Resumo: O presente trabalho discorre sobre a atual situação da defesa judicial de interesses transindividuais, em especial atenção, quanto ás populações indígenas. Com o advento da Constituição Federal de 1988, tais comunidades tiveram assegurados direitos nunca antes reconhecidos, até mesmo a instituição da capacidade processual.[1]
Palavras-chaves: direitos transindividuais – direitos indígenas – tutela jurisdicional.
Abstract: This paper discusses the current state of the legal defense of interests transindividual, in particular attention, as indigenous peoples. With the advent of the Constitution of 1988, these communities had secured rights never before recognized, even the imposition of procedural capacity.
Keywords: transindividual rights – indigenous rights – judicial review
Sumário: 1. Introdução. 2. Teoria dos Grupos. 2.1. A Revolução francesa e a imediatidade entre o indivíduo e o Estado. 2.2. A contraposição da Sociedade Civil ao Estado. 2.3. Os grupos inorganizados e as associações não sindicais. 3. Teoria dos Interesses. 3.1. Conceito de Interesse. 3.2. Representação processual dos interesses. 4. A Constituição Federal de 1988. 5. Análise Normativa e Jurisprudencial. 6. Da Tutela Jurisdicional dos Índios. 7. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A multiplicidade de interesses, que o mundo moderno suscita e cria, tem a distância de dois séculos da rígida e, de certa forma, simplista categorização em públicos e privados.
No Direito Romano, os interesses se qualificavam como públicos, e como privados. Daí a distinção entre Direito Público e Direito Privado.
Mas, entre os interesses públicos e privados, já àquela época, interpunha-se a actio popularis, atribuível a qualquer cidadão (quisque de populo), á disposição de particulares para postulação de interesses genéricos ou públicos.
O Direito Processual, como instrumento para realização dos interesses legítimos, mantinha tradicionalmente a distinção entre o público e o privado, conferindo legitimidade ad causam para as ações privadas aos titulares de interesses privados, por si ou através de mandatários habilitados, e conferindo, também, legitimidade ad causam, para as ações públicas ás entidades estatais de administração direta ou indireta (ou aos corpos administrativos autônomos), por seus representantes estatutários, ou ao Ministério Público como personificação da Justiça Pública para assuntos criminais.
A multiplicação dos interesses, forçando a rígida dicotomia tradicional (público/privado) á margem das concentrações urbanas, da proliferação das pretensões e litígios e da crescente dificuldade de acesso á Justiça por um enorme número de pessoas carentes ou por amplas áreas de idênticos interesses, em coletividades ou grupos, provocaram a transformação do Direito Processual, de maneira a agilizar os pronunciamentos jurisdicionais, através de ações diretas de inconstitucionalidade, de juízos coletivos e grupais, facilitando o acesso de coletividades e grupos, unidos pela uniformidade dos interesses, pela universalidade das pretensões, pela impossibilidade da formulação de reivindicações solitárias e permitindo aos órgãos judiciais, pela reunião de grandes feixes de interesses, reduzir o número dos processos a serem solucionados.
Institutos como os dissídios coletivos de trabalho, as substituições processuais, as ações diretas de inconstitucionalidade, os mandados de segurança coletivos, os mandados de injunção, as ações populares e as ações civis públicas, ao lado da legitimidade processual dos sindicatos em mais amplas esferas da representatividade das associações quando devidamente autorizadas, são instrumentos destinados a permitir á Justiça o desempenho de duas atribuições face á multiplicidade dos litígios nascentes e á proliferação dos interesses ou das pretensões.
A Constituição Federal de 1988 procurou manter-se atualizada em estabelecer os quadros da moderna processualística, cujos contornos, ainda imprecisos, estão a exigir a colaboração de doutrina e diretrizes jurisprudenciais.
2. Teoria dos Grupos
2.1. A Revolução francesa e a imediatidade entre o indivíduo e o Estado
O ideário da Revolução francesa, extinguindo quaisquer resquícios das corporações de ofício (repercutindo em nossa Constituição Imperial de 1824), colocou o individuo diretamente em face do Estado, proibidos os corpos sociais intermediários. A fim de impedir o renascer dos grupos, proibiram-se as coalizões e as greves.
