Resumo: Este trabalho busca inicialmente mostrar, de maneira breve, como ocorre o trabalho escravo urbano e rural nos dias atuais. Em seguida, conceitua o trabalho escravo à luz da Convenção sobre a Escravidão, de 1926 da Liga das Nações e o trabalho forçado segundo a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho, sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 1930. A partir desse ponto, demonstra que tais modalidades não se confundem, por possuírem elementos próprios e distintos. São também abordadas algumas modalidades de trabalho escravo contemporâneo, como a servidão, a jornada exaustiva e o trabalho em condições degradantes. Definidos tais pontos, a pesquisa procura analisar os tipos de atividade laboral realizados nas unidades prisionais, a fim de se verificar em quais modalidades tais atividades podem ser classificadas e se há a possibilidade de alguma delas ser caracterizada como trabalho escravo. Os resultados mostram que a maior parte do trabalho prisional é hoje realizada em detrimento da dignidade do trabalhador, que recebe uma remuneração abaixo do salário mínimo vigente e lhe são negados os direitos sociais constitucionalmente garantidos, caracterizando-se assim o trabalho escravo.
Palavras-chave: Condições degradantes de trabalho. Dignidade humana. Trabalho escravo. Trabalho forçado. Trabalho prisional.
Abstract: This work begins by briefly discussing what characterizes urban and rural slave labor today. After that, it defines “slave labor” based on the 1926 Slavery Convention of the League of Nations, and “forced labor” according to the 1930 Forced Labor Convention (29) of the International Labour Organization. Exploring both concepts, this work shows that those types of labor are different from each other, since each one has its own and specific elements. This work also covers some versions of contemporary slavery, such as servitude, exhausting journey and degrading work conditions. Once such concepts are defined, the research analyzes the types of inmate labor activities carried out in prisons, in order to see how they can be classified and if there is any possibility of some of them being characterized as slave labor. The results show that the majority of the labor activities executed by inmates nowadays are performed at the expense of the dignity of the worker, who perceives remuneration below the minimum wage and to whom the constitutionally guaranteed social rights are denied, thus characterizing slave labor.
Keywords: Degrading working conditions. Force labor. Human Dignity. Inmate labor. Slave labor.
Sumário: 1. Introdução. 2. A escravidão no Brasil: sua dinâmica e breve noções de sua configuração nos meios urbano e rural. 3. A diferença entre trabalho forçado e trabalho escravo. 3.1 Conceitos de trabalho forçado e trabalho escravo. 3.2 A diferença fundamental entre trabalho forçado e trabalho escravo: a questão da dignidade humana. 3.3 A luta pelo fim do trabalho forçado como medida profilática para se evitar o trabalho escravo. 3.4 O trabalho escravo não é espécie de trabalho forçado. 3.4.1 A jornada exaustiva e o trabalho degradante como espécies de trabalho escravo. 3.4.2 O perigo do retrocesso da legislação. 3.5 A problemática acerca do conceito de trabalho escravo. 3.6 O trabalho forçado não é espécie de trabalho escravo. 3.7 A punição penal contra o trabalho escravo. 4. O trabalho prisional. 4.1 Um breve panorama sobre a realidade prisional. 4.2 O trabalho da pessoa presa: trabalho forçado, escravo ou decente? 4.2.1 A recusa ao trabalho. 4.3 Os diferentes regimes de cumprimento de pena. 4.4 O trabalho externo. 4.5 O trabalho interno. 4.6 O trabalho do preso e a Consolidação das Leis Trabalhistas. 4.7 Outras formas de trabalho escravo impostas ao indivíduo que cumpre pena privativa de liberdade. 4.7.1 O castigo físico por meio do trabalho improdutivo. 4.7.2 O trabalho exaustivo e as condições degradantes de trabalho. 5. Conclusões. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O trabalho escravo é uma ocorrência quase tão antiga quanto é a história do homem vivendo em sociedade. É uma prática cruel, que reduz o ser humano à qualidade de mera propriedade de outrem, como se coisa fosse. Sua motivação sempre foi essencialmente econômica, embora muitos indivíduos já tenham sido escravizados em ambiente doméstico para atender a uma demanda social por status.
É lamentável o fato de a evolução da humanidade não ter conseguido suprimir a escravidão, mesmo nos dias atuais. Ao longo dos milênios, o homem estruturou as religiões; instituiu os Estados; arquitetou diferentes sistemas políticos e econômicos; criou as artes; desenvolveu as ciências; vivenciou diversas mudanças na organização das estruturas sociais; edificou ordenamentos, constituições nacionais, tratados e convenções internacionais que priorizam os direitos fundamentais; desenvolveu as ciências humanas; entre inúmeros outros feitos, que mudaram o conhecimento, as relações de poder e o comportamento das pessoas no planeta. Entretanto, as grandes dificuldades econômicas e a luta pela sobrevivência por parte das vítimas – somadas à falta de informação e de qualificação profissional –, aspectos explorados pelos escravagistas em suas ações criminosas, ainda mantêm viva essa forma degradante de relação social.
A escravidão contemporânea distingue-se em alguns pontos da escravidão tradicional, que foi praticada em outros tempos da história da humanidade. Um deles é a questão da ilegalidade. A escravidão nos tempos atuais tornou-se oficialmente ilícita por todo o mundo, deixando, portanto, de ser uma prática socialmente aceita e justificada para tornar-se proibida, repudiada, odiosa, ilegítima e criminalmente punível.
No passado, o processo de libertação das pessoas legalmente escravizadas no Brasil foi gradual, lento e tardio, uma vez que o governo imperial da época temia desagradar internamente os latifundiários que utilizavam mão-de-obra escrava em suas fazendas. A escravidão foi oficialmente declarada extinta há mais de 125 anos. A decisão foi tomada devido a pressões internas e externas. No país, um grupo formado por escritores, intelectuais, jornalistas e políticos progressistas liderou o movimento abolicionista interno, enquanto no âmbito internacional, a Inglaterra exerceu decisiva influência, utilizando-se de um discurso fundamentalmente humanitário, enquanto seu real interesse estava na expansão do mercado consumidor para suas indústrias, a ser proporcionado pela criação de uma massa de trabalhadores assalariados aqui no país.
Apesar disso, mesmo com o advento da lei extintiva, até os dias atuais o trabalho escravo resiste de forma persistente, com focos de ocorrência por todo o território brasileiro, principalmente no meio rural, embora sua ocorrência seja também registrada nos centros urbanos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB-88), promulgada em 5 de outubro de 1988, ainda não conseguiu fazer com que os seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade alcancem a amplitude máxima de um Estado socialmente inclusivo e efetivamente democrático. O Estado Democrático de Direito, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão, na justa distribuição de renda, na erradicação da miséria, no respeito aos direitos e garantias fundamentais, ainda é um objetivo a ser alcançado. A denúncia e o combate ao trabalho escravo são, nesse sentido, formas de cooperar com a ampliação do alcance concreto das garantias fundamentais, de modo que elas transcendam o plano abstrato e estejam acessíveis na vida das pessoas.
Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é a dignidade da pessoa humana, inserida logo no artigo 1º do texto constitucional.
Trata-se, portanto, de um dos fundamentos que sustentam e fundamentam esse ideal de Estado. Assim, sem que ocorra a promoção sistemática da dignidade humana em todos os níveis e a todas as pessoas, o Estado Democrático de Direito se desvirtua de sua concepção original e perde sua essência.
O conceito de trabalho escravo será, portanto, analisado a partir da sua formulação original, internacionalmente estabelecida, mas com vinculação compulsória à questão da dignidade humana. Por meio desta abordagem, contemporaneamente adaptada, buscar-se-á detectar a manifestação da escravidão, ainda que devidamente disfarçada, nas relações de trabalho estabelecidas no país.
Tendo-se como referência o conhecimento de que a prática escravagista atormenta a sociedade atual, atacando homens, mulheres e crianças originalmente livres, o que poderia se afirmar a respeito da escravidão em ambientes não alcançados pelo olhar da sociedade e em relação aos quais, a mídia pouco se interessa? Como é tratado o indivíduo preso do lado de dentro dos muros em relação ao seu trabalho?
Partindo-se dessa perspectiva, este artigo abordará o seguinte tema-problema: Em que medida o trabalho da pessoa que cumpre pena privativa de liberdade pode ser considerado trabalho escravo?
O trabalho escravo contemporâneo assume feições distintas e mais sutis que a sua forma clássica.
É fato que a Lei de Execução Penal (LEP) obriga o indivíduo preso a trabalhar, retirando-lhe a proteção da CLT e permitindo que lhe seja paga uma remuneração bem abaixo do salário mínimo vigente. Também é fato que a dignidade humana relaciona-se, entre outras coisas, com a satisfação de necessidades materiais que permitam ao indivíduo condições mínimas de uma existência íntegra. Portanto, pode-se concluir que, de alguma forma, alguns dispositivos da LEP afetam a dignidade humana.
Se a violação da dignidade humana for condição suficiente para a caracterização do trabalho escravo, poder-se-á dizer então, de forma precária, superficial e preliminar, que há grandes possibilidades de ocorrência de trabalho escravo no ambiente prisional.
Este estudo verificará, então, se o trabalho da pessoa privada de liberdade enquadra-se no conceito de trabalho escravo contemporâneo.
Para tanto, buscar-se-á conceituar o trabalho escravo à luz das legislações vigentes e identificar sua relação com o trabalho forçado, de forma a verificar se ambos os conceitos podem ser invocados para referirem-se a uma mesma prática.
Posteriormente, serão abordadas algumas formas de trabalho escravo e as condições em que tais trabalhos são realizados.
Por fim, o trabalho prisional será comparado com as modalidades de trabalho escravo identificadas neste estudo, a fim de se comprovar ou não a sua configuração como trabalho escravo.
Considerando os objetivos propostos, a pesquisa adotará predominantemente a vertente metodológica juridico-sociológica, pois será verificado o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana para a detecção de diferentes formas de trabalho escravo. Ainda assim, em determinados momentos será necessária uma abordagem juridico-filosófica, a fim de se discutir se a LEP, promove ou não a injustiça social ao afastar a proteção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do trabalho do indivíduo preso.
Far-se-á uso de raciocínio dedutivo-indutivo, com a finalidade de discutir concepções teóricas referentes ao assunto estudado e examinar a realidade de trabalhadores submetidos à condição de escravos, a fim de se chegar a conclusões que confirmem – ou neguem – a hipótese.
A pesquisa terá caráter interdisciplinar, utilizando-se de conhecimentos produzidos por distintas áreas do saber jurídico, como a Filosofia do Direito; Sociologia; Direitos Humanos e Fundamentais; Direito Constitucional; Direito do Trabalho; Direito Civil; Direito Penal e Processual Penal. A investigação será do tipo histórico, pois visa a investigar a evolução do trabalho escravo, assim como sua repercussão nos planos social e jurídico. O método a ser adotado é o bibliográfico.
O referencial teórico será a teoria de aplicação do regime jurídico dos direitos humanos, aos direitos sociais (com sua lógica e principiologia próprias), de Flávia Piovesan (2010). Segundo a autora, os direitos sociais são exigíveis, acionáveis e justificáveis, demandando um instrumento adequado e efetivo para a sua proteção, sendo essencial sua aplicação progressiva e vedada sua não aplicação em qualquer momento. Para a autora, a ideia de normas programáticas destituídas de qualquer eficácia é equivocada e deve ser afastada. A perspectiva integral dos direitos humanos, que tem nos direitos sociais uma dimensão vital e inalienável, deve ser fortalecida, de modo a aprimorar os mecanismos de proteção e justiciabilidade desses direitos, dignificando assim, a emancipação dos direitos sociais como direitos humanos, garantidos no âmbito nacional e internacional.
Dessa forma, os direitos sociais constitucionalmente garantidos não podem encontrar restrições, ainda mais quando impostas por dispositivos legais que antecedem a CRFB-88 e não se alinham ao seu conteúdo, como é o caso dos artigos 28 e 29 da LEP.
2 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL: SUA DINÂMICA E BREVE NOÇÕES DE SUA CONFIGURAÇÃO NOS MEIOS URBANO E RURAL
Antes de se investigar a situação do trabalho prisional no Brasil, é importante demonstrar como se configura o trabalho escravo contemporâneo nos meios rural e urbano.
O trabalho escravo rural contemporâneo emerge na região amazônica oriental por volta dos anos 1960, durante o regime militar, época em que os militares queriam povoar a região, distribuindo incentivos a indústrias agropecuárias e a latifundiários que desejassem explorar aquelas terras. A servidão por dívida é a modalidade mais recorrente de escravidão contemporânea. Este tipo de escravidão no Brasil, segundo Davatz citado por Figueira (1980), existe pelo menos, desde meados do século XIX em fazendas do então senador Vergueiro, no estado de São Paulo, época em que trabalhadores rurais suíços se sentiram reduzidos à condição de escravos, que persiste até os dias atuais.
Geralmente, o fazendeiro alicia pessoas de outros municípios ou de outros estados, diretamente ou por meio de “gatos” – empreiteiros contratados, responsáveis pelos serviços, incluindo o de vigilância e supervisão dos trabalhadores. Em geral são considerados violentos e muitas vezes são denunciados por diversos crimes, inclusive homicídios. Figueira, ao definir “gatos”, não atribui a eles a função de aliciamento, embora outros autores o façam (SENTO-SÉ, 2001, p. 53 e SILVA, 2010, p. 130).
Uma vez que tenham sido transportados até as fazendas, os trabalhadores são informados de que só poderão sair após pagarem o adiantamento recebido no ato de recrutamento e os gastos com o transporte, hospedagem e a alimentação durante a viagem. A dívida aumenta progressivamente, pois o salário é baixo e eles devem adquirir sua alimentação e os instrumentos de trabalho de uma cantina instalada na própria fazenda, a preços exorbitantes. Os dormitórios são precários – muitas vezes feitos de lona -, não há colchões, não existem as mínimas condições sanitárias. Está então instaurada a servidão por dívida.
No ambiente da propriedade rural as irregularidades são várias e vão desde violações à legislação trabalhista – para citar as mais evidentes: cobranças indevidas ou exageradas; não recolhimento das contribuições para a Previdência Social; não assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social; retenção de salário; não pagamento de férias, gratificação natalina e indenização compensatória por despedida sem justa causa; condições insalubres de moradia, transporte e alimentação -, até ações criminosas, como constrangimento mediante violência ou grave ameaça; privação de liberdade; tortura; maus tratos; mortes e danos ao meio-ambiente.
Mas o trabalho escravo não é exclusividade do meio rural. Ele ocorre também em grandes centros, como é o caso da indústria de vestuários em São Paulo. Se no campo as pessoas são recrutadas em municípios ou estados distantes e levados para trabalharem em fazendas remotas, na cidade elas são trazidas de outros países, geralmente com baixíssima renda per capta e índice de desenvolvimento humano (IDH), como a Bolívia. Enquanto no campo os escravos trabalham até a exaustão sob o sol, nos trabalhos realizados nas confecções clandestinas os escravizados mal veêm a luz solar (ROSSI, 2005).
Segundo uma pesquisa feita pela autora, há milhares de trabalhadores escravos urbanos laborando em porões de prédios de bairros de São Paulo. Os locais não têm janela, para ajudar a manter a atividade clandestina despercebida pelos vizinhos e pela fiscalização. O ar natural não circula. Músicas de sua terra natal são tocadas durante todo o tempo, em intensidade elevada, para camuflar o barulho dos motores das máquinas de costura. Cada trabalhador fica virado para uma parede de compensado, para evitar que converse com seus colegas durante o trabalho. A posição de trabalho, juntamente com a música alta, impede que conversem entre si e discutam sua situação. Acordam por volta das cinco horas da manhã e dormem por volta de meia-noite. Ali mesmo as pessoas dormem. São cerca de dezoito horas de trabalho por dia, de segunda a sexta-feira, além da manhã de sábado. Eles têm apenas a tarde dos sábados e os domingos de folga. Seus passaportes ficam retidos pelos donos do estabelecimento.
Como esses trabalhadores em regra são imigrantes clandestinos no país, eles são constantemente ameaçados pelos seus escravizadores de serem denunciados à Polícia Federal – e consequentemente deportados -, caso denunciem as condições precárias de trabalho às autoridades brasileiras.
O escravo urbano também é recrutado pelo intermédio de “gatos”, que agem tanto na cidade de origem dos trabalhadores, quanto nos centros urbanos onde o serviço é prestado. Propagandas são veiculadas em rádios ou jornais locais onde vivem as vítimas, com promessas de bom emprego e vida digna. Há aqueles que saem do país de origem já com uma promessa de emprego feita pelo “gato”, enquanto outros decidem vir para o Brasil por conta própria e são aliciados quando chegam. Há locais onde os trabalhadores se concentram nos fins de semana – principalmente algumas praças -, para ouvir músicas, dançarem, verem seus compatriotas e jogar futebol. Ali também agem os “gatos”.
Há uma rede com estrutura hierárquica no esquema escravagista das confecções de São Paulo. No topo da cadeia, estão os coreanos, donos de lojas de roupas, que compram as peças produzidas nas confecções. Eles chegaram ao Brasil a partir do ano de 1963, por meio de um acordo firmado entre o Brasil e a Coreia do Sul, que precisava diminuir o desemprego causado pelo grande fluxo migratório de refugiados do regime comunista da Coreia do Norte. Ao longo dos anos, outros grupos de coreanos chegaram ao país – a maioria de forma clandestina, cujas situações foram sendo regularizadas ao longo do tempo. O seu destino mais comum foi o trabalho como vendedores em lojas cujos proprietários eram na maioria judeus.
Além do trabalho nas lojas, as famílias de coreanos começaram a investir na compra de máquinas de costuras e produção de peças de vestuário. Em poucos anos, eles passaram a dominar a produção familiar de peças de roupas e começaram a comprar as lojas dos judeus, que por sua vez investiram em outros segmentos econômicos, deixando esse setor do comércio para os coreanos. Com a ascensão dos coreanos, começou a faltar mão-de-obra disponível, lacuna essa que passou a ser ocupada pelos bolivianos e outros imigrantes sul-americanos. Esses novos imigrantes começaram a chegar a São Paulo a partir da década de 1980. Desempregados, começaram a ser recrutados pelos coreanos a fim de se tornar uma mão-de-obra barata que permitisse aos coreanos a sobrevivência no mercado competitivo de São Paulo. Com o tempo, os primeiros bolivianos compraram suas máquinas de costura e passaram a ser donos de confecções, que entregam suas produções aos coreanos. Antes escravizados pelos coreanos, os bolivianos passaram a repetir o modelo escravagista, explorando novos imigrantes bolivianos.
Muitas vezes, a exploração ocorre dentro das próprias famílias: os primeiros parentes que chegaram passam a explorar aqueles que chegam anos depois. Mas além de explorarem os trabalhadores, os donos de confecções ainda continuam sendo explorados pelo sistema criado em São Paulo. Os costureiros bolivianos recebem entre trinta a quarenta centavos por peça de roupa produzida; os donos de confecções bolivianos vendem as mesmas peças por dois ou três reais aos coreanos; que por sua vez as vendem por trinta ou quarenta reais nas lojas. No início da linha de produção, se um costureiro estraga uma peça por acidente, não deve indenizar ao patrão o mesmo valor que recebe, mas sim o valor que o coreano receberia pela venda da peça na loja.
Em linhas gerais, esse é o perfil do trabalho escravo rural e urbano no Brasil. O objetivo de expor tal panorama não é um aprofundamento nesse assunto específico, mas mostrar em linhas gerais que o trabalho escravo no país é uma realidade viva, combatida pelas autoridades, mas ainda assim persistente. Portanto, uma vez observada tal prática no seio de uma sociedade livre, onde o trabalho também deveria ser sempre livre – nos preceitos do art. 5º, XIII da CRFB-88 -, torna-se especialmente importante investigar em que circunstâncias se desenvolve o trabalho executado pelos presos nas unidades prisionais.
3 A DIFERENÇA ENTRE TRABALHO FORÇADO E TRABALHO ESCRAVO
3.1 Conceitos de trabalho forçado e trabalho escravo
A referência à escravidão nos tempos atuais é feita pelo uso de diferentes termos, como “trabalho escravo”; “semiescravidão”; “escravidão branca”; “escravidão contemporânea”; “escravidão por dívida”; “servidão por dívida” (estes dois para casos específicos em que se cobra uma suposta dívida do trabalhador); “trabalho em condições análogas à de escravo”; “super exploração do trabalho” (SENTO-SÉ, 2001, página 17), entre outros.
As vítimas do trabalho escravo rural e seus parentes muitas vezes usam o termo “trabalho humilhado” ou “trabalho cativo” (que não é livre) enquanto o termo “escravo” só aparece após a ação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho (GEFM), ou após ser utilizado nas abordagens feitas pelos entrevistadores que investigam a ocorrência de trabalho escravo (FIGUEIRA, 2004, p.34). GEFM é um grupo formado por auditores fiscais do trabalho – que coordenam as operações de campo –, policiais federais e procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), criado em 1995 para o combate ao trabalho escravo no Brasil.
Ao longo deste estudo, optar-se-á predominantemente pelo uso da expressão “trabalho escravo” ao se referir à atividade realizada pelo trabalhador submetido à escravidão atualmente considerada, cujos contornos serão discutidos adiante. Em contrapartida, usar-se-á o termo “trabalho forçado” para determinar a atividade laboral imposta ao indivíduo de forma obrigatória. As expressões “trabalho forçado” ou “trabalho obrigatório” dizem respeito a um único instituto. Em que pese o fato de alguns autores diferenciarem estes dois termos, conceituando o trabalho forçado como aquele executado mediante castigos físicos ao indivíduo (NUCCI, 2010) – ou como o trabalho realizado até a exaustão física -, será demonstrado adiante que todo trabalho sob tais circunstâncias deve ser classificado como trabalho escravo e não trabalho forçado.
Há grande divergência entre diversos autores brasileiros que já enfrentaram o tema, sobre a relação entre trabalho forçado e trabalho escravo. Alguns tratam as expressões como sinônimas (FÁVERO FILHO, 2010; AUDI, 2006; MELO, 2003). Entretanto, há aqueles que defendem a ideia de que trabalho escravo é gênero do qual trabalho forçado é espécie (SILVA, 2009; BRITO FILHO, 2006). Finalmente, há ainda os autores que defendem uma posição justamente contrária a esta última, ou seja, a ideia de que o gênero é trabalho forçado, enquanto a espécie é trabalho escravo (ANDRADE, 2006; CARVALHO, 2011; SENTO-SÉ, 2001).
Nota-se, portanto, que não há consenso na diferenciação entre trabalho escravo e trabalho forçado na literatura, razão pela qual se faz necessário verificar como tais nomenclaturas são tratadas pela legislação brasileira e pelas normas internacionais que regulamentam a problemática do escravagismo, a fim de se buscar um esclarecimento acerca do correto uso de tais denominações.
Utilizando-se como referência a Convenção sobre a Escravidão, de 1926, da Liga das Nações – antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU) –, tem-se a seguinte disposição no caput do seu art. 5º:
“As Altas Partes Contratantes reconhecem que o recurso ao trabalho forçado ou obrigatório pode ter graves consequências e se comprometem – cada um no que diz respeito aos territórios alocados sob a sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela – a tomar todas as medidas necessárias para prevenir que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições análogas à escravidão.” (SLAVERY CONVENTION, 1926, tradução nossa).[1]
Verifica-se no trecho acima a preocupação com a adoção do trabalho forçado como modo de produção e, além disso, com a possibilidade de – uma vez não tomadas as devidas precauções -, que este se converta em trabalho escravo. Tal texto admite, portanto, a existência de trabalho forçado, sem que ocorra necessariamente o trabalho escravo.
O mesmo documento dá a seguinte definição de escravidão em seu art. 1º:
“Para os fins da presente Convenção, as seguintes definições ficam acordadas:
(1) A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade são exercidos.” (SLAVERY CONVENTION, 1926, tradução nossa).[2]
Tomando-se como premissa que o trabalho escravo é aquele realizado sob o estado (ou condição) de escravidão, tem-se então que o conceito de trabalho escravo é todo labor executado por um indivíduo sobre o qual alguém exerce alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade.
Usar-se-á como ponto de partida nesta pesquisa, o conceito de trabalho escravo acima fixado, primeiramente, por ser adotado internacionalmente e em segundo lugar, pelo seu conteúdo sucinto, porém esclarecedor – e, portanto, objetivo.
Ao se explorar esse conceito, tem-se que propriedade consiste na titularidade de um bem e relaciona-se com a ideia de domínio. Um existe em decorrência do outro e o domínio pode ser entendido como “a relação material de submissão direta e imediata da coisa ao poder de seu titular, através (sic) do exercício das faculdades de uso, gozo e disposição.” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 264).
Já tendo conceituado escravidão e trabalho escravo, conclui-se que o escravo é um indivíduo sobre o qual se exerce “alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade”. Consequentemente, é uma pessoa reduzida à condição de coisa e sobre a qual alguém impõe o seu domínio. Esta situação se perpetuará no tempo, pois o indivíduo submetido ao trabalho escravo, dificilmente consegue, por meios próprios, desfazer o vínculo que o une ao escravizador.
Para fins deste trabalho, eventualmente utilizar-se-á o termo “escravidão” ora como a condição ou estado sob a qual se realiza trabalho escravo, ora como o próprio sinônimo de trabalho escravo. Isso será feito a fim de se adequar à prática existente, onde os conceitos se misturam – por haver grande relação entre um e outro -, sem que, entretanto, haja comprometimento da compreensão.
Resta agora conceituar trabalho forçado. Ainda em relação à Convenção sobre a Escravidão de 1926, tem-se na continuação do seu art. 5º a seguinte disposição:
“Fica acordado que:
(1) Sem prejuízo das disposições transitórias previstas no parágrafo (2) abaixo, o trabalho compulsório ou forçado só pode ser exigido para fins públicos.
(2) Nos territórios em que o trabalho forçado ou obrigatório ainda existe para outros fins que não os públicos, as Altas Partes Contratantes devem se esforçar progressivamente e tão logo quanto possível para pôr fim à prática. Enquanto existir o trabalho forçado ou obrigatório, este trabalho deve ser sempre de carácter excepcional, deve sempre receber uma remuneração adequada, e não deve implicar a retirada dos trabalhadores do seu local de residência habitual. […]” (SLAVERY CONVENTION, 1926, tradução nossa).
Da leitura do item (1) acima, confirma-se que trabalho forçado ou trabalho obrigatório são sinônimos e referem-se a uma mesma prática. Do item (2) verifica-se a intenção – ainda que não muito determinada – de acabar com o trabalho forçado para fins privados.
Tal Convenção, porém, não determinou o que seria trabalho forçado. Este conceito foi trazido pelo art. 2º, 1, da Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 1930; como segue:
“Para fins desta Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.” (CONVENÇÃO nº 29…, 1930).
Todavia, o entendimento contemporâneo é que, mesmo que uma pessoa tenha se oferecido voluntariamente para trabalhar, mas seja posteriormente impedida de deixar o trabalho de acordo com a sua autodeterminação, está já caracterizado o trabalho forçado. Assim, para que ocorra o trabalho forçado, não é necessário que a pessoa não se ofereça espontaneamente, bastando tão somente que haja o cerceamento da vontade do indivíduo – a qualquer tempo – por meio da ameaça de sanção.
Portanto, a fim de se determinar o que seja trabalho forçado ou obrigatório, é suficiente conceituá-lo inicialmente como todo trabalho exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção. O cerceamento de vontade – que pode ocorrer em qualquer momento da relação de trabalho -, está implícito, devido ao emprego de meio coercitivo.
Tomando-se como referência os conceitos acima fixados de trabalho escravo e de trabalho forçado – ambos decorrentes originalmente de Convenções internacionais -, tem-se uma diferença notória entre ambos. Enquanto o trabalho forçado limita a liberdade do indivíduo – cerceando sua vontade -, o trabalho escravo limita o próprio indivíduo, reduzindo sua humanidade, transformando-o em coisa que se submete ao domínio de outra pessoa. Percebe-se, de pronto, que tais conceitos não se confundem e, consequentemente, não podem ser utilizados como sinônimos.
Após ter-se definido a primeira diferença entre trabalho forçado e trabalho escravo, buscar-se-á agora estabelecer como os dois termos se relacionam.
3.2 A diferença fundamental entre trabalho forçado e trabalho escravo: a questão da dignidade humana
A privação de um direito fundamental como a liberdade de escolha, pode conduzir a outros atos arbitrários e restritivos, razão pela qual existia grande preocupação de que o trabalho forçado não se descaracterizasse de tal forma, que pudesse se transformar em trabalho escravo.
Em razão disso, a Convenção nº 29 da OIT determinou em seu art. 1º – de forma mais enfática que a Convenção sobre a Escravidão de 1926 -, a necessidade de se extinguir o trabalho forçado no menor tempo possível, em todas as suas formas, admitindo-o excepcionalmente para fins públicos durante o período de transição até a sua erradicação:
“1. Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir a utilização do trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, no menor tempo possível.
2. Com vista a essa abolição total, só se admite o recurso a trabalho forçado ou obrigatório, no período de transição, unicamente para fins públicos e como medida excepcional, nas condições e garantias providas nesta Convenção.
3. Decorridos cinco anos, contados da data de entrada em vigor desta Convenção e por ocasião do relatório ao Conselho de Administração do Secretariado da Organização Internacional do Trabalho, nos termos do Artigo 31, o mencionado Conselho de Administração examinará a possibilidade de ser extinto, sem novo período de transição o trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas e deliberará sobre a conveniência de incluir a questão na ordem do dia da Conferência.” (CONVENÇÃO nº 29…, 1930, tradução nossa).
Já os artigos 12 a 21 dessa mesma Convenção trazem uma série de regras, de forma a regulamentar o trabalho forçado antes de sua erradicação, a fim de se evitar que sua prática cause um dano ao trabalhador, que vá além do cerceamento de sua vontade. Tais preceitos limitam o trabalho forçado a um período máximo de sessenta dias a cada doze meses; estabelecem jornada de trabalho igual àquela do trabalho voluntário; horas extras devidamente remuneradas também conforme o trabalho voluntário; repouso semanal de acordo com o costume local; remuneração em espécie, em valores não inferiores à média daqueles pagos na região em que o trabalhador foi recrutado ou em que presta serviços, prevalecendo a que for maior; vedação de desconto salarial pelo fornecimento de vestuário, ferramentas e alojamento; indenização por acidente ou doença do trabalho; pagamento de aposentadoria causada por invalidez durante o trabalho; habitação e alimentação adequadas; proteção à higiene e saúde no trabalho; adaptação ao trabalho; intervalos intrajornada; vedação do trabalho em minas, entre outros.
Conclui-se assim, que enquanto o trabalho forçado foi permitido, exigiu-se dos Estados signatários da Convenção nº 29 da OIT uma série de obrigações a serem satisfeitas em relação aos trabalhadores, todas elas no sentido de manter a dignidade humana, ainda que sob a restrição da liberdade individual de escolha do próprio trabalho.
Surge então um elemento que reforça a diferenciação entre trabalho forçado e trabalho escravo: a questão da dignidade humana. Na aplicação e supervisão do trabalho forçado, ainda que o indivíduo seja obrigado a realizar determinado trabalho de forma não voluntária, há grande preocupação com a manutenção da sua integridade, por meio da proteção aos direitos sociais do trabalho.
No trabalho escravo, o trabalhador é desrespeitado em seus direitos fundamentais e a dignidade humana é frontalmente atacada. A imposição dessa forma de trabalho caracteriza-se justamente por atentar contra a integridade do indivíduo.
Ressalta-se que, obviamente, grande parte dos trabalhos escravos é realizada também mediante o cerceamento da liberdade, mas como já foi estabelecido, esse não é o seu aspecto caracterizador.
Como a maioria dos trabalhadores escravizados são pessoas analfabetas ou com baixo grau de escolaridade; não possuem qualquer qualificação profissional e têm grande necessidade de manterem-se empregadas (THÉRY et al, 2009), não resta a um indivíduo nessa situação outra escolha, senão prosseguir trabalhando. Afinal, a demanda cada vez maior por mão-de-obra qualificada, torna-se um grande obstáculo para que esse empregado insatisfeito consiga novo emprego, embora seja, em contrapartida, fácil para o empregador substituí-lo. A liberdade formal está presente, mas o indivíduo está preso à falta de alternativas para sua vida laboral. Nessa situação, a pessoa luta pela sua própria sobrevivência, para não sucumbir à falta de emprego e literalmente correr o risco de morrer de fome.
Portanto, “enquanto o indivíduo se sujeita ao trabalho forçado para livrar-se de uma sanção estatal, a pessoa que se submete ao trabalho escravo está protegendo a sua própria vida.” (Marcelo Matos de Oliveira).[3]
Para que haja a ocorrência do trabalho escravo – modernamente considerado -, é necessário que se identifique a falta de um tratamento digno ao ser humano. Na maioria das vezes, o vínculo laboral não poderá ser rompido pelo trabalhador. Isso ocorrerá por meio de ameaça ou violência do escravizador – situações nas quais o indivíduo escravizado estará aprisionado e sob a vigilância de alguém -; ou por necessidade de sobrevivência do trabalhador, caso em que a pessoa tratada como escrava terá liberdade para ir e vir, mas não rompe o vínculo empregatício por não ter condições de se recolocar no mercado de trabalho. Em ambas as situações o trabalhador submete-se ao trabalho escravo como forma de autopreservação da própria vida.
A autopreservação é evidente quando o escravizador cerceia a liberdade do trabalhador e este se submete àquele para se livrar das ameaças ou da violência que lhe são impostas. Entretanto, também está presente a autopreservação – de forma muitas vezes negligenciada até mesmo por aqueles que combatem o trabalho escravo –, quando o indivíduo se submete a condições subumanas de trabalho para evitar uma situação de desemprego que ameace a sua sobrevivência, já que sua condição social é bastante frágil. Para muitos, a pessoa não é escrava, pois apesar da jornada exaustiva ou das condições degradantes, ela é livre para romper o vínculo laboral. Ora, tal conclusão é o resultado de uma análise superficial, presa a formalismos conceituais e sem um mínimo de percepção multidisciplinar, pois a situação fática deve ser observada sob um ponto de vista crítico que a contemple sob todas as ópticas diferentes e não apenas por meio de conceitos que envelhecem ao longo do tempo. Romper um vínculo laboral é um ato muito mais complexo que um mero pedido de demissão. É uma decisão que implica na perda da remuneração com a qual o indivíduo mantém a sobrevivência de sua família; no retorno à disputa por uma vaga no mercado de trabalho; e na insegurança e frustração causadas pela situação de desemprego. Para muitos, pode resultar, por exemplo, em não ter o que comer, ou o despejo da moradia em que habitava, por não ter mais como pagar um aluguel.
