Da classificação dos serviços de energia elétrica
Por primeiro, faz-se necessário um esclarecimento acerca da natureza jurídica dos serviços de energia elétrica, que, ressalte-se, não se trata de serviço público essencial, mas sim, serviço de utilidade pública.
Nesse sentido, cumpre aduzir que, em inúmeros momentos, a doutrina tem distinguido os serviços públicos dos serviços de utilidade pública, para, no campo do Direito Administrativo, determinar a essencialidade de uns e a conveniência de outros, a fim, de distinguindo-se assim, dar-lhes as tratativas peculiares de modo a preservar sempre o bem estar público.
Assim, nos ensina HELY LOPES MEIRELLES[1]:
“Serviços públicos: propriamente ditos, são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer a sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social, e do próprio Estado. Por isso mesmo, tais serviços são considerados privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque, geralmente exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados. Exemplos desses serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os de preservação da saúde pública.
SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA: são os que a Administração, reconhecendo a sua conveniência (não essencialidade, nem necessidade) para os membros da coletividade, presta-os diretamente, ou aquiesce em que sejam prestados por terceiros (concessionários, permissionários ou autorizatários), nas condições regulamentadas e sob seu controle, mas por conta e risco dos prestadores, MEDIANTE REMUNERAÇÃO DOS USUÁRIOS. São exemples dessa modalidade, os serviços de transporte coletivo, ENERGIA ELÉTRICA, gás, telefone”. – destacamos.
Verifica-se, então que, no primeiro caso (serviço público), a finalidade da prestação pelo Estado é satisfazer a necessidade geral e essencial da sociedade “para que ela possa subsistir”, enquanto que, no segundo caso (serviço de utilidade pública), o que se pretende é proporcionar mais conforto e bem-estar à coletividade. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles assevera que os serviços de utilidade pública, ou também chamados de serviços industriais, são impróprios do Estado, porque consubstanciam atividade que só pode ser explorada em caráter suplementar da iniciativa privada (CF, art. 173).
Nesta esteira de entendimento, NELSON SCHIESARI[2] classifica tal serviço como “serviço de execução indireta”, isto é, “aqueles tidos como não essenciais para sobrevivência do Estado, de caráter social ou econômico, por isto mesmo entregues a particulares, seja pela concessão, especialmente os de caráter industrial ou comercial, seja pela delegação”.
Destarte, o saudoso Mestre HELY LOPES MEIRELLES[3], define que o fornecimento de energia elétrica constitui serviço público não essencial, o classificado como serviço uti singuli ou individual, que é aquele que tem usuários determinados e utilização particular e mensurável, para tanto leciona que:
“Serviços uti singuli são os que têm usuários determinados e utilização particular e mensurável para cada destinatário, como ocorre com o telefone, a água e a ENERGIA ELÉTRICA domiciliares. Esses serviços, desde que implantados, geram direito subjetivo à sua obtenção para todos os administrados que se encontrem na área de sua prestação ou fornecimento e satisfaçam as exigências regulamentares. São sempre serviços de utilização individual, facultativa e mensurável, pelo quê devem ser remunerados por taxa (tributo) ou tarifa (preço público), e não por imposto.
O não pagamento desses serviços por parte do usuário tem suscitado hesitações da jurisprudência sobre a legitimidade da suspensão de seu fornecimento. Há de distinguir entre o serviço obrigatório e o facultativo. Naquele, a suspensão do fornecimento é ilegal, pois, se a Administração o considera essencial, impondo-o coercitivamente ao usuário (como é a ligação domiciliar à rede de esgoto e água e a limpeza urbana), não pode suprimi-lo por falta de pagamento; neste, é legítima, porque, sendo livre sua fruição, entende-se não essencial, e, portanto, suprimível quando o usuário deixar de remunerá-lo, sendo, entretanto, indispensável aviso prévio. Ocorre, ainda, que, se o serviço é obrigatório, sua remuneração é por taxa (tributo), e não por tarifa (preço), e a falta de pagamento do tributo não autoriza outras sanções além de sua cobrança executiva com os gravames legais (correção monetária, multa, juros, despesas judiciais).”
Desta feita, o fornecimento de energia elétrica trata-se de serviço de execução indireta ou uti singuli, remunerado por tarifa, não essencial, de livre fruição e, logo, suprimível quando o usuário deixar de remunerá-lo.
ATO ADMINISTRATIVO E PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE
Cabe, neste instante, salientar o conceito de concessão de serviço público, para que assim então se possa compreender a característica peculiar dos atos praticados pelas concessionárias de energia elétrica no exercício de competência delegada, plenamente vinculada.
Neste diapasão, Celso Antônio Bandeira de Mello[4] ao definir o conceito de concessão, nos ensina que:
“Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço”.
Nesse sentido, tem-se que os serviços concedidos são todos aqueles que o particular executa em seu nome, por sua conta e risco, mediante delegação contratual ou legal do Poder Público Concedente. Significa dizer que, “serviço concedido é serviço do Poder Público, apenas executado por particular em razão da concessão”.[5]
Destarte, as concessionárias responsáveis pela distribuição e fornecimento de energia elétrica, por força do Contrato de Concessão, receberam da União à atribuição de explorar esse serviço de utilidade pública, para tanto, no exercício de suas funções, as concessionárias dispõe, mediante a transferência de competência[6], de parcela dos poderes públicos, consubstanciada na prática de atos administrativos.
Insta salientar a lição sempre precisa de Celso Antônio Bandeira de Mello que leciona que só “existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, deveres-poderes, no interesse alheio”.
Desta forma, as concessionárias, objetivando exercer plenamente as suas funções, praticam atos administrativos. Esta assertiva se reforça quando constatasse que esses atos são passíveis de impugnação por meio do mandado de segurança, porquanto revestidos dos atributos de atos administrativos.
Nesse sentido, pedimos vênia para trazer à lembrança, que o Colendo Supremo Tribunal Federal editou a súmula nº 510, nos seguintes termos: “Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ele cabe o mandado de segurança ou a medida judicial”.
Ainda a propósito, todas as divergências jurisprudenciais que reinavam sobre a equiparação dos atos praticados pelas concessionárias quando do exercício de competência delegada aos atos administrativos, encontram-se hoje superadas, vez que o Colendo Superior Tribunal de Justiça admite que esses atos são passíveis de impugnação por mandado de segurança, conforme se verifica na decisão proferida no REsp n° 84.082.
Assim, com o objetivo de clarear ainda mais a questão, cumpre, neste instante, trazer à colação, mais uma vez, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[7] que conceitua o ato administrativo como sendo:
“(…) declaração do Estado (ou de quem lhe faça às vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.
Logo, resta nítido que o ato administrativo é toda manifestação de vontade do Estado ou de quem lhe faça às vezes, no exercício de prerrogativas públicas.
Ademais, oportuno se torna dizer que todo ato administrativo é dotado de atributos, que lhe são peculiares, tais como, a presunção de legitimidade, porque se presume legal a atividade administrativa, por conta da inteira submissão ao princípio da legalidade; auto-executoriedade, uma vez que será executado, quando necessário e possível, ainda que sem o consentimento do seu destinatário; imperatividade, ante a inevitabilidade de sua execução, porquanto reúne sempre poder de coercibilidade para aqueles a que se destina.
Nesta esteira, os atos administrativos, qualquer que seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente de norma legal que a estabeleça. Vale ressaltar, que essa presunção decorre do princípio da legalidade da Administração, que, nos Estados de Direito, informa toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde a exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não poderiam ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para só após dar-lhes execução.
A presunção de legitimidade dos atos administrativos, portanto, não significa um valor absoluto, tanto que se qualifica como presunção juris tantum, ou seja, relativa, admitindo prova em contrário. Todavia, qualquer irregularidade ou invocação de nulidade deve ser necessariamente alegada e provada em juízo.
Na lição de Celso Ribeiro Bastos[8], a presunção de legitimidade
“é a qualidade de se presumirem válidos os atos administrativos até prova em contrário, é dizer, enquanto não seja declarada a sua nulidade por autoridade competente. Há, pois, uma presunção juris tantum de que o ato foi editado conforme o direito, ou seja, com observância das normas que regulam a sua produção. É que o Estado tem a seu favor a presunção legal de que sua atividade é legítima”.
Diante disto, outra conseqüência da presunção de legitimidade é a transferência do ônus da prova de invalidade do ato administrativo para quem a invoca. Cuida-se de argüição de nulidade do ato, por vicio formal ou ideológico, incumbindo a prova do defeito apontado ao impugnante, do que resulta que, até sua anulação o ato terá plena eficácia.
Isso porque, conforme ensina Celso Antonio Bandeira de Mello[9], a “presunção de legitimidade – é a qualidade, que reveste tais atos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao Direito, até prova em contrário. Isto é: milita em favor deles uma presunção juris tantum de legitimidade”.
TERMO DE OCORRÊNCIA DE IRREGULARIDADE
Dentre os muitos fatos que lhe são peculiares, as regras do direito juridicizam os fatos sociais, também chamados de eventos, fazendo irromper relações jurídicas, no seio das quais aparecem os direitos subjetivos e os deveres correlatos.
Nesse sentido, o Termo de Ocorrência de Irregularidade – TOI é um instrumento legal, previsto no artigo 72, da Resolução nº 456/2000 da ANEEL, que tem por finalidade formalizar a constatação de qualquer irregularidade encontrada nas unidades de consumo dos usuários de energia elétrica, que proporcione faturamento inferior ao real. Para tanto, este ato administrativo pormenoriza todos os dados do titular e da unidade consumidora irregular, bem como a irregularidade constatada.
Art. 72. Constatada a ocorrência de qualquer procedimento irregular cuja responsabilidade não lhe seja atribuível e que tenha provocado faturamento inferior ao correto, ou no caso de não ter havido qualquer faturamento, a concessionária adotará as seguintes providências:
I – emitir o “Termo de Ocorrência de Irregularidade”, em formulário próprio, contemplando as informações necessárias ao registro da irregularidade, tais como:
(…)
IV – proceder a revisão do faturamento com base nas diferenças entre os valores efetivamente faturados e os apurados por meio de um dos critérios descritos nas alíneas abaixo, sem prejuízo do disposto nos arts. 73, 74 e 90:
a) aplicação do fator de correção determinado a partir da avaliação técnica do erro de medição causado pelo emprego dos procedimentos irregulares apurados;
b) na impossibilidade do emprego do critério anterior, identificação do maior valor de consumo de energia elétrica e/ou demanda de potência ativas e reativas excedentes, ocorridos em até 12 (doze) ciclos completos de medição normal imediatamente anteriores ao início da irregularidade; e
c) no caso de inviabilidade de utilização de ambos os critérios, determinação dos consumos de energia elétrica e/ou das demandas de potência ativas e reativas excedentes por meio de estimativa, com base na carga instalada no momento da constatação da irregularidade, aplicando fatores de carga e de demanda obtidos a partir de outras unidades consumidoras com atividades similares.
Desta forma, o Termo de Ocorrência de Irregularidade, se apresenta como um veículo introdutor de uma norma individual e concreta que tem, no suposto, a descrição de um delito e, no conseqüente, a instituição de um liame jurídico sancionatório, cujo conteúdo da obrigação é um valor pecuniário, representado por uma multa administrativa[10], apurada por meio de um dos parâmetros pré-estabelecidos pelo artigo 72, da Resolução nº 456/2000 da ANEEL, podendo ser acrescido de um custo administrativo, artigo 73, sem prejuízo da suspensão do fornecimento de energia elétrica para o usuário irregular, artigo 90, da mesma Resolução.
Destarte, como decorrência da irregularidade prevista hipoteticamente no artigo 72, da Resolução nº 456/2000 da ANEEL (norma geral e abstrata), instala-se o fato (norma individual e concreta), constituído pela linguagem competente (Termo de Ocorrência de Irregularidade), irradiando-se o efeito jurídico próprio, qual seja o vínculo abstrato, mediante o qual a concessionária, na qualidade de sujeito ativo, ficará investida do direito subjetivo de exigir do usuário, chamado de sujeito passivo, o cumprimento de determinada obrigação (sanção), especificada nos artigo 72 e seguintes da referida Resolução, ao passo que o usuário ficará na contingência de cumpri-la.
Com supedâneo em tais considerações, podemos dizer que o Termo de Ocorrência de Irregularidade – TOI – é o ato administrativo que consubstancia a aplicação de uma providência sancionatória a quem, tendo violado preceito de conduta obrigatória, realizou evento inscrito na lei como ilícito administrativo.
Trata-se, deste modo, de ato administrativo punitivo, que, segundo Hely Lopes Meirelles[11], “são os que contêm uma sanção imposta pela Administração àqueles que infringem disposições legais, regulamentares ou ordinatórias dos bens ou serviços públicos”. Visando punir e reprimir as infrações administrativas ou a conduta irregular dos administrados ou usuários perante a administração pública ou quem lhe faça às vezes.
Vê-se, então, que a matéria semântica do antecedente das regras sancionatórias alude a um evento caracterizado, sempre, pelo desatendimento de um dever. É o modelo iterativo dos antessupostos de normas sancionatórias. Daí mencionar-se o fato assim composto como delito, infração, ilícito.
CONCLUSÃO
À luz destas seguras lições é que se deve entender que as concessionárias de energia elétrica, para poderem praticar suas funções, executam atos administrativos. Assim, no caso de ser constatada a ocorrência de qualquer irregularidade no equipamento de medição, que importe na diminuição do faturamento do consumo de energia elétrica, as concessionárias estão obrigadas a lavrar o Termo de Ocorrência de Irregularidade, nos exatos termos do estabelecido pelo artigo 72, da Resolução n° 456/2000 da ANEEL, eis que, referido ato administrativo deve ser praticado sem margem alguma de liberdade para as concessionárias, pois a lei previamente tipificou o único e possível comportamento a ser seguido diante da irregularidade constatada.
Por fim, cumpre observar que o ato vinculado, consistente no Termo de Ocorrência de Irregularidade, por ser um ato administrativo, goza dos atributos da presunção de legitimidade, sendo considerado válido, vigente e pronto para produzir os efeitos a que se destina, eis que presumivelmente praticado em conformidade com a lei, como também, auto-executoriedade, que é a qualidade do ato administrativo que dá ensejo às concessionárias de, direta e imediatamente, executá-los, e, imperatividade, tendo em vista o poder de coercibilidade, sendo executado independentemente do consentimento do usuário.
Informações Sobre o Autor
Fabiano Augusto Rodrigues Urbano
Assessor Jurídico da Secretaria de Assuntos Jurídicos de Campinas/SP
Ex- Assessor Jurídico da Secretaria de Transportes de Campinas/SP
Advogado
Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP