Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o número de pessoas traficadas no planeta atinge a casa dos quatro milhões anuais. Em meio a essas denúncias, veio à tona uma realidade escandalosa: o Brasil é um dos países campeões no mundo em relação ao fornecimento de seres humanos para o tráfico internacional.
Pesquisando o assunto ainda que de forma perfunctória, pude constatar uma estatística pública e notória: o tráfico de seres humanos movimenta bilhões de reais por ano e que, hoje, representa o terceiro negócio ilegal mais rentável, que só perde para o tráfico de drogas e o contrabando de armas.
Esta exploração se converteu numa indústria que vai desde a produção de documentos falsos ao envolvimento de autoridades, além da lavagem de dinheiro dos lucros obtidos nos negócios ilícitos.
Muitos acreditam que a impunidade em relação aos traficantes e aos países de destino acaba cultivando e perpetuando este tipo de negócio.
Porém, este assunto não pode ser tratado de forma simplista, acreditando-se que, apenas com a criação de leis penais o problema será resolvido, pois seria apenas a certeza da utilização do direito penal de forma simbólica.
Para uma melhor compreensão do que acontece no Brasil, em relação ao tráfico de seres humanos, cujas principais vítimas são as mulheres, que acabam abastecendo a rede internacional de prostituição, mas também os homens, adolescentes e crianças são afetados por esta prática, é necessário contextualizar nosso país no cenário mundial.
Esta atividade ilícita tem, além de suas causas econômicas, embasamento nas questões histórico-culturais da nação brasileira, sendo uma das mais importantes a questão da escravidão negra ocorrida durante 4 séculos no país.
Somente em 1888 (século 19), é que aconteceu a libertação dos escravos no Brasil, com o que, somente 4 gerações de brasileiros não conviveram diretamente com a escravidão legal e o tráfico de escravos.
Um fator cultural de enorme influência na formação da sociedade brasileira é a religião. O Cristianismo – devido a uma interpretação do Livro de Gênesis – afirma que “o pecado entrou no mundo pela mulher”, daí a insensibilidade de grandes setores da sociedade, com o que acontece com a mulher e seus filhos, principalmente se for negra, pobre e prostituta.
Talvez estas duas causas possam ilustrar a triste realidade de serem as mulheres as principais vítimas do tráfico de seres humanos no Brasil, vez que, em face da discriminação que sofrem, muitas delas são atraídas por promessas de trabalho como bailarinas ou atrizes. Porém, constata-se que estas pessoas passam de exploradas a infratoras, já que são deportadas sem nem mesmo poder denunciar os traficantes.
Não poderia eu deixar de afirmar que a exclusão social é um dos fatores determinantes para o crescimento do tráfico de seres humanos.
Assim, se por um lado o direito penal é um meio para coibir a prática ilícita de tráfico de seres humanos é certo que, este deve ser utilizado como “última ratio”, vale dizer, apenas quando meios políticos, segmentos sociais e outros ramos administrativos e do direito não tiverem condições de evitar ou minimizar esta atividade, é que o direito penal terá legitimidade para intervir.
A título de contribuição, penso que a conscientização da população acerca desta atividade é a maior arma a ser usada contra esse tipo de crime; É imprescindível um movimento político intenso, até que a população se una em torno do tema, sendo certo que o poder público deve usar de todos os recursos não penais disponíveis para combater o tráfico de mulheres.
Analisando-se os tipos penais hoje existentes, principalmente o artigo 231 do Código Penal brasileiro, temos a certeza de que ele precisa ser revisto sim, não só em razão da realidade que nos assola cotidianamente, mas principalmente pelo fato de ter sido ele escrito numa época marcada pelo preconceito contra as mulheres.
Em agosto de 2003, a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime iniciaram uma parceria para desenvolver um projeto piloto de combate ao tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual.
Para alcançarem o objetivo do projeto, quatro ações específicas foram previstas:
1. Diagnóstico da situação do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual nos estados participantes ;
2. Capacitação de operadores de direito e funcionários públicos que lidam com o tema;
3. Formação de um banco de dados sobre o tema, a ser gerenciado pela Polícia Federal;
4. Campanha publicitária de conscientização da população e esclarecimento sobre o problema do tráfico de mulheres no Brasil.
Infelizmente ainda não tive a oportunidade de acesso aos resultados obtidos, mas, estes tópicos destacados demonstram a certeza de que o direito penal será um dos últimos recursos a serem utilizados para coibir a prática do tráfico de seres humanos.
Num claro reconhecimento da importância dada ao tema, e certamente um primeiro passo para a elaboração de um diagnóstico sobre o assunto e a adoção de ações mais efetivas no combate às redes criminosas na cidade de Sorocaba, que não só criação de Leis casuísticas, por iniciativa da Vereadora Cíntia de Almeida, com apoio do Deputado Federal Antônio Carlos Pannunzio, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Sorocaba e muitas outras instituições comprometidas com este relevante assunto, organizou uma Audiência Pública abordando o tema “Tráfico de Seres Humanos no Brasil e no Planeta”, realizada na sede da Câmara Municipal, no dia 21 de maio de 2004, evento este que tive a honra de participar como palestrante, juntamente com diversos operadores do Direito.
Espero com estas observações sobre o tema, ter contribuído, mesmo que de forma muito modesta, para mudar a situação de exploração na qual vivem milhares de brasileiras e brasileiros.
Informações Sobre o Autor
Maura Roberti
Procuradora do Estado de São Paulo, Doutora em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); Coordenadora do Curso de Direito e Professora de Direito Penal na Universidade Paulista (UNIP), Campus Eden – Sorocaba e Professora da Escola Superior do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP).