Trajetória histórica do constitucionalismo

Resumo: Este estudo tem por escopo a demonstração da ilegitimidade da função investigatória criminal pelo Ministério Público a partir do perfil constitucional que lhe foi delineado pela Constituição Federa de 1988. Questão polêmica decidida pelo Tribunal atual.

Uma definição de Constitucionalismo elaborada pelo italiano Abateudi e muito reproduzida pelos doutrinadores em geral é que seria “a doutrina da limitação do poder”. Assim, o foco do Constitucionalismo moderno é centrado na limitação de poder.

Ocorre que a idéia de Constituição como nós a concebemos hoje em dia é fruto da modernidade, muito embora tenha antecedentes na Idade Média, em Roma, na Grécia, etc. 

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Aristóteles, inclusive, escreveu um livro sobre Constituição, onde a expressão utilizada era “Politéia”. Mas o sentido de Politéia (Constituição) utilizado naquela época era similar ao da constituição de uma pessoa (se gorda, magra, alta, etc.). A Constituição de uma comunidade política era vista como o modo de ser, o reflexo daquela comunidade política. Era essa a idéia daquela época. Embora houvesse alguma idéia de limitação de poder, não era desenvolvida. A Constituição não era vista como norma jurídica.

Na verdade, a grande herança da filosofia grega não foi o Constitucionalismo, mas a Democracia. Em outras palavras, não foi a idéia da imposição de limites ao poder, mas a da sua origem no povo que foi o grande avanço da época. Na Grécia Antiga, o importante era a liberdade pública do cidadão participar do processo político e isso era feito de modo direto. Os cidadãos gregos iam nas praças públicas (hastas) e lá decidiam diretamente. É a chamada Democracia Direta.

Em Roma um fenômeno parecido ocorreu. Entretanto, houve uma preocupação maior de definir-se o Estado como Instituição, definir institucionalmente o Estado Romano. Mas em Roma também não havia a idéia de Constituição como norma geral e abstrata, que impunha uma limitação de poder.

É comum se dizer que a Carta Magna da Inglaterra de 1215 teria sido a primeira Constituição moderna. Esta não é uma informação correta. Na verdade, a Carta Magna de 1215 era apenas um dos vários documentos elaborados na época que definiram um tipo de “Pacto Estamental”. O que ocorreu foi que a monarquia inglesa, que não contava com muito apoio, se viu envolvida numa guerra com a França e, para manter-se no poder, fez um pacto com a nobreza. A monarquia abriu mão de certas prerrogativas (ex: declarar guerra sem antes consultar a nobreza; criar tributo sem consentimento; não julgar os nobres, que passariam a ser julgados por eles próprios; etc.) e, em contrapartida, a nobreza reconheceu o monarca como seu soberano. Note-se, pois, que não pode a Carta Magna de 1215 ser tida como primeira Constituição moderna porque não tinha pretensão de generalidade, nem era concebida como uma fonte de direitos, sendo mais parecida com um contrato do que com uma lei. A idéia da Carta Magna de 1215 era mais de reconhecimento de valor das instituições passadas e de dar à elas uma certa garantia do futuro. Daí que, até hoje, o Constitucionalismo inglês não possui a idéia de ruptura com o passado, comum no conceito de Poder Constituinte, de concepção francesa.

Enfim, na Idade Média não foi desenvolvida a concepção de Constituição moderna. Isso se vislumbra também pelo fato de que o conceito de Constituição moderno é ligado à idéia de Estado, que propriamente não existia à época. O que havia era um pluralismo político de diversos centros de poder que prestavam jurisdição e elaboravam normas, tais como o Papa, os feudos, os burgos, as corporações, etc.. Contudo, nenhum deles estava subordinado ao outro. O mecanismo de contenção de poder, bastante amador, era justamente o pluralismo que existia. Não havia o ideal de unidade de poder, essência do Constitucionalismo moderno.

Na verdade, o Constitucionalismo moderno, idéia que hoje nós temos de Constituição, deve muito ao Iluminismo. Foi no Iluminismo que se criaram os pressupostos sem os quais não poderia desenvolver o ideal constitucionalista moderno. Nessa época é que foram idealizados, por exemplo, os Direitos Subjetivos no sentido de que seriam direitos de um indivíduo, invocáveis inclusive contra o Estado.

Ou sejam, o modelo pré-moderno era de Status, e não de Direito. A situação de cada indivíduo dependia de sua localização social. A metáfora mais empregada para explicar isso é a do corpo humano. Cada parte tinha um estatuto diferente. Assim, se uma pessoa pertencia à classe do pé, seu regimento era totalmente diferente daquele que pertencia à classe do coração. Não havia a compreensão de uma unidade entre as pessoas, pois o ideal de “Pessoa” como titular de Personalidade é intrinsecamente moderno.

Como visto, esses diversos centros de poder e de status sociais eram regulados por suas leis próprias. Mas a filosofia que realmente sustentava esse quadro plúrimo era a concepção religiosa, mesmo porque era comum que as leis se justificassem pelas suas supostas origens divinas.

A época da Reforma e Contra-Reforma foi essencial ao Constitucionalismo moderno. Com o final da unidade religiosa na Europa nos Séculos XVI e XVII, não foi mais possível sustentar o quadro “jurídico” em argumentos de origem religiosa. Outra mudança vital foi que os conflitos constantes acabaram por criar um saldo cultural favorável à tolerância, já que as pessoas já não agüentavam mais aquele ambiente de perseguições religiosas.

Daí ser possível se falar que o Constitucionalismo, e também os próprios Direitos Humanos, são frutos da tolerância que se instaurou após a Reforma religiosa. Isso se verifica mesmo em locais onde não houve perseguição religiosa como nos EUA, onde a idéia cultural de tolerância foi trazida pelos colonizadores.

Essa nova constitucionalização política era muito bem justificada por uma teoria jurídica que já era hegemônica na época: a Teoria Contratualista. 

Episodio clássico onde se vislumbra a Teoria Contratualista foi a colonização do norte dos EUA, mais precisamente na região de Massachusetts, onde a população estabeleceu, já nos barcos de imigração, os “contratos” que disciplinariam aquele local, inclusive no comércio de seus portos.

A Teoria Contratualista, mesmo nas suas versões mais autoritárias e absolutistas invertia a lógica pela qual eram concebidas as relações políticas. Até então a comunidade política justifica-se pela limitação dos indivíduos em nome do todo, do coletivo. Com a Teoria Contratualista passa-se à idéia de que se justifica o Estado porque ele defende os interesses dos indivíduos, Os indivíduos que, ao contratarem, é quem formaram o Estado, que passa a ser visto como fruto dos indivíduos, mais do que um mero órgão.

Veja-se que, na verdade, Constitucionalismo e Individualismo nasceram juntos. A concepção Individualista de que o Estado se justifica para lhe servir leva à premissa básica do Constitucionalismo como limitação de poder.

Contudo, dos modelos da Teoria Contratualista, aquele que veio a se tornar mais influente para o advento do Constitucionalismo foi o Contratualismo Liberal, melhor caracterizado na obra de J. Locke.

O Contratualismo Liberal premiava o Jusnaturalismo nacionalista, no sentido de que as pessoas celebrariam um contrato social, criariam um Estado, mas não abririam mão de todos os seus direitos. Assim, algumas liberdades poderiam ser limitadas em prol do Estado, mas outras são compreendidas como anteriores à sua criação e não passíveis de regulação ou intervenção estatal. São os Direitos Naturais, que seriam concebidos como originários de uma fase pré-política e que, a inobservância ensejaria controle inclusive contra o Estado. Esse passou o modelo hegemônico do Contratualismo, que se diferenciava do Naturalismo antigo, pois não se fundamentava na origem divina ou na necessidade de proteção, que não eram passíveis de controle contra o Estado.

Nesse sentido, desenvolveram-se diversas técnicas de Constitucionalismo, sendo que algumas delas se propagaram. Dois pilares fundamentais foram criados.

O primeiro era a arquitetura estatal. Foi necessário reajustar a estrutura estatal para favorecer as liberdades, ou seja, impedir abusos. A melhor representação dessa idéia foi o trabalho de Montesquieu, que divulgou a idéia de Separação de Poderes (embora nunca tenha utilizado essa expressão). A Separação de Poderes foi uma técnica criada na época sobretudo para a contensão do poder, para evitar que o detentor do poder se utiliza dele abusivamente, em prejuízo aos Direitos Naturais dos cidadãos.

Note-se que o pilar da reestruturação estatal tinha como objetivo estabelecer limites aos governantes para proteger os Direitos Naturais. Era uma forma de se estabelecer direitos negativos à atuação estatal, ou seja, só invocáveis contra o Estado. Como dito, essa técnica é fruto do Jusnaturalismo Natural criado por autores como Hugo Grócio, Kant, Locke, etc.

O segundo pilar foi a convergência de interesses da classe então ascendente, que era a burguesia, com o Constitucionalismo. À burguesia interessava a limitação do poder, o respeito aos Direitos Naturais, etc. A proclamação da Igualdade Formal permitiu que a burguesia se instalasse como classe hegemônica, pois nos séculos XV e XVI ela tinha o poder econômico, mas não o poder político. Com a superação da idéia de que os Direitos Políticos seriam adquiridos com o nascimento, criando-se a idéia de que todos são formalmente iguais, a burguesia finalmente se ascendeu como classe hegemônica. E o Constitucionalismo se encaixou perfeitamente com esse movimento burguês.

Esse período foi caracterizado pelos Codex`s, que representavam as mesmas normas valendo para todos, a tutela da Igualdade Formal com a proteção da propriedade privada, possibilidade das pessoas celebrarem contratos regidos pelo Pacta Sunt Servanda, etc. Veja-se que talvez o maior documento do Constitucionalismo à época não foi propriamente uma Constituição, mas o Código Civil Napoleônico de 1804.

O terceiro pilar, como já foi dito, surgiu ideologicamente também nesse período, mas demorou a ser implantado porque não convergia com os interesses da burguesia: a visão de que o próprio Governo deriva dos seus governados. Recuperou-se a idéia grega antiga de Democracia, adaptando-a. Não mais se buscava justificar o Governo nas concepções de vontade divina ou de hereditariedade, mas sim no consentimento dos demais.

Ocorre que já não era possível nos séculos XVIII e XIX se adotar a idéia de Democracia Grega, que era Direta. As dimensões territoriais, o tamanho das populações e as complexidades das questões envolvidas eram incompatíveis com o modelo da Democracia Direta Grega. 

Formula-se então, a partir de uma inspiração do Direito Privado, a idéia de Mandato Político. O mandato é um instituto típico do Direito Privado, mas que era visto naquela época como imperativo, e não representativo. Com a formulação da idéia de Mandato Político, a noção passou a ser representativa. O Mandato Político foi formulado como representativo. Surgia a noção de Democracia Representativa.

Entretanto, para que esse fortalecimento do governante pela Democracia Representativa se conjugasse com o controle do abuso do poder em prejuízo aos direitos naturais, formulou-se a concepção de Voto Censitário. Por não interessar à burguesia o Voto Universal, o voto permaneceu Censitário durante os séculos XVIII, XIX e meados do século XX. A universalidade do voto foi uma conquista somente da segunda metade do século XX (v. movimentos dos negros, feministas, etc.). 

Importante ressaltar que havia argumentos que eram utilizados para se justificar essa exclusão política. Um deles era a concepção de Soberania Nacional, que remete à um conceito antigo de que a Soberania não era do Povo, mas da Nação, assim entendida como um conjunto de pessoas que possuíam uma determinada origem, cultura, etc. comum. Daí que para votar teria o eleitor que ter uma determinada quantia em dinheiro, por exemplo, pois se o objetivo do Estado era proteger a propriedade, só poderia participar do sistema político quem tivesse propriedade.

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Ou seja, a terceira premissa do Constitucionalismo, que é a Democracia Universal, foi a que mais demorou a ser implementada.

Já o Constitucionalismo Liberal Moderno, contudo, possui três bases filosóficas distintas: a inglesa, a francesa e a norte-americana.

A matriz inglesa busca na Constituição as tradições do direito comum, a common law. Há a valorização da liberdade, mas essa liberdade é buscada nas instituições presentes na história da própria Inglaterra. Para esse modelo não há ruptura, sendo totalmente refratária a concepção de Poder Constituinte. Mas note-se que esse sistema não é totalmente incompatível com a concepção de Constituição Escrita, mas esse texto não é concebido como fonte das normas. Há o reconhecimento de normas que pré-existem ao texto constitucional. Deve ser lembrado que a Inglaterra foi o primeiro país a entrar no Constitucionalismo, o que representou uma rapidez maior nas revoluções inglesas. Mas essas revoluções de maneira alguma representaram uma concepção de ruptura, mas apenas resultaram numa hegemonia do Parlamento Inglês em detrimento da Monarquia. 

O que é hoje tido como modelo constitucional inglês tem como característica básica a valorização das tradições e a inexistência de uma Constituição Escrita que condense todas elas, não sendo vista como fonte de direitos.

Contudo, o modelo inglês, apesar de quase ultrapassado historicamente, deixa como influência a valorização das liberdades e a contenção dos poderes na engenharia institucional.

Já a matriz constitucionalista francesa se estrutura na idéia básica de ruptura, no racionalismo “pretensioso” de romper completamente com o passado e construir uma nova realidade político-institucional. Assim sendo, é na França que nasce a idéia hoje completamente disseminada de Poder Constituinte. 

Na França também surge o componente do Constitucionalismo de valorização da igualdade, liberdade, etc. O intuito democrático-universal, inclusive, estava presente nos ideais dos Jacobinos, mas veio a ser abafado na Revolução Francesa de 1789/1799, só vindo a ser acolhido posteriormente.

O modelo francês nos mostra a proclamação política tendo como principal destinatário o Poder Legislativo. Isso porque na França, a novidade era o Legislativo, sendo o Judiciário visto como uma herança ruim do modelo anterior, os juízes eram menos confiáveis para a proteção dos direitos do que o Legislativo. A visão do Judiciário à época era a pior possível, de um Poder refratário às novas idéias de igualdade, liberdade e fraternidade. Daí o surgimento de escolas francesas que buscavam diminuir a influência do Poder Judiciário, no sentido de que seu papel era meramente de declarar a vontade da lei.

Ou seja, no sistema francês há uma enorme preocupação em se legitimar o Poder mediante o voto. O Judiciário, como não possui membros eleitos, era visto com desconfiança. Logicamente, o Controle de Constitucionalidade não se desenvolveu com plenitude, só vindo a aparecer embrionariamente na atual Constituição Francesa de 1948, posto que sempre foi rejeitado historicamente na França. Inclusive, até meados do século XIX existia na França o chamado “Referendo Legislativo”, no qual, havendo uma dúvida sobre a constitucionalidade de uma norma que estivesse em vigor à algum tempo, o juiz deveria consultar o Legislativo, tamanha a desconfiança do Judiciário e a valorização do voto como encarnação da vontade do povo.

Daí que desde o começo as Constituições Francesas são enormes. Assim, não é correto se falar, por exemplo, que as Constituições grandes vieram com o Estado do Bem Estar Social.

Note-se que o modelo francês é desenvolvido em termos teóricos. Contudo, em termos práticos, acaba por gerar instabilidade institucional, posto que a idéia central é a de ruptura. Assim, a cada reforma estatal que se busque implementar, necessária se torna uma nova Constituição. Não por outro motivo foi uma constante na França a alternância de Constituições, sobretudo no final do século XVIII e início do século XIX, quando praticamente a cada 2 anos a França passava a ter uma Carta nova. A França teve, até hoje, nada mais nada menos que 14 Constituições. Assim, o que acabou empenhando o “papel” de Constituição como norma estável foi o Código Civil Francês.

O modelo francês também teve muita influência no mundo todo, mas com o final da 2ª Guerra Mundial também se tornou recessivo.

Por fim, o terceiro modelo idealizado de Constitucionalismo, o norte-americano. Nos EUA adota-se a idéia de ruptura francesa, mas com uma enorme contribuição: a noção da Constituição como uma norma jurídica. Daí que a concepção do poder de se utilizar a Constituição com a função de invalidação de leis, ou seja, o Controle de Constitucionalidade, é basicamente uma idéia norte-americana.

Isso se deve pelo fato de que na sociedade norte-americana se temia o arbítrio pela maioria. Os proprietários temiam os não-proprietários. Assim, o Constitucionalismo norte-americano foi formatado de tal forma que protegesse a propriedade do processo político democrático. Tinha-se medo de que o processo político democrático se tornasse incontrolável.

Daí que o sistema jurídico norte-americano valoriza o momento da sua criação sob o aspecto da Constituição como norma jurídica. Não por outro motivo, nos EUA se argumenta até hoje a concepção dos Originalistas e dos Father`s Funds, a qual defende a prevalência do momento originário (ruptura) da Constituição sobre todos os posteriores. 

Desde o início da história norte-americana estava desenvolvida a idéia da Constituição como fonte de direitos. Tal fato pode ser observado da obra embrionária do Federalista nº 78, que era um periódico que foi utilizado como base filosófica para o Controle de Constitucionalidade surgir alguns anos depois no caso Madison vs. Melory. O Federalista, entretanto, era uma publicação que objetivava convencer a população de Nova Iorque a apoiar a criação dos EUA sob a forma de Confederação. Defendia-se que sob a forma de Constituição fossem aprovados nas conferências apenas os direitos mais básicos (a unanimidade era necessária à criação da Confederação). A forma de convencimento passava pelos argumentos de que caberiam tanto inclusões futuras como o controle pelo Judiciário, já que a Constituição seria encarada como lei.

Ou seja, toda a concepção norte-americana passa pela idéia fundamental da Constituição como norma jurídica. Mas, por outro lado, o modelo adotado acarreta uma “Constituição Mínima”, extremamente sintética. A Constituição Americana é quase impossível de ser emendada, pois se necessita de 2/3 de votos favoráveis do Senado Federal e depois de 3/4 dos Estados, que votam em suas Casas em convenções convocadas especificamente para o tema. Assim, crítica comum a esse modelo norte-americano é que a Constituição raramente muda formalmente. A alteração mais comum é realizada pela jurisprudência da Suprema Corte e por movimentos sociais (normalmente após votação rejeitando a emenda).

Note-se, portanto, que todos os três modelos de Constitucionalismo não estavam centrados na idéia de Direitos Sociais, mas, no máximo, na proteção de certos direitos básicos. O Constitucionalismo na época não se propunha a garantir metas futuras e proteger direitos coletivos, mas sim usar o poder para preservar o status a quo sob a figura de Direitos Individuais.

A engenharia estatal era de dar ao Estado o papel limitado de apenas garantir um pouco mais que a segurança pública.

Ocorre que esse perfil de Estado entrou em crise no final do século XVIII, início do século XIX. A intervenção estatal passou a ser fundamental para resolver as crises econômicas (ex: Crise de 1929), diminuir as desigualdades sociais que não eram eliminadas pelo capitalismo liberal (ex: diminuição da brutal carga de horário dos trabalhadores, criação dos sistemas previdenciários, etc.).

Assim, por várias razões o Constitucionalismo Liberal teve que mudar. Isso é visível, por exemplo, na Alemanha do final do século XIX com o desenvolvimento do Estado Social. A Alemanha de Bismark era opositora dos ideais socialistas, mas, para assegurar o poder foram necessárias mudanças menos radicais. Já na Inglaterra, a importante mudança adveio da pressão dos trabalhadores que conseguiu o direito de voto. Com isso, o Poder Legislativo deixou periodicamente de ser representante apenas das camadas mais favorecidas, o que favoreceu as mudanças posteriores. Ou seja, na Inglaterra os Direitos Sociais foram conseqüências dos Direitos Políticos.

Importante se lembrar que o Socialismo, o Anarquismo, etc. foram teorias críticas ao Estado Liberal que acabaram, de um meio ou de outro e em momentos distintos, a influenciá-lo pró-abertura aos Direitos Sociais. Uma das marcantes críticas foi feita, inclusive, pela própria Igreja Católica através da Encíclica Rerum Novarum de 1891. As soluções eram diversas, mas todas tinham como denominador comum a crítica ao Estado Liberal e a maneira como ele se relacionava ao Constitucionalismo.

Dessa forma, o Estado Liberal passou a caminhar em direção ao Estado Social. O Estado passou a proteger o mais fraco do mais forte, surgiram novos ramos do Direito. Ou seja, o Constitucionalismo Liberal escondia sob a fachada de certas da Isonomia Formal a brutal discrepância que é não se reconhecer a Isonomia Material, de se preocupar em se promover a igualdade sob a visão de um mínimo de proteção social.

Outra questão importante é que não parece correto se afirmar que os Direitos Sociais e Políticos seriam originários de uma mesma 1ª Geração. Não foi bem isso o que ocorreu. Na verdade, no mundo como um todo os Direitos Sociais foram conquistas anteriores aos Direitos Políticos, salvo no caso inglês, como já dito anteriormente.

O que se percebe, portanto, é que o Constitucionalismo possui uma relação complexa com o movimento das idéias e da filosofia social.

Assim, nos anos 30 e 40 havia uma forte corrente que defendia o abandono do próprio Constitucionalismo, posto que seria incompatível com o Estado Social (isso foi defendido inclusive no Brasil na Era Vargas). Outra corrente da época era de se buscar compatibilizar o Constitucionalismo com o Estado Social, que passaria a ser visto não mais como um entrave.

Nesse contexto surge a 2ª Guerra Mundial e, após o conflito, prevaleceu a proposta de conciliação do Constitucionalismo com o Estado Liberal. Surgiram as Constituições Sociais, que passaram a garantir Direitos Sociais e Econômicos, a prever a intervenção do Estado na economia, a abraçar uma série de assuntos que não eram objeto de Direito Constitucional (ex: Família, Cultura, etc.). Esse modelo foi adotado na maior parte da Europa Ocidental, América Latina, Sudeste Asiático, etc.

Pós 2ª Guerra, o que se verificou foram dois modelos distintos: um norte-americano, no qual a Jurisdição Constitucional é interpretada de forma a abraçar o Estado Social; outro sob a inspiração do modelo francês, que buscava positivar o Estado Social no texto da Constituição, de forma que as suas menções fossem preceitos paradigmáticos.

Um movimento veio até mesmo como conseqüência natural à esse quadro: a crise do modelo francês de Constitucionalismo, passando o modelo norte-americano a se tornar dominante. Isso porque no sistema francês a Constituição não era vista como norma jurídica. Fazer uma Constituição Social na França significava apenas um norte, elaborar preceitos meramente paradigmáticos para a atuação do Executivo e do Legislativo. Isso fez com que o modelo francês fosse visto como retrógrado, pois nos países onde ele não era adotado os Direitos Sociais eram mais facilmente postos em prática, inclusive mediante a atuação do Poder Judiciário.

Daí que o modelo francês de Constitucionalismo sofreu a influência de outro sistema que estava surgindo, o modelo alemão Pós 2ª Guerra Mundial, que o “compatibilizou”.

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A Constituição Alemã Pós 2ª Guerra Mundial não tem Direitos Sociais previstos. Mas ela é sim uma Constituição Social porque prevê uma “Cláusula de Estado Social”. Isso porque a Constituição Alemã é vista pelo Tribunal Alemão como uma ordem de Valores que se impõem à sociedade, não necessitando de norma expressa. A Constituição é uma fonte de reconhecimento de direitos, e não de irradiação deles. E esses direitos impõem ao Estado Alemão o dever de agir para protegê-los e efetivá-los.

Ou seja, no modelo alemão não é uma norma ideologicamente distante, mas uma norma que vai se incorporando no dia-a-dia, gradativamente. Mas veja que a Constituição continua sendo norma jurídica.

Costuma-se apontar como marco da formulação desse sistema a decisão da Suprema Corte Alemã no o famoso Caso Lüth. Curiosamente, os fatos que deram origem à discussão jurídica foram aparentemente banais. Era uma briga de direito privado envolvendo um judeu e um alemão, já depois da desnazificação.

O alemão Veit Harlan era um produtor de cinema que ganhava a vida fazendo filmes e dirigiu, nos anos 50, um romântico filme chamado “Amada Imortal”.

O problema todo era o histórico do cineasta. No auge do nazismo, Veit Harlan havia sido nada menos do que o principal responsável pelos filmes de divulgação das idéias nazistas, considerado como responsável por uma das mais odiosas e negativas representações dos judeus no cinema. Ou seja, ainda era algo muito vivo na memória dos judeus alemães, até porque um filme não se apaga com a história.

Assim, antes do lançamento do filme “Amada Imortal” vários judeus de prestígio e de influência na mídia alemã resolveram boicotá-lo, ainda que o filme não tivesse nada que lembrasse o nazismo ou o anti-semitismo.

À frente do boicote, estava Eric Lüth, um judeu que presidia o Clube de Imprensa. Ele escreveu um pesado manifesto contra o cineasta, conclamando os “alemães decentes” a não assistirem ao filme. 

Em razão disso, Veit Harlan, juntamente com os empresários que estavam investindo no filme, ingressaram com ação judicial alegando que a atividade de Eric Lüth violava o Código Civil alemão. Sustentaram que todo aquele que causa prejuízo deve cessar o ato danoso e reparar os danos causados. A tese prevaleceu em todas as instâncias ordinárias.

Eric Lüth não se conformou. Alegava que se a Lei Fundamental alemã não lhe garante a liberdade de expressão, não estaria praticando ato ilícito, mas meramanifestação de uma opinião. E, com base nesse argumento, recorreu para a Corte Constitucional Alemã.

O tipo de processo não demonstra à primeira vista toda a complexidade que o cerca. Mas a Corte Constitucional Alemã percebeu e, a partir dele, desenvolveu alguns conceitos que atualmente são as vigas-mestras da Teoria dos Direitos Fundamentais, como por exemplo:

(a) a Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais, 

(b) a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais; 

(c) uma ordem de Valores subjacente à esses Diretos Fundamentais com o poder de erradiação ;

d) a Legitimidade do Judiciário como Poder para promover e controlar essa irradiação;

e) a necessidade de Ponderação, em caso de colisão de direitos. 

De acordo com o jurista alemão Robert Alexy, na decisão do caso Lüth há três idéias que serviram para moldar fundamentalmente o Direito Constitucional Alemão:

“A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, ‘ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores’. Mais tarde a Corte fala simplesmente de ‘princípios que são expressos pelos direitos constitucionais’. Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípios dos direitos constitucionais aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à ‘todas as áreas do Direito’. É precisamente graças a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um “efeito irradiante” sobre todo o sistema jurídico. Os direitos constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: “Um ‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário” (extaído do texto Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade).

A importância dessa decisão da Suprema Corte Alemã é que se expandiu o Controle de Constitucionalidade no mundo, que até então era visto apenas como excentricidade norte-americana. 

Acreditava-se até então que a melhor forma de promover os direitos era através dos Poderes Legitimados pelo voto (Legislativo e Executivo). Mas a matriz dessa concepção foi desmentida com o final da 2ª Guerra Mundial, quando se verificou que a necessidade de controlar os abusos das maiorias políticas. Foi daí que o Controle de Constitucionalidade, realizado pelo Judiciário, começou a ser visto com bons olhos e se propagou no cenário mundial após o julgamento do Caso Lüth, que “ajustou” o modelo francês de prever o Estado Liberal no texto constitucional com o modelo norte-americano de ter a Constituição como norma jurídica superior possibilitadora do Controle de Constitucionalidade pelo Poder Judiciário.

Daí que o modelo Norte-Americano passou a ser dominante no mundo. Mas não foi o modelo norte-americano puro que se tornou hegemônico, mas misturado com o modelo Europeu de Controle de Constitucionalidade criado por Hans Kelsen em 1920 e adotado naquela época na Áustria e Iugoslávia. Esse modelo Kelseniano passou a ser sucessivamente seguido na Europa após a 2ª Guerra Mundial, começando por Alemanha, Itália, Polônia, retomada na Áustria, etc.

Mas note-se que esse modelo Constitucionalista norte-americano misturado com o Kelseniano não estava sendo adotado em uma Constituição sintética como a dos EUA, mas sim em Constituições Sociais analíticas que se espalharam pelo mundo, sob a inspiração francesa de prever os direitos no texto.

Ou seja, o modelo tem origens norte-americanas pela forte presença do Controle de Constitucionalidade, mas pelo fato de estar sendo previsto em Constituições Sociais analíticas (sob a inspiração francesa) acaba por gerar uma série de perplexidades. Uma grave questão se formou: a definição de políticas públicas estão sendo levadas com maior freqüência ao Judiciário, quando este Poder é o menos abarcado de Legitimidade Democrática, posto que seus membros não são eleitos. Esse é o questionamento atual no mundo todo, e não apenas no Brasil.

Outro ponto importante que influencia no Estado Social é a influência da Globalização Econômica

A Globalização Econômica fez com que o Estado perdesse muito poder. Vê-se isso claramente com o fenômeno da Desterritorialização. Na Economia, substitui-se o modelo Fordista pela desterritorialização da produção, que passa a ser espalhada no mundo de acordo com a conveniência da mão-de-obra e taxação mais barata.

Isso acarreta no fato de que o Estado Nacional não mais vem controlando todos os fenômenos econômicos que ocorrem em suas fronteiras, e isso vem colocando em reflexão a estrutura do Constitucionalismo.

Daí que se fala hoje, como possíveis saídas à crise, em “Constitucionalismo Global” , “Constitucionalismo Privado” , etc. 

O fundamento dessa crise ideológica, veja-se, está na idéia do Estado como ente Soberano, que já não mais vem se coadjuvando com a realidade. Isso se observa tanto no campo empírico, que se nota quando o Estado não mais tem o controle sobre tudo o que acontece dentro de suas fronteiras, como até mesmo no campo legislativo.

Nesse campo legislativo, é fácil observar a Europa como exemplo clássico desse fenômeno. Na Europa a idéia clássica da Pirâmide de Kelsen não mais reflete o que ocorre na realidade. Há União Européia, Corte Européia de Direitos Humanos, Tribunal de Justiça da União Européia, etc. Há uma espécie de “Constitucionalismo em Rede” no qual há relações horizontais e recíprocas entre esferas nacionais, internacionais públicas e privadas , transnacionais, regionais e a própria Constituição do Estado. Ou seja, a hierarquia constitucional já não dá mais conta desse fenômeno. Essa é outra problemática atual que deve ser enfrentada.

O Constitucionalismo está em franca expansão. Qual será o próximo passo?


Informações Sobre o Autor

Juliana Vieira Bernat de Souza

Advogada Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro


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