mesmo autor quando – após derrubar uma a uma todas as possíveis críticas à adoção do sistema de cotas para negros – lembra que “a última reclamação dos que se opõe ao sistema de cotas em benefício dos negros, arrima-se no argumento de que ao se instituir as cotas, candidatos com notas superiores podem perder suas vagas para candidatos com notas inferiores. Então, dizem, a produção de notas altas nas avaliações, como critério absoluto para escolha dos melhores, restaria inválido. Porém, o critério intelectual não é absoluto, tampouco afere com precisão o mérito do esforço individual. Ora, o que tem melhores condições materiais e psicológicas efetuará menor esforço para atingir resultado idêntico ao do inferiorizado. O professor Sandro Cesar Sell afirma: ‘O que os estudos têm demonstrados é que a supremacia intelectual freqüentemente não é uma conquista, mas um presente genético ou a resultante de condições ambientais na qual o indivíduo tem pouca ou nenhuma influência (como o fato de ter nascido num lar intelectualmente estimulante). Então, será que realmente se está premiando os mais dedicados com as seletas vagas, quando se as atribui aos melhores classificados nos testes intelectuais? Ou se estaria simplesmente premiando os mais agraciado pela natureza ou acaso? Ora, muitos dos estudantes, de qualquer origem étnica, que não ingressaram nas universidades podem ter se esforçado muito mais do que aqueles que, por sua natureza específica, ambiente social e inteligência herdada, pouco se preocuparam com esses testes. Suas condições de partida (genéticas e ambientais) os colocaram naturalmente à frente. Não haveria aqui discriminação intelectual?’ Vemos, pois, que nem mesmo o conceito de mérito pode ser concebido de forma estática ou em caráter absoluto.”

O referido artigo do citado autor nos impõe uma conclusão: não existem razões para pugnar-se por uma possível inconstitucionalidade da adoção de uma ação afirmativa em favor dos negros e pardos. Não cabe aqui transcrever o referido artigo, pois esta não é nossa intenção, assim, remetemos o leitor para que consulte a indiscutível defesa em prol da constitucionalidade das cotas para negros e pardos feitas pelo brilhante jurista.

Assim, devemos ter em mente a realidade social brasileira, sobre a qual João Baptista Herkenhoff chega a lembrar que “para a lei, todos são iguais [artigo 5º da Constituição Federal]. Ingênuo engano. Os homens são desiguais. Uma estrutura de opressão cria e alimenta as desigualdades. Dessa constatação há de partir toda tentativa de um Direito justo: apreciação desigual, ante a desigualdade social e a desigualdade humana.”

Em outra passagem, continua o mesmo autor: “segundo o ensaio clássico, a Justiça explicita-se de três maneiras fundamentais: a) como Justiça comutativa; b) como Justiça distributiva; c) como Justiça geral, social ou legal. A Justiça comutativa exige que cada pessoa dê a outra o que lhe é devido. A Justiça distributiva manda que a sociedade dê a cada particular o bem que lhe é devido. A Justiça geral, social ou legal determina que as partes da sociedade dêem, à comunidade o bem que lhe é devido”, sendo que “Justiça Social entre nós é vencer a fome, as brutais desigualdades, é impedir que a infância seja destruída antes mesmo que a vida alvoreça, é reconhecer às multidões oprimidas o direito de partilhar os dons e as grandezas da Criação. Justiça social entre nós é exigir Justiça nas relações internacionais, é denunciar como iníquos os mecanismos que nos mantêm eternamente em dívida para com os ricos do mundo. Não há Justiça Social onde a sociedade, como um todo, não proporciona a satisfação dos direitos das pessoas em particular e sobretudo das pessoas mais credoras de proteção como a criança, o velho, o doente […] Também não há Justiça Social se os particulares, as empresas, as microssociedades não contribuem, cada um na medida de suas possibilidades, para o bem da sociedade global. Não há Justiça Social onde vigoram as leis do egoísmo, da sonegação fiscal, do peculato, e o Estado, longe de cumprir o desiderato distributivista, constitui, ao contrário, instrumento de acumulação em favor das minorias privilegiadas.”

Para João Baptista Herkenhoff, “esquematicamente, podemos distinguir três níveis em que se manifesta o fenômeno da violência: a) a violência institucionalizada, decorrente da estrutura socioeconômica vigente; b) a violência privada, de indivíduos ou grupos, que se manifesta através de comportamentos definidos como criminosos, pelo sistema legal; c) a violência oficial, representada pela repressão policial e por aquela exercida pelo aparelho judiciário e prisional.” E, pouco mais adiante, explica o que é a violência institucionalizada, afirmando que “qualquer pessoa identifica o comportamento de violência num homicídio ou num roubo (subtração de coisa alheia móvel, mediante, justamente, grave ameaça ou violência). Entretanto, nem sempre se percebe o conteúdo de violência na cena de uma criança raquítica que morre de sarampo. A violência institucionalizada é mais sutil. É aceita como natural. Às vezes é até interpretada como se fosse a vontade de Deus. Por falta de espírito crítico, as pessoas, com freqüência, não sabem identificar as causas dessa espécie de violência, nem podem imaginar alternativas de organização sócio-político-econômica que suprimiam as situações de violência estrutural. A violência institucionalizada é o conjunto das condições sociais que esmagam parcela ponderável da população, impossibilitando que os integrantes dessa parcela tenham uma vida humana. Não se pode escamotear que estão sendo violentados todos aqueles seres humanos privados das condições mínimas de existência: os adultos que passam fome; as crianças que passam fome e cujo cérebro é, irreversivelmente, deteriorado pela desnutrição; os que não têm direito ao abrigo, à privacidade de uma habitação; os que não têm direito à saúde; os que não têm direito a qualquer descanso ou lazer porque a uma longa jornada de trabalho vem se somar uma longa jornada perdida no transporte urbano; os que não têm direito a qualquer espécie de participação nas decisões públicas; os que não têm direito à solidariedade, condenados ao isolamento por força de uma organização social que pulveriza os contatos no nível de pessoa e de grupo…”

É necessário lembrar, como o fez Gladston Mamede, que “para além das teorias e das normas, está a vida de cada ser humano que constitui a sociedade. De pouco adianta propagar que cada um é agente de seus destinos político, social, econômico, jurídico (o mito da cidadania), se não há condições jurídicas e mesmo pessoais para que isto ocorra […] No caso brasileiro, deixando de dar formação educacional (crítica e política) a parte da população, mantém-se a prática espoliatória que beneficia uma elite (narcísica, incompetente, inconseqüente) em desproveito de milhões de pessoas (miseráveis, e trabalhadores das classes baixas). Permite-se uma certa ordem de privilégios para uma classe intermediária (classe média), que, na estrutura social, funciona como suporte para as classes dominantes: fornece-lhe profissionais que administram seus interesses (nestes incluídos tanto os negócios particulares, quanto os ‘negócios de Estado’, ou seja, a administração do aparelho de Estado, sempre no estrito respeito à conservação de seus benefícios), assim como assimila (motivada pelo desejo de conservar sua própria parcela – ainda que limitada – de benefícios) a fobia – e a luta – contra um possível ‘levante’ das massas exploradas…”

Como lembra Herkenhoff, “em oposição à utopia que se pode tornar realidade, muitos acenam ao povo com fórmulas para vencer na vida. Todo um esquema de pensamento tenta convencer as pessoas de que as regras estão colocadas, como devido, de que tudo está certo e de que basta trabalhar para dominar a terra. Ao jurista, inclusive, não restaria outro papel que não o de se inserir no sistema vigente para, quando muito, corrigir algumas de suas arestas. A ideologia dominante é hoje transmitida ao povo, com renovada eficácia, em face dos meios de comunicação de massa.”

Gladston Mamede concorda ao afirmar que “nossa sociedade é induzida a crer-se democrática e os indivíduos a crerem-se cidadãos; segundo este discurso (falso, nos termos vistos), haveria entre nós respeito ao Direito (não só às normas estabelecidas, como aos ‘elevados princípios de justiça’) e oportunidades de participação. Mas examinando-se os indivíduos isoladamente, encontrar-se-á apenas uma pequena minoria que possui condições pessoais e sociais de, efetivamente, conhecer e utilizar-se das possibilidades (limitadas, como se viu) de participação consciente nos desígnios de Estado. A consolidação do (verdadeiro) Estado Democrático de direito, em contraste, exige muito mais…”

De todo este contexto social, uma das categorias (já que alguns cientistas pregam não haver diferentes raças na espécie humana) mais atingidas é, justamente, a dos negros e pardos, descendentes dos escravos que trabalhavam nas diversas propriedades do país.

Porém, não podemos nos esquecer que não só os negros e pardos são afetados pela exclusão social que aflige o Brasil. Também os índios, alguns imigrantes e seus descendentes, amarelos e brancos…

É neste cenário que surge a polêmica ação afirmativa de adoção de reserva de cotas de vagas para estudantes negros e pardos em universidades públicas.

Assim, não podemos nos esquecer de outro artigo sobre o tema de autoria do ilustre Juiz Federal, Willian Douglas, intitulado “Cotas para negros e pardos” (artigo inclusive citado e criticado pelo referido artigo de Pierre Souto Maior Coutinho Amorim), onde afirma, com toda razão que “É preciso tomar cuidado para que a União, ao tentar imitar a excelente medida do Estado do Rio de Janeiro, não o faça de modo equivocado. Cotas para os comprovadamente pobres, sim. Para alguém por causa de sua por ou etnia, qualquer que seja ela, positivamente não.”

Apesar de parecerem contraditórios (já que um defende e outro combate o sistema de cotas para negros e pardos), os dois artigos citados sobre o tema, se analisados sob determinado ponto de vista, são perfeitamente conciliáveis.

Trata-se da hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia.

Por ser este um tema pouco explorado pela doutrina nacional, cumpre esclarecer que a hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia, como o próprio nome indica, está diretamente ligada ao princípio de igualdade material.

Sobre este tema específico, objetivas e indubitáveis são as palavras do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem: “o princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência de tratamento igualitário, quanto como proibição de tratamento discriminatório. A lesão ao princípio da isonomia oferece problemas sobretudo quando se tem a chamada ‘exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade’. Tem-se uma ‘exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade’ se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas. Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela é concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo; a exclusão de benefícios é explícita se a lei geral que outorga determinados benefícios a certo grupo exclui sua aplicação a outros segmentos. O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas situações que se encontram numa relação de comparação. Essa relatividade do postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma inconstitucionalidade relativa não no sentido de uma inconstitucionalidade menos grave. É que inconstitucional não se afigura a norma ‘A’ ou ‘B’, mas a disciplina diferenciada das situações. Essa peculiaridade do princípio da isonomia causa embaraços, uma vez que a técnica convencional de superação da ofensa (cassação; declaração de nulidade) não parece adequada na hipótese, podendo inclusive suprimir o fundamento em que assenta a pretensão de eventual lesado.”

Assim, o problema do sistema de cotas proposto inicialmente por universidades do estado do Rio de Janeiro e aplicado pela UnB, deve ser tratado como uma ação afirmativa perfeitamente constitucional, já que se propõe a tratar os desiguais na medida em que se desigualam, concedendo uma desigualdade formal com o intuito de garantir-se uma igualdade material.

A medida atende à lição de Walzer (segundo a qual a igualdade é complexa, e a desigualdade deve ser compensada na esfera onde esta ocorre, nunca em esfera diversa, pois isso não promoveria a igualdade, mas, ao contrário, daria margem ao privilégio), uma vez que concede benefícios sociais na tentativa de se corrigir desigualdades sociais.

Porém, conforme bem lembrado por Willian Douglas, a atitude correta seria, neste caso, conceder-se o benefício, não só para os negros e pardos, mas para todos os indivíduos proveniente de famílias de baixa renda, sejam elas negras, pardas, índias, brancas, amarelas, etc., pois, caso contrário, estar-se-ia diante de hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia, uma vez que concede um benefício a apenas parte de indivíduos que se encontram em uma mesma situação jurídica (a pobreza).

Não se trata de corrigir-se um problema (a falta do benefício a outras categorias de indivíduos) através da declaração de inconstitucionalidade da referida medida inclusiva, mas, pelo contrário, de estender este benefício, por incompatível com o princípio da isonomia, a outros indivíduos não abrangidos expressamente pela medida.

Esta é nossa proposta, que os diversos juristas, sejam eles juízes, advogados, e principalmente membros do Ministério Público – que são, por excelência, os defensores dos Direitos Difusos e Coletivos – embarquem esta luta, e, ao contrário do que pretende a minoria abastada do país (que, em última análise pretende apenas manter seu privilégio de única classe a ter acesso ao ensino superior), optem por não aceitar a equivocada tese da inconstitucionalidade do sistema de cotas, mas, ao contrário, defendam sua verdadeira constitucionalidade, pugnando – através da tese da hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia –  pela extensão do benefício aos mais diversos indivíduos, sejam eles negros e pardos, ou não.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Enéas Castilho Chiarini Júnior

 

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Advogado em Pouso Alegre/MG, especialista em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. Do Sul de Minas), capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem), e membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL (Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas), é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

 


 

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