Introdução
Práticas devastadoras foram feitas pelo homem ao longo de toda história da humanidade e causaram, inclusive, a diminuição de muitos recursos naturais e várias espécies. Com o advento da Revolução Industrial essas práticas se tornaram agressivas e incontroláveis. A preocupação com a qualidade de vida deu lugar à concorrência desenfreada pelo mercado, por sua vez, cada vez mais consumista. A cultura capitalista fez com que houvesse uma completa inversão de valores. Como adverte Jean Dorst:
Pode-se constatar cada vez mais nitidamente que as atividades humanas estão prejudicando nossa própria espécie. O homem intoxica-se envenenando, no sentido literal do termo, o ar que respira, a água dos rios e o solo de suas culturas. Práticas agrícolas deploráveis empobrecem a terra de forma por vezes irrecuperável, e uma exploração excessiva dos mares está reduzindo os recursos que deles poderiam ser extraídos.[1]
Historicamente falando:
Poderíamos dizer que o homem desde o primeiro ato dirigido à domesticação, à sujeição, a subjugação da natureza iniciou o processo de manipulação do ambiente natural, transformando comportamentos e paisagens, processo este que durante séculos não resultou na reflexão humana sobre seu próprio ato[2].
É preciso haver uma mudança cultural da sociedade em relação à visão do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Não somente à sociedade brasileira, mas à população mundial em geral, pois o Planeta Terra, contrariamente aos interesses políticos e econômicos, deve ser visto como um todo, pertencente à humanidade, das presentes e futuras gerações, direito constitucionalmente garantido através do caput do artigo 225, da Constituição Federal de 1988.
Embora esse preceito constitucional venha para assegurar o respeito para com o meio ambiente, há nele, resquícios da supremacia da raça humana sobre o resto do planeta, como se existisse uma relação de domínio, uma “serventia” a favor do homem no intuito de suprir suas necessidades, segundo Olmiro Ferreira da Silva[3].
No decorrer dessas últimas décadas, o homem finalmente está percebendo que a Terra é finita, que seus recursos, que vêm sendo utilizados de maneira descontrolada vão necessariamente esgotar-se. Porém, somente com a possibilidade de ver a vida humana ameaçada é que realmente parece conseguir atingir a consciência da população para que o rumo dos acontecimentos seja modificado.
Depois da década de 70, mais especificamente com a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, na Suécia, de 5 a 16 de junho de 1972[4], a preocupação com o meio ambiente cresceu consideravelmente. Mobilizações não só governamentais como também da própria população vêm ocorrendo em diversos pontos do mundo.
Também observam-se vários ramos da ciência preocupados com o meio ambiente, como é o caso das engenharias, da arquitetura[5] e, até mesmo do direito[6]. A tecnologia, que durante muito tempo voltou-se para a produção em larga escala e quase sem nenhum controle de biossegurança, está agora dirigida para uma produção que seja economicamente sustentável, ou seja, de acordo com a possibilidade de recomposição dos recursos naturais. Por isso, ocorrerá naturalmente a busca por recursos renováveis ao invés dos esgotáveis.
A educação ambiental em todas as camadas sociais tem que acontecer, desde a infância, nas escolas, dentro dos lares, enfim, nos mais diversos setores da sociedade. Então, aos poucos, a visão do homem como soberano sobre tudo e todos poderá modificar-se e passaremos a ver-nos como somente mais uma espécie que habita esse Planeta, uma espécie importante por justamente ter a possibilidade de desenvolver uma consciência sobre os seus atos e, portanto, ter o dever, mais do que nenhuma outra, de proteger todas as demais. No Brasil, já temos garantido constitucionalmente, conforme estabelece o artigo 225, VI, da Constituição Federal de 1988, como dever do Poder Público “[…] promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para preservação do meio ambiente; […]”[7]
Por algum tempo, foram deixadas de lado as preocupações de primordial importância para o homem como ser humano, que são seus valores éticos. Porém, é cada vez mais evidente a tentativa de resgate, a necessidade de convivência harmônica com os demais indivíduos e destes com o ambiente em que estão inseridos, sem que isso se contraponha com a luta por condições de vida financeiramente melhores.
Este artigo surge no sentido de demonstrar a necessidade de atitudes eticamente corretas na relação do homem com os demais seres vivos e com o Planeta.
Na tentativa de demonstrar mais especificamente a preocupação com a vida, a biossegurança será abordada, por representar a necessidade de assegurar toda forma de vida. Para fundamentá-la teoricamente o princípio da precaução será exposto como uma forma de garantir que as atitudes só sejam tomadas quando se tenha a certeza de que não trarão conseqüências maléficas para o meio ambiente e todas as espécies nele existentes.
O tema está estruturado em três capítulos. O panorama ético é abordado no primeiro título, relacionando a ética com o meio ambiente. A Ecologia Profunda, como corrente ética mais radical é analisada no segundo título e questionada, evidenciando o conflito teórico existente, já no terceiro título.
1. Panorama Ético
Em busca da solução para os problemas enfrentados na atualidade é necessária uma reflexão ética sobre o que importa para a nossa sociedade confrontado com o que realmente deveriam ser tomados como valores.
Como ponto de partida dessa reflexão há o questionamento da superioridade da raça humana sobre as demais espécies, pois essa crença aparece como base em muitas áreas de pensamento e tem conseqüências desastrosas e ilimitadas nas relações com o todo.
Trata-se de uma discussão ética, pois tal crença da superioridade do ser humano está enraizada em nossa cultura e não pode ser discutida somente no caso a caso, conforme as contradições aparecam.
É certo que os costumes da moderna sociedade de consumo têm ligação direta com a maneira como elas agem, mas nada impede que ocorra justamente uma oposição a eles. Daí a importância da reflexão sobre as atitudes e não a simples continuação delas pelo fato de “sempre ter sido assim”. Pôr em dúvida práticas comuns, mas que possam vir a ser consideradas erradas, justamente por serem questionadas, é o que traz a evolução. Estas crenças têm como fundamento a inesgotabilidade do ambiente e a incontrolável busca de satisfação dos desejos de consumo.
Ao contrário do que muitos pensam, a ética não se resume a teorias distantes do que acontece na realidade, seus juízos servem, fundamentalmente, para orientar nossa prática. De acordo com o filósofo Peter Singer, em sua obra Ética Prática[8], 1998, existem várias teorias. Há quem entenda que a ética se resuma a um sistema de normas, os deontologistas, que só conseguem salvar seu ponto de vista quando encontram normas mais complexas e específicas que não sejam conflitantes. Existem também os consequencialistas, cujos adeptos ao invés de partirem de regras morais partem de objetivos, assim, a qualidade das atitudes é diretamente proporcional ao favorecimento de seus objetivos.
Ainda segundo o referido autor, dentro do consequencialismo existem várias teorias, dentre essas, a utilitarista é a mais conhecida. Para a visão clássica do utilitarismo, agir corretamente significa trazer um aumento da felicidade dos que são atingidos por essa atitude e erroneamente se ela não conseguir trazê-lo.
Seguindo conforme a análise do mesmo autor, há também as teorias subjetivas, segundo as quais os juízos éticos dependem da aprovação ou desaprovação da pessoa que está emitindo o juízo, e não da sociedade na qual vive essa pessoa. Porém, nem todas, mas algumas formas de subjetivismo ético não conseguem solucionar os problemas que se apresentam. Como, por exemplo, a tentativa de explicar as divergências éticas.
Questiona-se se os juízos éticos expressam normativamente comportamentos ao invés de descrevê-los, e, então discorda-se sobre a ética porque, ao demonstrar certa atitude, tentasse fazer com que aqueles que a ouvem adotem uma atitude de acordo, é o que acredita C.L. Stevenson[9]. Diferentemente para R. M. Hare[10], os juízos éticos são preceitos e, portanto, estão mais diretamente relacionados a ordens do que a enunciações de fatos. Ou ainda, para J.L. Mackie[11], talvez o legado da crença em que a ética é um sistema de leis de Deus, ou, talvez, apenas mais um exemplo de nossa tendência a objetivar as necessidades e preferências pessoais.
A questão do papel que a razão pode representar na ética é o ponto principal colocado pela afirmação de que a ética é subjetiva. Portanto, o que se deve mostrar para colocar a ética em prática em bases sólidas, é o fato de que o raciocínio ético é possível.
Segundo Peter Singer[12], a ética diz respeito a uma concepção. Ela deve ser universal, afinal, se pretendo defender uma determinada conduta eticamente, é preciso que ela se justifique como um bem para um alvo maior do que somente ao indivíduo. Portanto, de um ponto de vista utilitário, a ética exige que os limites do individual sejam transpassados e cheguem a uma lei universal, tendo como espectador um observador ideal.
Sua posição é utilitarista, para ele o aspecto universal da ética leva a assumir uma posição francamente utilitária. Assim, a preocupação com os próprios interesses deve ser estendida aos interesses dos outros no pensamento ético. “E a postura utilitária seria uma posição mínima, uma primeira base na qual chegamos quando universalizamos a tomada de decisões com base no interesse próprio[13]”.
Toda essa reflexão serve de auxílio na tentativa de agir corretamente ou pelo menos, coerentemente, em relação ao todo que cerca a pessoa, aos semelhantes, às demais espécies, ao ambiente de um modo geral.
As atitudes do homem não podem ser baseadas somente naquilo que é confortável para ele mesmo. É preciso que as conseqüências dos atos sejam também avaliadas num âmbito universal. Por isso costuma-se dizer que deve a ação ser local, mas a perspectiva global.
2. Ética e o Meio Ambiente
Desde a Antigüidade, as culturas hebraicas e gregas fizeram o ser humano o centro do universo moral, e não somente o núcleo, mas a preferência totalitária das características moralmente significativas do mundo.
Para o antropocentrismo clássico o homem é o centro do mundo, o limite de cada coisa, de onde emanam todos os valores. Tem como base filosófica o humanismo que, de acordo com um dicionário especializado possui dois significados distintos: I) o movimento literário e filosófico que teve suas origens na Itália, na segunda metade do séc. XIV e da Itália difundiu-se para os demais países da Europa, constituindo a origem da cultura moderna; II) qualquer movimento filosófico que tenha como fundamento a matéria humana ou os limites e interesses do homem[14].
Esta posição humana vem sendo questionada e suas práticas consideradas não mais aceitas, trata-se da superação do paradigma antropocêntrico, por uma nova visão de mundo, com valores recentes.
Contudo, para uma reflexão inicial sobre essas mudanças, faz-se necessária uma análise do conceito de paradigma. Dentro desse exame, Thomas Kuhn, definiu:
Paradigmas (do grego, parádeigma) são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante um período de tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes da ciência. Nessa concepção, um primeiro sentido sociológico do conceito de paradigma indica toda a constelação de crenças, valores, procedimentos e técnicas partilhadas no consenso de uma comunidade determinada. Num segundo e mais profundo sentido, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas de forma modelar ou exemplar, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos demais problemas da ciência normal.
Somente após a devida articulação das experiências e teoria experimental ratificando a novidade relativa aos fatos, ou seja, de descoberta é que a simples teoria dá passagem à nova síntese: o paradigma[15].
O novo paradigma traz consigo uma ética preocupada com a universalidade, que considera as conseqüências dos atos humanos em relação ao todo. E mais, tira o homem do centro das preocupações e quer trazer o ambiente para o foco principal, sem é claro, desconsiderar o primeiro, mas conseguindo definir preocupações que não atinjam-no de modo direto, somente como parte do meio. Nisso encontra-se o grande desafio de como atribuir importância à preservação dos animais, das espécies, das árvores e do ecossistema, sem considerarmos os interesses dos seres humanos, sejam eles econômicos, de lazer ou científicos.
3. Ecologia Profunda
Há cerca de quarenta anos nasceu a ecologia profunda, através dos escritos de Aldo Leopold que criou uma “nova ética”, uma ética que trata da relação do homem com a terra, os animais e as plantas que nela vivem”. Essa ética ampliaria “as fronteiras da comunidade de modo a incluir o solo, a água, as plantas e os animais, ou, coletivamente falando, a terra[16]”.
Nos anos 70 iniciou uma onda de preocupações ambientais, em 1972 ocorreu a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, como já anteriormente mencionado. Esse movimento levou a um renascimento dos interesses ecológicos, uma busca pela conexão com a Terra, perdida de longa data, desde o marco judaico-cristão, quando o principal interesse passou a ser a busca inescrupulosa por valores econômicos.
Dentro do movimento ecológico, segundo o filósofo norueguês Arne Naess[17], mencionado por Peter Singer em sua obra Ética Prática, existem tendências “superficiais” e “profundas”. O primeiro estaria ligado à estrutura moral tradicional, ou seja, suas raízes seriam antropológicas, o interesse em conservar o ambiente estaria intimamente ligado à necessidade do ser humano em tê-lo intacto, tanto pela sobrevivência da espécie quanto para desfrutar seus prazeres. Já a ecologia profunda tem raízes mais biocêntricas, seria a preservação pela valorização da natureza em si, sem interesses nos benefícios eventualmente trazidos para os seres humanos.
Leopold sintetizou os fundamentos de sua Ética da terra dizendo que: “Uma coisa é certa quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica; é errada quando apresenta a tendência contrária[18]”.
Através de um trabalho publicado em 1984 por Arne Naess e George Session[19], filósofo norte-americano também envolvido com o movimento de ecologia profunda, foram estabelecidos alguns princípios para uma ética ecológica profunda. Tais como:
1. O bem-estar e o florescimento da vida humana e não-humana na Terra têm valor em si mesmos (sinônimo; valor intrínseco, valor inerente). Esses valores são independentes da utilidade do mundo não-humano para finalidades humanas.
2. A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para concretização desses valores, e também são os valores em si mesmas.
3. Os seres humanos não têm o direito de reduzir essa riqueza e a diversidade, a não ser para a satisfação de necessidades vitais.
Naess e Sessions vão além, pois esses princípios só remetem à vida, mas eles afirmam que a ecologia profunda quando se refere à “biosfera” é mais abrangente, incluindo ainda as coisas inanimadas como rios, paisagens e ecossistemas.
Dois autores australianos, chegando ao extremo de profundidade da ética ambiental, Richard Sylvan[20] e Val Plumwood[21], igualmente levam a sua ética além das coisas vivas, nela incluindo a obrigação de “não pôr em risco o bem-estar de objetos ou sistemas naturais sem uma boa razão para fazê-lo”.
Em Deep Ecology, Bill Devall e George Sessions defendem uma forma de “igualitarismo biocêntrico”:
A intuição da igualdade biocêntrica é a de que, na biosfera, todas as coisas têm o mesmo direito de viver e florescer, bem como de alcançar as suas forças individuais de desenvolvimento e auto-realização dentro da Auto-realização maior. Esta intuição básica é a de que, enquanto partes do todo interligado, todos os organismos e todas as entidades da ecosfera são iguais em termos de seu valor intrínseco[22].
Muitos outros autores do mesmo modo escreveram sobre a ecologia profunda. No Brasil, Nancy Mangabeira Unger trabalha sobre a nova ética capaz de permitir o resgate da cordialidade e respeito com o ambiente. Desenvolvendo sua definição, afirma que a ecologia profunda questiona a concepção utilitarista e antropocêntrica da relação do ser humano com o ecossistema. Professa que alguns ecologistas percebem nas atuais reformas ambientais institucionais, a concessão de direitos sem o rompimento com a postura de superioridade, a animais, florestas e rios. De maneira idêntica ao ocorrido com mulheres, negros, índios, escravos e crianças, a natureza recebe o status de ser humano inferior. Citando Zimmerman, menciona que o ethos heideggeriano respeita todos os seres não pelo valor ou utilidade, mas pelo que são. Nesse ethos, a lei vem da razão humana e de uma dimensão da totalidade do real.
Entre estas posições, há uma riqueza de reflexões a respeito do lugar do homem na Natureza e a elaboração de uma ética correspondente. A ética biocêntrica, por exemplo, se fundamenta essencialmente na idéia de que a natureza possui valor intrínseco, independente de sua utilidade para fins humanos. Nós os humanos não somos superiores aos outros seres, mas “simples cidadãos” da comunidade de seres vivos. Como todo vivente tem direito à vida, só temos o direito de destruir algum ser da natureza para satisfazer necessidades vitais[23].
“A prevalência por mais de três séculos da visão do homem como centro do universo, sustentada pelo paradigma antropocêntrico está atualmente eivada por contradições próprias e impotentes perante os recentes desafios”. Este parecer vem de Roberto Crema[24] que o complementa conceituando com precisão a atitude humana como sombria, destrutiva e determinado pela concepção moderna do mundo, racionalista, mecanicista e reducionista. Em contradição a esse comportamento, Fritjof Capra aduz o surgimento de um “paradigma ecológico, mas num sentido ecológico profundo, propondo uma expansão não apenas das percepções e da maneira de pensar, mas também de valores”. Em uma de suas obras, encontra-se a seguinte passagem:
Enquanto o velho paradigma está baseado em valores antropocêntricos (centralizados no ser humano), a ecologia profunda está alicerçada em valores ecocêntricos (centralizados na Terra). É uma visão de mundo que reconhece o valor inerente da vida não-humana. Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências. Quando essa percepção ecológica profunda torna-se parte de nossa consciência cotidiana, emerge um sistema de ética radicalmente novo. E, então, estaremos (em oposição a deveríamos estar) inclinados a cuidar de toda a natureza viva. A mudança de paradigma na ciência, em seu nível mais profundo, implica uma mudança da física para as ciências da vida[25].
A ecologia profunda, que não unifica os seres humanos a natureza e reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos, fornece uma base filosófica, e até mesmo, espiritual, para mudar o paradigma científico nos dizeres de Capra. Citando novamente os seus pensamentos:
Os princípios sobre os quais se erguerão as nossas futuras instituições sociais terão de ser coerentes com os princípios de organização que a natureza fez evoluir para sustentar a teia da vida. Para tanto, é essencial que se desenvolva uma estrutura conceitual unificada para a compreensão das estruturas materiais e sociais. A sustentabilidade não implica uma imutabilidade das coisas. Não é um estado estético, mas um processo dinâmico de co-evolução[26].
É dever do homem ter cuidado com a natureza, proteger o ambiente onde ele vive, por ser sua morada, mas também por ser a Terra o conjunto quase infinito de seres vivendo em harmonia como um grande sistema em que a atitude de cada elemento tem efeito direto no ciclo de vida de outro.
A ética superficial em relação à profunda, segundo esses autores, postula a necessidade de referencial independente de axiomas humanísticos. Sua própria existência conferiria aos seres da natureza o direito de existir; sendo direito inalienável e transcendente às necessidades humanas. Diante desse valor essencial de preservar os seres da natureza, todos os outros referentes à continuidade da espécie humana poderão ser incorporados.
Antônio Carlos Wolkmer aprofunda o tema dizendo que: “a necessidade de uma nova ética universal, voltada para a dignidade do outro, a Ética da Alteridade, a crise atual da ética, questionando os novos valores da sociedade humana, promovendo propostas para crise ética da modernidade[27]”.
Também, Roberto Crema defende o surgimento do novo paradigma como resposta à crise, atuando como oportunidade para crescer, evoluir e transformar os dogmas legais. Sendo uma oportunidade para trazer de volta os antigos conceitos e as tradições anteriores que ressaltavam as obrigações dos seres humanos para com a natureza, assim como uma justiça mais ampla, buscando a harmonização de todos os elementos do ecossistema, segundo Zimmerman. Além disso, ele destacou que diversamente no presente momento, a noção de justiça está centrada na pessoa e nos seus direitos. Nessa corrente filosófica há o esquecimento da dependência existente com o Ambiente, considerando como importante apenas a humanidade e desvalorizando os demais objetos naturais[28].
Para Albert Schweitzer o importante é o “respeito a vida”:
A verdadeira filosofia deve começar pelos fatos mais imediatos e abrangentes da consciência, e isso pode ser formulado da seguinte maneira: “Sou vida que quer viver e existo em meio à vida que quer viver… Do mesmo modo como em minha vontade de viver existe um anseio por mais vida e por aquela misteriosa exaltação da vontade que se chama de prazer, e o terror diante do aniquilamento e daquele insulto à vontade de viver a que chamamos dor, tudo isso também predomina em toda a vontade de viver que me cerca, e predomina por igual, quer consiga expressar-se a minha compreensão, quer permaneça não expresso.
A ética, portanto, consiste nisto; no fato de eu vivenciar a necessidade de pôr em prática o mesmo respeito pela vida, e de fazê-lo igualmente, tanto com relação a mim mesmo quanto no que diz respeito a tudo que deseja viver. Nisso já tenho o necessário princípio fundamental de moralidade. É bom conservar e acalentar a vida; é ruim destruir e reprimir a vida. Um homem só será realmente ético quando obedecer ao dever que lhe é imposto de ajudar toda a vida que for capaz de ajudar e quando se der ao trabalho de impedir que se causem danos a todas as coisas vivas. Ele não pergunta se esta ou aquela vida é digna de solidariedade enquanto dotada de valor intrínseco, nem até que ponto ela é capaz de sentimentos. Para ele, a vida é sagrada enquanto tal. Ele não estilhaça os cristais de gelo que reluzem ao sol, não arranca uma folha ou uma flor de sua árvore, e tem o cuidado de não esmagar insetos enquanto caminha. Se, numa noite de verão, precisa de luz para trabalhar, prefere deixar a janela fechada e respirar um ar sufocante a permitir que os insetos venham cair sobre a sua mesa de trabalho com as asas feridas e chamuscadas[29].
Essa teoria de Schweitzer é “herança” da filosofia moral Jainista, que consiste no exemplo mais radical, no oriente, de respeito aos seres. Sua doutrina é denominada de ahimsa. Ela está fundamentada na não violência perante toda vida e no ascetismo rígido com a finalidade de limitar os desejos humanos. O apreço pelas demais criaturas vem do fato da alma, segundo eles, evoluir de um animal a outro. Ela passaria por essa transmigração até chegar ao ser humano. Seus símbolos seriam a vassoura e a vasilha. O primeiro ícone serviria para afastar os insetos do caminho para não serem esmagados e a segundo para a arrecadação de comida doada. .[30]
Além disso, outro ponto de vista semelhante foi defendido pelo filósofo norte-americano contemporâneo Paul Taylor. Em seu livro Respect for Nature, ele afirma que toda coisa viva está “em busca do seu próprio bem, de uma maneira que lhe é única”. Quando compreendermos isso, passaremos a ver todas as coisas vivas “da mesma maneira que vemos a nós mesmos”, portanto, “estaremos aptos a atribuir à sua existência o mesmo valor que atribuímos à nossa[31]”.
4. Questionando os Fundamentos Filosóficos da Ecologia Profunda
Para Peter Singer, tanto Albert Schweitzer quanto Paul Taylor utilizam-se de linguagem metafórica, o que dificulta o modo como devem ser interpretados. Para ele, em determinadas situações é possível oferecer uma explicação exclusivamente física do que acontece, e, na ausência de consciência, não existe um bom motivo pelo qual devam ter maior respeito pelos processos físicos que regem o crescimento e a decadência das coisas vivas do que o que se tem pelos que regem as coisas inanimadas.
Ele avalia as ações e decisões humanas como moralmente aceitáveis ou não analisando se elas possam causar dor a outro ser, mas para tanto este outro ser precisa ser senciente, ou seja, passível de sentir dor. Portanto, as demais espécies, as não-sencientes, podem ser protegidas, somente se tiverem alguma utilidade estética, científica, para as presentes e futuras gerações.
E por que não ver o valor em si da natureza, independentemente de sua utilidade para as criaturas sencientes? Por que para “ver” o “valor” é preciso ser dotado de razão. Portanto, no final das contas, todo valor sempre depende de uma razão que o estabelece. Não há, para Singer, “valores em si” somente para alguma razão capaz de os estabelecerem.
Singer acredita que ultrapassando essa barreira dos seres sencientes o limite entre objetos naturais vivos e inanimados fica mais difícil de entender.
Para Peter Singer, a ética da ecologia profunda é incapaz de solucionar os questionamentos a respeito do valor intrínseco de seres vivos individuais. “Talvez só tenham valor por serem necessários à existência do todo, e o todo talvez só tenha valor porque sustenta a existência de seres conscientes[32]”.
Ele acredita que ao tentar extrair valores da ética ecológica nesse nível encontra-se alguma forma de holismo, que é muito bem explicitado em A Morally Deep World, de Lawrence Johnson[33]. Para esse autor, os interesses de uma espécie, ou de um ecossistema, devem ser levados em conta, juntamente com os interesses individuais, nas deliberações morais. Em The Ecological Self, Freya Mathews[34] diz que qualquer “sistema auto-realizador” tem valor intrínseco, no sentido de que procura manter-se ou preservar-se. Esses dois autores incluem as espécies e os ecossistemas como entidades holísticas, ou individualistas, como forma própria de realização.
Já Peter Singer acredita que o fato de uma espécie ou um ecossistema poderem, ou não, ser vistos como o tipo de indivíduo que pode ter interesses, ou um “eu” a realizar-se, representa problemas para a ética profunda:
Pois é necessário não apenas que se possa afirmar, com propriedade, que árvores, espécies e ecossistemas têm interesses, mas que têm interesses moralmente significativos. Para que os vejamos como “individualidades”, será preciso mostrar que a sobrevivência ou a realização desse tipo de individualidade tem um valor moral, independentemente do valor que possui devido a sua importância para a manutenção da vida consciente[35].
Trata-se de rejeitar a base ética de uma ética da ecologia profunda, mas isso não significa que o argumento a favor da preservação da natureza não seja forte. O autor apenas afirma que esse tipo de argumento, o do valor intrínseco das plantas, das espécies ou dos ecossistemas apresenta contradições. E vai além, acredita que: “devemos restringir-nos aos argumentos baseados nos interesses das criaturas sencientes presentes e futuras, humanas e não-humanas”. Para ele tais argumentos servem para demonstrar que “o valor da preservação do que resta de regiões naturais significativas excede em muito os valores econômicos obtidos através de sua sua destruição[36]”.
Conclusão
Depois de tentar expor os conflitos teóricos pelos quais a humanidade está passando, na tentativa de ruptura com antigos padrões estabelecidos há muito pela nossa cultura antropocêntrista, em busca de novos valores não mais centrados no homem, e sim, voltados para uma preocupação maior com o todo, as demais espécies e o meio ambiente em que se vive, não consegue-se, por completo, abandonar o antigo paradigma e assumir um paradigma biocêntrico.
Porém, grandes passos já foram dados nessa caminhada rumo ao desenvolvimento da ética ambiental. Não é preciso romper com todos os padrões antropocêntricos para agir mais corretamente em relação ao ambiente.
Novas posturas vão, aos poucos, sendo tomadas no sentido de proteger a natureza e não mais, simplesmente, buscar vantagens econômicas sem a menor preocupação com as conseqüências que certas atitudes possam ter.
Mesmo que a preocupação seja com as futuras gerações e não exclusivamente com o meio ambiente, não importa, o que vale são as mudanças de atitudes. Trata-se de uma mudança cultural que não ocorrerá “num piscar de olhos”, mas aos poucos através de educação ambiental. Por isso a importância fundamental da preocupação com as gerações mais jovens, pois o comportamento ambientalmente correto deve ser trabalhado na mentalidade de cada um, desde antes de haver a formação intelectual, assim a ética vai se criando ao longo do desenvolvimento da própria pessoa.
A diferença primordial está em fazer com que o homem passe a refletir sobre as suas práticas, que valores dessa ética ambiental passem a fazer parte de suas escolhas. Afinal, ele faz parte do ambiente e tem responsabilidades para com ele e para com as outras criaturas que nele também habitam. Trata-se de uma modificação intrínseca na forma do ser humano encarar o mundo que o cerca.
No momento em que todo o respeito que a natureza merece for dado, estará a sociedade, então, em um outro patamar da caminhada pela evolução. Todo o agir humano será de acordo com a possibilidade que o meio ambiente tem de se recompor e isso ocorrerá naturalmente. Não haverá mais a necessidade de ser uma conduta imposta, pois a lucidez ecológica atingirá o consciente e o inconsciente da população que agirá até mesmo por instinto de forma sustentável.
Por mais utópicas que essas palavras possam parecer, é preciso de alguma forma mostrar esperança e enxergar soluções possíveis para os problemas cujas presenças se tornaram constantes no cotidiano, para que todas as pessoas encontrem o equilíbrio entre si e com o ambiente que as cerca.
[1] DORST, Jean. Antes que a natureza morra. Trad. Rita Buongermino. São Paulo: Ed. Edgard Blücher, 1924, p. 113-114.
Informações Sobre o Autor
Melissa Ely Melo
Advogada. Membro do NEPAD – Núcleo de Estudos e Pesquisa Ambiente e Direito da PUC-RS. Tutora do Curso de Especialização em Direito Ambiental da PUC-RS