Resumo: Esta pesquisa refere-se à criança e ao adolescente; aqueles freqüentemente nomeados “menores infratores”, “infratores”, “delinqüentes juvenis”, “adolescentes em conflito com a lei” ou “autores de ato infracional”. Estudam-se aqui os que passaram pelo Fórum de São Carlos, tornando-se objetos de processos da 2a. Vara Criminal e da Infância e da Juventude, no período de 1984 a 1996. Faz-se uma caracterização de todos os tipos de situação/processo ali encontrados, infracionais e não infracionais para a série histórica desses 13 anos. Analisam-se também todos os processos identificados como infracionais, de três anos selecionados (1986, 1991 e 1996) para caracterizar a natureza infracional dessas situações. Inclui-se ainda a identificação das medidas/ações adotadas pelo Poder Judiciário nessas situações, buscando conhecer algumas das concepções sobre essas crianças e adolescentes. Os dados revelam o não impacto do Estatuto da Criança e do Adolescente, nos avanços que o mesmo propõe. A natureza e os tipos de situações ditas infracionais estudados, assim como as respostas encontradas para essas situações, limitadas a medidas judiciais, circunscritas ao âmbito pessoal e individual ou familiar dessas crianças e adolescentes, objetivando reduzidamente a inibição do comportamento indesejável, ou a não reincidência mostram que a despeito da lei, que avança para a concepção de pessoa em processo de desenvolvimento, essas crianças e adolescentes continuam a ser tratados como à época do Código de Menores como menores e delinquentes, necessitados de orientação, correção, tutela e punição como forma de educação. Persistem contraditoriamente a concepção e o uso da penalização, com base na mesma lei penal e contravencional adotada para aqueles que atingiram a maioridade penal.
Abstract: This study concerns to children and adolescents; those frequently nominated “minors”, “adolescents in conflict with the law”, “authors of infractional act”. It’s studied here those children and adolescents who have gone through the hands of the Judicial Power of São Carlos, the Infantry and Juvenile Chartulary’s Office of the District of São Carlos, from 1984 to 1996. It is a descriptive and retrospective study, presenting a characterization of all kind of situations registered there, infractional and non-infractional situations to the historical series of these 13 years. A more detailed study is achieved from the related processes of three of these years, 1986, 1991 and 1996, to identify its infractional nature. It includes the identification of the measures adopted in these situations, attempting to find some acts and concepts of the agents involved in these situations. The data reveal the non-impact of the Estatuto da Criança e do Adolescente or the advances this legislation considers. The nature and the types of infractional situations studied, as well as the answers found for these situations, limited to judicial measures, circumscribed to the personal and individual or familiar scope of these children and adolescents, looking just forward to the inhibition of the condemned conduct and the non-relapse show that despite of the law, that advances for the conception of person in development process, they continue to be treated as “minors” and “delinquents” in need of orientation, correction, tutelage and education through punishment. Contradictorily persist the optics and the use of penalization, based upon criminal and contraventional laws for adults, subjects that had reached the criminal majority.
Palavras-chave: crianças; adolescentes; adolescentes em conflito com a lei; Estatuto da Criança e do Adolescente; autores de ato infracional; delinqüentes juvenis.
Key words: children; adolescents; adolescents in conflict with the law; Estatuto da Criança e do Adolescente; authors of infractional act; juvenile delinquents.
INTRODUÇÃO[a]
A discussão em torno dos problemas gerados por condutas de crianças ou adolescentes, quando tidas como “delinquenciais” ou “infracionais” ou mesmo “criminosas” costuma nos colocar diante de conflitos, como a falta de referências que não nossa velha conhecida a “senhora punição”.
Não obstante todo o conhecimento produzido acerca do desenvolvimento humano e a despeito de todos os avanços conceituais, parece que nossa capacidade para ousar em busca de novas alternativas de relacionamento com crianças e adolescentes, baseadas no crédito à sua pessoa, caminha a passos lentos. Essa nos parece uma questão crucial a ser enfrentada, se quisermos apostar no compromisso não só de sua cidadania, mas também da nossa luta por um mundo melhor, senão para nós então para os nossos filhos ou mesmo os seus.
De quem falamos aqui? Quem são essas crianças e adolescentes que mobilizam em nós esse tipo de resposta? Evidentemente não nos referimos a todas as crianças e adolescentes, mas sim àquelas a quem nos acostumamos a chamar de “menores”, hoje renomeadas como crianças e adolescentes “em situação de risco pessoal e social”.
Partindo dessa expressão verificamos que a dita situação de risco pessoal e social se refere não à criança ou ao adolescente, mas às características da condição em que se encontra a criança ou o adolescente, esta sim tomada como de risco pessoal e social. Daí, não é sem razão, nem pouco freqüente, o uso dessa expressão como sinônimo de “crianças de rua”, “crianças carentes”, “crianças abandonadas”, “menor de rua”, “menor abandonado”, “menor”, “menor infrator” e outros. E, de fato, aprendemos a usar essa expressão para nos referirmos às crianças e adolescentes que estão nas ruas; às crianças e adolescentes vítimas da negligência ou abandono; às crianças e adolescentes vítimas da exploração pelo trabalho (trabalho infantil); às crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual (prostituição infantil); às crianças e adolescentes vítimas da exploração pelo tráfico de drogas (drogadição); às crianças e adolescentes usadas para a prática de crimes incluindo aquelas a quem se imputa a prática de ato infracional (delinqüência juvenil; “menor infrator” ou crianças e adolescentes em conflito com a lei); às crianças e adolescentes vítimas da violência (física, mental, sexual) doméstica ou familiar.
O tratamento de cada uma dessas situações pode constituir um eixo temático de investigação, com seus próprios problemas. Essa análise é apresentada no artigo “Quando se trata de investigar crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social…” (EL-KHATIB, 1998, p.01 – 13)10.
Neste espaço optamos por nos debruçar mais detidamente sobre a situação em que usamos a expressão dita de risco pessoal e social, para nos referimos à criança ou adolescente que identificamos como “o menor infrator”, “o infrator”, “o delinqüente juvenil”, “o adolescente em conflito com a lei”, “o autor de ato infracional”.
O que mais nos chama a atenção, aqui, além da concepção do próprio problema, são as divergências no tratamento do problema quanto à natureza de seus determinantes. Freqüentemente essas crianças e adolescentes são reduzidos à condição de sujeitos estruturalmente desviantes e o problema é tomado como jurídico, de polícia ou segurança pública e de assistência social. Concepções mais amplas, contudo, contemplam elementos de natureza político-econômico-social e cultural, na abordagem do problema, indicando que a categorização dos “menores” “infratores” se constrói historicamente, pelas soluções criadas, para lidar com as contradições decorrentes da adoção de um determinado modelo de desenvolvimento. Dessa forma, enquanto objeto de pesquisa, nem o problema, nem sua abordagem numa concepção mais ampla, são novidades. Mudanças, entretanto, ocorrem no referencial teórico utilizado. Um exemplo é a incorporação nos textos mais recentes, de termos e conceitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, (BRASIL, 1990)4. Para nós a concepção desse problema se delimita e transforma, a partir da discussão de dois eixos conceituais principais. Um primeiro, anterior ao ECA, que relaciona “marginalidade” e “sistema político-econômico-social” e outro, mais recente, que relaciona “direito” e “sistema político-econômico-social” . O ECA (BRASIL, 1990)4 reflete mudanças conceituais de fundamental importância; antes dele discutíamos a “marginalidade” do “menor”; com ele ultrapassamos o Código de Menores (BRASIL, 1979)3 e passamos a discutir o “direito” da “criança e do adolescente”; com ele, a criança e o adolescente deixam de estar em “situação irregular”, passando essa condição para o Estado, na medida em que esse, sociedade e família, passam a responder pela “proteção integral” de toda criança ou adolescente, de qualquer “ameaça ou violação nos seus direitos fundamentais”.
O grande problema com que então deparamos é a contradição ou distância entre o que está na legislação, afirmação do direito da criança e do adolescente à proteção integral e a universalização desse direito e o cotidiano de nossas crianças e adolescentes, condições de pobreza ou miséria a que estão expostos [(CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1996)6; (DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UFSCar,1997)7].
Que significa igualdade de direitos, numa realidade social desigual como a nossa? Que a mudança da lei não basta. Que dependeremos não apenas da disponibilidade de recursos, mas da nossa capacidade, enquanto sociedade civil organizada, de controlar sua efetiva destinação segundo as prioridades identificadas pelos diagnósticos da situação das crianças e adolescentes de cada Município. Dependeremos também do esforço individual e coletivo para construir novos modelos de atenção, definindo novas práticas de intervenção, orientadas não mais para o “problema do menor”, mas para a criança e o adolescente cidadãos; assim como dependeremos do compromisso do Município, sociedade civil e poder público, com o resgate da cidadania de suas crianças e adolescentes
No caso do nosso Município, São Carlos, datam de maio de 1995 as primeiras “Prioridades Para Ação” formuladas e apresentadas pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente de São Carlos, ao Poder Executivo Municipal. (CONSELHO MUNICIPAL DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DE SÃO CARLOS, 1995; p.1-7) 8. O instrumento contempla as políticas sociais básicas, priorizando os direitos à Saúde e Educação; a política de Assistência Social, priorizando os programas de Abrigo e Apoio Sócio-Familiar e as políticas de proteção especial, priorizando os programas para “meninos/meninas de rua”, “adolescentes com prática de ato infracional” e “drogadictos”. A despeito disso, persistem lacunas nas políticas públicas desse Município, no que se refere ao atendimento integral à criança e ao adolescente.
São Carlos está em sua 4a. gestão do Conselho Tutelar e antes do final de 2006, deverá eleger os novos conselheiros tutelares para a gestão 2006-2009; o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente de São Carlos elegeu em 2005 os membros para a 8a. gestão desse Conselho, que vai até 2007, quando nova eleição deverá ocorrer para o biênio 2007-2009. Os esforços para implementação de ações, que garantam os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, dão conta das fragilidades do Município no que se refere à disponibilidade de equipamentos públicos, seja de educação, saúde, cultura ou mesmo de assistência social, assim como na oferta de programas. Mostram que havemos de lutar muito para vencer a “diferença” entre o poder que a lei determina e a possibilidade política de exercê-lo, alterar a perversa correlação de forças que caracteriza a realidade local e superar concepções legitimadas pelo Código de Menores (BRASIL, 1974)3 e ações de natureza fragmentada e redutora, já ultrapassadas pelo ECA (BRASIL, 1990)4.
Diante disso, a pergunta que nos fazemos é se apesar do reconhecimento público de sua condição de criança e adolescente, de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e sujeitos de direitos e do reconhecimento das condições de desigualdade em que vivem, essas crianças e adolescentes não continuam a ser vistas e tratadas, nesse Município, como problema jurídico, de polícia e segurança pública ou apenas de assistência social.
OBJETIVOS
Para tentar responder essa pergunta fizemos um estudo para levantar quais das crianças e adolescentes ditas em situação de risco pessoal e social, passam pelas mãos do Poder Judiciário da Comarca de São Carlos e por ele são atendidas. Quantas são elas e qual o seu perfil? Qual a natureza das situações pelas quais são atendidas? A que se referem as situações ditas infracionais, ou de que natureza são essas situações? E, finalmente, quais as ações e concepções de agentes de intervenção envolvidos nessas situações?
METODOLOGIA
Nosso objeto de estudo foi constituído dos processos das crianças e adolescentes, que passaram pelo Fórum de São Carlos, 2a. Vara Criminal e da Infância e da Juventude, no período de 1984 a 1996. Nossa fonte de dados foi o Cartório da Infância e da Juventude de São Carlos (Livros de Feitos de número 2 a 7) e Arquivo do Fórum Criminal de São Carlos (processos). O estudo é descritivo; realizamos uma caracterização dessa população a partir dos dados registrados nos Livros e dos tipos de situação ali encontrados a partir dos respectivos processos/autos; é também retrospectivo, abrangendo uma série histórica de 13 anos. Os procedimentos que adotamos foram: seleção de dados dos Livros de Feitos; transcrição dos dados selecionados, para fichas; codificação e digitação desses dados, na base Epi-Info; tabulação e descrição estatística simples dos resultados; apresentação das informações obtidas em tabelas; listagem e requisição dos processos para leitura, junto ao Cartório e posteriormente ao Arquivo do Fórum; leitura de processos. Para compreender e caracterizar a natureza das situações ditas infracionais estudamos todos os processos identificados como infracionais, de três anos selecionados (1986, 1991 e 1996), utilizando tanto o ECA (BRASIL,1990)4 quanto o Código de Menores (BRASIL,1974) 3, assim como outras legislações pertinentes, como o Código Penal (BRASIL,1940)2 , a Lei das Contravenções Penais (BRASIL,1941)5 incluindo as versões comentadas de ALBERGARIA (1991)1, de JESUS (1997)11, de CURY e col. (2000)9 e de JESUS (1997a)12. Procedimento semelhante foi adotado para a identificação das medidas/ações adotadas pelo Poder Judiciário nessas situações, tendo em vista a tentativa de conhecer algumas das concepções sobre essas crianças e adolescentes, ali presentes. Instrumentos que utilizamos: 4 modelos de formulário; 2 para a transcrição dos dados registrados nos Livros de Feitos (por processo; por caso), 1 para o controle de leitura de processo (data, total de horas, número e ano dos processos lidos, total de processos lidos) e 1 questionário para digitação e tabulação dos dados já codificados; aplicativo EPI-Info5. A transcrição dos dados dos processos foi feita de forma direta (cópia) em folhas simples, sem definição prévia de formato. Como procedimentos de análise utilizamos a estatística descritiva simples e a categorização por semelhança. Quanto aos critérios para a escolha dos 3 anos selecionados para análise das situações ditas infracionais, tomamos o ano completo mais recente, ao início da pesquisa (1996), o ano de instalação do CMDCA de São Carlos (1991) e um dos anos anteriores à vigência do ECA, respeitado o mesmo intervalo de anos (1986). Isso nos permitiu tomar como referência, 2 períodos quinquenais, 86-91 e 91-96, que representam duas concepções distintas: a de “criança em situação irregular” (art. 2º do Código de Menores, BRASIL (1979; p. 786)3) e a da “proteção integral” da criança e do adolescente (art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, BRASIL (1990; p. 5)4). Como critério para a definição dos grupos etários adotamos o mesmo que o ECA (art. 2º ;, p. 5): até 12 incompletos, criança, de 12 a 18 incompletos, adolescente.
RESULTADOS e DISCUSSÕES
Entre os vários achados da nossa pesquisa, estudando os processos/casos de crianças e adolescentes que passaram pela Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Carlos, nos anos de 1984 a 1996, verificamos que de acordo com a natureza da situação em que se encontra a criança ou adolescente, a mesma é vista e tratada, conforme o tipo de autuação/identificação/registro que recebeu, a partir da compreensão dada pelos agentes envolvidos no trato daquela situação. Por conta disso, constatamos que a quase totalidade de crianças e adolescentes que por lá passam podem ser distribuídas em dois grandes grupos, um daquelas compreendidas como em situações infracionais, outro o daquelas não infracionais, tidas como protetivas. A Tabela 1. a seguir mostra os percentuais dessa distribuição para os 13 anos da série estudada.
Tabela 1. Série histórica: 1984 a 1996. Número total de processos/situações atendidas pelo Fórum de São Carlos, registradas no Cartório da Infância e da Juventude, e sua distribuição percentual, segundo os grupos de natureza identificados, para cada ano de estudo. Comarca de São Carlos. SP.
Existem aí alguns problemas relativos ao modo como nos relacionamos com essas situações, ou ao modo como as apreendemos. Ou as tomamos, classificamos e tratamos como situações de infração que demandam um certo tipo de medidas, ou as tomamos, classificamos e tratamos como a exigir medidas de proteção. Umas nos levarão a olhar a criança e o adolescente de uma maneira indulgente, outras nos levarão a tratá-los com a severidade com que tratamos nossos pares adultos.
Se olharmos a Tabela 1. verificamos que o maior percentual para todos os anos estudados é sempre o de situações ditas infracionais. Embora o comportamento das situações protetivas ao longo dos 13 anos seja semelhante ao das situações infracionais, ora aumentando, ora diminuindo, ao final do período estudado, 1996, resultam proporcionalmente bem menos expressivas que ao início do período estudado, qual seja 1984, decrescendo dos 37,5% para 26,8%. Note-se inclusive a tendência contrária à das situações infracionais, que tendem a pequenos aumentos, enquanto essas diminuem. O ano de 1989 mostra a coincidência da maior frequência das situações infracionais (74,8%) com a menor frequência das situações protetivas (17,1%). O fato é que embora o aumento de um, naturalmente leve à diminuição do outro, o que nos chama a atenção é que o tido como infracional é que aumenta, contrariando a expectativa de impacto das perspectivas da proteção integral, contempladas pela mudança da legislação. Se com a aprovação do ECA (BRASIL, 1990)4 foi revogado o uso do Código de Menores (BRASIL, 1979)3, este pode ser um indicador de que revogamos a Lei, mas ainda não nosso modo de apreender os problemas da Infância e da Adolescência.
Por outro lado poder-se-ia pensar que há aumentos percentuais das situações infracionais, e daí poderíamos encontrar razões para alguns afirmarem um suposto aumento do que costumam chamar “delinqüência ou criminalidade juvenil”. Contudo, há que se considerar, não apenas algum aumento devido ao próprio crescimento populacional, como o fato de estarmos trabalhando com o número de casos de crianças e adolescentes atendidos e não com o número de crianças e adolescentes atendidos, o que nos obriga a considerar que “vários” dos “que já foram contados” e “atendidos” retornam, somando-se aos talvez semelhantes contingentes do ano seguinte e demais posteriores, pois conforme constatamos pela leitura dos processos, a mesma criança ou adolescente aparece, muitas vezes, em diferentes anos e situações.
Isso porque na verdade, embora se refiram a crianças e adolescentes, são os processos ou as situações identificadas pelo envolvimento dessas crianças e adolescentes, e não eles mesmos, o objeto de registro no Fórum. Assim é o número de processos que efetivamente aumenta e, portanto de casos atendidos, não sendo possível dimensionar o universo de crianças e adolescentes a que corresponde; representa portanto o universo de casos atendidos, na medida em que cada situação registrada/processo pode envolver de 1, 2, 3 a mais crianças e adolescentes. Apesar disso, paradoxal que pareça, quando se tratar de processos identificados como infracionais, a resposta ou medida mais comum será como veremos adiante, centrada na criança ou adolescente.
A questão do registro é um aspecto crucial no tratamento do problema, que exige considerações. Trata-se do processo de categorização/identificação pelo qual passa a situação, que pode vir de um Boletim de Ocorrência (B.O.), por quem o elabora e anteriormente por quem atendeu à situação; ou pode vir de um ofício de encaminhamento, pela maneira como é lida ou interpretada a situação, por quem o destina ao Juiz; pode vir mesmo do Cartório, por quem lê e interpreta o conteúdo do ofício ou do B.O. e os registra nos Livros de Feitos desse Cartório; finalmente, passa também pela leitura daquele que faz a autuação do processo. A descrição e interpretação da situação representam parte do nosso processo de apreensão dela, não se constituindo, a nosso ver, característicos dela mesma; constituem, segundo acreditamos, a representação que lhe emprestamos, por isso podemos vê-los de um modo infracional ou não, conforme as referências (subjetivas) utilizadas para essa interpretação.