2.2. A contraposição da Sociedade Civil ao Estado
A noção romântica de “sociedade civil”, como um todo, veio a contrapor-se ao Estado.
A teoria da Sociedade de Niklas Luhmann ensina que o sistema jurídico é “autopoiético” no sentido de que produz e reproduz as suas características a partir de um código próprio e específico (Direito/Não – Direito; Legal/Ilegal; Recht/Unrecht). Possuindo, desta forma, uma autonomia em relação ao entorno (ambiente), mas isto não exclui a interdependência deste sistema com outros sistemas, especialmente com o sistema Político, que opera sob um código próprio e específico (Maioria/Minoria; Governo/Oposição).
A autonomia de cada sistema em relação a outro, ao mesmo tempo em que cresce a sua diferenciação, leva a uma maior interdependência entre eles. Exatamente por isso, houve paulatinamente a inclusão dos interesses metaindividuais no direito positivo, á partir das inquietações provenientes do sistema político, as quais ainda permanecem, sem que se rompa a autonomia de ambos os sistemas.
A sociedade civil, como um todo, é semelhante ao romantismo da Escola histórica de Savigny com a invocação de um inapreensível “espírito do povo”. Pura e simplesmente, a sociedade civil como um todo é incompreensível em termos políticos, administrativos ou jurídicos. Existem grupos, organizados ou não, profissionais ou não, mas não se concebe uma sociedade civil diferente do povo, que constitui conceito político-jurídico definido (Constituição Federal de 1988, art. 1º, parágrafo único).
Segundo Jhering[2], o Estado é a própria Sociedade, que usa de seu poder de coação; para exercer tal poder, ela assume a forma do Estado. O Estado é a organização da coação social. As condições físicas e econômicas da sociedade devem ser resguardadas contra os “delitos sociais” e deve assegurar-se o direito de “legítima defesa” da sociedade.
Sendo assim, a noção de certo modo “romântica” de sociedade civil, se desfaz ante a realidade dos grupos organizados ou inorganizados, representando interesses específicos, destacando-se por sua maior significação no contexto social os grupos profissionais organizados sob estrutura sindical.
2.3. Os grupos inorganizados e as associações não sindicais
As associações não sindicais, de caráter profissional ou não, também ganharam tutela constitucional e representatividade processual.
A Constituição de 1988 proclama, no art. 5º, XII, que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”. Se fosse bastante a mera autorização estatutária, se verificaria uma proliferação de representatividades por associações de qualquer natureza, embora limitada aos “filiados”. Não obstante, essa modalidade poderia contribuir para o acesso á Justiça de pessoas carentes, desamparadas ou pertencentes a minorias sociais, é certo, que poderia prestar-se a toda sorte de distorções e exploração dos indivíduos mais necessitados de proteção.
Por outro lado, exigir que a expressa autorização tivesse que decorrer de lei, acarretaria na prática, como sabemos, a inocuidade da determinação constitucional.
O acesso á Justiça dos indivíduos mais carentes, ou de minorias justifica o emprego de meios alternativos, através dos procedimentos grupais ou difusos, como acentua o ilustre Desembargador Caetano Lagrasta Neto, que conclui em sua análise:
“A questão dos interesses grupais ou difusos deve abarcar situações que englobem também minorias, como a das mulheres, dos menores, dos sem-terra, dos índios, dos favelados etc. O interesse coletivo não pode estar restrito á defesa do meio ambiente, do consumidor e dos monumentos e patrimônios artístico-culturais.” [3]
Brilhante a análise do desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde a tutela jurisdicional não deve estar adstrita apenas á proteção dos citados interesses gerais (meio ambiente, criança e adolescente, consumidor etc.), mas sim a todas as outras vertentes da sociedade, mesmo que minorias, que também necessitem de defesa dos seus interesses, por mais particulares que possam transparecer tais interesses perante a sociedade.
3. Teoria dos Interesses
Nos termos do art. 3º do Código de Processo Civil, “para propor ou contestar ação, é necessário ter interesse e legitimidade”. Acrescenta o art. 6º: “Ninguém poderá pleitear em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”.
Assim, a Ordem dos Advogados do Brasil pode representar interesses individuais dos associados, desde que por estes solicitada, as associações dos titulares de direitos autorais são mandatárias dos associados para cobrança de direitos autorais etc.
O direito de ação é vinculado ao interesse e o interesse comporta a seguinte classificação genérica:
– interesses individuais;
– interesses gerais (políticos, sociais, econômicos);
– interesses coletivos (sindicais);
– interesses grupais (associativos, comunitários);
– interesses populares (pertinentes a cidadãos, pessoas físicas);
– interesses difusos protegidos por ações civis públicas.
Não irá se perscrutar cada interesse elencado acima, porque não é o objetivo do presente trabalho. Passa-se á análise da filosofia dos interesses.
Emmanuel Kant criou o “imperativo categórico” no contexto de seu apriorismo, considerando-o como simples forma lógica, consoante o preceito – “age de tal maneira que a máxima de tua conduta possa converter-se em regra geral”. A universalização do princípio seria a condição única da legitimidade da ação. Se, v.g., o furto fosse generalizado e impune, desapareceria o direito de propriedade, também teria de desaparecer o delito de furto. A ação é moralmente má, quando a máxima da conduta não pode generalizar-se sem envolver contradição; reprovável moralmente é a ação cujo conceito é contraditório consigo mesmo.
De forma lógica, ao imperativo categórico é estranha qualquer conotação de interesse. A noção de dever é “desinteressada”. O cumprimento do dever por interesse é destituído de valor moral.
Em pólo oposto situou-se Hegel. Para ele o espírito desenvolve-se de maneira dialética perseguindo suas finalidades. A universalidade abstrata do indivíduo e a insuficiência dos interesses particularistas devem superar-se no âmbito da eticidade, através da família, da sociedade civil e do Estado.
Empiricamente, entretanto, o homem tem sempre um fim e motivos que disciplinam suas ações. Todo ato particular tem um fim, a própria vontade não.
Apenas o fenômeno da vontade está submetido ao princípio da razão; ela mesma não o está e por esse motivo pode-se considerar como sendo “sem razão”. Toda vontade é vontade de alguma coisa: ela tem um objeto, um fim de seu esforço. Um dever incondicional, como o imperativo categórico, seria uma contradictio in adjecto.
Jhering destacou a importância dos interesses para o direito. Não pretendia como o direito natural, quebrar a relação histórica que une o indivíduo e a sociedade. O homem tem fins que envolvem como objeto sua própria pessoa. Os fins sociais são os que têm por objeto a vida em comum – a afirmação moral do indivíduo.
Para ele, em suma, o direito subjetivo é um interesse juridicamente protegido.[4]
Enfim, o desenvolvimento das relações sociais e a complexidade dos problemas humanos, num mundo que se torna cada vez mais coerente e menor, ante as facilidades de comunicação e de informação, revelaram, entretanto, que os interesses se apresentam sob modalidades muito mais complexas e intrincadas do que podiam imaginar os pensadores dos séculos passados, nos seus devaneios no sentido de descobrir “a vontade em si”, o apriorismo da realidade e o empirismo vulgar dos interesses egoísticos ou altruísticos, linearmente considerados como da mesma espécie.
3.1. Conceito de Interesse
Pode-se determinar o interesse, pela ligação entre uma pessoa a um bem da vida, sendo que este (o bem da vida) possui um determinado valor significante para aquela pessoa. Em outras palavras, o interesse é a “relação de reciprocidade entre um indivíduo e um objeto que corresponde a uma determinada necessidade daquele.” [5]
Este conceito se apresenta em sua forma ampla, lato sensu, de forma variável, ou seja, fica adstrito a vontade subjetiva dos sujeitos, expandindo-se livremente pelo campo fático. Quando esse interesse é qualificado por uma pretensão jurídica, que é dado pela interferência do Poder, torna-se limitado, pois o seu conteúdo valorativo já está estabelecido na norma.
3.2. Representação processual dos interesses
Os interesses individuais são representados pelos próprios interessados, pessoas físicas ou jurídicas. Em juízo, salvo explicitação legal em contrário (juizados de pequenas causas, juízos trabalhistas) impõe-se a outorga de instrumento de procuração a profissional legalmente habilitado perante a Ordem dos Advogados.
Os interesses gerais são representados pelo Ministério Público, mas qualquer um do povo (quisque de populo) possui o direito cívico de provocar a representação dos interesses gerais.
Os interesses coletivos são representados pelas entidades sindicais, nos termos do texto constitucional.
A Constituição ensejou a organização de grupos não sindicais, com os mais variados objetivos, inclusive de representação judicial dos interesses dos associados. Assim é que, no art. 5º, XVII, proclamou que é plena a associação para fins lícitos, vedada apenas a de caráter paramilitar.
Essas associações, outrossim, poderão exercer a representatividade de interesses difusos, concernentes á defesa do meio ambiente, á proteção da ecologia, á defesa dos interesses dos consumidores, ou qualquer outro interesse lícito, nos termos especificados nas suas respectivas disposições estatutárias.
Os interesses difusos, inclusive no que concerne ao mercado de valores imobiliários, são defendidos pelo Ministério Público, através de ações civis públicas.
E por fim, os interesses populares são defendidos especificamente através de ações populares, propostas por qualquer cidadão, pessoa física, e não mais por qualquer pessoa do povo ou por associação, seja qual for sua natureza (Constituição Federal, art. 5º, LXXIII).
4. A Constituição Federal de 1988
A Constituição ampliou o rol dos legitimados ativos para a defesa dos interesses transindividuais. As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente[6]; o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político, organização sindical, entidade de classe ou associação[7]; ampliou-se o objeto da ação popular[8]; ampliou-se o rol de legitimados ativos para propor a ação de inconstitucionalidade[9]; conferiu-se ampla legitimação ao Ministério Público para as ações civis públicas para defesa de interesses coletivos e difusos[10]; enfim, detém os índios, suas comunidades e organizações a legitimação ativa para ações em defesa de seus interesses[11].
5. Análise Normativa e Jurisprudencial
Seria interessante, e de certa maneira, cômodo, tomar como ambiente de investigação para a presente proposta de trabalho, os direitos do consumidor, do meio ambiente, do idoso, da criança e do adolescente etc., mas como foi discorrido anteriormente, aderiu-se a corrente do eminente desembargador Caetano Lagrasta, que prega a proteção aos direitos transindividuais, não somente das citadas vertentes do Direito Contemporâneo, mas também, aos direitos das minorias.
Primeiramente, tomar-se-á por base de investigação, a atual situação dos indígenas no Estado brasileiro, e como se dá, a defesa dos interesses de tais indivíduos na via judicial.
6. Da Tutela Jurisdicional dos Índios
Os indígenas têm especial proteção do Estado brasileiro, que na própria Constituição Federal de 1988, estabeleceu diretrizes para a preservação e defesa de tais indivíduos.
Todo o capítulo VIII, inserido no Título VIII (Da Ordem Social) trata da questão indígena. São dois artigos, com uma longa disciplina a respeito da situação indígena no país.
“Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”
No que atina à definição de comunidade indígena, insta, primeiramente, anotar que a Constituição da República de 1988, dirigiu-se aos índios adotando expressões como “grupos indígenas” (art. 231, § 5º, CF), “índios” (art. 231, § 1º e 2º, “populações indígenas” (art. 22, XI e 129, V, CF), “comunidades e organizações indígenas” (art. 232). Poderia, o legislador constituinte ter atribuído explicitamente a menção a povos indígenas, pois no artigo 4º da Carta Magna de 1988, prescreveu sobre a autodeterminação dos povos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Luciano Mariz Maia[12] chega a sugerir que a não utilização da expressão “povos indígenas” não foi sem propósitos, pois a expressão “povos” aparece no direito internacional, sempre vinculado ao direito político que estes têm à autodeterminação, e ao estabelecimento de um governo próprio e soberano. É assim que vem expresso na Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, e no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, com a Convenção 169 relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes. Conclui que as expressões “grupos indígenas” e “populações indígenas” podem ser utilizadas como sinônimas de “comunidades indígenas, para fins de aplicação dos preceitos constitucionais e legais de proteção, mesmo porque, segundo definição dada por Frans Moonem, “comunidade indígena” é um grupo local de um povo indígena.
A Constituição de 1988 reconheceu e introduziu os direitos permanentes dos índios, abandonando a tradição assimilacionista e, toma a idéia (a realidade dos fatos) de que os índios são sujeitos presentes e capazes de permanecer no futuro. Essa ordem constitucional, está fundada na reversão da tendência histórica de extinção de tal população com o passar do tempo, e em novos parâmetros de direitos coletivos.
A promulgação da Constituição trazendo em seu bojo os direitos claros dos índios, foi um golpe frontal á síndrome de extinção. Ela já não se sustentava em perdas demográficas e começava, então, a ser expulsa da ordem legal. O processo constituinte, como processo político, legitimou essa nova visão jurídico/política dos indígenas, no contexto de redemocratização do Brasil.
Os direitos constitucionais dos índios não estão presentes apenas nos citados artigos, mas em uma dezena de outros dispositivos que contém referências específicas a direitos indígenas, constantes de outras partes da Constituição. Falam das organizações sociais, das terras e das culturas indígenas.
Numa clara mudança de paradigmas, a Constituição foi expressa no artigo 232 ao prever o ingresso dos índios, suas comunidades e organizações em juízo, sendo partes legítimas para defenderem seus direitos e interesses. Revogou a necessária assistência do órgão de proteção ao índio e do Ministério Público, que deverá, tão só, intervir em todos os atos do processo como fiscal da lei. Reconheceu a possibilidade de o índio ser parte legítima no processo, concretizando o direito de todos de recorrer ao Poder Judiciário na defesa de seus direitos e interesses, sem qualquer restrição ou interpretação equivocada que poderia ser feita da assistência que lhe é devida pelo Estado.
Ao Ministério Público Federal compete a tutela judicial dos direitos e interesses indígenas, mas o citado artigo 232 estende aos próprios índios, suas comunidades e organizações, legitimidade para ingressar em juízo para a defesa dos seus direitos (mesmo contra a União), sinalizando para a superação da tutela civil da União sobre os índios. Em relação ao Ministério Público, é de se ressaltar que a Constituição de 1988 traz no inciso V do artigo 129 como uma de suas funções institucionais defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas. Grifa-se populações indígenas para destacar que o Ministério Público só está autorizado a agir no interesse da coletividade, não sendo competente para advogar por interesses individuais.
Por outro lado, a atribuição do Ministério Público de defender os interesses indígenas perante o Poder Judiciário não é privativa, como, por exemplo, no inciso I do artigo 129 da Constituição Federal de 1988, podendo ser, como o é, compartilhada com a União, Estados e Municípios.
A Constituição de 1988 discrimina de forma positiva os índios. Não os iguala, simplesmente, aos demais brasileiros, nem omite seus direitos especiais. Discriminar positivamente significa: assegurar direitos especiais ás minorias diferenciadas, como condição para relações efetivas mais igualitárias com os demais brasileiros, e implementar as políticas compensatórias correspondentes. (Santilli apud Pascual, 2003, p. 39)
Como seria uma irracionalidade igualar os indígenas aos demais cidadãos brasileiros, por se tratar de figuras sui generis, o ordenamento jurídico pátrio, prevê uma série de medidas que tutelam interesses dessas populações. Interesses, esses, intrinsecamente ligados á defesa e manutenção das comunidades indígenas.
Por exemplo, os conhecimentos dessas populações tradicionais são reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 como patrimônio cultural brasileiro, bens de natureza imaterial ou material, tomados individualmente ou em conjunto. Integram a categoria de bens de interesse público, porque o artigo 129, V da Constituição Federal atribui ao Ministério Público a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas, e coletivo lato sensu ou difuso, porquanto o elenco do inciso III desse comando do artigo 129 não é exaustivo, é exemplificativo. Por isso, ainda que apenas um indivíduo da comunidade tradicional detenha o conhecimento associado à biodiversidade, este sempre detém natureza coletiva. Isto não ficou tão claro na definição de “acesso ao conhecimento tradicional associado” veiculada no art. 7º, V, da Medida Provisória 2186-16/2001.[13]
Para a defesa das populações indígenas, foi instituída a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Sua legislação instituidora foi a Lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967:
“Art. 1º Fica o Governo Federal autorizado a instituir uma fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos termos da lei civil denominada “Fundação Nacional do Índio”, com as seguintes finalidades:
I – estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir enumerados:
a) respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais;
b) garantia à posse permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as unidades nelas existentes;
c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional;
d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas;
II – gerir o Patrimônio Indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e valorização;
III – promover levantamentos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre o índio e os grupos sociais indígenas;
VI – Revogado pela Lei n. 9.836 de 23/09/1999;
V – promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional;
VI – despertar, pelos instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indigenista;
VII – exercitar o poder de político nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio.
Parágrafo único. A Fundação exercerá os poderes de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio, na forma estabelecida na legislação civil comum ou em lei especiais.”
Legislação posterior, o Estatuto do Índio, Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973, veio a regular a situação jurídica dos índios e das comunidades indígenas, sendo, até hoje, legislação indigenista de referência por muitas de suas normas terem sido recepcionadas pela Constituição de 1988.
“Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:
I – estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação;
II – prestar assistência aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional; (grifo nosso)
III – respeitar, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as peculiaridades inerentes à sua condição;
IV – assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência;
V – garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso;
VI – respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes;
VII – executar, sempre que possível mediante a colaboração dos índios, os programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas;
VIII – utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento;
IX – garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes;
X – garantir aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem.” (grifo nosso)
Note-se que, pelo inciso II do artigo 2º, é dever da União, dos Estados e Municípios a assistência aos índios e suas comunidades, o que, naturalmente, interpreta-se de forma conjunta com as normas previstas na Constituição de 1988.
Nesse sentido, deve-se esquecer a classificação ultrapassada e não recepcionada pela nova ordem constitucional, de índios integrados e em vias de integração, pois a Constituição garante direitos a todos os índios, independentemente de fatores como ser alfabetizado, votar, ter relações com o restante da sociedade etc.
Historicamente, a FUNAI tem em seu corpo funcional uma Procuradoria que, além de assessorar o órgão em questões administrativas (como exemplo o controle dos processos de identificação e demarcação de terras indígenas e a análise dos atos e contratos da administração) e defendê-la judicialmente, possuiu um papel inequívoco na defesa dos direitos indígenas individuais e coletivos, judicial e extrajudicialmente.
7. Conclusão
No tocante á tutela dos interesses transindividuais, não se mostra produtivo á doutrina e também aos juristas, que fiquem presos apenas aos Direitos do Consumidor, do Meio Ambiente, da Criança e do Adolescente e do Idoso. Para esses temas, fartas são a doutrina e a jurisprudência. Porém, existem outros feixes de direitos que também merecem efetiva tutela, pois possuem a mesma natureza de direitos transindividuais, como o Direito Indigenista, direitos da mulher, direitos dos homossexuais, direitos das pessoas portadoras de deficiência, defesa dos investidores no mercado de valores mobiliários, defesa da ordem econômica e da livre concorrência etc.
A promulgação do Código de Defesa do Consumidor, foi um marco na defesa de tais interesses, pois suas normas, dentro do ordenamento jurídico, atuam de forma semelhante á LICC (Lei de Introdução ao Código Civil), pois se emana á todas as outras codificações. Porém, hodiernamente, é extremamente necessário voltar-se os olhos para todos esses direitos transindividuais supracitados, dado que a doutrina e jurisprudência são residuais.
Quanto à questão indígena, abordada nesse trabalho, se trata de assunto muito amplo, que engloba as várias disciplinas do Direito, como Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual (Civil e Penal), Direito Administrativo e até mesmo, o Direito Internacional.
Como relatado no decorrer do trabalho, tais populações possuem vários privilégios processuais, pois podem ser representadas pela FUNAI, pelo Ministério Público Federal, e ainda podem ser auxiliadas pelas procuradorias da União, Estados e Municípios. Ou seja, para tais populações, há um grande leque de escolhas para o acesso ao Judiciário, proporcionadas pelo advento da Constituição Federal de 1988.
Informações Sobre o Autor
Ismael Guimarães da Silva
Graduado em Direito pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e Pós-graduando em Direito Penal pela Escola Paulista de Direito (EDP). Advogado