Para Kant citado por Piovesan (2010, p.6), as pessoas são dotadas de dignidade, na medida em que têm um valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos. Ou seja, o indivíduo é um fim em si mesmo e não um meio para se chegar a algo, não é um objeto ou coisa. Afirma ainda que a autonomia é a base da dignidade humana e lembra que a ideia de liberdade é intimamente conectada com a concepção de autonomia.
Poder-se-ia pensar então que, uma vez que o trabalho forçado retira a liberdade de escolha do indivíduo em relação a realizar ou não determinado empenho, uma vez que este é imposto, ele restringiria a autonomia do sujeito e, portanto, atacaria a dignidade humana. Mas essa análise superficial possui uma fragilidade falaciosa.
Longe de se querer fazer aqui uma apologia ao positivismo – que justifica quaisquer sanções, desde que sejam legalmente postas, independentemente de serem justas ou não -, o que se pretende é estabelecer, como ponto de partida para uma análise imparcial, que o indivíduo se obriga a imposições sociais e estatais a partir do momento em que opta por viver em sociedade, mesmo no grupo mais tolerante ou na mais aberta das democracias.
Afinal, o homem contemporâneo não goza de uma liberdade natural, absoluta, plena e incondicional, mas de uma liberdade civil, limitada por um conjunto de regras sociais e normas jurídicas. Uma vez que a liberdade civil implica, entre outras coisas, na obediência às leis, e o trabalho forçado – realizado conforme as convenções anteriormente mencionadas – configura-se como uma imposição legal cuidadosamente limitada por direitos fundamentais, além de critérios pré-determinados (quando executado pelo Estado e para fins públicos), não se pode considerar o trabalho forçado como supressor da dignidade humana. A suspensão da liberdade de escolha, desde que limitada e controlada, terá o caráter de ônus cívico, sem que, entretanto, seja desrespeitada a integridade da pessoa humana.
Um exemplo que corrobora essa opinião, é que se fosse verdadeira a assertiva de que o cerceamento de qualquer forma de liberdade aniquila de modo contundente a dignidade, não haveria qualquer propósito nas discussões acerca de como reformular o sistema prisional, a fim de que os indivíduos presos possam ter uma vida digna, enquanto durar o seu período de encarceramento. Tampouco haveria indivíduos presos vivendo com dignidade em presídios-modelo que respeitam sua integridade como seres humanos. Tem-se, portanto, que em determinados casos a dignidade humana do trabalhador é capaz de transcender a questão da privação da liberdade, quando outros fatores fundamentais são satisfeitos, como a valorização da individualidade; o respeito à integridade física, moral, mental e religiosa do indivíduo; o cuidado com a higiene, alojamento, saúde e alimentação; o convívio social; a segurança; a justiça e os direitos sociais do trabalho, entre outros.
3.3 A luta pelo fim do trabalho forçado como medida profilática para se evitar o trabalho escravo.
Já foi discutido acima, que embora trabalho forçado e trabalho escravo sejam conceitos distintos, o primeiro pode se transmutar no segundo, caso não sejam respeitadas condições que garantam a manutenção da dignidade humana.
Em 1957, a Convenção 105 da OIT proibiu expressamente a utilização do trabalho forçado, por meio dos seguintes dispositivos:
“Artigo 1º
Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso:
a) como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente;
b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico;
c) como meio de disciplinar a mão-de-obra;
d) como punição por participação em greves;
e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.
Artigo 2º
Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a adotar medidas para assegurar a imediata e completa abolição do trabalho forçado ou obrigatório, conforme estabelecido no Artigo 1º desta Convenção.” (CONVENÇÃO nº 105…, 1957)
A vedação ao trabalho forçado foi reiterada no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 da Organização das Nações Unidas, juntamente com a proibição expressa à escravidão:
“Artigo 8º
1. Ninguém será submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, sob todas as suas formas, são interditos.
2. Ninguém será mantido em servidão.
3.
a. Ninguém será constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório; […]” (PACTO…, 1966).
Servidão, de acordo com a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956 é a condição de alguém obrigado por lei, costume ou acordo a viver e trabalhar em terra de terceiros e fornecer a essa pessoa serviços (gratuita ou onerosamente), sem que possa mudar sua condição; ou ainda aquela situação originada por dívida, na qual se encontra um devedor comprometido a prestar serviços pessoais ao credor, nos casos em que o serviço prestado não é equitativamente avaliado no ato de liquidação da dívida, ou em que a duração desses serviços não for limitada. A primeira variação é a mesma daquela observada em regimes feudais na idade média, estabelecida vitaliciamente entre o servo e o senhor feudal. Em que pese a diferenciação histórica que se faz entre escravidão e servidão, não há diversidade significativa entre uma e outra, tendo-se como referência a atual tônica da afetação da dignidade humana, razão pela qual a servidão, sob a conceituação aqui adotada, é uma tipo de escravidão. A segunda modalidade de servidão é aquela denominada “servidão por dívida”, que nada mais é que “escravidão por dívida”, forma predominante de trabalho escravo rural no Brasil.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 da OEA – também conhecida como Pacto de San José de Costa Rica -, assim deliberou sobre a escravidão e o trabalho forçado:
“Artigo 6. Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório […]” (CONVENÇÃO…, 1969)
Em 1998, a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, firma mais uma vez a posição da entidade de repúdio ao trabalho forçado, conforme segue:
“A Conferência Internacional do Trabalho[…]
2. Declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é:[…]
b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; […] “ (DECLARAÇÃO…, 1998)
Percebe-se, portanto, que, salvo algumas exceções que serão vistas adiante, não há qualquer interesse da Sociedade Internacional na manutenção do trabalho forçado, pois a sua deformação pode transmutá-lo em trabalho escravo.
3.4 O trabalho escravo não é espécie de trabalho forçado
A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento – Sumário Relatório Global 2005 – Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado, ao relacionar o trabalho escravo com o trabalho forçado colocou este como gênero, do qual aquele é espécie, como se percebe na leitura do seguinte trecho: “[…] A escravidão é uma forma de trabalho forçado. Constitui-se no absoluto controle de uma pessoa sobre a outra, ou de um grupo de pessoas sobre outro grupo social.” (DECLARAÇÃO…, 2005).
O método de verificação aqui realizado partirá da análise da espécie em relação ao gênero. Analisando-se esta assertiva do Documento da OIT de 2005, percebe-se o seu equívoco ao afirmar que trabalho escravo (ou escravidão) é uma forma de trabalho forçado, afinal, há formas de trabalho escravo que não se encaixam no conceito de trabalho forçado. Trata-se das situações em que o indivíduo não é privado da sua liberdade, mas em contrapartida, é impedido de condições dignas de trabalho, como ocorre no trabalho degradante e na jornada exaustiva, em que o trabalhador muitas vezes é livre para ir e vir, assim como é livre para encerrar o vínculo de trabalho ou emprego, mas não consegue fazê-lo.
Assim, não se pode considerar o trabalho escravo (com ausência de dignidade) como uma forma de trabalho forçado (com privação de liberdade de escolha), pois se trabalho forçado fosse gênero, as suas espécies (incluindo o trabalho escravo) deveriam possuir todas as características desse gênero, mais aquelas que as especificam. Como discutido no parágrafo anterior, nem sempre o trabalho escravo requer privação de liberdade para se configurar. Portanto, a espécie “trabalho escravo” não cabe no gênero “trabalho forçado”.
3.4.1 A jornada exaustiva e o trabalho degradante como espécies de trabalho escravo
Por que a jornada exaustiva e o trabalho degradante são considerados trabalho escravo? Ao retomar-se o conceito dado pela Convenção Sobre a Escravidão, de 1926 – “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade são exercidos” -, vêr-se-á que nos dois casos acima o indivíduo é tratado como um objeto, um meio de produção que visa à mais valia daquele que lhe explora e não como um fim em si mesmo.
Silva informa que:
“Embora a lei não defina trabalho degradante, a revisão doutrinária permite concluir que o trabalho em condições degradantes pode ser entendido como aquele que, mesmo realizado voluntariamente, é prestado sob condições subumanas, com inobservância das mais elementares normas de proteção ao trabalho e de segurança e saúde laborais, mediante retenção salarial Dolosa, com submissão dos trabalhadores a tratamentos cruéis, desumanos ou desrespeitosos, ou mediante jornada exaustiva, tanto na duração quanto na intensidade, em flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e com prejuízos à integridade física e/ou psíquica dos trabalhadores.” (SILVA, 2010, p. 242).
Viana, por sua vez estabelece que condições degradantes de trabalho referem-se a cinco hipóteses distintas:
“1. A primeira categoria de condições degradantes se relaciona com o próprio trabalho escravo stricto sensu. Pressupõe, portanto, a falta explícita de liberdade. Mesmo nesse caso, porém, a idéia de constrição deve ser relativizada. Não é preciso que haja um fiscal armado ou outra ameaça de violência. Como veremos melhor adiante, a simples existência de uma dívida crescente e impagável pode ser suficiente para tolher a liberdade. A submissão do trabalhador à lógica do fiscal não o torna menos fiscalizado.
2. A segunda categoria se liga com o trabalho. Nesse contexto entram não só a própria jornada exaustiva de que nos fala o CP – seja ela extensa ou intensa – como o poder diretivo exacerbado, o assédio moral e situações análogas. Note-se que, embora também o operário de fábrica possa sofrer essas mesmas violações, as circunstâncias que cercam o trabalho escravo – como a falta de opções, o clima opressivo e o grau de ignorância dos trabalhadores – tornam-nas mais graves ainda.
3. A terceira categoria se relaciona com o salário. Se este não for pelo menos o mínimo, ou se sofrer descontos não previstos na lei, já se justifica a inserção na lista.
4. A quarta categoria se liga à saúde do trabalhador que vive no acampamento da empresa – seja ele dentro ou fora da fazenda. Como exemplos de condições degradantes teríamos a água insalubre, a barraca de plástico, a falta de colchões ou lençóis, a comida estragada ou insuficiente.
5. Mas mesmo quando o trabalhador é deslocado para uma periferia qualquer, e de lá transportado todos os dias para o local de trabalho, parece-nos que a solução não deverá ser diferente. Basta que a empresa repita os caminhos da escravidão, desenraizando o trabalhador e não lhe dando outra opção que a de viver daquela maneira. Esta seria a quinta categoria de condições degradantes.” (VIANA, 2007, p.200).
Ambos os autores incluíram a jornada exaustiva como forma de trabalho degradante. Entretanto, os dois institutos são diferentes. Por isso, parece que o legislador, ao separar intencionalmente as duas expressões no art. 149, caput do Código Penal Brasileiro (CPB), quis dar-lhes um tratamento mais específico, em vez de invocar um sentido amplo para a expressão “condições degradantes de trabalho”. Ao separá-las, tentou enfatizar cada uma distintamente, tratando por um lado uma jornada extensa e cruel, e de outro, condições do ambiente de trabalho tão ruins que sejam capazes de deteriorar a integridade física, psicológica e moral da pessoa.
As condições do ambiente de trabalho dizem respeito tanto ao ambiente de convivência interno, quanto às questões ambientais do trabalho propriamente ditas. Em relação a estas últimas, Fernandes (2010), afirma que “em decorrência de sua estreita ligação com o direito à vida humana digna, seria lógico alçar o direito ao meio ambiente saudável também ao patamar de Direito Humano.”
Segundo o autor, em função de o direito ao meio ambiente equilibrado – no que diz respeito ao ambiente de trabalho -, estar protegido na CRFB-88 de forma específica pelo art. 7º, XXII e pelo art. 200, VIII; e de forma genérica pelo art. 225, caput; não há como negar sua condição de direito fundamental humano.
Citando Melo, Fernandes transcreve o entendimento deste sobre o Direito Ambiental do Trabalho:
“[…] constitui direito difuso fundamental inerente às normas sanitárias e de saúde do trabalhador (CF, art. 196), que, por isso, merece a proteção dos Poderes Públicos e da sociedade organizada, conforme estabelece o art. 225 da Constituição Federal. É difusa a sua natureza, ainda, porque as consequências decorrentes da sua degradação, como por exemplo, os acidentes de trabalho, embora com repercussão imediata no campo individual, atingem, finalmente, toda a sociedade, que paga a conta final.” (Fernandes, 2010, p. 308).
A dignidade humana, no que diz respeito à saúde, é afetada diretamente por questões ambientais. Um trabalho digno sob o aspecto ambiental diz respeito à manutenção da saúde física e psíquica ao longo da vida laboral. A questão do pagamento de adicionais de periculosidade ou insalubridade são o reconhecimento de que a saúde e a vida são bens permanentemente ameaçados. Ninguém nega o risco perene no ambiente de trabalho presente em algumas atividades. Entretanto, não se questiona o fato de que, mesmo que os empregadores tenham tomado todas as providências legais referentes à segurança no trabalho, ainda assim persiste a ameaça constante à dignidade humana. Afinal, tais providências não são suficientes para suprimir os perigos ali existentes.
Mas o que dizer então dos ambientes que apresentam vários riscos e condições de deterioração da saúde, sem que os cuidados necessários sejam tomados? A contaminação do meio ambiente do trabalho por elementos como gases, vapores e poeira é um sério problema na indústria (BARROS, 2008). Pode-se citar ainda a poluição da água; o excesso de calor; a fraca iluminação, o excesso de ruídos e a baixa umidade do ar, são exemplos de fatores que podem afetar de maneira significativamente severa a saúde do trabalhador, causando sofrimento, doenças, sequelas vitalícias ou mesmo resultando em morte. Há questões de segurança muitas vezes desrespeitadas, seja pela falta de treinamento; pelo não fornecimento de equipamentos de proteção individual; pela exposição a agentes químicos; pelo trabalho em lugares inóspitos, entre outros, que geram condições subumanas de trabalho. Barros (2008) afirma que o “dano à saúde deverá ser considerado como a diminuição da integridade psicofísica do trabalhador, em toda a sua dimensão humana concreta, provocada pelo empregador, por meio de uma conduta dolosa, culposa ou por um risco criado.”
Entretanto, entende-se aqui, que não há mera culpa do empregador, pois ele sabe que tal ambiente faz mal à saúde e inclusive evita frequentá-lo, mas admite o sacrifício do trabalhador, pois dele depende o resultado que a sociedade empresária precisa. Tal sacrifício, portanto – sob a óptica do empregador -, produzirá um bem coletivo, mantendo a atividade empresarial e os empregos de todos que ali trabalham.
Os conservadores diriam se tratar de trabalho em condições irregulares. Mas mais uma vez discordar-se-á aqui, de um posicionamento doutrinário quase que pacífico. Ora, a diminuição da integridade psicofísica atinge de forma contundente a dignidade humana e o consequente dano à saúde advém como consequência de o empregado não ser visto como um ser humano que trabalha para o sustento da sua vida e da sua família, mas sim como um recurso de produção (mão-de-obra) necessário à geração do lucro. Este trabalhador é percebido pelo empregador como mera engrenagem integrante do processo produtivo, é reduzido ao estado de “coisa”, tendo assim a sua dimensão humana apagada e torna-se, portanto, um escravo contemporâneo. A degradação nesses casos afeta predominantemente a fisiologia do indivíduo. O empregador age no mínimo com dolo eventual – assumindo o risco de produzir como resultado o dano à saúde do trabalhador.
Em relação ao ambiente de convivência, também este é essencial à dignidade do trabalhador. Um local onde é constante a retenção dolosa do salário e vários direitos trabalhistas são descumpridos; onde são frequentes o assédio moral; as repreensões abusivas; o tratamento desrespeitoso; as difamações e injúrias contra trabalhadores – muitas vezes pessoas humildes que não conseguem se defender de agressões verbais contínuas e sistemáticas -, torna evidente que os indivíduos que ali trabalham são seres escravizados, embora possam optar por encerrar o vínculo de emprego, mas não o façam por apresentarem uma condição de vida fragilizada que os mantêm inertes, como já foi visto anteriormente. Esse tipo de tratamento indigno atingirá a moral e a dignidade psicológica do trabalhador afetado.
Já a jornada exaustiva implica em trabalhar por um tempo além daquele que é legalmente fixado. A primeira convenção da OIT estabeleceu uma jornada na indústria de oito horas diárias e quarenta e oito horas semanais. A Convenção nº 116 manteve as quarenta e oito horas semanais com a recomendação de redução progressiva para quarenta horas. Antes dela, a Convenção nº 30 havia estendido a jornada de oito horas diárias e quarenta e oito horas semanais aos trabalhadores do comércio (BARROS, 2008).
O trabalho excessivo gera grande desgaste ao organismo, podendo causar cardiopatias e outras doenças graves. Além disso, o excesso de trabalho leva à perda do poder de concentração, sendo responsável por várias ocorrências de acidentes do trabalho. Finalmente, impede que a pessoa goze de tempo livre para fazer outras atividades fora do ambiente de trabalho, lembrando que também o lazer é um direito social constitucionalmente assegurado. Em grandes cidades, onde as pessoas gastam em média duas horas para chegar ao trabalho e o mesmo período para retornar às suas casas, perde-se em média quatro horas diárias de deslocamento. Soma-se a este tempo um mínimo necessário de oito horas diárias de descanso e restam doze horas diárias, sendo que um mínimo de nove horas é consumido pela jornada de oito horas com uma hora de intervalo intrajornada para refeição. A pessoa teria livre cerca de três horas diárias para resolver todos os demais assuntos pertinentes à sua vida, que são inúmeros e incompatíveis com um tempo tão reduzido. Não fosse já uma carga diária estressante de trabalho, muitos empregadores ainda exigem o cumprimento constante de horas-extras, que por se tornarem frequentes, transformam o trabalho no propósito da vida humana, ou em outras palavras, tornam a vida humana não um fim em si, mas um meio de produção. Viver para o trabalho é uma forma notória de vida indigna e escravizada. Não há lazer, prazer, sentimento de realização profissional, não há tempo para uma vida em família e entre amigos, não há tempo sequer para reflexões pessoais, pois tudo é tomado por um automatismo perverso que anula a humanidade do trabalhador, gerando o vazio de uma vida sem perspectivas.
Obviamente que as circunstâncias do caso concreto devem ser observadas para se analisar se estavam presentes ou não condições mínimas de resguardo da dignidade humana e se esta chegou a ser afetada. Dessa forma, deve-se verificar o número de horas extras diárias exigidas pelo empregador; a frequência com que essas horas são requeridas; se há um acúmulo frequente de horas extras com horas noturnas; se o indivíduo está gozando efetivamente do descanso semanal remunerado e das férias; se as horas extras são pagas na forma correta e se as horas extras são realizadas com sacrifício pessoal do empregado em relação à sua vida particular.
Este último ponto merece um destaque especial, pois muitas vezes o empregado é privado do convívio com a sua própria família, pois sai muito cedo e chega tarde à sua casa, momentos nos quais encontra seus familiares dormindo. Outras vezes, a título de exemplo, o indivíduo não consegue fazer um curso que lhe daria melhores perspectivas de vida, pois as demandas extraordinárias do trabalho não o permitem. Há também as situações em que o trabalhador não tem tempo para tratar da saúde, seja por meio da prática de atividade física, ou porque não consegue ir com a frequência necessária a médicos para se submeter a exames preventivos regulares, o que pode fazer inclusive com que doenças não sejam identificadas a tempo de um tratamento eficaz. Embora o indivíduo esteja livre para ir e vir, ele pode realmente prescindir de seu trabalho ao sentir-se privado de sua vida pessoal, usado como coisa, escravizado? O empregador – consciente do pouco tempo que sobra ao empregado para cuidar de assuntos particulares –, preocupou-se em diminuir as horas de trabalho constantemente exigidas, ou assumiu para si que o seu negócio deveria ser prioritário, ainda que em prejuízo da dignidade do trabalhador? Todas essas questões devem ser verificadas para se determinar se a dignidade da pessoa foi afetada, em vez de se ficar preso a parâmetros ultrapassados construídos à época de um estado autoritário.
A falta de visão social de alguns doutrinadores para essa situação – ao não enxergarem o trabalho em condições degradantes ou com jornada excessiva como uma labuta escravizadora -, presos a um formalismo histórico, limitados ao conceito de escravidão tal qual ocorreu no passado, é lamentável e demonstra falta de sintonia com os novos tempos. Portanto, embora tais autores ainda defendam a ideia de que o trabalho escravo requer privação de liberdade e a impossibilidade de rompimento do vínculo laboral (CARVALHO, 2011), não é esse o entendimento aqui alcançado. Essa visão ultrapassada é aqui criticada por ser restritiva e prejudicar o combate aos tipos de trabalho escravo em que a privação de liberdade não é ostensiva.
Antes de se prosseguir neste trabalho, esclareça-se aqui que, obviamente, existem outras formas de trabalho escravo, como a prostituição involuntária e a exploração de crianças. As modalidades tratadas com ênfase nesta pesquisa não pretendem exaurir o assunto, mas foram usadas a fim de se alertar para o fato de que nem sempre é tarefa fácil a identificação de uma manifestação de trabalho escravo, devido às suas sutis nuances.
3.4.2 O perigo do retrocesso da legislação
Ressalta-se que enquanto firma-se aqui posição favorável à ampliação do entendimento acerca dos aspectos caracterizadores do trabalho escravo, acontece atualmente no Brasil uma disputa política que pode provocar um efeito justamente oposto, por influência de grandes fazendeiros que compõem a ala ruralista e que visam à limitação do conceito de trabalho escravo no Congresso Nacional.
O embate ocorre acerca da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 438/2001 (referência na Câmara dos Deputados), que tramita no Senado Federal sob o nº 57-A/1999, apelidada de PEC do Trabalho Escravo. No dia 05 de novembro de 2013, a matéria tramitava na Subseção de Coordenação Legislativa do Senado, tendo sido incluída na Ordem do Dia da sessão deliberativa ordinária de 06 de novembro de 2013. A explicação da Ementa tem o seguinte conteúdo:
“PEC do trabalho escravo – Altera a redação do art. 243 da Constituição Federal, para determinar que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. E altera o parágrafo único do mesmo artigo para dispor que todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com a destinação específica, na forma da lei” (PEC…, 1999).
De um lado, os ruralistas, cuja representatividade no Congresso Nacional extrapola as bandeiras partidárias e, de outro, os demais setores da sociedade brasileira, que não têm qualquer interesse em ver negligenciada a perpetuação da escravidão no país. Os ruralistas querem – à parte da “PEC do Trabalho Escravo” -, alterar o art. 149 do CPB, retirando a jornada exaustiva e o trabalho degradante do rol de ilicitudes ali tipificadas, fazendo valer o conceito arcaico de escravidão, tal como existe desde a antiguidade. Segundo Santini:
“Argumentando que jornada exaustiva e condições degradantes são conceitos subjetivos, os ruralistas defendem que o conceito seja revisto e volte a vigorar a definição que prevê como escravidão apenas os casos em que a submissão se dá com base em violência física direta.” (SANTINI, 2012)
A luta empreendida pelos ruralistas é a mesma que no século XIX mobilizou os latifundiários “donos de escravos” pela manutenção de um regime escravocrata que favorecia a produção agrária a baixo custo, sem qualquer preocupação humanitária.
Paralelamente à tramitação da PEC do trabalho escravo, no dia 17 de outubro de 2013, a Comissão Mista Especial para Consolidação de Leis e de Dispositivos Constitucionais do Congresso Nacional aprovou o anteprojeto de lei que regula a expropriação de propriedades urbanas e rurais nas quais fique comprovada a exploração de trabalho escravo. Tal anteprojeto visa a dar nova redação à lei 8.527/1991 – que trata da expropriação de terras utilizadas no plantio ilegal de plantas psicotrópicas –, ou mesmo revogá-la. A proposta deverá ser encaminhada ao Senado, já que a última sugestão da comissão foi enviada à Câmara.
O periódico on-line do Senado Federal noticiou a tramitação do mencionado anteprojeto. Em um trecho da notícia, percebe-se a vitória parcial do legislador empenhado em defender os interesses dos empregadores que descumprem a lei, em detrimento da proteção à hipossuficiência do trabalhador, como segue:
“A proposta define como trabalho escravo, entre outras coisas, a submissão ao trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação. O texto ressalva que “o mero descumprimento da legislação trabalhista” não se enquadra nas definições de trabalho escravo.” (APROVADO…, 2013, grifos nossos).
Para ilustrar a fragilidade e limitação do conceito estabelecido no trecho acima, basta imaginar o caso em que o trabalho seja realizado em localidade remota, sem acesso a transporte público e o trabalhador para lá levado não tenha como se retirar, mesmo assim não estará caracterizada a restrição de liberdade, a menos que haja coação expressa. Ainda, se o empregador retém os documentos do trabalhador, não lhe paga salário sob a escusa de que este tem uma dívida em relação a ele; não lhe permite gozar de horas mínimas de descanso interjornadas; não lhe proporciona descanso semanal remunerado; não paga horas noturnas e nem tampouco horas extras, e tal situação se perpetua no tempo, não haverá a caracterização de trabalho escravo, mas mero descumprimento da legislação trabalhista, a não ser que haja coação. Ambas as situações são um disfarce absurdo para encobrir o trabalho escravo.
O relator do anteprojeto, senador Romero Jucá (PMDB-RR), disse ter “descartado outra sugestão do governo, que pretendia qualificar como trabalho escravo a submissão a jornada exaustiva. Para o relator, a expressão é genérica demais, possibilitando interpretações variadas.” (APROVADO…, 2013).
Ângela de Castro Gomes, citada por Santini, rejeita a ideia de falta de objetividade nos critérios estabelecidos, ao afirmar que:
“Tirar a ideia da jornada exaustiva e do trabalho degradante seria uma perda absolutamente fatal. O trabalho escravo é desumano, e jornadas exaustivas e condições degradantes envolvem uma profunda humilhação que pode levar até à morte. Estamos falando de uma superexploração que põe em risco a vida do trabalhador. A reforma [de 2003] (sic) permitiu uma ação da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal muito mais efetiva no que diz respeito a defender as condições de trabalho dignas e decentes que a Constituição garante.” (SANTINI, 2012).
Diante das articulações iniciadas pela bancada ruralista, vislumbra-se a possibilidade de também a PEC do Trabalho Escravo trazer retrocessos, caso influencie, por exemplo, a posterior inclusão de dispositivo que altere o art. 149 do CPB, retirando da abrangência do conceito de trabalho escravo o trabalho degradante e a jornada exaustiva.
Lembra-se aqui da constante luta dos organismos internacionais para evitar o retrocesso das conquistas sociais, fato que pode acometer o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que prevaleçam os interesses ruralistas. Ainda que o tipo penal não traga qualquer vantagem social direta, a sua força punitiva inibe diretamente a prática de atos escravagistas, o que se traduz em importante apoio na erradicação do trabalho escravo, constituindo-se, assim, em um passo reacionário o seu estreitamento.
3.5 A problemática acerca do conceito de trabalho escravo
A convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório de 1930, estabeleceu que trabalho forçado ou obrigatório, é “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”. Já foi discutido anteriormente que, mesmo que tenha havido espontaneidade no início, mas posteriormente o indivíduo tenha sido proibido de deixar o trabalho por ameaça de sanção, também estará caracterizado o trabalho forçado.
Portanto, também já foi estabelecido nesta pesquisa que, para a conceituação de trabalho forçado, basta determiná-lo como o trabalho exigido de uma pessoa, sob a ameaça de sanção.
Dessa forma, tendo-se como premissa este conceito (que serve de parâmetro ao estudo aqui desenvolvido), outras definições que surjam – mesmo no âmbito de convenções internacionais –, e sejam com ele incompatíveis (sem que o revoguem expressamente, tornando-o mais abrangente e adequado ao modelo de Estado Democrático de Direito), serão consideradas como elaboradas sem a correta técnica, pois não se vinculam à significação originalmente elaborada pela OIT e ainda válida internacionalmente – observados os preceitos de respeito aos direitos humanos.
Embora a Convenção nº 29 da OIT de 1930; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 da ONU; e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 da OEA tenham visado à abolição do trabalho forçado, todas elas fizeram as mesmas ressalvas, ao definirem que, para os fins de tais convenções, não poderiam ser considerados trabalho forçado ou obrigatório, os seguintes tipos de trabalho exigidos pelo Estado (em linhas gerais):
a) O pequeno serviço considerado obrigação cívica, seja o prestado a uma comunidade, ou ao próprio Estado;
b) O trabalho militar obrigatório, ou aquele que o substitua, quando for requerida sua isenção por motivo de consciência;
c) O trabalho exigido em casos de urgência, como guerra ou calamidade pública que ameace a existência ou o bem estar da comunidade;
d) O trabalho exigido do indivíduo encarcerado por decisão judicial, desde que executado sob a vigilância e a fiscalização do Poder Público.
Ora, percebe-se que as ressalvas promovidas em relação a tais tipos de trabalho não querem significar que esses não sejam considerados forçados ou obrigatórios. Por isso se usa as expressões relativizantes “para fins desta convenção”, “no sentido deste parágrafo” e “para os efeitos deste artigo”. Ou seja: são trabalhos forçados, mas que não integram o rol de proibições das respectivas convenções.
O real sentido de tais ressalvas é suprimir a proibição em relação aos tipos de trabalho forçado ali listados – quando requeridos pelo Estado -, uma vez que são necessários ao exercício da cidadania e manutenção da soberania estatal.
Verifica-se, portanto, que, enquanto qualquer tipo de recurso ao trabalho forçado é vedado aos particulares, há trabalhos forçados que são legitimados aos Estados e não foi objetivo das convenções da OIT, OEA e ONU aboli-los. Mais do que isso, ao defenderem a preservação da dignidade humana enquanto o trabalho forçado fosse exigido, tais convenções acabaram por determinar tacitamente, que deve ser lícita a exigência feita para se forçar o indivíduo ao trabalho, assim como deve também ser lícita a sanção aplicável ao indivíduo.
Afinal, o Estado deve se sujeitar ao princípio da legalidade, mesmo quando estiver na posição de supremacia em relação ao particular, pois a defesa do interesse público não autoriza a ilicitude dos atos estatais.
Em decorrência desses desdobramentos, percebe-se que não há nenhuma possibilidade de uma pessoa (física ou jurídica) de direito privado exigir trabalho forçado de uma pessoa física, sob a ameaça de uma sanção lícita. Afinal, cabe ao Estado o monopólio do uso da força para aplicar sanções. Sempre que houver submissão de um indivíduo para realizar trabalho por meio de coação que não seja de origem estatal, estará presente a modalidade “trabalho escravo”. Apenas o Estado tem legitimidade para forçar uma pessoa dentro dos limites da lei, preservando sua dignidade, mantendo-a no mesmo nível de igualdade entre os demais indivíduos.
3.6 O trabalho forçado não é espécie de trabalho escravo
O CPB dá um tratamento oposto em relação ao aspecto taxonômico, quando a sua classificação de trabalho forçado e trabalho escravo é comparada com aquela adotada pela Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento – Sumário Relatório Global 2005 – Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado.
Para o legislador nacional, trabalho forçado é uma das formas de trabalho escravo, conforme se percebe da leitura do art. 149, caput do CPB:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.” (BRASIL, 2013b)
Mais uma vez far-se-á a análise da espécie em relação ao gênero. Como este estudo adota como conceito de trabalho forçado aquele definido pela Convenção nº 29 da OIT, devidamente limitado pelas imposições que resguardam a dignidade do trabalhador, não há a possibilidade de classificar o trabalho forçado como espécie de um gênero (trabalho escravo) que se caracteriza precipuamente pelo ataque frontal à dignidade humana. Portanto, a espécie “trabalho forçado” não cabe no gênero “trabalho escravo”.
Conclui-se, dessa forma, que trabalho forçado e trabalho escravo são dois institutos distintos, que não devem ser confundidos, além de um não ser espécie do outro, uma vez que ambos possuem traços específicos distintos. Ressalta-se, porém, que a falta de precisão técnica com que os dois termos foram e continuam sendo utilizados gera várias dificuldades de interpretação. A maior delas é distinguir entre a denominação oficial dada a uma ocorrência de trabalho forçado ou trabalho escravo e a investigação sobre qual dos dois institutos realmente ocorre em um caso concreto analisado.
3.7 A punição penal contra o trabalho escravo
Prado (2010) afirma que para a caracterização do tipo penal “redução a condição análoga a de escravo” o agente pode se utilizar de ameaça, violência ou fraude, desde que sejam idôneos à sujeição do sujeito passivo ao seu domínio.
A fraude ocorre no início da ação escravagista, quando os indivíduos iniciam a execução de um trabalho sob as seguintes falsas promessas: salário digno, boas condições de trabalho e prosperidade. A ameaça e a violência são usadas para manter o indivíduo preso ao local de trabalho, uma vez que este já tenha descoberto a fraude pela qual foi enganado.
Entretanto, o tipo penal não determina, muito menos limita os meios pelo qual o agente pode atuar a fim de estabelecer a sujeição do sujeito passivo, podendo esta se dar também por ardil, artifício, imposição de poder econômico, entre outros.
Portanto, nada impede que o agir do opressor, impondo-se pelo poder econômico e submetendo o trabalhador ao trabalho degradante ou à jornada exaustiva – sob o argumento de que caso esteja insatisfeito pode pedir demissão -, seja meio idôneo para caracterizar o trabalho escravo. Cabe aqui afastar a questão da negligência, pois se poderia alegar que o sujeito atuaria com mera culpa e haveria o afastamento da tipicidade da conduta, uma vez que o tipo penal contido no art. 149 não prevê a modalidade culposa. No entanto, ainda que não se admita o dolo direto na modalidade em que não há fraude, violência ou ameaça, aquela pessoa que submete outro indivíduo pelo poder econômico, age no mínimo com dolo eventual, pois está totalmente ciente das situações subumanas em que o trabalho é realizado – assumindo, portanto, os riscos de causar danos à saúde do trabalhador –, além de conhecer a condição de fragilidade social do empregado explorado, aproveitando-a como forma de persuasão para manutenção da situação de exploração.
Felizmente já há posicionamento recente da Suprema Corte brasileira, alinhado à contemporaneidade e às exigências do Estado Democrático de Direito. Uma denúncia originariamente aceita pela justiça federal de Alagoas foi encaminhada ao STF, devido à diplomação do réu – João José Pereira de Lyra -, como Deputado Federal. O texto abaixo mostra trechos do voto da ministra Rosa Weber, favorável ao recebimento da denúncia contra o acusado, demonstrando um entendimento bastante similar àquele adotado neste trabalho, como segue:
“EMENTA PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA.
A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. (BRASIL, 2012, p. 26).
Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo.” (BRASIL, 2012, p. 27).
Portanto, concluo que, para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessária a coação física da liberdade de ir e vir, ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas cuja presença deve ser avaliada caso a caso.” (BRASIL, 2012, p. 28).
Ao reconhecer que, para a configuração do trabalho escravo basta a submissão da vítima a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou a trabalhos forçados – termo mais uma vez usado inapropriadamente, uma vez que este estudo já determinou a diferença entre trabalho forçado e trabalho escravo -, o STF de algum modo reconhece o dolo do agente escravizador na sua conduta, uma vez que o Direito Penal brasileiro não admite a responsabilidade objetiva. No mesmo acórdão acima, assim iniciou o seu voto – também favorável ao recebimento da denúncia -, o ministro Cezar Peluzo:
“Eu vou pedir vênia, então, ao eminente Relator e aos votos que o acompanharam, para receber a denúncia, entendendo, também com vênia ao Ministro Celso de Mello, pois acho que, neste caso aqui, ambos os denunciados tinham o domínio dos fatos. Eles não podiam deixar de conhecer as condições em que os trabalhadores eram postos e, portanto, tinham condições de haver tolhido a prática desse delito, tanto que se comprometeram e, depois, acabaram adotando providências adequadas, segundo o acordo a que fez referência o eminente Relator.” (BRASIL, 2012, p. 60, grifo nosso).
Mas o debate a respeito dessa questão ainda parece ser longo, pois ainda há limitações de entendimento que tratam o trabalho escravo contemporâneo de maneira restritiva, ou seja, nos moldes do que foi a escravidão clássica.
4 O TRABALHO PRISIONAL
Segundo Foucault (2002, p. 119), “a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).”
Em que pese a relevância do assunto, este estudo não entrará na discussão sobre o nível de condicionamento da subjetividade humana que o sistema prisional efetua na pessoa presa, afetando a sua consciência. Não é o interesse, neste trabalho, de se pesquisar como o Estado acaba por interferir na esfera de autodeterminação do indivíduo, moldando-o para se tornar alguém a ser socialmente aceito e economicamente produtivo por meio do trabalho. A intenção aqui é verificar em que medida tal trabalho permite ou não que a pessoa viva com dignidade durante o seu período de cumprimento de pena.
O Trabalho prisional é regulado pela Lei de Execução Penal – LEP (lei nº 7.210/1984). A importância do trabalho realizado pelas pessoas em cumprimento de pena é que este deveria servir principalmente como função educativa, uma vez que o preso tem a oportunidade de aprender um ofício – “em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico” (art. 19 da LEP) – e regressar ao convívio social com uma qualificação profissional. Entretanto, a realidade mostra um horizonte diferente, em que o ideal de recuperação do preso foi trocado pela busca de sociedades empresárias pelo lucro fácil com a mão-de-obra barata e desonerada de encargos sociais.
4.1 Um breve panorama sobre a realidade prisional no Brasil
Por força do art. 24 da CRFB-88, “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico” (BRASIL, 1988). A situação dos presídios estaduais em geral é precária, sendo pior nos estados mais pobres da federação. Com diversas despesas com folha de pagamento dos funcionários públicos; saúde; educação; segurança; infraestrutura; organização dos poderes; entre outras – além do problema crônico da corrupção institucionalizada, que consome um montante representativo de verbas públicas –, a questão carcerária torna-se constantemente negligenciada pelo Poder Público.
O retrato dos presídios é o de uma realidade desmotivadora. Exemplo concreto é o Presídio Feminino de Florianópolis, de acordo com Lema (2011) em sua monografia: falta espaço físico e as celas são superlotadas. As mulheres dormem nos corredores do alojamento – pois não há camas para todas. Algumas dividem suas camas. No interior das celas, a quantidade de ratos, baratas e outros insetos é assustadora. Não há ventilação suficiente, o que acarreta em umidade e calor excessivo em determinadas épocas do ano. Não há alojamento individual para a gestante e parturiente. A mãe que amamenta divide uma cama com o bebê no alojamento coletivo e muitas dessas camas são beliches, o que aumenta o risco de acidentes. O mais próximo de um atendimento médico especializado na unidade é a presença de uma técnica de enfermagem que faz a triagem dos casos. As mulheres presas são tratadas aos gritos pelas agentes prisionais, que lhes exigem uma postura de submissão na qual as internas devem andar permanentemente com as mãos para trás e a cabeça baixa. Não podem encarar as funcionárias nos olhos, não podem conversar enquanto passa algum funcionário.
Há que se respeitar na prisão, as condições mínimas que protejam a dignidade aos indivíduos encarcerados. A superlotação; as péssimas condições de higiene; a falta de ventilação adequada; a presença de insetos e outras pragas; as doenças contagiosas; as situações de violência iminente e outros fatores degradantes; fragilizam de forma brutal a vida humana. O indivíduo preso sob tais condições não é escravo, mas vive uma situação ainda pior, pois é o próprio homo sacer do antigo Direito Romano, conceito resgatado e difundido por Giorgio Agamben e explicado por Ruiz:
“O homo sacer é a vida desprovida do direito: excluída da lei que a proteja, encontra-se abandonada. Fora do direito a vida perambula na condição de abandono o que a condena a viver na condição de bando. O direito não pode condenar a vida abandonada, mas também não a protege. O homo sacer não pode ser legalmente condenado, mas pode ser impunemente morto. Por isso é pura vida nua. Uma vida que pode ser sacrificada, morta, explorada, sem que nenhum direito a proteja.” (RUIZ, 2011).
O Estado em um primeiro momento condena um indivíduo – que considera dotado de autonomia – por ter cometido um crime e depois tenta castrar essa autonomia, como forma de domesticá-lo. Por isso o ambiente prisional é opressor e em geral tenta forçar o indivíduo a agir como um autômato. Obviamente que há indivíduos que resistem a essa sistemática supressora e também há locais em que as facções criminosas se organizam de modo a serem ativas no ambiente prisional, fazendo com que sua atuação seja mais marcante que a opressão estatal, inclusive a ponto de inibí-la.
Em geral, a pessoa presa no Brasil não é tratada com respeito à sua integridade física, mental e moral. Por isso, esse indivíduo não consegue retornar algo que seja diferente do descaso, da ira, da violência. A sociedade contemporânea segue promovendo enormes discrepâncias, pois as conquistas sociais não são acessíveis a todas as classes de pessoas. O Estado Democrático de Direito ainda é um conceito que necessita ser fortalecido até o ponto em que seus fundamentos tornem-se mandatórios não somente nos discursos, mas também nas práticas, a ponto de eliminar o Estado de Exceção que ainda prevalece em alguns submundos formados à margem da sociedade pouco inclusiva.
O quadro do sistema prisional torna-se ainda pior, devido ao vultoso crescimento da quantidade de pessoas condenadas à pena privativa de liberdade. Os dados acerca do aumento da população carcerária no Brasil são impressionantes. Segundo Wassermann:
“O número de pessoas presas no Brasil cresceu 6% somente nos seis primeiros meses deste ano, intensificando uma tendência que fez do Brasil um dos três países do mundo com maior aumento da população carcerária nas últimas duas décadas.
Segundo dados recém-divulgados pelo Ministério da Justiça, o número total de presos em penitenciárias e delegacias brasileiras subiu de 514.582 em dezembro de 2011 para 549.577 em julho deste ano.
Uma das principais consequências desse aumento é a superlotação das prisões, já que novas vagas não são criadas na mesma velocidade que o aumento do número de presos. Em julho, havia um déficit de 250.504 vagas nas prisões do país, segundo os dados oficiais.
Em 1992, o Brasil tinha um total de 114.377 presos, o equivalente a 74 presos por 100 mil habitantes. Em julho de 2012, essa proporção chegou a 288 presos por 100 mil habitantes. No período, houve um aumento de 380,5% no número total de presos e de 289,2% na proporção por 100 mil habitantes, enquanto a população total do país cresceu 28%.” (Wassermann, 2012, Grifo nosso).
Ao se verificar a questão da superlotação carcerária, percebe-se que grande parte do problema tem como causa primária um sistema econômico que promove a distribuição de renda de forma bastante desigual, gerando populações miseráveis e violência. Entretanto, como as políticas de promoção do desenvolvimento social são de complexa implantação, requerem grandes investimentos e demandam muito tempo para mostrarem seus primeiros resultados, torna-se mais fácil para o Estado atacar algumas consequências. Porém, nenhuma solução é alcançada sem um mínimo de vontade política e gasto público. A falta de investimento estatal na construção e manutenção de unidades prisionais apropriadas é um fator que contribui para a superlotação dos presídios. Todavia, o crescimento exagerado da população carcerária também favorece a desorganização, precariedade e superlotação do sistema.
Ainda em relação à questão da superlotação dos presídios, essa também se deve, em parte, ao pouco número de indivíduos presos empregados. Afinal, o indivíduo que não trabalha prolonga o seu tempo de cumprimento de pena e de livramento condicional. Portanto, o trabalho do indivíduo preso não é somente uma obrigação imposta a este pelo sistema penitenciário, que decide onde, como e quando cobrar tal trabalho. Mais que isso, é obrigação do sistema penitenciário abandonar seu estado letárgico e tornar-se mais dinâmico, a fim de propiciar trabalho a uma parcela maior da população carcerária, tirando assim os indivíduos da ociosidade para dar-lhes possibilidades concretas de reinserção social, fazendo com que esta expressão não seja apenas um ideal teórico previsto no papel.
De acordo com Gomes:
“Segundo levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, apenas 17% do total presos brasileiros exerciam algum tipo de atividade laboral dentro do sistema penitenciário, em 2012. Dos quase 550.000 presos, cerca de 92.000 trabalhavam em atividades dentro dos presídios, 167 para cada grupo de 1.000 presos. Nos últimos 5 anos, o número de presos que trabalham dentro das prisões cresceu 6%, mas a média ainda é baixa: 164 presos cada 1.000 recolhidos.[…]
As mulheres, respeitando as proporções dos números, geralmente trabalham mais que os homens: 25% do total de presas estão desenvolvendo alguma atividade laboral dentro dos presídios, enquanto entre os homens a taxa é de 16%.
As atividades internas que mais foram desenvolvidas pelos presos em 2012 foram: apoio ao estabelecimento penal (42%), parceria com a iniciativa privada (32%), artesanato (16%), atividade industrial (4%), parceria com órgãos do Estado (4%), parceria com paraestatais (ONGs e Sistema S) (1%) e atividade rural (0,9%).” (GOMES, 2013).
Verifica-se assim que, não obstante o fato de a LEP impor à pessoa presa a atividade laboral – como será visto mais adiante -, na prática a grande maioria dos indivíduos presos não trabalha, pois o sistema prisional não consegue gerar emprego para sua população carcerária.
Exemplos dessa ineficácia do sistema podem ser vistos em qualquer estado da federação, como é o caso do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, em Goiás:
“O Complexo é formado pela Penitenciária Odenir Guimarães (POG) com 1.600 presos sendo que apenas 149 trabalham, a Penitenciária Feminina Consuelo Nasser com 55 mulheres, das quais 30 trabalham, o Núcleo de Custódia com 71 detentos onde 2 trabalham, o Semi Aberto com 404 presos sendo que 133 trabalham e a Casa de Prisão Provisória (CPP) que abriga 1.303 presos sendo que, destes, 123 exercem atividades.” (RABELO, 2012).
Mas os problemas não param na inércia estatal. Muitas vezes, quando há o trabalho prisional, este se resume a tarefas muito simples, que não estimulam os indivíduos ao trabalho, além de não servirem como aprendizado profissionalizante para uma vida após o cumprimento da pena privativa de liberdade. De acordo com Zackseski:
“O trabalho prisional desenvolvido no Presídio Feminino de Florianópolis, à época da pesquisa, limitava-se a duas atividades: colagem de alças de cordas em sacos de carvão da marca “Boi na Brasa” e a confecção de cabos telefônicos para a Telebrás. As sacolas de carvão chegavam vazias e prontas da gráfica, cabendo às detentas confeccionarem as cordas feitas de sisal e as colarem nas sacolas. Quanto a confecção dos cabos telefônicos, as peças já chegavam prontas, bastando apenas encaixá-las, com algum instrumento que servisse como um martelo.
O trabalho era invariavelmente manual e não oferecia qualquer atrativo, sendo caracterizado pela monotonia e repetição. Como se nota, nada profissionalizante, como na teoria propõe o sistema penitenciário, para reintegrar o preso à sociedade. Para a pesquisadora a presa continua a reproduzir na prisão um estilo de vida ligado a um tipo de trabalho caracteristicamente feminino o que, de fato, não lhe permite disputar melhores colocações no mercado de trabalho, ao reencontrar a liberdade.
As presas que possuíam uma condição financeira um pouco melhor costumavam não trabalhar. Seus comentários, registrados pela pesquisadora, transmitiam o preconceito de que trabalho braçal é para pobre, reproduzindo as noções de classe social presentes na sociedade extramuros, herança do sistema escravista18. Para outras o trabalho prisional servia como uma forma de “ajudar a passar o tempo”.
Não há o menor interesse em ensinar aos detentos, em geral, ofícios que lhes possam valer no mundo livre, não há qualquer empenho em estimular o gosto pelo trabalho, consideradas as tarefas oferecidas. Ocorre, por exemplo, o treinamento de internos para a utilização de equipamentos que não são mais usados na indústria, o que acaba por desperdiçar este tipo de aprendizagem prática.” (Zackseski, 2001, p. 5).
Portanto, ainda que colocado em prática, muitas vezes o trabalho prisional não corresponde ao interesse social de profissionalizar o indivíduo encarcerado para que este tenha condições de se ressocializar após o cumprimento da sua pena.
As aptidões e a capacidade de trabalho do indivíduo preso são determinadas por uma Comissão Técnica de Classificação multidisciplinar (CTC). Em toda unidade prisional deve existir uma CTC, cujas atribuições e composição são estabelecidas pela LEP, nos seus artigos 5º a 9º, 96 e 87. A classificação visa à orientação da individualização da execução penal e constará de exames gerais, além de um criminológico, a fim de se traçar um perfil do indivíduo. Nas palavras de Nucci (2010, p. 471), “desvenda-se a aptidão e conhece-se a capacitação do condenado para o exercício de atividades no estabelecimento prisional.”
Portanto, é o resultado da avaliação analisada pela CTC que vai determinar a possibilidade de o indivíduo preso vir a trabalhar e o tipo de trabalho a ser realizado durante o cumprimento de sua pena.
Segundo Pelegrino e Santos (2008), a análise da experiência profissional pregressa e dos interesses do sentenciado, o tempo da pena, a conduta carcerária, o perfil psicológico, a vida social, o grau de instrução e outras informações, é que permitem o melhor encaminhamento do indivíduo para o trabalho mais adequado, conforme determina o art. 31 da LEP.
4.2 O trabalho da pessoa presa: trabalho forçado, escravo ou decente?
Em síntese, o trabalho forçado (ou obrigatório) é aquele exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção. Neste, a dignidade humana deve ser respeitada, ao mesmo tempo em que a sanção deve ser lícita. Portanto, ao tornar obrigatório o trabalho do indivíduo preso, impondo-lhe sanções pelo seu não cumprimento, a LEP aparentemente está ordenando a esta pessoa que realize um trabalho prisional forçado.
Entretanto, para que o trabalho seja forçado, requer-se que seja preservada a dignidade do trabalhador. A LEP, ao estabelecer que o trabalho do preso não será alcançado pelo regime da CLT, além de fixar um salário mínimo mensal abaixo daquele que é praticado em todo o território nacional, simplesmente ignora a dignidade do trabalhador, negando-lhe os direitos sociais do trabalho constitucionalmente garantidos.
Conclui-se então, que o trabalho prisional, uma vez que seja organizado nos moldes da LEP não será forçado, mas escravo. Apesar de ser lícita a sanção imposta, o Estado estará permitindo que o preso seja atingido por condições degradantes de trabalho, devido à perda de direitos sociais constitucionalmente estabelecidos e à percepção de um salário abaixo do valor mínimo necessário ao sustento de sua família.
Nos regimes semiaberto e fechado, o consentimento do indivíduo será sempre necessário quando houver intermediação do Estado para disponibilizar uma vaga de trabalho junto ao setor privado, por força do art. 36, § 3º da LEP. Haverá também consentimento, quando o estabelecimento prisional, frente a poucas ofertas de vagas de trabalho e um grande contingente de mão-de-obra em potencial, não usar meios de coação (pela desnecessidade), mas selecionar trabalhadores dentro daquele universo de pessoas presas, predispostas a trabalhar.
Entretanto, ainda que haja consentimento, mas não sejam atendidas as condições mínimas de garantia da dignidade humana, estará configurado o trabalho escravo. Isso porque o consentimento, conforme já estudado anteriormente, não afasta a caracterização do trabalho escravo. Muitas vezes, a concordância do indivíduo dá-se pela falta de opções frente à sua realidade de vida, fazendo com que ele se submeta às condições de trabalho existentes, por uma questão de sobrevivência. É um desafio sobreviver no ambiente prisional, que atenta contra a integridade física e mental do indivíduo. A distância da família; o confinamento; a falta de liberdade e de vida privada; as doenças e a violência iminente são fatores que fazem com que o indivíduo realize sacrifícios para deixar aquele ambiente hostil o mais rapidamente possível. O trabalho é o modo mais rápido para se atingir esse fim, já que a remição permite que a cada três dias trabalhados, seja reduzido um dia na pena.
O trabalho, entretanto, não será considerado escravo nas situações em que o contrato é negociado diretamente entre empregado e empregador – como em geral acontece no regime aberto. Neste caso, o indivíduo atua no exercício da sua autonomia de vontade. A sua atividade será considerada um trabalho decente, sempre que não atentar contra a sua dignidade.
O trabalho dos presos colabora com a luta contra o ócio prisional e com a consequente manutenção da saúde mental do indivíduo encarcerado, evitando que ele fique em total inatividade durante várias horas diárias em um ambiente fechado. É, portanto, atividade salutar, desde que preservada a dignidade humana.
Mesmo assim, há quem critique esse trabalho, afirmando tratar-se de mero instrumento a serviço do capitalismo. Neste sentido, Nicoli apresenta uma crítica contundente e irônica do trabalho prisional:
“Também através (sic) do discurso de manutenção e atualização da capacidade produtiva do condenado, ganha força a faceta utilitária do trabalho prisional. Nesse sentido, o desempenho de atividades similares àquelas exercidas no mercado de trabalho além muros, durante o período da execução penal, mantém mais altas as chances de o interno ser reintegrado à estrutura produtiva quando regressar à liberdade. A criação de redutos produtivos assemelhados àqueles da realidade social externa teria, assim, função de extrema valia. E, para desempenhar tal mister de capacitação e atualização da força produtiva, o capital privado tenta se vender como a solução por excelência. Afinal, dirão os partidários, quem melhor do que aquele que define rumos do mercado externo para manter a realidade do trabalho carcerário em estado de compatibilidade?
Por fim, a lógica da defesa do trabalho prisional encontra na necessidade de manutenção da família do preso e na indenização das vítimas outro ponto de apoio. Tal argumento pode ser extremamente persuasivo, por ter forte carga moral.” (NICOLI, 2008, p. 12).
Em que pesem as críticas – que tampouco oferecem soluções alternativas –, o trabalho prisional é capaz de promover a ressocialização do indivíduo, mas requer, para isso, que a dignidade humana seja sistematicamente preservada.
O texto constitucional, em seu art. 5º, inciso XLVII, proíbe penas de trabalho forçado, o que aparentemente tornaria o trabalho prisional forçado, uma prática inconstitucional, ainda que fosse mantida a dignidade do indivíduo que realiza tal atividade laboral.
Cabe então aqui, uma discussão acerca do que é entendido pelo legislador constituinte como trabalho forçado. Forçar é constranger alguém a algo, obrigar, compelir. Portanto, trabalho forçado nada mais é que trabalho obrigatório.
Entretanto, uma vez que várias nações em épocas passadas – e ainda algumas nos dias atuais, como é o caso da China (GOUVÊA, 2013) -, fizeram ou fazem uso de trabalho exaustivo e degradante, que inflige sofrimento, dor física e cansaço aos indivíduos condenados, sob a denominação de trabalho forçado, quis-se evitar a repetição desse modelo de perversidade por parte do Estado Brasileiro.
Na verdade, o termo “trabalho forçado” está equivocado, pois se trata de trabalho escravo, uma vez que a integridade do indivíduo preso é brutalmente atingida. As pessoas encarceradas sob esse regime são tratadas como simples fonte de mão-de-obra, pois visam aos fins estatais. Em regra, ou era imposto um trabalho improdutivo – sem sentido, com o objetivo único de gerar sofrimento ao indivíduo -, ou então um trabalho que atendesse às necessidades de desenvolvimento do Estado. As pessoas não eram tratadas como tais, mas como um elemento de um meio de produção extremamente cruel.
Nesses países ocorria na prática, o trabalho escravo em sua forma extrema, pois em geral o escravizador privado tem o interesse de manter o escravo vivo para lhe gerar resultado, apesar de toda a crueldade existente contra este. Já em relação ao indivíduo condenado e escravizado pelo Estado não existia essa preocupação, pois caso ele viesse a morrer nos campos de trabalho, poderia ser facilmente substituído, além de ser considerado um estorvo a menos para o país.
Assim, entende-se que a CRFB-88 não vedou o trabalho forçado no sentido que foi adotado neste trabalho – com privação da liberdade de escolha em relação ao trabalho, e manutenção de todos os demais fundamentos da dignidade humana. Um argumento que corrobora tal opinião é o fato de a legislação nacional impor algumas formas de trabalho forçado ao cidadão livre, como é o caso dos mesários, dos jurados involuntários e dos jovens recrutados para o serviço militar obrigatório. Portanto, não faria sentido a existência de qualquer óbice de se impor ao indivíduo preso, um trabalho forçado nesses moldes.
Outro fator que respalda essa tese é o fato de que a própria ONU estabeleceu nas “Regras Mínimas para o Tratamento dos Prisioneiros” – adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955 -, a obrigatoriedade do trabalho aplicável a presos condenados na regra número 71, 2, segundo a qual “Todos os presos condenados deverão trabalhar, em conformidade com as suas aptidões física e mental, de acordo com a determinação do médico.”
Lembra-se aqui que a ONU é a organização internacional máxima de referência na defesa da dignidade humana, desde a proclamação pela sua Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos – documento que serve de referência a todos os tratados que o sucederam e a constituições nacionais recentes (inclusive a brasileira). Portanto, o que a CRFB-88 quis realmente impedir, foi uma punição com características de trabalho escravo.
Sempre que esse tipo de punição foi aplicado, a pena principal foi o sofrimento físico, enquanto o encarceramento era apenas um meio de impedir a fuga do indivíduo condenado, de modo a garantir assim a aplicação da pena física.
O trabalho forçado tal qual se admite aqui, é aquele trabalho inserido na pena privativa de liberdade, acessório desta, que serve à capacitação profissional da pessoa, assim como à sua ressocialização.
Assim, conclui-se que o trabalho prisional forçado não seria um problema constitucional. O problema é que a LEP transformou o que deveria ser trabalho forçado, em trabalho escravo, por meio das disposições contidas nos seus artigos 28 e 29.
Duas são as dificuldades para que o trabalho do preso ocorra em condições dignas: o texto da LEP, em total falta de sintonia com a questão de preservação dignidade humana, e a degeneração do sistema prisional. Esta última diz respeito à falta de empenho dos poderes; à má estruturação do sistema carcerário; à questão da superlotação das celas; ao ambiente deteriorado, à falta de padronização sistemática do sistema penal; ao baixo salário pago aos agentes penitenciários e ao seu pouco preparo. Esses problemas, entre outros, transformam as prisões em ambientes de constante tensão e bastante fecundos à propagação de doenças, do descaso, da tirania, do terror e da corrupção, dificultando assim a coordenação eficaz e educadora do trabalho do preso.
Nas palavras de Maturana:
“Ocorre que, em face da notória falência do sistema carcerário nacional, o Estado tem deixado de lado o propósito educativo-regenerativo, para – sob o pálio de combater o ócio -, apenas oferecer mão-de-obra carcerária barata a terceiros, o que o faz em desobediência às normas de regência e em detrimento dos direitos dos próprios encarcerados e dos trabalhadores que compõem a sociedade livre.” (MATURANA, p. 376, 2001).
Tais desvios promovidos pelo sistema mal estruturado, sem padronização, arcaico e deteriorado, também reforçam o ataque à dignidade humana.
4.2.1 A recusa ao trabalho
Além de ocupar parte do tempo ocioso do indivíduo preso e lhe ensinar um determinado ofício, possibilitando-lhe a promoção da ressocialização, outro benefício do trabalho prisional – uma vez que seja realizado em condições dignas -, é a possibilidade de redução da pena. De acordo com o art. 126 da LEP, parte do tempo de execução da pena poderá ser remido por meio do trabalho, pela pessoa condenada que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto. Nos termos do art. 126, § 1º, II da LEP, a cada três dias de trabalho o indivíduo preso reduz um dia da sua pena privativa de liberdade. Tal contagem somente leva em consideração os dias efetivamente trabalhados. É necessário lembrar que a remição não é um direito produzido automaticamente pelo trabalho. Para que haja o desconto no tempo de pena, é preciso a declaração expressa do juiz da execução, por força do art. 66, III, “c” da LEP.
Ressalta-se que o tempo remido pode ser revogado em parte, conforme fixado no art. 127 da LEP (em casos de falta grave), também somente por força de decisão judicial.
Segundo Cardoso (2011, p. 92), “o fato de optar por não trabalhar não importará em falta disciplinar ou no aumento de pena”. Em relação à falta disciplinar, não é esse o entendimento que se tem neste trabalho, pelo disposto nos artigos 39, V e 50, VI; ambos da LEP:
“Art. 39. Constituem deveres do condenado:[…]
V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; (BRASIL, 1984).
Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:[…]
VI – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta.” (BRASIL, 1984).
Portanto, negar-se a trabalhar é falta definida pela LEP como grave. Ressalta-se, entretanto, que tal obrigação alcança somente o trabalho realizado em benefício do Estado. O trabalho para uma entidade privada específica não é obrigatório, devendo o preso consentir em relação a esse (art. 36, § 3º da LEP).
As formas de punição são fixadas pelo art. 53 da LEP, entre as quais consta que:
“Art. 53. Constituem sanções disciplinares:[…]
III – suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);” (BRASIL, 1984).
A punição prevista no inciso III do art. 53 acima permite ao diretor do presídio a suspensão ou restrição dos seguintes direitos aos indivíduos presos:
“Art. 41 – Constituem direitos do preso:[…]
V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;[…]
X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;[…]
XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.[…]
Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.” (BRASIL, 1984).
Dessa forma, percebe-se claramente que a pessoa presa é obrigada à atividade laboral, caso contrário poderá ter restrito ou suspenso o seu tempo de recreação; a visita do seu cônjuge, companheiro (a), familiares ou amigos; o direito a enviar e receber correspondências; além do o acesso a jornais, revistas e livros.
Nucci afirma que:
“O Estado não pode forçá-lo a cumprir qualquer atividade, tarefa ou ordem, mediante punição (como, por exemplo, a inserção em solitária), mas tem o direito de considerar sua atitude inercial como falta grave […] assim ocorrendo, deixará o preso, no futuro, de receber benefícios, v.g., a progressão para regime menos gravoso.” (NUCCI, 2010, p. 478).
Conclui-se assim, que o trabalho prisional em prol do Estado é hoje um dever, requerendo a imposição de penalidades pelo seu não cumprimento. Será também um direito, no sentido amplo, quando alcançar a proteção à dignidade do trabalhador. Outras consequências alcançam o indivíduo encarcerado que se nega ao trabalho. O art. 112 da LEP estabelece o seguinte:
“Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. […]
§ 2o Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes.” (BRASIL, 1984, Grifos nossos).
Portanto, a recusa ao trabalho também poderá ser considerada mau comportamento e levar à perda dos seguintes direitos: progressão do regime, livramento condicional, indulto e comutação da pena. No mesmo sentido, corrobora Nucci (2010, p. 468), citando ainda a possibilidade de perda dos dias remidos pelo trabalho.
4.3 Os diferentes regimes de cumprimento de pena
Antes de seguir com a análise aqui desenvolvida, faz-se necessário diferenciar em linhas gerais, os regimes penais.
Regime fechado é aquele em que o indivíduo condenado cumpre a pena em estabelecimento de segurança máxima ou média, conforme o art. 33, § 1º, “a” do CPB. Tal regime obriga à pessoa presa o trabalho em comum dentro do estabelecimento penal, levando-se em conta suas aptidões ou ocupações anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena. O indivíduo deveria ficar sujeito ao isolamento durante o período noturno, o que na prática é impossível, devido à superlotação dos presídios. As pessoas que cumprem pena sob este regime não têm direito a frequentar cursos de instrução ou profissionalizantes.
De acordo com o art. 33, § 1º, “b” do CPB considera-se “regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar”. No regime semiaberto não há a previsão original de isolamento durante o repouso noturno. O condenado tem direito de frequentar cursos profissionalizantes, de instrução de 2º grau ou superior. A distinção entre os trabalhos realizados externamente nos regimes semiaberto e fechado, é que não há necessidade de vigilância direta em relação aos trabalhadores, no caso do regime semiaberto (PELEGRINO; SANTOS, 2008, p. 105).
O regime aberto é regulado pelo art. 36 do CPB. De acordo com o art. 33, § 1º, “c” do CPB, considera-se “regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado”, locais onde o indivíduo deve passar a noite, após retornar da atividade laboral.
4.4 O trabalho externo
A LEP estabelece dois tipos de trabalho: o trabalho externo e o interno. De acordo com o art. 31, parágrafo único da LEP, ao preso provisório é vedado o trabalho externo.
O indivíduo precisa trabalhar para se manter no regime aberto, conforme preceitua o art. 114 da LEP:
“Art. 114. Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que:
I – estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente;” (BRASIL, 1984).
Assim, para permanecer no regime aberto o indivíduo deve estar trabalhando – no caso em que ingressa já empregado no regime aberto -, ou deve demonstrar que tem a capacidade de fazê-lo – situação na qual está desempregado, mas demonstra dedicação para conseguir novo emprego.
Portanto, se o indivíduo simplesmente não quiser trabalhar, não poderá gozar do regime aberto. Entretanto, de acordo com o art. 117 da LEP, a pessoa condenada maior de setenta anos; o condenado acometido de doença grave; a condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; e a condenada gestante; podem cumprir o regime aberto em residência particular.
Leal (2004a) afirma que o trabalho externo, seja em atividade pública ou privada (desvinculada da administração penitenciária), constitui-se no fundamento do regime aberto.
Nos regimes semiaberto e fechado, o trabalho externo também é permitido em caráter de exceção, uma vez que a regra é o trabalho interno. Ainda assim, o trabalho externo é exigido do preso, sempre que for requisitado em benefício da Administração Pública. Mediante consentimento, o indivíduo pode prestar serviços externos também para a iniciativa privada.
A pessoa presa em regime semiaberto deve realizar trabalho externo somente quando não existir um estabelecimento penal adequado ao cumprimento da sua pena, que possibilite o trabalho interno conforme o art. 33, § 1º, “b” do CPB e o art. 91 da LEP. No regime fechado, tratando-se de trabalho externo, o número máximo de indivíduos presos trabalhando em um local deve corresponder a dez por cento do total de empregados naquela obra.
O art. 37 da LEP afirma que a “prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade; além do cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena.” (BRASIL, 1984). Há consenso na doutrina a respeito da necessidade de cumprimento prévio de um sexto da pena para que se tenha o direito ao trabalho externo no regime fechado. Entretanto, no que diz respeito ao regime semiaberto, há quem defenda a ideia de que não há sentido em se cumprir previamente o prazo mínimo de um sexto da pena, para que se tenha direito ao trabalho externo. Afinal, se a pessoa tiver que esperar tal prazo – quando este for autorizado -, já fará jus à transferência para o regime aberto.
4.5 O trabalho interno
O trabalho interno é obrigatório para o preso condenado e opcional para o preso provisório, por força do art. 31, caput da LEP. É uma atividade típica dos regimes semiaberto e fechado. No regime semiaberto, o estabelecimento apropriado ao cumprimento da pena deve ser uma colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. Essa é a regra. Entretanto, devido à falta de estrutura do sistema penal no país, não há disponibilidade suficiente deste tipo de unidade prisional. Assim, muitos indivíduos condenados ao regime semiaberto cumprem suas penas em penitenciárias, o que é criticado por alguns autores, como é o caso de Leal, segundo o qual:
“[…] no caso de inexistência de Colônia Penal (sic), fato comum na práxis da execução penal brasileira, cabe ressaltar que o regime semi-aberto (sic) não pode ser cumprido em penitenciária, que é o estabelecimento penal adequado para o cumprimento de pena reclusiva em regime fechado.” (LEAL, 2004b, p. 59).
Ainda segundo Leal:
“O que não é admissível é denominar “pavilhões”, espaços anexos ou “alas” de penitenciárias com o rótulo oficial de Colônia Penal Agrícola ou Industrial (sic), para ali improvisar um espaço penal destinado aos condenados em regime semiaberto. Lamentavelmente, é o que vem ocorrendo em muitos Estados (sic) brasileiros, o que representa um verdadeiro “desvio de execução” (art. 185 da LEP), institucionalizado com a chancela de muitos juízes da execução penal.” (LEAL, 2004a, p. 51).
Entretanto, o art. 34 da LEP, § 2º, afirma que “os governos federal, estadual e municipal poderão celebrar convênio com a iniciativa privada, para implantação de oficinas de trabalho referentes a setores de apoio dos presídios.” (BRASIL, 1984). Assim, entende-se serem permitidas tais oficinas.
Em relação ao assunto Pelegrino e Santos informam que:
“Apesar de haver a previsão sobre a possibilidade do (sic) Poder Público celebrar convênios com a iniciativa privada, para a implantação de oficinas de trabalho, há a necessidade de que o assunto seja regulamentado, constando todas as diretrizes para o procedimento desses convênios.” (PELEGRINO; SANTOS, 2008, p. 106).
Nucci (2010, p. 473), por sua vez, restringe-se a um breve comentário, segundo o qual “a responsabilidade pelo trabalho do preso é do Poder Público, que pode até se valer da iniciativa privada, por convênios, para tanto, remunerando-se o preso e arrecadando-se valores ao próprio ente estatal.”
Com a adoção dessa modalidade de trabalho interno para a iniciativa privada, percebe-se na prática, que os presos em regime semiaberto e fechado têm sido tratados quase que sem diferenciação pelo sistema carcerário brasileiro. Afinal, devido à falta de unidades prisionais específicas para o regime semiaberto, o indivíduo condenado a este regime não tem onde cumprir sua pena, senão em uma penitenciária, que, todavia, é o local de cumprimento de pena no regime fechado. Consequentemente, o indivíduo que pertence ao regime semiaberto deveria ser então liberado para o trabalho externo; mas em vez disso, a direção do presídio instala estabelecimentos privados em seus domínios, a fim de fazer com que esse indivíduo realize um trabalho interno.
Um exemplo disso ocorre em Aparecida de Goiânia, conforme informação de Rabelo:
“Incapaz de oferecer oportunidade de trabalho para o total de 3.433 presos que integram o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, a Agência Goiana do Sistema de Execução Penal (Agsep) tenta avançar gradativamente com projetos que levam indústrias para dentro do complexo.
[…] No Complexo estão instaladas indústrias de embalagens, de feitura de orelhões, roupas, cadeiras de rodas, bolas, redes, blocos de cimento e peças plásticas.” (RABELO, 2012).
A solução de trazer instalações industriais privadas para o interior dos presídios gera indesejáveis consequências. Atraídos pelo alto corte de custos que o trabalho prisional pode proporcionar – em virtude da não percepção de qualquer benefício trabalhista, além do pagamento de um salário abaixo do mínimo -, as sociedades empresárias buscam a maximização de seus lucros. O trabalho prisional desvirtua-se assim, de seu ideal nobre de reeducação e do seu papel de reinserção social do indivíduo encarcerado, passando a ser mero meio de produção para o sistema capitalista e tendo como efeito colateral um trabalhador desprovido de direitos sociais.
Pela pouca complexidade dos trabalhos desenvolvidos nessas oficinas, percebe-se que não há qualquer preocupação com a capacitação profissional do preso, a fim de que esse possa desenvolver atividades mais elaboradas e qualificadas, com chances reais de ser competitivo no mercado de trabalho, em sua vida pós-cárcere.
4.6 O trabalho do preso e a Consolidação das Leis Trabalhistas
Muitas são as vozes que se manifestam contra a falta de proteção dada ao trabalho do preso pela LEP. O dispositivo mais criticado é o art. 28, § 2º, segundo o qual, o trabalho do preso não está sujeito ao regime da CLT. O art. 29, caput, também é polêmico, ao permitir que o indivíduo preso receba um salário correspondente a apenas setenta e cinco por cento do salário mínimo nacional. A principal alegação é de que tais dispositivos são inconstitucionais, por não terem sido recepcionados pela CRFB-88.
De fato, há que se ter algum estímulo às entidades privadas, a fim de que estas aceitem o trabalho de um indivíduo que teve sérios problemas com a lei, a ponto de ter sido condenado a uma sentença privativa de liberdade. Existe um preconceito natural em relação à pessoa condenada, uma vez que esta rompeu com regras de um ordenamento jurídico, causando um distúrbio social momentâneo, para o qual houve a necessidade de acionamento do Direito Penal como ultima ratio para restaurar a paz coletiva. Demonstra-se, com isso, que o indivíduo condenado praticou uma ação e obteve um resultado cujos valores são percebidos pela sociedade como negativos em relação ao comportamento que se espera das pessoas. É o que parte da doutrina chama de desvalor da ação e desvalor do resultado.
Como a relação entre empregado e empregador é intuitu personae – em que a prestação de serviços, portanto, deve ser pessoal -, obrigatoriamente há um vínculo mínimo de confiança inicial entre ambos, que se desenvolverá ainda mais ao longo da relação empregatícia. O indivíduo condenado traz em seu histórico um antecedente penal, não inspirando assim, a confiança imediata do empregador e de seus possíveis colegas de trabalho. Por tal razão, poucas são as oportunidades de trabalho dadas aos indivíduos que cumprem pena privativa de liberdade.
Entretanto, não pode o indivíduo ser maculado eternamente por uma ação pela qual já responde com duras consequências para a sua vida. Afinal, ainda que a justificativa seja meramente pragmática, livre de qualquer intenção humanitária ou de solidariedade, as chances profissionais dadas à pessoa presa apresentam um risco social infinitamente menor do que a indiferença. Esta sim faz com que tal pessoa desamparada e sem perspectivas, retorne ao crime tão logo ganhe a liberdade. A reincidência criminal é grande e a sociedade, ainda que não seja movida por ideais de bondade e altruísmo, deve começar a ter em mente que um indivíduo a menos no crime, corresponde a alguns crimes a menos contra essa mesma sociedade.
Enquanto essa reflexão não ganha alcance amplo, continua havendo grande dificuldade em se inserir um indivíduo preso em um ambiente com trabalhadores livres. Há o medo, a preocupação e o preconceito destes em relação àquele. Some-se a isso a dificuldade logística e o custo para o estabelecimento prisional fornecer o transporte diário de ida e volta dos trabalhadores presos e garantir a segurança no estabelecimento empresarial durante a jornada de trabalho.
Surge então a LEP em 1984 – talvez considerando a dificuldade de reinserção da pessoa encarcerada no mundo do trabalho e tentando gerar incentivos à iniciativa privada –, afastando o alcance da CLT aos indivíduos em cumprimento de pena privativa de liberdade. O resultado foi o surgimento de uma forma de trabalho ainda mais hipossuficiente que aquela existente entre o empregador e o empregado livre.
A grande discrepância entre o regime da CLT e aquele previsto na LEP cria dois problemas: primeiramente, os trabalhadores livres tornam-se, comparativamente, muito mais onerosos que os indivíduos encarcerados, o que faz com que ocorra uma concorrência desleal destes em relação àqueles – uma vez levadas a cabo as disposições sobre o trabalho constantes na LEP. Em segundo lugar, o trabalhador preso não recebe nenhum dos benefícios trabalhistas que são frutos de conquistas sociais ao longo dos anos, o que torna a sua situação social muito mais frágil que aquela do trabalhador em liberdade. A LEP permite assim, o surgimento do trabalho escravo prisional – assim considerado tendo-se como fundamento as convenções aqui estudadas, seus desdobramentos lógicos e o princípio da dignidade da pessoa humana.
É válido que sejam criados incentivos a fim de se tornar atraente o investimento em mão-de-obra encarcerada. O que é equivocado, entretanto – tendo-se como parâmetro o Estado Democrático de Direito e o princípio da dignidade da pessoa humana -, é afastar qualquer tipo de trabalho da proteção dos direitos sociais do trabalho, constitucionalmente garantidos.
De acordo com Gomes e Santos:
“O trabalho, para ser digno e compatibilizado com a ordem constitucional, precisa contar com todos aqueles mecanismos de proteção ao sujeito hipossuficiente da relação de emprego, garantindo-se a observância de todos os direitos que são dedicados aos trabalhadores urbanos e rurais.” (GOMES; SANTOS, 2011, p. 205).
No mesmo sentido, Boness já afirmava que:
“Eleitos hoje, nos termos da vigente Carta Magna, como fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os dispositivos da lei de Execuções Penais (sic), estabelecendo que o trabalho do preso não se sujeita ao regime celetista, não tem mais guarida em nosso ordenamento jurídico.” (BONESS, 1998).
Portanto, caso o Estado queira conceder incentivos às sociedades empresárias para aceitarem o emprego de mão-de-obra carcerária, a melhor forma de fazê-lo seria por meio de incentivos fiscais.
No regime aberto, é notória a aplicabilidade da CLT. Existe uma relação de emprego clara entre o trabalhador e o empregador. Não há qualquer intermediação do Poder Público para que o indivíduo tenha acesso a um trabalho remunerado. Inclusive, o indivíduo que já trabalhava à época do início de cumprimento de pena, sequer tem qualquer razão para romper o vínculo empregatício, podendo dar continuidade ao seu trabalho.
A posição adotada neste trabalho segue a corrente doutrinária que considera o art. 28, § 2º e art. 29, caput da LEP não recepcionados pela CRFB-88.
Além disso, o STF já determinou que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que não sejam referendados pelo Congresso Nacional na forma prevista no art. 5º, § 3º da CRFB-88, terão status de norma supralegal. Em caso de conflito com normas infraconstitucionais que não gozem de tal status, os tratados devem prevalecer, tornando tal legislação inaplicável. Portanto, ainda que se considere que a LEP tenha sido plenamente recepcionada pela CRFB-88, seus artigos acima mencionados serão inaplicáveis, por conflitarem com o art. 14, 1 da Convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório; com o art. 6º, 2, parte final, do Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969); e do art. 7º, “a” do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, que dispõem o seguinte:
“Artigo 14
1. Com a exceção do trabalho forçado ou obrigatório a que se refere o Artigo 10º desta Convenção, o trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, será remunerado em espécie, em base não-inferior á (sic) que prevalece para espécies similares de trabalho na região onde a mão-de-obra é empregada ou na região onde é recrutada, prevalecendo a que for maior.” (CONVENÇÃO nº 29…, 1930, grifo nosso).
“Artigo 6º – Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.” (CONVENÇÃO…, 1969, grifos nossos).
“Artigo 7.º
Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem em especial:
a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores;
i) Um salário equitativo e uma remuneração igual para um trabalho de valor igual, sem nenhuma distinção, devendo […] (PACTO…, 1966)
ii) Uma existência decente para eles próprios e para as suas famílias, em
conformidade com as disposições do presente Pacto;” (PACTO…, 1966, grifos nossos).
Assim, nos regimes semiaberto e fechado, o correto seria que, sempre que houvesse disponibilidade de trabalho, a intermediação da mão-de-obra devesse ser feita por meio da iniciativa privada, que manteria com o trabalhador preso uma relação de emprego ou análoga, garantindo-lhe os direitos sociais do trabalho. As verbas às quais o empregado tem direito – descontadas as eventuais indenizações impostas pela sentença condenatória -, seriam depositadas na sua conta-poupança, ou destinadas à sua família. Os serviços poderiam ser prestados tanto à iniciativa privada, quanto à Administração Pública.
Após analisar a questão do afastamento da CLT nas relações de trabalho prisional, em um de seus julgados o Tribunal Superior do Trabalho (TST) asseverou:
“O pedido de reconhecimento de relação empregatícia, em que o prestador de serviços é réu-preso, encontra óbice intransponível na normatização legal em vigor. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210 /84), ao cuidar do trabalho do réu-preso e suas consequências jurídicas, deixa explicitado que não se sujeita à CLT e Legislação Complr (sic) (art. 28, § 2º), mas que objetiva, dentre outros, possibilitar sua recuperação, através de processo socioeducativo e produtivo, para que possa ser reintegrado à sociedade. Por isso mesmo, a contraprestação remuneratória pelo trabalho que executa não possui o significado técnico-jurídico de salário, daí a impossibilidade de se reconhecer, em relação ao tomador de seus serviços, um contrato de trabalho com suas consequências trabalhistas.” (BRASIL, 2011a).
Segundo Santos (2011, p. 103), os tribunais precisam adotar uma concepção de direitos humanos que seja contrária à posição hegemônica e liberal, praticando a indivisibilidade desses direitos. Devem evitar o direito que se autocontempla em proclamações exaltantes de direitos fundamentais, mas que vazias de conteúdo prático, são de pouco uso àqueles que vivem na margem da sobrevivência em contato permanente com a […] violência. Continuando, o autor decreta: “uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos tem de enfrentar a situação dos desempregados e dos trabalhadores precários”.
Não há trabalhador mais precário, que o indivíduo em cumprimento de pena privativa de liberdade, realizando trabalho escravo.
Apesar de se respeitar a posição do TST em relação ao assunto, esta pode ser considerada bastante retrógrada, comparada à decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no Rio Grande do Sul (TRT-RS), enfrentando o mesmo tema:
“Nessa senda, resta evidenciado que na exclusão do regime celetista encontram-se aqueles que cumprem pena de restrição de liberdade – caso do autor – na hipótese de trabalho interno, tão somente, e os presos em regime fechado que trabalham externamente. O reclamante, cabe destacar, sofre pena restritiva de liberdade em regime semiaberto (nos moldes do parágrafo único do artigo 8º da referida Lei), ou seja, não é preso em sentido estrito, mas apenas condenado. E o trabalho externo em prol de empreendedor privado tem finalidade lucrativa, ainda que paralelamente tenha a função ressocializadora. E para que tenha o cunho social e garanta a dignidade da pessoa humana, como disposto no artigo 28 supra citado, o trabalhador-condenado deve ter a mesma proteção de qualquer trabalhador, pois são vinculadas aos direitos sociais constitucionalmente protegidos.” (Rio Grande do Sul, 2011, grifos nossos).
Embora louvável, a justificação acima deu a entender que a decisão foi favorável ao trabalhador pelo fato de ele não cumprir pena em regime fechado e não realizar trabalho interno. Ora, ainda que o trabalho fosse realizado em tais circunstâncias, os artigos 28 e 29 da LEP deveriam ser afastados e se reconhecer a relação de emprego. E esta deve prevalecer mesmo que o trabalho seja realizado para entidade que não vise ao lucro.
Assim, uma vez reconhecido que a CLT deve alcançar o trabalho do indivíduo preso, este reconhecimento deve compreender todo tipo de atividade laboral. Não se pode admitir que, em um mesmo local de cumprimento de pena, um indivíduo que realiza trabalho externo tenha reconhecida a relação de emprego, enquanto esse reconhecimento não alcança seu colega que trabalha em prol da unidade prisional.
Além disso, a eventual interpretação de que o trabalho do indivíduo preso deva ser realizado sem remuneração ou sem benefícios trabalhistas porque a entidade tomadora do serviço não visa ao lucro é totalmente insustentável no Direito do Trabalho, pois acaba por promover o trabalho escravo. O art. 2º, § 1º da CLT é claro:
“§ 1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.” (BRASIL, 1943).
E o art. 3º completa:
“Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.” (BRASIL, 1943).
Percebe-se então, que não é a natureza do trabalho realizado – se visa ou não ao lucro – que irá determinar a condição de empregado. Exemplos disso são os trabalhadores não voluntários de instituições beneficentes e recreativas mencionados no dispositivo acima – além de, mais recentemente, os empregados domésticos -, terem garantidos todos os seus direitos sociais.
Registra-se, como curiosidade, que, ao denegar o pedido de um autor que prestou serviços na unidade prisional onde cumpriu pena e requereu o pagamento da remuneração não paga, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) usou a seguinte tese:
“O autor afirmou nos autos que foi condenado ao cumprimento de pena de reclusão de 22 anos e 8 meses, em regime inicial fechado. No período em que esteve preso, foi alocado em várias unidades prisionais nas quais trabalhou por 11 meses e 16 dias, das 8h30 às 17h, não tendo recebido qualquer remuneração. Requereu a condenação do DF ao pagamento de remuneração mensal no valor equivalente a ¾ do salário mínimo por mês trabalhado. Fundamentou o pedido no artigo 41 inc. II da Lei de Execuções Penais (LEP) (sic) e no artigo 39 do Código Penal.
Em contestação, o Distrito Federal alegou absoluta impossibilidade jurídica do pedido. Afirmou que o trabalho realizado pelo autor é voluntário e que o valor a ser recebido pelo Estado como ressarcimento das despesas realizadas com a manutenção do condenado supera em inúmeras vezes aquele que ele diz ter direito.
O Subsecretário do Sistema Penitenciário do DF prestou informações nos autos, esclarecendo que no DF os presos trabalham internamente ou através (sic) de convênios firmados pela Fundação de Amparo ao Preso Trabalhador – Funap (sic). No primeiro caso, a Administração do presídio classifica os internos que voluntariamente se predispõem à trabalhar, com vistas à remição da pena, observando as aptidões e capacidades dos presos, bem como a necessidade de atividades que visem à conservação e manutenção do estabelecimento. Na segunda hipótese, a Funap celebra convênios com entes públicos e com a iniciativa privada, e, por meio desses, os presos que preencherem os requisitos legais passam a exercer atividades externas, conforme as necessidades de mercado, sendo, sempre, remunerados e filiados à Previdência Social. No segundo caso, a remuneração serve para custear as despesas do Estado com o preso, bem como outras despesas, conf. art. 29 da LEP.” (DISTRITO FEDERAL, 2011, grifos nossos).
Ora, tal trabalho não é voluntário. A voluntariedade existe quando há espontaneidade e liberdade de escolha. A maioria dos indivíduos encarcerados trabalha visando à remição da pena, como se percebe na leitura do trecho abaixo, de Shikida e Brogliatto:
“A Tabela 2 mostra a principal idéia (sic) de benefício apontada pelos presos com o trabalho dentro da prisão. Contatou-se que a remissão (sic) da pena foi o destaque ímpar (40,3%), seguido dos itens ocupação de tempo e da mente (34,3%), perspectiva de profissionalização e regeneração (11,9%), e oportunidade de sair da cela (6,0%). Os outros itens obtiveram percentuais poucos expressivos.” (SHIKIDA; BROGLIATTO, 2007).
Trata-se, pois, de ato motivado por um objetivo claro: reduzir o tempo de cumprimento de pena, por meio do trabalho. Não há, portanto, liberdade de escolha, pois a pessoa é motivada por uma circunstância social que não lhe deixa alternativas igualmente razoáveis, já que a única outra decisão possível é não trabalhar e cumprir a pena sem redução; além de que – caso se negue a um trabalho quando convocado -, sofrerá sanções.
Tem-se também, que o trabalho voluntário, tal qual existe no mundo, tem caráter altruísta: a pessoa age em benefício do outro – seja ele outro indivíduo, um grupo de pessoas, uma comunidade ou um povo. O indivíduo preso, por sua vez, atua buscando satisfazer suas próprias necessidades de se ver em liberdade o mais rápido possível.
Além disso, não é a disponibilidade do indivíduo que vai determinar sua investidura em uma vaga de trabalho, mas a determinação da direção do estabelecimento prisional. Na prisão o indivíduo é recrutado mediante avaliação prévia e análise das informações levantadas pela CTC, não dependendo, portanto, da sua livre escolha. Ou seja, o indivíduo é investido naquela vaga de trabalho não por que se oferece, mas porque é considerado habilitado para tal trabalho. A pessoa não escolhe, mas é escolhida para trabalhar – ainda que haja mais indivíduos dispostos a se submeter ao trabalho do que disponibilidade de vagas. Portanto, não há que se falar em trabalho voluntário, pois esse trabalho será nada mais que um trabalho consentido pelo indivíduo, tal qual acontece em relação ao trabalho do indivíduo preso para a iniciativa privada.
E sendo trabalho consentido, deverá haver remuneração justa, pagamento dos direitos sociais e respeito à dignidade do preso, caso contrário será trabalho escravo, conforme já foi anteriormente estudado.
Da mesma forma, o argumento de que o trabalho do indivíduo preso seja uma contribuição à manutenção da unidade prisional e um modo de reduzir as despesas estatais com a sua permanência ali, é um verdadeiro disparate. Caso tal argumento fosse plausível, o indivíduo que recorre ao atendimento médico gratuito deveria posteriormente trabalhar para a unidade hospitalar na qual foi atendido, a fim de reduzir os gastos que o Estado teve com ele. O mesmo aconteceria com o aluno da escola pública, entre outros exemplos possíveis, que demonstram o total descabimento de tal raciocínio que, caso prevalecesse, estaria instaurando a servidão por dívida contraída junto ao Estado.
Surge então o seguinte questionamento: usando-se como exemplo os trabalhos dos mesários e do júri não voluntário, por não serem pagos, pode-se afirmar que são trabalhos escravos? A resposta é simples: não. Conforme já foi tratado na seção 3.2 desta pesquisa, tais exemplos se tratam de trabalhos forçados, uma vez que não há dano à dignidade do indivíduo. O trabalhador continua vinculado ao seu emprego, sem qualquer prejuízo à sua remuneração ou aos seus benefícios trabalhistas, mantendo sua capacidade de aquisição material, como indicam os dispositivos abaixo:
“Art. 98. Os eleitores nomeados para compor as Mesas Receptoras ou Juntas Eleitorais e os requisitados para auxiliar seus trabalhos serão dispensados do serviço, mediante declaração expedida pela Justiça Eleitoral, sem prejuízo do salário, vencimento ou qualquer outra vantagem, pelo dobro dos dias de convocação.” (BRASIL, 1997).
“Art. 441. Nenhum desconto será feito nos vencimentos ou salário do jurado sorteado que comparecer à sessão do júri.” (BRASIL, 2013a, p. 645).
Acredita-se que a LEP poderá ser revista e levemente modificada no que diz respeito à regulamentação do trabalho do indivíduo preso. Tramita atualmente no Congresso Nacional um substitutivo do projeto de lei nº 3392/2012 que visa à alteração da LEP justamente no que diz respeito à possibilidade de contratação do indivíduo preso na forma da CLT, a critério do empregador, como segue:
“SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 3392 DE 2012
Altera o art. 28 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a Lei (sic) de Execução Penal.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º. Esta Lei altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a Execução Penal, nos termos que especifica.
Art. 2º. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 28. O trabalho do condenado e do preso provisório, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa, produtiva e de inclusão no mercado de trabalho.
§1º ……………………………………………………….
§2º Faculta-se ao empregador a contratação do condenado e do preso provisório na forma da Consolidação das Leis do Trabalho.
(NR)
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” (BRASIL, 2012).
Perceba-se que o mencionado substitutivo não faz qualquer menção ao tipo de regime prisional, se aberto ou semiaberto, portanto, ambos poderão ser contemplados com tais benefícios, a exemplo do que já acontece com o trabalho em regime aberto.
Os primeiros passos estão sendo dados em direção à correção da injustiça social promovida pela LEP. Entretanto, ainda que venham a vigorar, tais mudanças são muito tímidas e ainda não são suficientes para resguardar todas as modalidades de trabalho prisional.
4.7 Outras formas de trabalho escravo impostas ao indivíduo que cumpre pena privativa de liberdade
4.7.1 O castigo físico por meio do trabalho improdutivo
A LEP estabelece em seu art. 28, caput, que “o trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.” (BRASIL, 1984). A importância deste dispositivo legal está primeiramente em lembrar que o preso é ser humano que merece a devida proteção à sua dignidade por meio de um trabalho que o permita perceber-se como tal; e em segundo lugar, em determinar que o trabalho deva ser produtivo e não apenas um esforço físico sem sentido, estabelecido apenas como forma de gerar castigo físico ao indivíduo.
As prisões da Inglaterra – no final do século XVIII e durante o século XIX -usaram bastante o artifício do trabalho improdutivo nas prisões sujeitas ao regime erroneamente chamado de “trabalhos forçados”. Técnicas de submissão do indivíduo a este tipo de punição usavam principalmente a esteira rotativa com degraus (treadmills) e a máquina de manivela (crank machine), entre outros.
Na figura 1 abaixo, pode-se ver o mecanismo de funcionamento de uma esteira rotativa com degraus (LIENHARD, 2013), usada na punição de pessoas presas. Esse mecanismo chegou às prisões inglesas após um ato de reforma de 1779. O indivíduo devia ficar em pé, tronco ereto, enquanto movimentava as pernas e simulava uma escalada de degraus. Nas palavras de Lienhard:
“Um turno típico na esteira durava oito horas. Trabalhadores passavam 40 por cento desse tempo descansando. Isso é muito pior do que parece. Significava elevar a metade inferior do corpo cerca de 3.350 metros por dia. E, no entanto, por mais árduo que fosse o trabalho, 200 homens e mulheres dificilmente poderiam atingir o resultado produzido por um moinho de água.” (LIENHARD, 2003, tradução nossa)[4].
Em 1838 foram introduzidos separadores, para que a punição ficasse ainda mais severa: as pessoas ficavam em cubículos individuais, sem que pudessem ver umas às outras enquanto trabalhavam, vigiados de perto por guardas penitenciários. Era algo semelhante a ficar em uma solitária, com a agravante de ser obrigado a realizar o esforço físico contínuo. A figura 2 abaixo (SOMETHING…, 2010) mostra claramente a situação.
Outro mecanismo usado nesse tipo de punição física era a máquina de manivela. Este aparelho consistia em girar um braço de manivela preso a uma parede, cujas engrenagens se ligavam do outro lado da parede a um mecanismo que continha pás que giravam em movimento cíclico, passando por uma caixa de areia, com o objetivo único de tornar-se um esforço físico para o preso, sem qualquer finalidade produtiva. A pá arrastava um pouco de areia, carregava-a e a soltava quando se virava para retornar e novamente tocar a areia. Se o preso diminuísse o ritmo, ou se o guarda achasse que o ritmo tinha sido diminuído, ele ajustava o aperto da manivela, tornando-a mais resistente ao esforço humano. Uma variante da manivela presa à parede, era um modelo com caixa de areia própria, fixado ao chão da cela. As figuras 3 a 5 dão uma ideia de como era feito o trabalho.
Pelo que já foi visto até aqui, conclui-se que um trabalho improdutivo, com o único propósito de trazer sofrimento ao preso, caracterizar-se-ia como trabalho escravo, sendo tal possibilidade repudiada pela República Federativa do Brasil.
4.7.2 O trabalho exaustivo e as condições degradantes de trabalho
Trabalho escravo é aquele em que uma pessoa é reduzida ao estado de coisa ou de meio pelo domínio de outrem, tendo sua dignidade devastada.
Sob o comando de Stalin, a antiga União Soviética adotou o sistema prisional Gulag de campos de “trabalhos forçados” (na verdade, trabalho escravo), por onde passaram, durante sua existência, cerca de dezoito milhões de pessoas, entre presos comuns, presos políticos e presos de guerra. Milhões de prisioneiros desses campos de trabalho soviéticos trabalharam até a morte, devido às jornadas exaustivas, à brutalidade estatal, à fome, ao frio e por outros fatores (GULAG…, 2013). Essas pessoas eram humilhadas e castigadas constantemente, tratadas como números dentro de um sistema de supressão da individualidade. De acordo com o citado site da Internet, resultante da parceria entre a National Park Service, o Museu Gulag, o Centro de História e Novas Mídias da Universidade George Mason, e o Centro Davis para Estudos da Rússia e Eurásia da Universidade de Harvard:
“O Gulag soviético era um gigantesco sistema de campos de trabalhos forçados. Ao longo de sua história, cerca de 18 milhões passaram pelas prisões e campos do Gulag. Sob o comando de Stalin, prisioneiros de campos de trabalho tornaram-se um importante recurso para a construção de muitas indústrias, incluindo as ferrovias e estradas do país, operações de mineração e a indústria madeireira. Milhões sofreram nos campos, muitos não eram culpados de crime algum. Aos olhos das autoridades, um prisioneiro não tinha quase nenhum valor. Um número desconhecido, algo entre milhões de pessoas morreram nos campos do Gulag. Aqueles que morreram de fome, frio e trabalho forçado foram facilmente substituídos por novos prisioneiros.” [5] (GULAG…, 2013).
O exemplo acima mostra a importância de se proibir sistematicamente qualquer forma de trabalho escravo, não importando a denominação que este receba, nem o disfarce que ele use. Essa forma abominável de trabalho deve ser devidamente banida e não cabe na sociedade contemporânea, sendo totalmente repulsivo em um Estado Democrático de Direito, não importa a quem seja aplicado.
Em relação aos direitos trabalhistas, é condição degradante a negação sistemática ao pagamento correto de todas as verbas salariais. Conclui-se, pelo que foi discutido neste trabalho, que uma pessoa que realiza as mesmas atividades que seu paradigma livre e não tem direito ao salário mínimo; ao descanso semanal remunerado; às férias do trabalho; às horas extras pelo eventual incremento da jornada de trabalho – entre tantos outros benefícios -, é um escravo contemporâneo.
5 CONCLUSÕES
Partindo-se da Convenção sobre a Escravidão, de 1926, da Liga das Nações, na qual foi definida a escravidão (da qual decorre o conceito de trabalho escravo) e da Convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 1930, que elaborou o conceito de trabalho forçado, conclui-se que as duas formas de trabalho são distintas entre si e não se confundem. Apesar disso, o trabalho forçado pode se transformar em trabalho escravo, caso se assevere de tal forma que retire a dignidade do ser humano.
O trabalho forçado dá-se com o cerceamento da liberdade de escolha, que ocorre por meio de imposição de coação lícita.
As denominações “trabalho forçado” e “trabalho obrigatório” são sinônimos usados para designar o mesmo instituto. A diferenciação conceitual que eventualmente venha a ser feita em relação às duas denominações é resultado de falta de técnica.
O trabalho escravo contemporâneo dá-se pela redução de um indivíduo ao estado de coisa, ou pela sua transformação em meio para se atingir um resultado, em vez de esse próprio indivíduo ser um fim em si próprio. O trabalho escravo não exige cerceamento da liberdade do indivíduo em ir e vir. Exige sim, para caracterizar-se, que a dignidade humana seja suprimida, que haja falta de respeito à integridade do indivíduo. Não há que se falar em dignidade parcialmente afetada, pois ela é um todo que não admite fragmentação.
Somente o Estado consegue impor ao indivíduo uma sanção lícita pela não realização do trabalho. Uma pessoa de direito privado não consegue submeter um indivíduo ao trabalho forçado por meio de sanção lícita, já que apenas o Estado pode exercer a tutela dos direitos individuais.
O trabalho prisional, por ser obrigatório e cujo descumprimento gera sanções lícitas por parte do sistema prisional, seria por definição um trabalho forçado, caso fosse respeitada a dignidade humana. Entretanto, uma vez que a LEP afasta tal atividade laboral da proteção da CLT e permite o pagamento de uma remuneração abaixo do salário mínimo, viabiliza-se, portanto, o surgimento do trabalho escravo prisional – assim considerado tendo-se como referência as convenções internacionais aqui estudadas e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Já o trabalho realizado pela pessoa que cumpre pena privativa de liberdade em regime aberto – que pode, portanto, negociar diretamente suas condições de trabalho e à qual não é imposta nenhuma restrição que afete a sua dignidade -, é um trabalho decente.
Também haverá trabalho escravo prisional sempre que o trabalhador for submetido a quaisquer outras condições degradantes de trabalho, ou ao trabalho exaustivo, como aconteceu no Gulag Soviético. Finalmente, será trabalho escravo aquela atividade sem sentido, que não produz resultado, imposta ao preso como pena corporal, a fim de lhe infringir sofrimento físico, como foi o caso da Inglaterra nos séculos XVIII e XIX. Felizmente, todas as formas tratadas neste parágrafo são proibidas no Brasil.
Defende-se aqui, a ideia de que não se pode negar ao trabalhador preso os direitos assegurados ao trabalhador livre.
Afinal, a CLT regula os direitos sociais do trabalho, garantidos pela CRFB-88. Como norma infraconstitucional, a LEP não tem força para afastar tais direitos. Portanto, estes continuam existindo para todos os trabalhadores. Ao criar o óbice que impede a CLT de regulá-los, negando aos trabalhadores o seu acesso, a LEP incorre em evidente inconstitucionalidade. Mesmo porque, os direitos sociais do trabalho são, além de constitucionais, fundamentais. Conclui-se, portanto, que o art. 28, § 2º e o art. 29, caput da LEP – ao afastarem o trabalhador preso dos direitos sociais do trabalho -, não foram recepcionados pela CRFB-88.
Além disso, o STF já reconheceu a hierarquia supralegal de tratados e convenções internacionais que tratem de direitos humanos, ainda que não sejam submetidos ao processo legislativo previsto no art. 5º, § 3º da CRFB-88. Isso torna inaplicável a legislação infraconstitucional que seja conflitante com as convenções internacionais. Portanto, ainda que se considere que a LEP foi plenamente recepcionada pela CRFB-88, tal lei é, pois, inaplicável naquilo que conflita com dispositivos da Convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório; do Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969); e do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.
Se o Estado quiser incentivar a participação da iniciativa privada na contratação de mão-de-obra carcerária, deverá lançar mão de outros recursos que não prejudiquem o trabalhador preso, como por exemplo, os incentivos fiscais.
Não é o fato de o indivíduo ter cometido um ou mais crimes e estar impedido de sua liberdade –, mediante uma sentença decorrente de um devido processo legal que transitou em julgado –, que constitui razão para que se lhe ampute a dignidade.
As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados, já existentes em alguns estados da federação, trazem soluções interessantes e uma filosofia de trabalho bem intencionada em relação à questão do universo do indivíduo privado de liberdade. Uma vez que suas administrações sejam bem fiscalizadas, de modo a se evitar a corrupção e o desvirtuamento de seus ideais com o passar do tempo; e que mostrem resultados efetivamente satisfatórios, podem deixar de ser apenas modelos de referência e se tornarem um padrão obrigatório a ser adotado pelo Estado, permitindo que – entre outras coisas -, o indivíduo preso reconquiste a sua dignidade por meio do trabalho.
A sociedade ainda comporta-se como se as consequências da degradação do ambiente prisional ficassem restritas intramuros e como se os problemas dela advindos fossem responsabilidade unicamente de um sistema prisional mal estruturado, indevidamente equipado, despreparado e por consequência, incompetente para lidar com o quadro da realidade prisional que hoje se apresenta no país.
O fato é que, enquanto o Estado trava uma difícil batalha contra o trabalho escravo do lado de fora das unidades prisionais, pouco é feito em relação ao trabalho do indivíduo que cumpre pena privativa de liberdade. Não importa à sociedade, se o indivíduo encarcerado é tratado como lixo, se sua vida é miserável, ou se ele sofre, desde que seja contido do lado de dentro dos muros das prisões e não volte a causar turbulência na paz social.
Entretanto, não é isso que acontece. Haverá um dia no qual a pessoa presa será liberada para retornar ao convívio social. O período prisional deveria ser um tempo de aprendizagem, ressocialização, arrependimento e reflexões. Mas na prática, é o momento de viver de acordo com regras escusas e cruéis; de afiliar-se a facções criminosas como meio de se proteger; de desenvolver projetos criminais; de encrudescer a natureza humana, tornando-se uma pessoa mais dura, fria e perversa.
Contra esse determinismo, o trabalho apresenta-se como uma alternativa que não seja o caminho óbvio da reincidência criminal. Mas para ser uma opção efetiva, tal trabalho dever promover a dignidade da pessoa, deve ser reeducador e não exploratório; deve fortalecer a mente e não enfraquecer o corpo; deve trazer orgulho ao trabalhador e não humilhação. A promoção da dignidade humana não pode mais constar apenas na agenda de entidades de defesa dos direitos humanos. Deve ser uma prática patrocinada principalmente pelo Estado, que carrega a designação de
Informações Sobre o Autor
Cesar Luis Guedes
Engenheiro Eletrônico; MBA em Administração e Comércio na Indústria Automobilística; Especialização em Desenvolvimento Gerencial; Especialização em Marketing; Bacharel em Direito com Honra ao Mérito ganhador da Medalha no grau ouro Mello Cançado; Advogado