Sempre tive grande preocupação com a sistematização lógica do Direito, sua coerência e sua qualificação como ciência. Disse em outra oportunidade que dos ramos do Direito o Processual é o mais lógico, se essa qualidade pode ser atribuída àquele, uma vez que é uma estrutura criada pela inteligência humana, diferentemente do direito material que disciplina comportamentos sociais, mais, ou menos, corriqueiros mas da vida das pessoas.
Essa preocupação leva a uma visão crítica ou, no mínimo, de dúvida sobre os conceitos, especialmente os automaticamente repetidos mesmo depois de alteração da realidade fática ou jurídica.
Parece que isso está acontecendo com o Direito Processual enquanto sistema e com a classificação das ações, inclusive na edição que nesta data (03/05/06) está no prelo de nosso Direito Processual Civil Brasileiro, mas que caducaram ou não correspondem ao Direito Processual vigente no Brasil ou a entrar em vigor brevemente, ficando a promessa de na próxima sejam apresentados os novos conceitos.
No que se refere ao sistema do Direito Processual são inegáveis os benefícios trazidos pela Teoria Geral do Processo, mas a sua formulação está incompleta havendo muito o que fazer para se chegar a um abrangente conjunto de princípios omnivalentes, que informem o processo civil, o processo penal (comum e militar), o processo do trabalho e o processo eleitoral. Reduzindo o grau de generalidade, deve ser formulada uma Teoria Geral do Processo Civil, uma do Processo Penal e assim por diante, com princípios plurivalentes. Reduzindo ainda mais o âmbito, cada um dos sistemas pode comportar subsistemas em círculos concentricos ou na forma de organograma em que a célula superior abrange e informa as a ela inferiores.
Assim num primeiro nível dentro do sistema geral do Direito Processual, encontram-se os sistemas do Direito Processual Civil, do Direito Processual Penal, do Direito Processual do Trabalho e do Processo Eleitoral.
Dentro do Processo Civil é possível distinguir, sem a menor dúvida, a existência de três sistemas com princípios próprios: o do processo civil comum singular, o processo civil das ações coletivas e o processo civil dos juizados especiais. Não é possível mais tentar entender, ou resolver problemas das ações coletivas, com os princípios do processo civil comum, que nasceu e foi idealizado a partir de um autor e um réu, como ocorria no processo romano da ordo judiciorum privatorum. O Processo Civil Brasileiro assim foi até à década de 1980, em que o litisconsórcio e a intervenção eram exceções, em que a legitimidade ordinária era da pessoa individualizada, e a extraordinária excepcional; a litispendência e a coisa julgada exigiam a tríplice identidade e limitavam-se às partes. O advento da Lei nº 7.347/85 e do Código do Consumidor trouxe uma série de novos tratamentos para essas situações que, contudo, continuaram a ser analisadas do ponto de vista do processo singular, que se mostrou inadequado para resolver questões como a da competência, da abrangência dos efeitos da sentença e mesmo da coisa julgada nas ações de âmbito nacional, entre outras.
Não se percebeu, pelo menos imediatamente, que estava sendo instituído um novo sistema processual, que deve ser construído sob a luz de seus princípios próprios. Não se exclui a existência em nível de maior generalidade, de uma teoria geral do processo civil, mas limitada aos conceitos que possam ser aplicados a ambos os sistemas. Assim, por exemplo, não pode mais se adotar um conceito comum de legitimidade para agir: nas ações coletivas não se pode dizer que na legitimação ordinária alguém age em nome próprio sobre direito próprio e na extraordinária alguém age em nome próprio sobre direito de terceiro, uma vez que nesse sistema ordinária é a legitimação das associações.
Parece que, após a formulação classificatória do que seria pertencente a uma teoria geral do processo civil e o que merece tratamento específico num ou noutro sistema, seria o caso de se pensar em um Código do Processo coletivo, com soluções próprias a seus objetivos.
O terceiro sistema a considerar é o dos juizados especiais, o qual, apesar de já ter nascido com autonomia um pouco maior, ainda se ressente de um atrelamento ao processo civil comum nem sempre coerente com os princípios próprios.
Fenômeno idêntico ocorre com o Processo Penal, o do Trabalho e o Eleitoral, que constituem não procedimentos especiais do processo comum, mas sistemas com princípios próprios e que comportam também subsistemas.
Não é possível, agora, sequer ensaiar a identificação dos princípios e seus diversos graus de generalidade, da Teoria Geral do Processo para os sistemas e subsistemas, mas fica o desafio que tenho certeza, se enfrentado trará valiosa contribuição ao estudo do Processo.
No que se refere à classificação das ações, são conhecidos os conceitos tradicionais, mas vale a pena repeti-los para, em seguida, apresentar a crise em que se encontram e tentar nova formulação.
Em época anterior à formulação dos princípios científicos do direito processual, por influência do direito romano e seus intérpretes nos primeiros séculos da era moderna, as ações eram classificadas segundo a natureza do direito material invocado ou pelo tipo de bem jurídico pretendido pela parte. Tradicionais, portanto, eram as classificações das ações em pessoais (fundadas em direito pessoal) e reais (fundadas em direito real), petitórias, possessórias etc.
Sob o aspecto processual, porém, somente podem ser aceitas as classificações que levem em consideração o tipo de provimento jurisdicional invocado ou o procedimento adotado, como alertou LIEBMAN.
Dizia-se, então, usualmente, como fizemos em nosso Direito Processual Civil Brasileiro, Ed. Saraiva,19ª edição, vol. 1, p. 43:
“Quanto ao tipo de provimento jurisdicional invocado, as ações podem ser: de conhecimento, de execução e cautelares.
Será tutela jurisdicional de conhecimento quando o autor pede uma decisão ou sentença ao juiz sobre o mérito de sua pretensão, para que outrem, o réu, seja compelido a submeter-se à vontade da lei que teria violado. Neste caso, o processo desenvolve-se com a produção de provas e alcança uma sentença de declaração, constituição (modificação de relações jurídicas) ou condenação.
A declaração e a constituição, por si mesmas, atendem os objetivos desejados pelo autor. Todavia, a condenação pode, ainda, encontrar no réu resistência para seu cumprimento. É preciso, portanto, que prossiga a atuação da jurisdição, agora de forma diferente, para que concretamente se obtenha a efetivação do direito já declarado na sentença, sobre o qual se impôs a sanção civil condenatória.
A tutela jurisdicional será, neste caso, ainda que desdobrando-se em continuidade ao conhecimento, de execução, ou de natureza executiva, desenvolvendo-se o processo mediante atos concretos de invasão do patrimônio jurídico do réu para a satisfação da determinação contida na sentença, inclusive com a expropriação de bens do devedor para o pagamento do credor, se for o caso. A tutela se diz, aí, satisfativa.
Todavia, seja durante o processo de conhecimento, seja antes da concretização da execução, pode ocorrer que a demora venha a acarretar o perecimento do direito pleiteado pelo autor, que está exercendo seu direito de ação. Daí, então, prever o sistema processual outra forma de pedido e, conseqüentemente, de tutela jurisdicional, a tutela cautelar. Para evitar, portanto, o periculum in mora, existe o provimento cautelar, que tem por fim, provisoriamente, garantir a permanência e integridade do direito até que se concretize a sua execução.
As ações de conhecimento, por sua vez, subdividem-se em ações declaratórias, constitutivas e condenatórias. Serão declaratórias quando o pedido for de uma decisão que simplesmente declare a existência ou inexistência de uma relação jurídica (ex., a declaração da inexistência de um débito); constitutivas, quando o pedido visar a criação, modificação ou extinção de relações jurídicas (ex., ação de separação judicial, antigo desquite); e condenatórias quando visam a imposição de uma sanção, ou seja, uma determinação cogente, sob pena de execução ou cumprimento coativos”.
Já se alertava, porém:
“Observe-se que não existem ações pura e exclusivamente declaratórias, constitutivas ou condenatórias ou exclusivamente de conhecimento, de execução ou cautelar, porque pode haver pedido de provimento executivo em processo de conhecimento e no de execução ou cumprimento da sentença também há cognição, ainda que de profundidade e finalidade diferentes.”
As alterações do Código de Processo Civil, porém, desencadeadas a partir de 1992, tornaram o que era exceção em regra e desmontaram a linearidade ou a lógica da classificação tradicional.
As principais modificações que abalaram os conceitos foram principalmente as seguintes.
– Instituição, em caráter geral, da tutela antecipada e a posterior da fungibilidade com a cautelar (art. 273).
– Alteração do art. 461 e acréscimo do art. 461-A.
– Instituição do sistema de cumprimento da sentença em substituição da execução como processo (Lei nº 11.232/2005).
– Adoção da possibilidade de julgamento antecipadíssimo de mérito (art. 285-A).
É evidente que não é mais possível continuar repetindo que as ações são de conhecimento, execução e cautelares, uma vez que as cargas das sentenças já não podem ser identificadas tão separadamente como na classificação tradicional. Apesar de desde PONTES DE MIRANDA afirmar-se que as sentenças teriam múltiplas cargas, sendo uma delas a predominante, no momento essa realidade ficou ainda mais patente, a ponto de se poder dizer que, em princípio, não existe mais sentença de carga única ou mesmo em que uma delas tenha significativa predominância.
Não é possível, pois, continuar classificando as ações e as sentenças como de conhecimento, de execução e cautelares simploriamente. Esses elementos estão de tal forma integrados que, por exemplo, dizer que uma sentença é condenatória é dizer pouco ou quase nada.
Para suscitar a reflexão e o debate apresentamos, então, a seguinte proposta de classificação das ações.
Algumas explicações.
O primeiro tipo de ações é o daquelas em que o pedido cinge-se, expressamente, à declaração da existência ou inexistência de relação jurídica e também as declaratórias de Direito, como a ação direta de declaração de inconstitucionalidade. O destaque dessas ações justifica-se porque a nova redação do art. 475-N leva à conclusão de que há ações de pedido aparentemente declaratório mas que têm força ou efeito executivo. Como está no dispositivo, é título executivo judicial a “sentença proferida no processo civil que reconheça a obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”, expressão que substituiu a tradicional “sentença condenatória proferida no processo civil”. “Reconhecer” a obrigação significa que declarar a sua existência é suficiente para dar à declaração a força ou efeito executivo, tendo em vista que esse reconhecimento constitui título executivo. Daí decorre, então, que, pedido o reconhecimento da obrigação, encontra-se implícito o pedido condenatório como também está implícito na sentença a força e o efeito condenatórios. Não se exclui, porém, a possibilidade de o autor pedir expressamente que a sentença se limite ao conteúdo declaratório, ou seja com renúncia expressa do efeito executivo, daí a existência de dois tipos de ações: a declaratória pura e a declaratória executiva, que tem o pedido condenatório implícito, presumido.
Um aspecto interessante na redação do art. 475-N, aliás trazido pelo Prof. Carlos Alberto Carmona, nosso colega na Faculdade de Direito, é o de que a ação declaratória negativa com efeito executivo tornou-se dúplice, inclusive quanto à executoriedade, ou seja, julgado improcedente o pedido de inexistência de relação jurídica significa o reconhecimento da relação jurídica ou do direito do Réu, com força executiva contra o Autor.
O segundo tipo de ações é o das ações de conhecimento executivas em que no pedido encontra-se também o das providências executivas decorrentes da procedência. O pedido principal será de declaração (no caso acima exposto), constituição ou condenação e o pedido sucessivo (no sentido de conseqüente) é de natureza executiva, de cumprimento no disposto na sentença. Não há mais razão de excluir dessa natureza as antigas ações declaratórias e as constitutivas, porque, no caso das declaratórias, podem elas constituir título executivo, art. 475-N, I, e no caso das constitutivas elas também se cumprem, como se cumprem de regra as condenatórias, ainda que com medidas diferentes. Como sustentamos em nosso Execução Contra a Fazenda Pública, Saraiva, 1986, são medidas executivas em sentido amplo todas as providências para cumprimento da sentença, em execução indireta, propriamente dita enquanto processo ou compensatória.
As condenatórias, por sua vez, podem ser de obrigação de fazer ou não fazer (incluídas as chamadas mandamentais), de entrega de coisa e de quantia, todas com conteúdo executivo e que se cumprirão nos termos do art. 475-I e seguintes com as remissões constantes do Capítulo. Nesta categoria incluem-se as sentenças homologatória de conciliação e transação e que homologa acordo extrajudicial.
O terceiro tipo de ações é o das ações executivas enquanto processo, que são as execuções fundadas em título executivo extrajudicial e as por título judicial contra a Fazenda Pública, de alimentos, da sentença arbitral, da sentença estrangeira e da sentença penal condenatória.
Nas ações fundadas em título executivo extrajudicial há dois níveis de cognição: uma cognição superficial sobre a existência do título e seus eventuais vícios aparentes, que pode e deve ser feita de ofício, mas pode também ser provocada pelo devedor mediante a chamada exceção de pré-executividade; e uma plena e eventual se houver a interposição de embargos.
Nas ações de execução enquanto processo por título judicial, além da cognição superficial acima referida, pode haver cognição limitada aos casos dos arts. 475-L e 741 e as matérias não abrangidas pela coisa julgada.
Na fase executiva de cumprimento das sentenças das ações de conhecimento executivas haverá a cognição superficial e limitada eventual se houver impugnação, cingindo-se às matérias do art. 475-L.
Finalmente, o quarto tipo de ação é a das cautelares. As medidas cautelares podem estar inseridas nas demais ações, mas podem também constituir processo se antecedentes à ação ou incidentais se a medida não puder ser apreciada nos próprios autos da ação.
Esta, parece-nos, a nova classificação dos sistemas processuais e das ações decorrente de uma visão atualizada do Direito Processual, valendo como sugestão para reflexão e debate.
Informações Sobre o Autor
Vicente Greco Filho
Advogado, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Procurador de Justiça Aposentado, Ex-Consultor Chefe do Ministério das Comunicações, Ex-Presidente do CEPAM – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Fundação Prefeito Faria Lima), Ex-Chefe da Assessoria Jurídica das Secretarias Municipais, da Administração e Negócios Jurídicos de São Paulo.