Com a elaboração que os temas têm tomado no momento presente, especialmente como elemento da crítica ao positivismo jurídico, vale testar, num ambiente diverso do presente contexto histórico, e através dos testemunhos da literatura, qual era a noção de justiça. Qual, enfim, a eficácia de um discurso social que põe em questão, não o Direito Positivo, mas a Justiça.
Não nos propomos, mas outros estudos poderiam fazê-lo, a tecer uma análise diacrônica que antepusesse a apreensão da Justiça de José de Alencar àquela de Rubem Fonseca, nem muito menos comparar o mesmo elemento temático da literatura à noção de Justiça na weltanshauung do brasileiro. Neste sentido, a proposição seria de pesquisa básica, não menos válida por ser prazerosa.
O direito como tema e o direito como prática
Não estamos, assim, tratando de Direito. Cabe aqui, uma vez mais, enunciar o que é a prática de Direito, excluindo dela outros discursos que, embora fontes de autoridade, não se constituem em peças do mecanismo da prática jurídica. O que é, no nosso entender, a prática do Direito?
“Para não se ir mais longe, no Direito Civil Brasileiro, do Conselheiro Ribas [1], obra de 1880, o autor, após dar uma evolução histórica da noção de Direito, apoiando-se nas velhas distinções entre moral e norma jurídica, e entre sentimento filosófico do justo e existência social do fenômeno, introduz a noção romanística da jurisprudência.
Ribas define como tal a “ciência do Direito unida ao hábito de aplicá-la”. A jurisprudência constaria, em sua parcela de “ciência”, da dogmática do Direito (“o conhecimento do Direito realmente existente em certa nação, e o verdadeiro sentido de seus textos”), da filosofia do Direito (“a crítica do Direito positivo”) e da história do Direito (“o conhecimento das fontes do Direito e das transformações por que têm passado”). Em sua vertente prática, a “jurisprudência” abrangeria a resposta às consultas, a advocacia forense e à atividade do magistrado. Os práticos do Direito, para Ribas, seriam leguleios, se conhecessem os textos da lei, sem saber interpretá-las; seriam jurisperitos, se conhecessem os textos e sua verdadeira interpretação, mas não aplicassem seu conhecimento; seriam rábulas, os aplicadores que ignorassem a interpretação e a “teoria científica”; e apenas mereceriam a designação de jurisprudentes os que reunissem “a ciência do Direito à perícia na sua aplicação”.
O sentido estrito de “Direito”, a que se chegou até aqui, é precisamente a noção de Ribas nos dá da definição romanística de jurisprudência. Como se pode perceber, é uma técnica de interpretação de uma mensagem cultural pré-estabelecida, com vistas à aplicação política desta decifração. O processo comportaria um momento semiológico, de compreensão do enunciado jurídico aplicável à situação, e de um momento pragmático de atuação social, nos parâmetros e no sentido indicado pelo enunciado decifrado, enfatizando-se que é o segundo que determina a razão de ser do primeiro.” [2]
Fontes de autoridade. Como o dissemos, naquele trabalho de 1979, o discurso do Direito não visa ao conhecimento ôntico, ou à simples verdade lógica, mas sim à criação de uma autoridade nova. O trajeto do discurso jurídico vai de um ponto de partida, que é um núcleo de autoridade, a seu objetivo, que é a instituição de outra autoridade. A eleição de um conjunto de abstrações do pensamento jurídico para servir de cimento e argamassa de um problema da dogmática depende, fundamentalmente, da autoridade da fonte; e esta não é uma autoridade epistemológica, proveniente do valor das provas experimentais, ou do encadeamento lógico do raciocínio. Resume-se, como frisa Comparato[3], numa capacidade objetiva de prevenir ou solucionar conflitos.
Citando ainda:
“No nível subjetivo, o jurista é parte de seu conhecimento, pois o pensamento jurídico traduz-se em vivência; tal conhecimento é autocentrado, e não se distingue neste ponto daquilo que classicamente se denomina “ideologia”. No nível do episteme, o discurso é automotivado e auto-referencial, no narcisismo do que, uma vez mais, a teoria das ciências chama de “ideologia”.
De outra parte, a dogmática não visa à atuação no nível puramente abstrato, como o faz a ciência e, pelo menos à luz de suas propostas assumidas explicitamente, a ideologia. Não se entende a jurisprudência sem a interpenetração da “ciência” e do “hábito de aplicá-la”. A poiesis é a justificação da auctoritas, e a “ciência” é uma produção de auctoritas; o que é o mesmo que dizer: o pensamento jurídico serve para criar normas, e as normas criadas pelo pensamento jurídico servem para atuações sociais concretas.
Desta maneira, compartilhando da ideologia o processo de conhecimento auto-centrado, a dogmática participa da técnica na sua forma de criar conhecimentos para uma aplicação prática concreta.”
Sempre remontando ao trabalho anterior, à medida que se tece, o discurso que fala o Direito torna-se Direito, e adquire a autoridade do seu objeto. Evidentemente, a autoridade resulta, em última análise, da compatibilidade do enunciado específico com o sistema (não só normativo, mas doutrinário, jurisprudencial, etc), mesmo se se levar em conta a ação daquele sobre este, como parte do desenvolvimento do Direito. Como nota Carlos Maximiliano [4], em seu livro clássico, a opinião revolucionária e isolada de um jurista não pode ser tomada como fonte de Direito.
Não é a toa que o Direito, em sua acepção tradicional, se alimenta com “os tópicos ou lugares comuns, a dialética, o bom senso, a razoabilidade, o senso de equilíbrio, a equidade, a prudência, restaurando a antiga concepção de Direito como juris prudentia”[5].
A prática do Direito e o parâmetro da literatura
Em tal trabalho, nosso objetivo era delinear a cesura entre a prática do Direito e a prática da Ciência; mas, mesmo então, certos instrumentos da teoria da literatura se mostraram úteis. Assim é que, falando da transformação que um dado científico sofre ao ser inserido no discurso jurídico, dizíamos:
“Pode-se ilustrar as conseqüências deste deslocamento com o conceito de verossimilhança, da teoria literária. A figura histórica de Napoleão, um homem nascido na Córsega e falecido em Santa Helena, que foi imperador da França, preenche o personagem Napoleão de Tolstoi, em Guerra e Paz. O reconhecimento da pessoa empírica, histórica, contribui para a atmosfera do romance, mas o Napoleão de Tolstoi só existe no texto literário, e é construído para os fins literários. A tentativa de fazer corresponder o homem com o personagem resultaria em enfraquecimento do efeito estético; reversamente, um estudo histórico baseado no personagem seria um absurdo epistemológico.
A verossimilhança vem a ser exatamente o aproveitamento estético desta presença de um mesmo elemento no mundo empírico e no universo romanesco. A fruição de um texto de ficção necessita de pontos de apoio, de pontes entre o mundo do leitor e o do romance; ao atravessar a ponte, e ao ter consciência que na outra margem, o Napoleão dos livros de História tem um outro valor, o valor que lhe atribui o sistema ficcional do livro, o leitor percebe que este sistema é diferente da estrutura do universo empírico. A eficácia da obra depende exatamente deste reconhecimento, pelo leitor, de que a narrativa é criação, e não descrição de fatos históricos.
Como já visto, quando tratávamos das analogias e diferenças entre as regras da arte musical e as regras da arte do Direito, uma coisa é o efeito estético, e outra é o efeito de autoridade. Pode-se mesmo dizer que, na aplicação do conceito de verossimilhança, os efeitos são opostos. A jurisprudência toma o dado científico e o aproveita, retirando dele o benefício da autoridade científica; autoridade, porém, que só existe quando o dado está integrado no discurso da sua ciência de origem. De maneira contrária ao efeito estético, que é o efeito de reconhecimento da ficcionalidade de uma obra, o efeito de autoridade depende, neste caso, de se obscurecer a impertinência, a não integração do dado no sistema.”
Note-se que há, no discurso da literatura e no do Direito, um mesmo elemento de sedução, vale dizer de retórica de sistema (e não retórica de discurso singular):
“O efeito de autoridade aí é possível porque a jurisprudência, em sua vertente “científica”, surge como uma construção coerente, lógica. No dizer de Dante [6] “todas as coisas são arranjadas segundo uma certa ordem, e é esta ordem que constitui a forma pela qual o universo assemelha-se a Deus”. A coerência do sistema jurídico corresponde à ordem natural, e também à ordem da ciência. O dado transplantado está assim valorado como se estivesse no sistema em que foi produzido; há uma verossimilhança de autoridade científica, resultante do poder intrínseco da logicidade e da correspondência.”
Este argumento de autoridade – a da logicidade do sistema jurídico – surgiria em tese à percepção dos homens como uma promessa de um mundo mais ordenado e justo [7].
Não menos sistemática e ordenada é a construção literária, especialmente a romanesca [8].
Mas há uma diferença fundamental entre as duas imagens de ordenação e sistema: a imagem polida do Direito tenta vender-se como análoga à ordem imutável e serena da Natureza, enquanto que a eficácia da obra literária ficcional se baseia na consciência do leitor de que o universo que se lhe apresenta é ficto, artificial, obra do homem – no mecanismo mágico do estranhamento [9]:
“A função da arte seria então quebrar este automatismo, chamar a atenção para o próprio meio, para a própria palavra. É neste ‘ olhar para si mesmo’ que residiria a língua poética, distinguindo-se da língua vulgar,prosaica, comum, prática. A partir desta dicotomia, criam-se novas categorias de análise: a ‘desautomatização’, o’estranhamento’ ou, nas palavras mais precisas de Jacobson (1923), a ‘deformação organizada’ da língua comum pela língua poética.”[10]
O estranhamento, aliás, como notou Levi-Strauss [11], é a fonte das delícias da obra de arte, eis que, construída como um modelo humano do mundo, na produção ficcional o leitor frui um universo que – por mais que seja reprodução do Universo natural – foi constructo de um semelhante, e evidencia o poder do homem sobre uma natureza, conquanto ficta. O poder ficto do homem – o jogo em que sua humanidade se faz onipotente – revivido pelo leitor só é prazeroso porque a obra é estranhada, evidenciada como algo distinto da Natureza [12].
Essa curiosa e contraditória relação entre os constructos da literatura e do Direito [13] nos leva à questão, sempre central, das relações entre essas duas práticas e a categoria de ideologia.
Ideologia, Literatura & Direito
Em trabalho que já data de 30 anos, toquei na questão em análise:
“No caso do Direito, somente sob o crivo de uma ciência das ideologias se poderia tentar a aproximação <por cima>, ou seja, por meio de sua configuração aparente. A opção, que se impõe, é de, à imitação das demais ciências, tentar moldar entre a bruma das reconceptualizações a figura real – e inconsciente – do objeto do Direito”[14].
A problemática onde o estudo se incrustava era, obviamente, o estruturalismo de Levi-Strauss e Althusser. Central, aí, a noção de ideologia, que Marx, a quem tal problemática é tributária, inicialmente descreveu, muito genericamente, como:
“the life process of … individuals, … as they may appear in their own or other people’s imagination, … what men say, imagine, conceive…men as narrated, thought of, imagine, conceived …”[15]
A noção de ideologia, embora muito impressionista nesse texto incial, como aliás conviria a seu objeto, não se resume à visão individual e subjetiva; estende-se certamente às expressões dessa visão na literatura – e em outras modalidades de discurso [16]. O ponto chave da noção é causação dessa consciência, que, renegando qualquer idealismo, Marx localiza na instância real e, nela, radicada no econômico:
“Life is not determined by consciousness, but consciousness by life. In the first method of approach the starting point is consciousness taken as the living individual; in the second method, which conforms to real life, it is the real living individuals themselves, and consciousness is considered solely as their consciousness”[17].
Ideologia, assim, na proporção em que reflita a visão de uma classe, definida pela sua função econômica, é parcial e interessada. Assim, em face da hipótese de uma linguagem denotativa e precisa, como se quer a ciência, o fluir do verbo ideológico seria distorcido e enganoso. Embora capaz de atuar sobre a História, progressiva ou regressivamente, pela sua eficácia na consciência dos homens, e, em particular, da sua consciência de classe, a ideologia não teria, na visão de Marx, uma História própria:
“The phantoms formed in the human brain are also, necessarily, sublimates of their material life-process, which is empirically verifiable and bound to material premises. Morality, religion, metaphysics, all the rest of ideology and their corresponding forms of consciousness, thus no longer retain the semblance of independence. They have no history, no development; but men, developing their material production and their material intercourse, alter, along with this their real existence, their thinking and the products of their thinking”[18].
A fantasmagoria a que se refere Marx teria, obviamente, uma manifestação privilegiada na literatura ficcional. Mas, no tocante à expressão literária, a ideologia, tal como ela remanesce na consciência individual ou coletiva, é transformada pela construção ficcional, na qual o efeito do sistema ficcional re-qualifica e re-significa o seu valor:
“According to Marx the social contradictions which inform a given literary work may be so
mediated within the work as to provide true and penetrating insights into human life. Whatever ideological preconceptions the writer entertains, the writer may present subjective aspects of life, distort facts or achieve sensual forms in ways which reveal human realities hidden behind ideological expressions. Indeed, Marx found this to be the case even in the work of writers who were consciously motivated by conservative or reactionary ideas”[19].
Assim, como notou Lukacs [20], a ideologia burguesa refletida nos romances de Balzac teria uma pungência e clareza mais veemente do que todo o corpo crítico da ciência social contemporânea a Eugenie Grandet. Exatamente como Jhering, Marx sentiu que a clareza da visão literária ultrapassaria de muito a crítica científica de então. Claramente se evoca, aqui, a noção de estranhamento, a que nos referimos na seção anterior deste trabalho.
Para essa perspectiva marxista, o Direito seria outro dos discursos da ideologia, caracterizado por uma ilusão de que a instância do jurídico predominaria sobre outras práticas sociais:
“Marx attacks the concept of law as a structure standing above society, as an independent force with a history of its own, a concept paralleled in literary studies by the New Criticism’s views of literature and literary texts. He finds in legal ideology the same difficulty as in other areas of ideology: the ideologists, consigned by the prevalent division of labor in a given social structure to develop their expertise in a certain branch of ideology, develop, along with this, the illusion that the subject which they study determines social life as a whole. Thus jurists tend to believe that the law and the state determine the life of society as a whole, and indeed their own daily activity leads them to this belief. In the Marxian view, however, it is social life, particularly its economic aspects, that determines the nature of law and the state in a given society.”[21]
Através de categorias como a de “igualdade”, o Direito implementaria a estrutura de poder que reforça a classe dominante:
“The majestic equality of the laws . . . forbids rich and poor alike to sleep under the bridges, to beg in the streets, and to steal their bread. This equality is one of the benefits of the Revolution. ‘Why, that revolution was effected by madmen and idiots for the benefit of those who had acquired the wealth of the crown. It resulted in the enrichment of cunning peasants and money-lending bourgeois. In the name of equality it founded the empire of wealth.”[22]
A ideologia mediada pelo sistema
No nosso trabalho de 1974, propusemos uma alternativa a essa visão de um Direito que é puro exercício de ideologia e implementação de poder dominante, usando como elemento heurístico a categoria de rito:
“(…) o rito é uma cadeia de significantes, expresso em condutas que denotam um determinado complexo mítico. Embora, na realidade, subsistindo ao nível da expressão, o rito aparece à interpretação racional como significado, ao menos para aqueles que o tem como relato a uma situação mítica. Mais precisamente, todos que praticam o rito não o percebem como expressão de um determinado complexo mítico, emprestando-lhe seja a condição de meio de comunicação com um receptor hipotético (a divindade) seja, como ação cristalizada a qual já se retirou qual quer sentido, o estatuto de uma ação social automática (que vem na verdade confrontar), ainda no plano da superestrutura , com um complexo ideológico). O importante – mesmo se a ligação mito-ritual seja consciente – é a atualização de um esquema conceptual ao desempenho de uma prática.
Preexistente, há uma estrutura, que é posta entre parênteses, socialmente reafirmada por acontecimentos dirigidos, visando à evidenciação daquela mesma estrutura: a ação leva ao conceito, após o conceito ter conduzido à ação. (…)o que importa é frisar que, enquanto significante, o ritual é tomado como significado.
Como, entre toda a faixa de sons audíveis, o espírito humano isolou um determinado número daqueles como significantes, por meio de oposições que se conjugam binariamente, o modelo jurídico confere, entre a totalidade das ações possíveis, a algumas dentre estas o caráter de significativas. O sistema jurídico agindo evidentemente em nível muito mais dilatado do que a linguagem, procede da mesma maneira do que esta ao estabelecer uma fronteira (se bem que flexível) entre o pertinente e o não-pertinente. Ao tipificar, por exemplo, determinada ação faz mais do que elegê-la como significante para um conjunto de articulações.
(…)O Sistema das condutas consideradas como significantes, como um todo, é aposto a um sistema de significados, ou seja, de condutas que o Direito articula àquelas: à ação considerada como crime o Direito faz corresponder uma ação considerada como pena. Posto como sistema semiológico, ao significante (ação) é articulado um significado (ação-pena). O paralelo é tanto mais evidente quando se percebe que uma lei não é outra coisa se não dicionário, um repositório de mensagens emitidas e recebidas; e, claramente, um contrato não se diferencia de uma lei em um caráter semiológico: ambos são códigos onde não-prestação e sanção são articulados
Entre a cadeia de significantes e a de significados repousa uma estrutura oblíqua que vem a ser o sistema de relações de significação. Como já foi dito acima, as relações não se dão termo a termo, mas entre sistemas complexos, o que explica a aparente arbitrariedade entre uma ação e uma sanção, evidenciada além das reconceptualizações que a legitimam num dado complexo ideológico. Aí, neste conjunto estruturado, se acha o objeto da Ciência Jurídica.
Como visto, o ritual é a atualização de um esquema conceptual, reflexivamente disposto, visando exatamente à revelação da estrutura que lhe dá origem. A lei, esquema consciente, considera, simétrica e inversamente, uma ação para atribuí-la um significado, isto é, para considera-la significante. O rito conscientiza uma estrutura, a lei estrutura uma ação, dotando-a (ou não) de pertinência.
Em suma, o mito significa uma ação, a priori, a lei o faz a posteriori; o mito surge à consciência como significado, a ação submetida à lei como significante.
Porém o ponto comum é o relacionamento entre um dado de superestrutura e uma prática: o ritual exprime indiretamente uma mítica, o Direito (considerado como estrutura que tem como termos o sistema de ações significantes e o sistema de ações significado) expressa diretamente uma ideologia [23]. Portanto, como fonologia, o Direito age em nível microssociológico, pressupondo não só uma infra-estrutura, como uma ideologia da qual é a expressão consciente, e como qualquer ciência das superestruturas, o esquema conceptual que, senão imutável e comum a todos os povos, é merecedor de uma análise profunda de sua permanência, relativa ao estágio de desenvolvimento da humanidade”[24].
A proposta, assim, é tomar o direito não como uma fantasmagoria, representação parcial e difusa da realidade social, mas como um sistema de significação, enfatizando-se o sistema e a causalidade interna a ele como elemento cintilante.
Uma possível epifania
Ora, esse sistema, como o sistema da ficção, modifica o sentido que cada uma de suas normas, de per si, teria. Assim como Napoleão em Guerra e Paz é outro, que não “o” Napoleão histórico, e ganha significado específico através da oposição com seu personagem oposicional, General Kutuzov, também cada norma ganha sentido do conjunto das outras normas legais, da doutrina, das tendências jurisprudenciais, da entrada de uma norma oposicional no sistema, e assim por diante. A igualdade, a que tanto ridicularizava Marx e Engels, ainda que uma meta-norma, pode ter o valor de recusar a um homem negro a legitimidade ad causam, por ser coisa (como no caso Dred Scott, de 1857, que veremos adiante) ou de assegurar cotas a negros na admissão às universidades, sem abalo na norma legislada singular, e sem interveniência do órgão político.
Essa mesma complexidade, impactando centrifugamente na ideologia individual ou coletiva, pode atuar no mundo concreto (como a repercussão do próprio caso Dred Scott) de forma análoga ao que ocorre com o sistema ficcional da literatura (para ficar no mesmo tema, o impacto de Uncle Tom’s Cabin de Harriet Beecher Stowe ou de Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, no Brasil, no ímpeto abolicionista). Tudo isso ocorrendo num contexto em que a instância do econômico ao menos em seus elementos mais medulares, não sofria modificação que justificasse, mecanicamente, a mudança ideológica e histórica [25].
Mas nosso instrumento heurístico, desta vez, não é a análise do impacto da literatura ou do direito sobre a ideologia social, mas o uso do subsistema literário como speculum mundi do Direito. Assim, uma primeira questão teórica pertinente é a relevância dessa imagem especular, num outro sistema superestrutural, para a prática do Direito.
A nossa resposta é: toda ou nenhuma. Todo discurso estranho à prática do Direito, como a Ciência ou a Filosofia, é incorporado e utilizado como insumo na produção do efeito-autoridade, próprio da prática jurídica. Assim, até mesmo o olhar percuciente sobre a imagem do Direito na literatura pode ser reaproveitado pelo Direito para fazer-se autoridade.
Mas a segunda questão teórica é a pertinência deste exercício para o conhecimento do direito. Para o conhecimento conceitual (begriff) talvez – ainda – pouco. Mas para a iluminação do sentido e limites de nossa prática, o clarão da literatura pode ser pura epifania, como foi para Marx a leitura de Balzac[26].
Informações Sobre o Autor
Denis Borges Barbosa
Doutor em Direito Internacional pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Mestre em Direito pela Columbia University, de Nova Iorque, Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Gama Filho, Professor dos Cursos de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.