Por conta disso, podemos pensar no quanto o aumento na frequência de um tipo de situação pode ser relativo, dependendo do tipo de leitura ou interpretação dada a essa situação por quem participa direta ou indiretamente do seu processo de apreensão ou constatação, registro e autuação. É o que observamos muitas vezes, quando autoridades constituídas nas esferas dos poderes públicos, afirmam o aumento da criminalidade ou delinqüência pelo aumento no número de casos infracionais, fazendo-nos indagar acerca do conceito de criminalidade ou delinqüência de que estariam se utilizando, quando o traduzem por esse número.
Resultado de nossas observações decorrentes da leitura desses processos, é oportuno ressaltar, que todos esses processos, cuja natureza é infracional, se distinguem dos não infracionais, de natureza protetiva, por uma outra especificidade, além do tipo de autuação. Enquanto esses mobilizam procedimentos judiciais, para avaliar e interferir diretamente sobre a conduta de uma criança ou adolescente, supostamente infracional, criminosa ou contravencional, tendo em vista a “correção” da criança ou adolescente, os não infracionais, por nós classificados como protetivos mobilizam procedimentos judiciais, para avaliar e interferir sobre a conduta de adultos, para proteger a criança e o adolescente supostamente ameaçados ou expostos a riscos, sofrimento, negligência abandono ou violência.
Quais os tipos de autuação ou registro incluídos no grupo das situações não infracionais, às quais nomeamos Protetivas?
Quadro 1. Tipos de autuação/registro identificados como protetivos, dentre as situações atendidas pelo Fórum de São Carlos, registradas no Cartório da Infância e da Juventude, para os anos de 1984 a 1996.
“Abandono” | “Pedido de Internamento” |
“Adoção” | “Destituição de Pátrio Poder” |
“Pedido de Providências” | “Abrigo” |
“Apreensão de Menor” | “Entrega de Filho” |
“Representação” | “Devolução de filho” |
“Ação Civil Pública” | “Pedido de Curador Especial” |
“Tutela” | “Colocação em Família Substituta” |
“Guarda” | “Procedimento Verificatório”
(identificado como de natureza protetiva) |
A título de ilustração, já que nossa intenção é tratar dos infracionais detalhamos alguns deles:
Guarda: aparecem registrados como “guarda”, “pedido de guarda provisória”, “pedido de guarda”, “guarda definitiva”, “guarda e responsabilidade”, “termo de guarda”, “pedido de guarda por tempo indeterminado”, “pedido de guarda com finalidade de adoção”, “pedido de entrega sob guarda e responsabilidade”, “guarda e responsabilidade provisória”, “regularização de guarda”, “modificação de guarda” e “pedido de cancelamento de guarda”; segundo o texto da lei, a guarda “obriga à prestação de assistência material, moral e educacional”, no caso do ECA (art. 33) (BRASIL,1990, p.10)4, “à criança ou ao adolescente”, no caso do Código de Menores (art.24) (BRASIL, 1974, p. 789)3 “ao menor”; “conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”, igualmente em uma e outra dessas leis;
Pedido de providências: aparecem registrados como “pedido de providências” ou ainda “proteção à criança” e “proteção ao adolescente”; referem-se à solicitações da comunidade, da equipe técnica (ou setor técnico) do Fórum[b] e do Conselho Tutelar (no caso do ano de 1994/novembro, data da sua instalação, e posteriores) de medidas destinadas a atender crianças ou adolescentes em situação de carência ou negligência de cuidados básicos, de saúde ou de escola, crianças e adolescentes vítimas de agressão, maus-tratos, abandono, exploração, ou que se encontram em “ambiente contrário aos bons costumes” (Código de Menores; art.1o) (BRASIL, 1974, p. 786)3; podem também ser descritos como pedidos de medidas de proteção, consequentes à identificação da situação de violação de qualquer dos direitos reconhecidos na lei (ECA; art. 98) (BRASIL, 1990, p.23)4; alguns desses processos são de natureza coletiva, referindo-se a situações que envolvem várias crianças e/ou adolescentes, como as de falta de transporte escolar para crianças da zona rural, falta de policiamento preventivo para escola, descumprimento de convênio para atendimento de saúde, evasão escolar e pedido para coibir carona de bicicleta em traseira de ônibus. As situações de providências ou procedimentos para proteção da criança ou adolescente, também aparecem através dos processos registrados como Representação;
Ação Civil Pública: aparece quando, entendendo estar ocorrendo violação do direito da criança ou do adolescente, o Ministério Público oferece representação contra o agente dessa violação, tendo em vista a proteção do direito dessa criança ou adolescente (exemplo: processo n/96, infração aos artigos 5o, 15, 17 e 70, movida pelo Ministério Público com base no art. 201, inciso V do ECA) (BRASIL, 1990, p.5; 8; 15; 45)4.
Quais os tipos de autuação ou registro incluídos no grupo das situações infracionais?
Quadro 2. Tipos de autuação/registro identificados como Infracionais, dentre as situações atendidas pelo Fórum de São Carlos, registradas no Cartório da Infância e da Juventude, para os anos de 1984 a 1996.
“Sindicância” (aparecem até 1990) |
“Apuração de Ato Infracional de Adolescente” (1990 em diante) |
“Ação sócio-educativa” |
Outros autuados como: “Averiguação”; “Fuga de menor”; “Autos de entrega”; “Procedimento ou processo verificatório de criança ou adolescente” (identificado como de natureza infracional) |
Os processos ditos infracionais se caracterizam por envolver crianças e adolescentes denunciados por suspeita ou acusação de autoria ou envolvimento, em alguma prática ou conduta considerada infracional. Para os processos dos anos relativos à vigência do Código de Menores, (BRASIL, 1979)3, 1984 a 1990, essa caracterização refere-se à “autoria de infração penal” (art.2o, inciso VI, Código de Menores) (BRASIL, 1979, p.786)3; para os processos dos anos relativos à vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), portanto julho/1990 em diante, o ato infracional refere-se à “conduta descrita como crime ou contravenção penal” (art. 103; ECA) (BRASIL, 1990, p. 25)4. A referência, portanto, para os anos anteriores a 1990, é o Código Penal (BRASIL, 1940)2; para os anos seguintes, além do Código Penal, a Lei das Contravenções Penais (LCP) (BRASIL, 1941)5. Isso nos chama bastante a atenção uma vez que consideremos as inovações produzidas pelo novo texto de lei, pois mostra que ao lado de uma possibilidade de compreensão do sujeito a que se refere sob a ótica de pessoa em processo de desenvolvimento, persiste contraditoriamente a ótica e o uso da penalização, com base na lei penal e contravencional utilizada para adultos, ou sujeitos que atingiram a maioridade penal. Do nosso ponto de vista, se essas concepções não são incompatíveis, então definem nossa ambivalência relativamente ao modo como devemos nos relacionar com nossas crianças e adolescentes. Faz pensar no quanto de fato inovamos a lei. Ou no quanto parciais podemos ser, quando dela nos utilizamos para apenas punir o adolescente, sem nos lembrar dos seus direitos anteriormente não atendidos.
Na descrição das “situações infracionais“, obtida a partir da leitura e análise dos processos de “sindicância” e “apuração de ato infracional de adolescente“, incluindo os de “averiguação” e outros acima referidos como infracionais, dos anos de 1986, 1991 e 1996, muitos foram os tipos identificados nos processos. Constatadas as semelhanças entre os mesmos, foi possível agrupá-los e obter categorias descritivas, nomeadas a partir de dois critérios; um deles é a frequência com que aparece nos registros dos Livros de Feitos, pelo Cartório, o outro é a interpretação da situação, contida nos dados registrados nesses processos. Ademais, buscamos a identificação de possíveis ou supostas equivalências com os tipos definidos por Lei, como sendo ato infracional, “conduta descrita como crime ou contravenção penal”, no caso do ECA (art. 103) (BRASIL, 1990, p.25)4 ou como infração penal, caso do Código de Menores (art. 2o, inc. VI) (BRASIL, 1979, p.786)3.
Quadro 3. Categorias indicativas da natureza infracional das situações estudadas, para os anos de 1986, 1991 e 1996.
Arma | Direção de veículo |
Entorpecente | Furto |
Roubo | Danos |
Agressão | Desordens |
Rua | Estelionato |
Receptação | Desentendimentos |
Ofensas | Ameaça |
Homicídio | Suicídio |
Álcool | Sexualidade |
Mal-definidos | Fuga de casa |
Podemos observar na descrição de três desses tipos de situação que são caracterizados como infracionais, como essa relação exclusivamente legal e contravencional/penal é transparente.
Direção de veículo – inclui os processos descritos como: “direção de veículo”, “condução de veículo”, “pilotando motocicleta”, “pilotando mobilete”, “posse de mobilete”, “uso de mobilete”, “averiguação sobre direção de veículo”, “colisão com moto”, “acidente com moto”, “acidente com mobilete”, “colisão com veículo”, “direção e colisão com veículo”, “direção e acidente com veículo”, “atropelamento, direção e colisão com moto”, “pilotando moto e atropelamento”, “direção e acidente com moto”, “direção sem habilitação”, “averiguação sobre direção de veículo com acidente”, “direção perigosa”. Refere-se à direção de veículo (carro, moto, mobilete) sem habilitação e direção de veículo com acidente (colisão com outro veículo, ou atropelamento, ou ainda acidente sem colisão), previstos nos artigos 32 e 34 da LCP (BRASIL, 1941, p. 157)5; equivale, pelo artigo 32 a “dirigir, sem a devida habilitação, veículo na via pública, ou embarcação a motor em águas públicas” e, pelo artigo 34 a “dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia”. Comparando o previsto na lei com os processos descritos, parece haver aqui muito maior correspondência entre a situação registrada com o que os artigos prevêem, do que a observada em outros casos, como os de porte de arma. Chamou-nos a atenção, a não identificação de diferenças nos procedimentos relativos àquelas dessas situações, que envolveram algum tipo de acidente, que resultou em ferimento, ora no próprio adolescente, ora em outra pessoa, ora em ambos. Independentemente do número de casos em que ocorrem, os acidentes, são, para nós, possíveis sinalizadores de gravidade desse tipo de situação, porque nos remetem ao risco de vida e à integridade física, tanto do próprio adolescente, quanto das outras pessoas, que transitam pelas vias públicas.
Furto – inclui os processos descritos como: “furto”,”tentativa de furto”, “averiguação sobre furto”, “apreensão de objetos”, “averiguação sobre tentativa de furto”, “apropriação indébita”, “suspeita de furto”, “averiguação sobre apreensão de objetos”; as “tentativas…” e “suspeitas…”, embora constituam situações diferentes, foram incluídas, porque constatamos que sofrem os mesmos procedimentos. O estudo dessas situações mostrou-nos a estreita equivalência com o art. 155, do Código Penal (BRASIL, 1940, p. 102)2, que define furto, como o “subtrair para si ou para outrem, coisa alheia móvel” e com o art.168, do mesmo Código, (p. 105) que trata da “apropriação indébita”, expressão que define o ato de “apropriar-se de coisa móvel, de quem tem a posse ou a detenção”. Contudo, mostrou também, o quanto pode ser questionável a constituição do “crime de furto” propriamente dito, pelo adolescente, quando levamos em conta elementos fundamentais, como as provas de materialidade e autoria do fato, indicadas nos registros desses processos, mas não necessariamente presentes nos conteúdos desses mesmos processos. Evidência incontestável disso é que em expressiva parte desses processos, a autoridade judiciária acaba determinando o arquivamento dos mesmos.
Agressão – inclui os processos descritos como: “agressão”, “agressão mútua”, “tentativa de agressão”, “vias de fato”, “averiguação sobre agressão”, “lesão corporal”, “lesão corporal dolosa”, “ameaça de lesão corporal”. Diferentemente do que ocorre com as categorias anteriores, essa não encontra a mesma correspondência para todas as descrições. Verificamos a equivalência com o art. 21 da LCP (BRASIL, 1941, p.154)5, que prevê o “praticar vias de fato contra alguém“; segundo a explicação de Damásio de JESUS (1997, p.75)11, vias de fato “constituem violência contra a pessoa sem produção de lesões corporais”. Também encontramos equivalência com o art. 129 do Código Penal (BRASIL, 1940, p.94)2, que caracteriza a “lesão corporal” pelo “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. No mais, o que observamos é a falta da descrição do tipo de agressão, já que essa poderia ser física ou verbal; estudados os casos, constatamos que as descrições relativas à “agressão” são de natureza física; as descrições relativas a agressões de natureza verbal, vão aparecer como “calúnia, difamação e injúria”, previstos entre os “crimes contra a honra” do Código Penal (BRASIL, 1940, p.97-8)2.
Muitos desses casos de agressão “física” são na verdade casos de desentendimento, brigas ou discussões entre a criança ou adolescente e colegas, familiares, namorado(a) ou vizinhos que acabam em tapas e pontapés.
Por que selecionamos esses três tipos?
Porque constituem, para os três anos estudados os três tipos mais freqüentes e sozinhos representam cerca de 60% do total de casos considerados infracionais, igualmente para os três anos, como mostra o Quadro 4.
Quadro 4: Número de situações infracionais e de casos, natureza infracional de maior freqüência e percentuais destes 3 tipos ditos infracionais, para os três anos analisados.
Da busca de equivalências e correspondência entre o que está descrito e o que a lei prevê, restou conosco a confirmação do uso do Código Penal (BRASIL, 1940)2 como a principal referência, para avaliação da conduta do adolescente. De fato, os dados mostram como “seus artigos” servem de guia para a leitura e classificação de um contingente expressivo das situações que envolvem adolescentes, indicando a pertinência de insistirmos em nossa indagação. Se esse é o parâmetro criado para normatizar a conduta do sujeito, que já alcançou a maioridade legal, de tal modo que pode ser responsabilizado por cada aspecto da conduta considerada ou descrita como crime ou contravenção penal, como pode ser usado igualmente no caso do adolescente, uma vez que, não havendo alcançado a maioridade penal/legal, não está legalmente apto a responder pelos próprios atos, razão pela qual a lei prevê “seu responsável legal”?
A despeito do art. 104 do ECA (BRASIL, 1990, p. 25)4, que o coloca como “inimputável” e da sua “condição peculiar” de “pessoa em desenvolvimento”, definida também pelo ECA, em seu art.6o (BRASIL, 1990, p. 5)4, parece mais apropriado pensar que temos preferido fazer uso do art. 103 do ECA (“considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”) que tomado isolada e parcialmente, permite-nos reduzir uma situação a uma infração ou crime, uma pessoa a uma ação, uma ação a uma sentença (BRASIL, 1990, p. 25)4. Perguntaríamos: não haveria, talvez, problemas na homogeneidade do próprio instrumento, por exemplo, na articulação, ou aplicação simultânea, de artigos que se orientam por pressupostos diferentes, conquanto digam respeito ao mesmo objeto? Ou o problema residiria em nós, na maneira como nos utilizamos do instrumento?
É preciso considerar que o exercício de caracterização se inicia em nós mesmos, quando olhamos para uma ação e a traduzimos segundo “tipos” pré-estabelecidos, perdendo de vista o sujeito e sua totalidade, que acaba reduzido a uma ação ou conduta expressa num determinado momento e local.
Indo além, lendo o conjunto de processos infracionais e analisando as medidas aplicadas pelo Juízo da Infância e da Juventude da Comarca de São Carlos, nessas situações, nos anos de 1986, 1991 e 1996, os dados revelam o pouco ou nenhum impacto do “novo” Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990)4, ou dos avanços que essa legislação propõe. A Tabela 2 apresenta o conjunto dessas medidas, distribuídas por ano e tipo de medida.
Tabela 2. Medidas aplicadas pelo Juízo da Infância e da Juventude da Comarca de São Carlos, nas situações ditas infracionais, nos anos de 1986, 1991 e 1996 e respectivos números de casos, por tipo de medida e ano de aplicação.
Excluídos os processos não localizados (5 casos em 1986, 4 casos em 1991 e 1 caso em 1996) e os que foram remetidos a outro Cartório ou Comarca (1 caso em 1986, 3 casos em 1991 e 7 casos em 1996).
Se olharmos detidamente veremos que as diferenças esperadas para 1996, ano de vigência do ECA (Brasil, 1990)4, tais como medidas de natureza protetiva previstas nessa lei, como o encaminhamento a programas, praticamente não ocorrem. No universo estudado foram 2 os casos encaminhados, de resto o que se nota de novo, além do encaminhamento ao Conselho Tutelar (3 casos) é a utilização da Representação[c] pelo Ministério Público, contra o adolescente.
Quadro 5. Principais resultados da análise dos processos/situações ditas infracionais e respectivas medidas para os anos de 1986, 1991 e 1996. Comarca de São Carlos. SP.
Ano | 1986 | 1991 | 1996 |
Proc/sit. Infracionais | 337 | 524 | 574 |
Casos |
417 | 680 | 788 |
Medidas aplicadas | % | % | % |
1o. | Adv 66,7 | Arq 46,8 | Rem 50,5 |
2o. | Arq 27,1 | Rem 35,9 | Arq 21,2 |
3o. | Intern 1,7 | Adv 4,4 | Rem+adv 15,0 |
Percentual das 3 medidas | 95,5 | 87,1 | 86,7 |
[Legenda: Proc/sit.: processos ou situações; Adv: advertência; Arq: arquivamento; Inter: internação; Rem: remissão]
Observando, contudo, o Quadro 5 veremos que em mais de 70% dos casos as respostas se concentram em 3 tipos de medidas, advertência, arquivamento e remissão, para os três anos analisados.
Em 1986, a advertência e o arquivamento representam 93,8% das respostas dadas nas situações ditas infracionais; em 1991, o arquivamento e a remissão representam 82,7% das respostas a essas situações e finalmente em 1996, a remissão e o arquivamento vão constituir 71,7% das respostas do Judiciário para essas situações.
De que se trata a advertência?
Definida no ECA (art. 115) (Brasil, 1990, p.27)4, como “admoestação verbal… que será reduzida a termo e assinada”, a advertência, segundo ALBERGARIA (1991, p.115)1, “obsta ao emprego de medidas mais graves, em razão de escassa gravidade da situação do menor“. De acordo com o mesmo autor, “pela advertência, verifica-se o primeiro contato do menor com a autoridade”, o qual “poderá ser decisivo para o menor: ou será o começo de sua recuperação ou início de sua carreira no crime“, por isso o autor a considera “medida tutelar, e não sanção repressiva”; acredita o autor que ” …o primeiro contato com o agente do Poder Público, mediante formalismo, indiferença ou rispidez, poderá provocar uma atitude de reação ou oposição, marcando o início da carreira da delinqüência…”, que “…num clima humano e sem tensões, dar-se-á o começo da obra de recuperação do menor“, mas, alerta-nos para o fato de que “…a praxe burocrática, a pressa do juiz ou sua substituição por funcionário retiram da advertência seu caráter tutelar, para exacerbar a situação do abandono do menor“. Ilustramos a posição desse autor, porque mostra concepções semelhantes às encontradas nos processos estudados dos três anos de estudo, relativamente ao adolescente, ao qual se persiste tratando como “menor” (até porque não se deixou de vê-lo como tal), à natureza do problema, ainda tomado como de desvio estrutural do sujeito (por isso fadado ao crime e, portanto, necessitado de recuperação) e à representação social da autoridade judiciária (magnitude do poder da figura da autoridade judiciária). Essa posição parece estender-se a outros representantes do Poder Judiciário e, pelo que temos visto, parece representar o pensamento de muitos outros; essa é nossa impressão, baseada não apenas no teor dos pareceres contidos nos registros dos processos, dos três anos estudados, como nas posições defendidas nos debates que temos tido oportunidade de acompanhar ou participar, ao longo dos últimos 13 anos; também corroboram essas impressões, a análise e discussão de um número considerável de ações, que já realizamos, ou onde fomos colaboradores ou acompanhamos, tais como encontros acadêmicos ou não, propostas, cursos, projetos, relatórios, assessorias, programas, fóruns, conselhos de direito e tutelares, ao longo de alguns anos. Há, nos parece, o que poderíamos chamar de ‘excesso de confiança’, no próprio poder e na representação social do papel exercido, ou do cargo e atribuições devidas e, em função disso, expectativa de respostas, tais como a mudança de comportamento daquele sobre o qual se exerce o suposto poder; se assim é, não se aplica, evidentemente, apenas ao âmbito do Poder Judiciário dizendo, provavelmente, respeito a todos nós, quando nos relacionamos com esses meninos, porque muitos de nós, certamente, os vemos da mesma forma como os vê aquele autor. A pergunta que fica é o que uma advertência ou um “pito” ensina ao outro sobre nós mesmos? …ou sobre o que pensamos dele?
Quanto ao arquivamento, é importante destacar que, além de ser medida adotada nos três anos de estudo, é expressivo em todos eles, o que pode nos remeter a uma conclusão interessante. Relativamente ao inciso I, do art. 180 do ECA (BRASIL, 1990, p. 41)4, que faculta ao representante do Ministério Público “promover o arquivamento dos autos…”, CURY e col. (2000, p.156)9 comentando acerca da sua aplicabilidade, explicitam-nos, “…quando inexistente o fato, não constituir ele ato infracional ou não for o adolescente seu autor”. Diante disso e do expressivo percentual de aplicação desse tipo de procedimento, ou medida, encontrado no universo estudado (2a. mais aplicada em 1986 (27,1%); 1a., em 1991, (46,8%) e 2a., em 1996 (21,2%)), podemos pensar no contingente expressivo de situações que vem sendo encaminhadas ao fórum, nesses anos, porque referem-se à suposta prática de ato infracional, nas quais “…..inexiste o fato…” ou “…o fato não constitui ato infracional…” ou “…o adolescente não é seu autor”. Ao levarmos em conta os pareceres, que acompanham esses arquivamentos, nos casos estudados, vemos que isso se confirma, revelando-se como inegável indicador da subjetividade da interpretação que caracteriza como infracional uma situação que não necessariamente é.
E a Remissão[d] o que é? Aparece no ECA (BRASIL, 1990, p. 29)4 em seu art. 126 “antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional”. CURY e col. (2000, p.115)9 explicam que são 2 espécies de remissão, uma anterior ao processo a que chamam remissão pré-processual, atribuição do Ministério Público e outra (prevista no art. 180 e 181 do ECA (BRASIL, 1990, p. 41)4) quando já iniciado o procedimento para apuração de ato infracional de “remissão judicial”, competência do Juiz. ALBERGARIA (1991, p.137)1, contudo esclarece que o termo, remissão, “não é adequado”, tratando-se do “perdão judicial, que é a faculdade atribuída ao juiz de não impor a pena, quando o fato é de escassa gravidade e culpabilidade“.
Para nós, a medida mereceria reflexão, principalmente, se considerarmos sua aplicação cumulada com outras medidas, por exemplo, “remissão e advertência”, “remissão e prestação de serviços à comunidade”, “remissão e liberdade assistida”, entre outros, como ocorre em vários dos processos aqui estudados; embora facultados pela mesma lei, em seu artigo 127 que, tratando da remissão, estabelece: “…podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação…”, (BRASIL, 1990, p. 29)4, esses casos nos fizeram indagar acerca do pressuposto ou concepção de ‘remissão’, em que se teriam baseado o legislador e as autoridades judiciais, quando optaram pela aplicação cumulada de duas condições, a nosso ver, conceitualmente opostas, como perdão e punição, ainda que de caráter “não penal”. A contradição está presente no próprio artigo 127, quando define que “a remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes…”, o que nos faz supor que se trata da ausência de culpa e daí a condição de perdão; segundo nosso entendimento, uma vez concedido o perdão, ou a remissão, dever-se-ia excluir a possibilidade de punição. Emprestando as referências de um dos representantes do Ministério Público dessa Comarca, num dos processos lidos, que dizia da “…concessão do perdão judicial, que nos termos da reforma penal é causa extintiva da punibilidade arrolada entre outras no art. 107, do Código Penal…” (BRASIL, 1940, p.88-9)2, concluímos que se existe intenção de indulgência na concessão dessa medida, a sua aplicação cumulada com outra medida restringe essa indulgência ao plano da intenção. Ademais, o que nos parece mesmo perverso, é a presunção da culpa e não da inocência, contrária nos parece ao direito de ser tratado com a dignidade à que todos temos direito. Se perante a lei nós os adultos somos inocentes até que se prove a culpa, os adolescentes estarão sendo tomados como culpados pelas suas ações, sempre que receberem o perdão através da remissão, (se não há culpa do que estarão sendo perdoados?!); mais absurda ainda a remissão pré-processual, que perdoa (portanto toma como culpado) antes mesmo de iniciar o procedimento de apuração de ato infracional. De novo nos sentimos diante de uma resposta que mais se assemelha a um rito, uma resposta formal, uma espécie de “alternativa”, quando o fato tem pouca ou nenhuma consistência jurídica capaz de justificar a adoção de uma advertência ou outra medida mais severa.
Disso tudo resultam para nós duas conclusões:
A primeira, diz respeito às respostas encontradas para as situações ditas infracionais: limitam-se a um conjunto de medidas judiciais, de caráter essencialmente formal (que pouco contribuem para alterar o cotidiano dessas crianças e adolescentes, na medida em que se circunscrevem ao âmbito pessoal e individual ou familiar dessa criança ou adolescente e objetivam essencialmente a mudança do comportamento indesejável e, portanto, a não “reincidência” da conduta infracional, qual se fora a mesma simplesmente determinada pela condição estrutural dessas crianças ou adolescentes. A segunda refere-se ao julgamento dessas crianças e adolescentes, pelos agentes envolvidos nos processos constituídos pela sua passagem pelo Judiciário: essas crianças e adolescentes continuam a ser vistos como à época do Código de Menores (BRASIL, 1974)3, como menores, carentes e delinqüentes, necessitados de orientação, correção e tutela, educação moral e religiosa, e até de “noções de civilidade”.
Não será, contudo, para igualmente julgar nenhum desses agentes que apontamos a necessidade de olhar para esses dados, pois sabemos que todos atuam no sentido de melhor atender a situação, buscando a melhor solução aos seus olhos e ao seu alcance. Há limites que decorrem do próprio papel do Judiciário e das condições que tem para exercê-lo, sabemos. Há outros porém, que dizem respeito a todos nós e se referem à nossa disponibilidade para renovarmos nosso modo de percepção desses indivíduos de quem dizemos “menor” ou “infrator” e, a partir daí buscar novas perspectivas de relacionamento com eles. Seria possível resgatar o adolescente por trás dessa máscara de “bandido”, às vezes até “irrecuperável” que nós lhe emprestamos? Seria possível não pensar apenas em correção e punição, quando olhamos para alguém dessa forma?
Talvez nossa maior dificuldade seja o medo de nos aventurarmos por caminhos não percorridos, afinal também nós crescemos através da autoridade e do poder, da disciplina e da punição. Parece ter funcionado conosco! Por que não funcionaria com eles? No cotidiano as situações “problema” se avolumam e precisamos resolvê-las; ocorre que o que resolve o “nosso problema”, não serve mais para resolver a “situação deles”.
Nosso problema será escolher entre continuar resolvendo nossos problemas (tomar uma decisão em relação à situação) ou parar de pensar em resolvê-los da forma como fizemos até agora, para buscar novas respostas para a situação deles. Não podemos esquecer que das nossas escolhas, ou recusas, dependem também a manutenção de uma ordem e uma disciplina que aí estão colocadas.
CONCLUSÃO
É estranho como não conseguimos concluir a discussão dos resultados senão laconicamente, a despeito do quanto tenhamos buscado encontrar outra forma de conclusão. É claro, também nos indagamos o porquê disso… Seria falta de condição do pesquisador que busca sem sucesso ver além, o que o dado diz… ou o que mais o dado diz? Seria o dado talvez limitado, incapaz de significar além? Um dado é o que é, não diz além. Diz o que diz.
Talvez concluamos laconicamente, porque nossa ação com relação a esses meninos seja assim mesmo, lacônica. Ou, não estaríamos sendo lacônicos com eles limitando-nos a puni-los? Talvez o discurso nobre, longo e complexo, construído nas teias de nossa abrangente compreensão, na prática se reduza ao “pito” e a outros tipos de castigo porque em síntese o que conta para nós é que o menino “não deveria ter feito o que fez” e daí “tem que pagar pelo que fez”. Se for isso, é a nossa vingança que está nos guiando, não nossa preocupação com ele. E aí, seria preciso pensar se, a despeito do quanto pedagógicos pretendamos ser, conseguiríamos abrir mão do castigo ou da “paga de tributo” pelo que “ele” fez. Mais que isso precisaríamos refletir sobre as responsabilidades. As nossas em relação a esses meninos, ou sobre o nosso papel na sua construção enquanto pessoas, já que ninguém se constrói sozinho. Ou constrói?
Nosso discurso avançado não tem ajudado a diminuir a desgraça de ver alguém se destruir quando escolhe (escolhe?!?!) furtar, roubar, usar droga, agredir…. minando suas possibilidades de crescer ou transformar-se no adulto que talvez desejasse ser, se além dessas, outras possibilidades de escolha houvessem, além da humilhação de esmolar ou ter de se conformar com os restos ou com o que lhe “é dado” ser (pobre, mas honesto e trabalhador).
Para nós, a punição desses meninos, como resposta às suas atitudes, pode significar que atuamos apenas dentro dos limites de uma rancorosa cobrança de dívida e, pior, cobrando da pessoa errada. Talvez o que nos motive a agir assim seja nossa raiva ou irritação porque perdemos o controle sobre eles; não mais “obedecem”; aprenderam a resistir, mostrando a fragilidade de nossas concepções acerca deles e mais que isso, o fracasso de um modelo de relacionamento baseado no descrédito à outra pessoa ou na idéia de inferioridade acerca do outro e da sua submissão.
Assim como fomos capazes de avançar mudando a legislação, instituindo a universalização dos seus direitos, certamente seremos capazes de rever nossas posturas diante da nossa própria responsabilidade, enquanto poder público, ou sociedade civil, no não cumprimento de seus direitos. Mas, é preciso caminhar mais rápido. Estamos perdendo nossos meninos.
Se situações há em que podemos reparar alguns danos, caso dos danos materiais, outras há em que os danos talvez sejam irreversíveis. A transformação de uma pessoa em alguém que não se importa com a própria vida talvez seja o maior deles.
Diante disso talvez devêssemos nos indagar se nós nos importamos com a vida deles. Ou se “isso é problema nosso”. Talvez a pergunta melhor seja “que temos com isso?”, porque para muitos de nós “o problema é do juiz”, ou dos legisladores, vereador, deputado (“votei neles; eles que façam seu papel”), ou do prefeito, do governo (“paguei meu imposto”), ou da igreja, ou da polícia, ou “dessa gente que trabalha com isso”.
Perguntamo-nos: se a vida desses meninos não é problema nosso, não nos importa, a morte de um ou de tantos deles não nos perturba?
Porque há muitas formas de morrer.
E uma delas inegavelmente está na falta de esperança. Ou na falta de crédito e amor que lhes destinamos. Ou na indiferença que uma vida pode representar para nós.
Finalizamos este artigo dedicando-o ao adolescente cujo processo foi arquivado porque morreu. Assassinado.
Informações Sobre o Autor
Umaia El-khatib
Profa. Adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos