Uma Análise Sobre a Juridicidade da Exigência de Regularidade Fiscal Como Critério de Habilitação de Empresas em Licitações

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ROBSON RAMOS DE ANDRADE – Servidor Público Federal; Pós-graduado em Direito Constitucional e Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes; Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (e-mail: [email protected]).

 

Resumo: Análise sobre a juridicidade da exigência de regularidade fiscal das pessoas físicas e jurídicas como requisito para firmar contratos com o Poder Público. Primeiramente, faz-se uma breve explanação sobre os critérios de habilitação previstos no art. 27 da Lei nº 8.666/93 (habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e trabalhista e cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição da República Federativa do Brasil). Passa-se, então, ao desenvolvimento do tema específico do trabalho. Analisa-se a constitucionalidade da exigência de regularidade fiscal de licitantes, com exposição de teses doutrinárias e jurisprudenciais. Constatada a base constitucional para o requisito de habilitação em análise, encerra-se com uma abordagem sobre os limites que devem ser observados por órgãos da Administração Pública a fim de evitar desvio de finalidade.

Palavras-chave: Licitação. Regularidade. Fiscal. Habilitação. Juridicidade.

 

Resumen: Análisis sobre la legalidad de la exigencia de regularidad fiscal de las personas físicas y jurídicas como requisito para firmar contratos con el Poder Público. En primer lugar, se hace una breve explicación sobre los criterios de habilitación previstos en el art. 27 de la Ley nº 8.666 / 93 (habilitación jurídica, calificación técnica, calificación económico-financiera, regularidad fiscal y laboral y cumplimiento de lo dispuesto en el inciso XXXIII del artículo 7 de la Constitución de la República Federativa del Brasil). Se pasa, entonces, al desarrollo del tema específico del trabajo. Se analiza la constitucionalidad de la exigencia de regularidad fiscal de licitantes, con exposición de tesis doctrinales y jurisprudenciales. Constatada la base constitucional para el requisito de habilitación en análisis, se concluye con un enfoque sobre los límites que deben ser observados por órganos de la Administración Pública a fin de evitar desviación de propósito.

Palabras-clave: Licitación. Regularidad. Impuestos. Cualificación. Legalidad.

 

Sumário: Introdução. 1. Um breve resumo sobre os critérios de habilitação. 2. Análise constitucional do requisito de regularidade fiscal de licitantes. 3. Limites à exigência de regularidade fiscal dos licitantes. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil, art. 37, inciso XXI:

“ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” [grifo nosso]

A licitação é o procedimento que busca viabilizar a melhor contratação possível para a Administração Pública. Ou seja, ao contrário dos particulares, que dispõem de ampla liberdade para adquirir, alienar e contratar a execução de obras e serviços, o Poder Público “necessita adotar um procedimento preliminar rigorosamente determinado e preestabelecido na conformidade da lei” (MELLO, 2015, p.536), denominado licitação.

Nesse processo de escolha da melhor proposta para atender os anseios da Administração, prevê ordenamento jurídico brasileiro que se verifique a qualificação do pretenso contratante com o Estado. É o memento em que são analisados os requisitos e documentos pessoais dos licitantes com vistas a verificar se possuem idoneidade para contratar com o Poder Público. Esse exame das condições de participar da licitação é denominado usualmente de habilitação, tanto na fase procedimental como na decisão proferida pela Administração (JUSTEN FILHO, 2016, p. 637).

Os critérios para habilitação estão dispostos no art. 27 da Lei nº 8.666/93, quais sejam: habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e trabalhista e cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal (sobre o trabalho para menores de dezoito anos).

Dito isso, o objetivo do presente estudo é trazer à baila uma análise acerca do critério de exigência de regularidade fiscal como condição para que licitantes possam contratar com o Estado.

 

  1. Um breve resumo sobre os critérios de habilitação

O primeiro critério de habilitação trazido pela Lei é a habilitação jurídica. Trata-se de exigência documental que comprove a capacidade do licitante no exercício de direitos e deveres, haja vista a possibilidade de responsabilização por eventual descumprimento de obrigações pactuadas.

Já a qualificação técnica consiste no conjunto de dados que demonstrem que a empresa tem condições técnicas de cumprir suas obrigações contratuais em conformidade com as exigências da Administração.

A qualificação econômico-financeira, por seu turno, é a comprovação de idoneidade financeira da empresa para arcar com os custos da contratação.

Quanto ao cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal, basicamente se exige que o licitante não empregue menores em violação ao dispositivo constitucional aludido.

E, recentemente inserida no art. 27 do Estatuto Licitatório, o requisito de regularidade trabalhista deve ser comprovado mediante a juntada de Certidão Negativa de débitos trabalhistas (CNDT).

Por último, cumpre dispor sobre a regularidade fiscal. Por tratar-se do foco do presente estudo, o que não afasta eventuais discussões sobre a legitimidade de outros critérios aqui apontados, necessário expor de modo mais pormenorizado os detalhes desta exigência.

Nos termos do art. 29 da Lei nº 8.666/93, a documentação relativa à regularidade fiscal, conforme o caso, consistirá em:

I – prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC);

II – prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;

III – prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;

IV – prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei.

Com a regularidade fiscal, o licitante atende o preceito legal segundo o qual deve demonstrar que está devidamente inscrito nos cadastros fiscais estatais e que está quite com suas obrigações.

 

  1. Análise constitucional do requisito de regularidade fiscal de licitantes

Antes da Lei nº 8.666/93, as licitações da Administração Federal eram regidas pelo Decreto-Lei nº 2.300/86. Com a redação dada ao art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988, houve críticas doutrinárias acerca do dispositivo do Decreto-lei que previa regra de habilitação similar à que ora se analisa. Mukai, naquele ensejo, assentou:

“(…) a regularidade fiscal constitui uma coação indireta do Poder Público para que a empresa se mantenha em dia com os cofres públicos. Portanto, de um lado, não é indispensável à garantia do cumprimento das obrigações, sendo excessiva e não proporcional ao fim visado pelo texto, e, de outro lado, nada tem que ver com esse fim. Como consequência, a regularidade fiscal não pode ser admitida em face da Constituição.” (MUKAI, 1990, pp. 60 e 61)

O entendimento esposado ressoava em outros autores. Rigolin sustentara que:

“Não se argumente que o Texto Constitucional, hoje, autoriza limitação desta ordem, ao estabelecer que a ‘pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios’, a teor do art. 195, § 3°. Dito argumento prova justamente o contrário. Prova que, quando a Constituição o desejou, estabeleceu expressamente, isto é, constituiu uma exceção, de sorte que a exigência de regularidade perante o sistema de seguridade social, esta, sim, pode ser exigida, o que, evidentemente, não libera a exigência de outros tributos como requisito de idoneidade fiscal, dado, quando menos, o impediente advindo do art. 37, XXI”. (RIGOLIN, 1991, pp. 31-32 e 232)

À vista do mencionado dispositivo constitucional, Maria Sylvia Zanella Di Pietro advertira, ainda ao tempo do Decreto-lei 2.300 — e em linha com os autores citados —, que a exigência de regularidade fiscal não encontrava abrigo na Constituição atual, já que a regularidade jurídico-fiscal não se enquadra nos conceitos de capacidade técnica e econômica a que se refere o art. 37, XXI.

Passados vários anos, já debruçando sobre a novel Lei nº 8.666/93, a professora Di Pietro, ao contrário, atualmente revela novo posicionamento:

“Revendo posicionamento adotado em edições anteriores, passamos a entender que o sentido do dispositivo constitucional não é o de somente permitir as exigências de qualificação técnica e econômica, mas de, em relação a esses dois itens, somente permitir as exigências que sejam indispensáveis ao cumprimento das obrigações.” (DI PIETRO, 2011, p. 399)

Nesse mesmo sentido, para Ronny Charles Torres:

“A exigência da regularidade fiscal não apenas visa uma correta censura aos que se desviam de suas obrigações fiscais, como também se constitui em norma promocional, que garante incentivo aos adimplentes com seus encargos tributários; além disso, apresenta-se como um instrumento de garantia da isonomia, pois é injusto permitir a participação, no certame, daqueles que não honram com suas obrigações fiscais, portanto podem omitir de seus custos tais gastos, ofertando propostas menores, mas não melhores para o interesse público.” (TORRES, 2017, p. 388)

Celso Antônio Bandeira de Mello também se associa a essa corrente. Contudo, faz uma ponderação:

“(…) o licitante pode haver se insurgido contra o débito por mandado de segurança ou outro meio pelo qual o questione ou questione seu montante. Há de se ter por certo que ‘a exigência de regularidade fiscal não pode sobrepor-se à garantia da universalidade e do monopólio da jurisdição’, como bem o disse Marçal Justen Filho. Donde, se a parte estiver litigando em juízo sobre o pretendido débito, tal circunstância não poderá ser um impediente a que participe de licitações.” (MELLO, 2015, p. 606)

Ante os argumentos colacionados, percebe-se que, apesar de não expressamente prevista na Constituição, a regularidade fiscal, como requisito para celebração de contratos com a Administração Pública, guarda sintonia com o espírito da Carta Magna. No escólio de Marçal Justen Filho, “essa exigência, no caso de licitação, não é inconstitucional. Afinal, a própria Constituição alude a uma modalidade de regularidade fiscal para fins de contratação com a Administração Pública (art. 195, § 3.º)”. (JUSTEN FILHO, 2016, p. 663)

A constitucionalidade do requisito exigido também é reconhecida em âmbito jurisprudencial. Para o STF, a inconstitucionalidade só se afigura quando há impedimento absoluto ao exercício da atividade empresarial. Ou seja, a mera limitação, tal como a proibição de contratar com instituições financeiras governamentais, é reconhecida como válida.

No âmbito do Tribunal de Contas da União, há inúmeros precedentes validando o critério de habilitação em tela. A título de exemplo:

“(…) 9. Ademais, a contratação, pelo Poder Público, de empresa em situação de irregularidade fiscal representa violação ao princípio da moralidade administrativa, pois haverá a concessão de benefício àquele que descumpre preceitos legais. Em última instância, haverá também o estímulo ao descumprimento das obrigações fiscais.” (Acórdão 2.097/2010, 2.ª Câm., rel. Min. Benjamin Zymler).

Vencida, portanto, a discussão acerca da constitucionalidade da exigência em si, faz-se mister delimitar o seu alcance. É que, se resta comprovada a constitucionalidade do requisito legal de regularidade fiscal das empresas que pretendem contratar com o Estado, não se pode dela lançar mão com intuito diverso daquele que motivou sua criação. A licitação não pode servir como instrumento indireto de cobrança de tributos e créditos fiscais. É inadmissível a ampliação, sem qualquer medida ou avaliação crítica, do requisito de regularidade fiscal, já que as exigências somente podem ser impostas como evidência da idoneidade e confiabilidade do sujeito.

Em semelhante exegese, Ronny Charles obtempera que:

“Sendo razoável, o empecilho à competitividade, pela exigência de regularidade fiscal, é algo constitucionalmente permitido, exteriorizando uma política fiscal e promocional do Estado. Ele estabelece regras de habilitação que beneficiam aqueles detentores de certa regularidade com o fisco. A questão mais trabalhosa é a de estabelecer os limites e parâmetros para tal aferição.” (TORRES, 2017, p. 397)

 

  1. Limites à exigência de regularidade fiscal dos licitantes

Numa interpretação mais radical, há quem defenda que os interessados em contratar com a Administração Pública devem comprovar regularidade fiscal para com as três Fazendas. Nessa linha de compreensão, releva citar a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

“RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SERVIÇO DE CONSULTORIA. ARTIGOS 29 E 30, DA LEI 8.666/93. CERTIFICAÇÃO DOS ATESTADOS DE QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. PROVA DE REGULARIDADE FISCAL JUNTO À FAZENDA ESTADUAL (…) A Lei 8.666/93 exige prova de regularidade fiscal perante todas as fazendas, Federal, Estadual Municipal, independentemente da atividade do licitante. Recurso especial provido. Decisão por unanimidade.” (STJ, REsp nº 138745/RS, Rei. Min. Franciulli Netto, DJ de 25/06/2001)

Essa interpretação, extensiva, não se coaduna com o preceito constitucional insculpido no art. 37, inciso XXI, que claramente impõe limitação aos critérios de habilitação, reduzindo-os ao mínimo necessário para obter-se a garantia do cumprimento das obrigações. Nessa senda, o mestre Marçal Justen Filho dispõe que a “interpretação extensiva da regularidade fiscal não apenas infringe o princípio da razoabilidade e da universalidade de acesso a licitações. É incompatível com o princípio da República”. Mais à frente, continua o autor:

“(…) Suponha-se licitação na órbita federal. Imagine-se empresa em perfeitas condições de executar satisfatoriamente o objeto e que formulará a melhor proposta. Ocorre que essa empresa deixa de obter certidão de regularidade quanto a tributos imobiliários do Município em que está estabelecida. Será inabilitada e a União perderá a possibilidade de realizar o contrato mais vantajoso.” (JUSTEN FILHO, 2016, p. 668)

O impasse evidenciado se dá pelo fato de que a Lei nº 8.666/93 não foi categórica quanto aos limites da abrangência relativa regularidade fiscal. A solução parece ter vindo pela Lei nº 10.520/02, que dispôs sobre o Pregão. O seu art. 4.º, XIII, introduziu inovação significativa no tocante à disciplina da regularidade fiscal:

“A habilitação far-se-á com a verificação de que o licitante está em situação regular perante a Fazenda nacional, a Seguridade Social e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, e as Fazendas Estaduais e Municipais, quando for o caso (…)”.

Com efeito, em que pese tratar-se de lei que foi editada para instituir a modalidade licitatória denominada pregão, entende-se que a norma em tela possui regras gerais que se aplicam a todas as modalidades licitatórias. Marçal Justen Filho preconiza:

“Sendo a Lei 10.520/2002 um diploma veiculador de normas gerais sobre licitação, resulta inquestionável a viabilidade de estabelecer regras sobre habilitação em licitações. Mas há uma indagação que não quer calar: por que a regularidade fiscal atinente ao pregão deve ser tratada diversamente do que se passa com as demais modalidades de licitação? Veja-se que o regime jurídico das condições de participação no pregão (aí incluídas as questões quanto à habilitação) não apresenta nenhuma particularidade. Afinal, o que diferencia pregão e outras modalidades de licitação não é a disciplina da habilitação.

Em se reconhecendo que a temática sobre requisitos de habilitação apresenta natureza idêntica no pregão e em todas as demais modalidades licitatórias, surgem novas luzes sobre o tema examinado. Se a norma contida na Lei 10.520/2002 não é especialmente relacionada com o pregão, então apresenta natureza de norma geral quanto a toda e qualquer licitação. Assim sendo, ter-se-ia de convir que, nos termos do princípio da posterioridade, a norma da Lei 10.520/2002 teria alterado o regime jurídico genérico de toda e qualquer licitação.” (JUSTEN FILHO, 2016, pp. 671 e 672)

Com base no exposto, pode-se concluir que a Lei 10.520/2002 introduziu inovação aplicável a todas as modalidades licitatórias, consistente na restrição à amplitude das exigências quanto à regularidade fiscal.

Feitas essas considerações, dessume-se que a análise sobre a exigência de regularidade fiscal compreende o enfrentamento do tema sob vários ângulos.

A primeira abordagem que se faz é referente à órbita em que se realiza a licitação. Para Marçal Justen Filho, “a regularidade perante a seguridade social deve ser exigida de todo e qualquer licitante. Contudo, somente é cabível exigir a comprovação da regularidade fiscal perante o ente federativo que promove a licitação”. (JUSTEN FILHO, 2016, p. 669).

O Superior Tribunal de Justiça, em julgado de 2007, assentou:

“(…) 4. Isentar a recorrente de comprovar sua regularidade fiscal perante o município que promove a licitação viola o princípio da isonomia (Lei 8.666/1993, art. 3.º), pois estar-se-ia privilegiando os licitantes irregulares em detrimento dos concorrentes regulares”. (REsp 809.262/RJ, 1.ª T., rel. Min. Denise Arruda, j. em 23.10.2007, DJ de 19.11.2007).

Segundo ensina Marçal Justen Filho (2016, p. 671), essa solução foi consagrada pela Lei 10.520/02. A conclusão do citado mestre é no sentido de que a única interpretação razoável para a fórmula verbal adotada pela Lei do Pregão reside em vincular a exigência à órbita federativa que promove a licitação. Ou seja, se a União promover o pregão, não será o caso de exigir comprovação de regularidade fiscal perante Estado, Distrito Federal e Município, eis que não são eles interessados no certame.

Ocorre que, em perspectiva diversa, a análise sobre o limite da exigência se volta para o objeto contratual. Toshio Mukai (2000, p. 29) pugna que, em situações de contratação de serviços, não haveria que exigir certidão da Fazenda Estadual, relativa ao ICMS; de outra forma, tratando-se de uma compra, não haveria motivos para que se exigisse certidão negativa municipal, relativa ao ISS.

Fundado em idêntico entendimento, Ronny Charles Torres (2017, p. 397) afirma acreditar que “as provas de regularidade do inciso III [do art. 29 da Lei nº 8.666/93] devem guardar pertinência com a atividade objeto da licitação”. Não sendo assim, acrescenta o professor, “poderiam ser verificados abusos, como a exigência de tributos (mesmo que inseridos na esfera de competência tributária do ente realizador do certame) totalmente estranhos ao negócio a ser contratado”.

A conclusão a que chegam os mencionados autores se lastreia, por interpretação sistemática do ordenamento, no art. 193 do Código Tributário Nacional, no bojo do qual há o seguinte regramento:

“Art. 193. Salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que o contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada, relativos à atividade em cujo exercício contrata ou concorre.”

O próprio Marçal Justen Filho, sob a perspectiva do objeto licitado, assevera que:

“Mais precisamente, a existência de débitos para com o Fisco apresenta pertinência apenas no tocante ao exercício de atividade relacionada com o objeto do contrato a ser firmado. Não se trata de comprovar que o sujeito não tem dívidas em face da “Fazenda” (em qualquer nível) ou quanto a qualquer débito possível e imaginável. O que se demanda é que o particular, no ramo de atividade pertinente ao objeto licitado, encontre-se em situação fiscal regular. Trata-se de evitar contratação de sujeito que descumpre obrigações fiscais relacionadas com o âmbito da atividade a ser executada.

(…)

Justamente por isso, o próprio inc. II do mesmo art. 29 exige que o sujeito comprove sua inscrição no cadastro municipal ou estadual pertinente ao ramo da atividade e compatível com o objeto licitado. Ou seja, não teria sentido dispor nesses termos no inc. II e exigir, no inc. III, que o sujeito comprovasse regularidade fiscal em outros ramos, desvinculados do objeto licitado. Se o sujeito não necessita comprovar inscrição cadastral fiscal em todos os ramos possíveis de sua atividade, não há sentido em submetê-lo a demonstrar regularidade fiscal inclusive quanto a esses outros ramos. (…)” (JUSTEN FILHO, 2016, p. 667)

Percebe-se que, nas perspectivas observadas, não há consenso doutrinário ou jurisprudencial, pelo que, com vistas a evitar questionamentos, sobretudo de órgãos de controle da Administração Pública, o mais adequado é proceder a uma interpretação sistemática de todo o ordenamento, no sentido de que a exigência de regularidade fiscal se aplica aos tributos de responsabilidade da Fazenda interessada na contratação, mas também àqueles atinentes atividade ou objeto a ser contratado. A propósito, esta é a interpretação dada pela Procuradoria-Geral Federal, órgão da Advocacia-Geral da União, a qual, por meio do Parecer nº 03/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, aprovado pelo Procurador-Geral Federal em 09 de junho de 2014, concluiu que:

“A exigência de regularidade fiscal prevista no inc. III, do art. 29 da Lei nº 8.666/1993, restringe-se aos tributos de titularidade da fazenda nacional e àqueles de competência das fazendas estadual, distrital ou municipal pertinentes às obras, serviços e compras a serem contratados.”

Em arremate, é relevante avaliar as situações em que a licitante possui diversas unidades (matriz e filiais). Com efeito, no âmbito fiscal, cada unidade empresarial (estabelecimento) do empresário recebe uma inscrição tributária específica. Por conseguinte, uma única pessoa jurídica poderá titularizar várias inscrições cadastrais tributárias. Quer dizer, existirá uma inscrição cadastral para a matriz e uma para cada filial.

Destarte, como cada certidão de regularidade fiscal se vincula a um específico número de inscrição cadastral, é juridicamente possível que uma única pessoa jurídica detenha empreendimentos em situação regular, ao tempo em que outros são qualificados como irregulares.

Em princípio, interessa à Administração a comprovação de regularidade fiscal da pessoa que participa da licitação. Numa análise mais apressada, poder-se-ia afirmar que a existência de um único débito fiscal já seria suficiente para impedir que a pessoa jurídica fosse habilitada numa licitação.

Refutando essa interpretação, Marçal Justen Filho dispõe:

“(…) essa interpretação gera uma dificuldade prática insuperável. Se houvesse a sua adoção, caberia ao licitante apresentar comprovação da regularidade fiscal de todas as unidades empresariais a si vinculadas. Em alguns casos, isso significaria a apresentação de documentação pertinente a dezenas, centenas ou milhares de estabelecimentos. Isso tornaria inviável a participação de grandes empresas em licitações, simplesmente pela dificuldade em promover a obtenção de certidões de regularidade fiscal de todos os seus estabelecimentos. Mas também haveria a oneração da própria atividade administrativa, eis que caberia examinar uma multiplicidade significativa de documentos.” (JUSTEN FILHO, 2016, p. 673)

Logo, conclui o autor:

“(…) a solução adotada é a comprovação da regularidade fiscal atinente a uma específica unidade empresarial. O licitante deverá comprovar a regularidade fiscal relativa ao estabelecimento que executará a prestação contratual.” (JUSTEN FILHO, 2016, p. 673)

No mesmo sentido, é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

“Constatado que a filial da empresa ora interessada é que cumprirá o objeto do certame licitatório, é de se exigir a comprovação de sua regularidade fiscal, não bastando somente a da matriz, o que inviabiliza sua contratação pelo Estado. Entendimento do art. 29, II e III, da Lei de Licitações, uma vez que a questão nele disposta é de natureza fiscal” (REsp 900.604/RN, 1.ª T., rel. Min. Francisco Falcão, j. em 15.03.2007, DJ de 16.04.2007).

 

Conclusão

Analisou-se no presente estudo a constitucionalidade do requisito legal de habilitação — em procedimentos licitatórios — denominado regularidade fiscal.

Após análise de diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, concluiu-se que, conforme entendimento majoritário, a exigência de regularidade fiscal das pessoas físicas e jurídicas que desejam firmar contrato com o Poder Público encontra supedâneo na Constituição Federal, embora não exista expressa menção a tal requisito.

Tal conclusão, além de encontrar fundamento em renomados autores, pode ser visto em precedentes do Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Constituição.

Contudo, a possibilidade de exigir dos licitantes a regularidade fiscal para contratar com o Estado não confere à Administração um poder irrestrito para limitar o acesso dos interessados à licitação, cujos critérios de habilitação devem servir para garantir o melhor negócio para o ente contratante, sem abusos e desvio de finalidade.

Nesse sentido, não obstante o reconhecimento de sua constitucionalidade, a exigência de regularidade fiscal não pode servir de pretexto para exigir o pagamento de créditos fiscais, cuja cobrança se deve dar por via executiva.

Desse modo, faz-se imprescindível estabelecer limites quanto aos entes federativos em relação aos quais se fará a exigência de regularidade fiscal.

A princípio, deve-se compreender que a regularidade a ser evidenciada é aquela perante o ente que promove a licitação. Sendo assim, se a União promover a licitação, não será o caso de exigir comprovação de regularidade fiscal perante Estado, Distrito Federal e Município, eis que não são eles interessados no certame.

Mas a análise também pode dar-se conforme o objeto da licitação. Sob esse aspecto, em observância à proporcionalidade, a exigência de regularidade fiscal deve estar circunscrita aos tributos devidos à Fazenda Pública interessada, ou seja, os tributos que tenham relação com a atividade contratada.

As teses citadas são defendidas — às vezes isoladamente — por diversos autores, o que evidencia que, sobre o tema, não há consenso na doutrina nem na jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas da União, restando a este estudo a conclusão que harmonize os entendimentos, nos moldes defendidos pela Procuradoria-Geral Federal, no sentido de que a exigência de regularidade fiscal se restringe aos tributos de responsabilidade da Fazenda interessada na contratação e àqueles atinentes atividade ou objeto a ser contratado.

Em derradeira perspectiva, nos casos em que as empresas possuem filiais, ponderou-se sobre a proporcionalidade da exigência de regularidade fiscal em relação a cada unidade, vez que cada uma possui inscrição cadastral junto aos fiscos. A conclusão, neste caso, é no sentido de que o licitante deverá comprovar a regularidade fiscal relativa ao estabelecimento que executará a prestação contratual. Não fosse esse o entendimento, poder-se-ia chegar ao despropósito de, em alguns casos, exigir-se a apresentação de documentação pertinente a dezenas, centenas ou milhares de estabelecimentos, o que tornaria inviável a participação de grandes entidades empresárias em licitações, haja vista a dificuldade para obter certidões de regularidade fiscal de todos os seus estabelecimentos.

 

Referências

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

MUKAI, Toshio. Estatuto Jurídico de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Saraiva, 1990.

MUKAI, Toshio. A empresa privada nas licitações públicas: manual teórico e prático. São Paulo: Atlas, 2000.

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Manual Prático das Licitações. São Paulo: Saraiva, 1991.

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 8. ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.