“A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego, pois paz sem voz, não é paz, é medo…
não me deixe sentar na poltrona num dia de domingo
procurando novas drogas de aluguel neste vídeo
coagido pela paz que eu não quero seguir admitindo” (o rappa)
A partir da década de 1990, [1] no Brasil, o fenômeno da violência urbana tornou-se pauta importante de discussão. As instituições políticas, especialmente através das secretarias estaduais de segurança pública e da produção legislativa, os acadêmicos, através de trabalhos e pesquisas que buscassem traduzir esta demanda, a mídia, por meio de noticiários muitas vezes sensacionalistas, e a população dos centros urbanos, voltavam-se a entender e buscar respostas aos atos de violência física e individual produzidos nas cidades.
O conhecimento produzido a respeito desses atos de violência urbana, inicialmente estiveram estritamente vinculados à (re)produção tendenciosa da mídia de eventos, que logo se tornavam fatos de produção de políticas públicas de extermínio, como as políticas de segurança pública que instrumentalizavam a formação e o fortalecimento da polícia de combate legitimada a agir fora da legalidade. Essa resposta à violência urbana, formulada de forma casuista e sensacionalista constitui, até o momento, a faceta da política do espetáculo do Estado atual. Uma política de pressupostos equivocados, fundada na grande sensação de insegurança produzida na população de classe média, sem formulações racionalizadas de propostas que contemplem o contexto urbano atual, em que se desenrola o cenário de violências. Uma política que objetiva provocar uma sensação de segurança de cunho simbólico, conquistado através da promoção da polícia nas ruas e das legislações penais duras. Uma política que promove a eleição de candidatos com discursos de endurecimento do aparelho repressivo do Estado, diante da promessa de exterminar os males que aterrorizam a população dos centros urbanos. Uma política vinculada a um Estado que, enfraquecido em suas esferas de políticas públicas, sociais e econômicas, ignora a realização de violências institucionais (produzida pela própria atuação repressiva estatal) e violências estruturais (produzida pela reprodução de desigualdade social, traduzida atualmente nos índices de desemprego e instabilidade), e elege como bode expiatório do processo de insegurança, a sua faceta visível: os bandidos que ocupam as ruas das cidades ameaçando os cidadãos de bens, que produzem e consomem, e que têm o direito (eles sim) de desejar uma sociedade “segura”.
A demanda atendida pelo Estado sobre as manifestações de violência urbana provém de vozes de setores da sociedade que compõem as classes médias e altas (embora essas estejam mais protegidas pelo aparelhamento de última tecnologia das empresas de segurança privada). Neste contexto, é de se assumir que as populações, moradoras das áreas de periferia, vêm efetivamente convivendo com uma violência real produzida pelas áreas dominadas pelo tráfico e pela polícia atuante no local[2]. Todavia, as respostas estatais encontram-se dirigidas a produzir a “sensação de segurança” às classes médias, através das políticas de tolerância zero[3], que concentram a atuação policial na “limpeza e higienização” das ruas dos centros das cidades, e estão dirigidas à atuação violenta contra os personagens que representam o medo (população da periferia), e que são sistematicamente levados para longe dos centros produtivos e de consumo urbanos. De outro modo, para a população da periferia são destinados políticas repressivas, vez que ali, todo o morador é o potencial traficante, homicida e bandido. E assim, ao invés de oferecer a “sensação de segurança” para essa parcela da população, o que se oferece, em grande parte, são novos personagens para a composição do cenário da violência cotidiana.
Os grupos de classe média e alta, atingidos pela violência urbana, ou ao menos, pelas cenas de violência urbana reproduzidas pela imprensa, durante esta década, iniciaram a formação de organizações não-governamentais que buscam declaradamente afirmar o seu “desejo pela paz”. Apoiados por emissoras importantes no País, por intelectuais quase tecnocratas da violência, e por uma divulgação considerável, passaram a promover atos públicos em “defesa da paz”. O primeiro ato mais conhecido no País, ocorreu em 17 de dezembro de 1993 no Rio de Janeiro, em resposta às freqüentes ondas de seqüestro e também à chacina da Candelária. Deste ato surgiu o grupo atualmente mais articulado no cenário nacional, conhecido como Viva-Rio, e que atualmente, apóia a formulação e o referendo pela proibição do comércio de armas proposto pelo Estatuto do Desarmamento (lei nº10.826/03).
Esses movimentos foram assimilados, apoiados, e produzidos também por algumas instituições políticas. Todavia, no Estado neoliberal, que abandonou a perspectiva de desenvolvimento de políticas públicas, o papel se reduz às respostas penais e repressivas aos delinqüentes, enquanto o espaço do assistencialismo social fica a encargo das organizações não-governamentais que dia a dia ocupam maior espaço da sociedade civil através de sua profissionalização.
Neste contexto político e social surge a primeira versão do Estatuto do Desarmamento, a lei nº9437/97, revogado pelo atual Estatuto, de lei nº10826/03. Essa legislação surge apoiada pelos organizações não governamentais e pelas instituições políticas, como uma bandeira pela paz e contra a violência[4]. O Estatuto representa, no discurso atual, a arma contra a violência na sociedade contemporânea. Todavia, a política criminal que prepondera no âmbito da legislação nacional, e que sob seus auspícios, informa paradoxalmente a Lei do Desarmamento, tem feições bem menos pacificistas.
1. Política Criminal[5] de Defesa Social
A política criminal mais presente na organização do Estado nas respostas ao crime tem sua formação já no século XIX, com o desenvolvimento da Criminologia Positivista. O objetivo principal destas políticas é realizar a defesa da sociedade, especialmente entendida como defesa dos cidadãos de bem contra os delinqüentes.[6] Elas tem como pressuposto uma divisão maniqueísta da sociedade, como dividida entre bons e maus, de modo que aos rotulados como maus, o destino dado deve ser a sanção penal, que em grande parte dos Estados, significa, quanto mais sanção, melhor. O que também quer dizer, quanto menos limitado o poder do Estado, mais repressão se produz, e mais garantias individuais são violadas em nome da defesa da sociedade de bem.
Quando se fala da proteção da sociedade contra atos violentos está-se dando um entendimento semântico muito próprio a essa palavra, reduzindo a violência aos atos de violência física e patrimonial realizadas diretamente contra os indivíduos. Ou seja, deixa-se de atribuir a compreensão da violência às violências institucionais e estruturais, como antes afirmadas. O que significa que quando se fala em defesa da sociedade, não se está falando em realização e afirmação de direitos dos indivíduos, ou de proteção em relação às poderes institucionais, ou às estruturas econômicas e culturais excludentes da sociedade, nem mesmo em relação aos atos dos grupos incluídos econômica e culturalmente na estrutura social.
E embora essas políticas sejam reformuladas desde o século XIX[7], na formação atual do Estado neoliberal elas ganham feição bastante expressiva. O pensamento liberal se manifesta ao naturalizar a compreensão de que aqueles que não estão incluídos na ordem econômica e social vigente, não o estão por falta de merecimento, por falta de esforço. Ou seja, estar excluído do processo produtivo e de consumo é um indicativo também de ordem moral de falta de competência. E que além disso pode indicar também indivíduos moralmente ruins e violentos, que terão como políticas do Estado a formulação de políticas repressivas, que se preocupam pouco com as garantias individuais, em nome da defesa da ordem social. Neste viés, o Estado exime-se da responsabilidade sobre as condições sociais de vida da população, e atribui a criminalidade urbana a um fator de moralidade, dividindo o pobre bom honesto e trabalhador, do pobre bandido.
Paralelamente a esse processo de expansão penal do Estado[8], desenvolve-se o aumento das organizações não governamentais que, em grande medida, ocupam o espaço estatal de desenvolvimento de políticas sociais.[9] Essas políticas normalmente complementam e legitimam o estatuto repressivo do Estado, uma vez que dirigem-se aos denominados “grupos de risco”, àqueles indivíduos que ocupam lugares na estrutura econômica e cultural que podem oferecer risco de segurança às pessoas incluídas socialmente, ou seja, o mesmo foco de “violência” identificado pelas políticas repressivas. Essas atividades de parte das organizações da sociedade civil visam adequar ou “reciclar” os indivíduos que vivem na periferia, próximos demais do “mundo do crime” para o mercado, que talvez, inclusive nem exista para satisfazer a demanda por empregos formais. Por conseqüência, àqueles indivíduos que não aceitam essa assistência oferecida, ou que não assimilam os projetos dessas ONG’s, estão mais expostos e vulneráveis ao controle do Estado, que praticamente decreta uma guerra civil legalizada contra aqueles que optam pela realização de crimes. De um lado, a assistência, de outro, a repressão mais severa, mesmo que agressiva aos direitos e garantias individuais, para os quais a assistência não funcionou.[10] A divisão segue entre os delinqüentes e potenciais delinqüentes e os cidadãos de bem.
2. ESTATUTO DO DESARMAMENTO: sobre a paz e a violência[11]
Neste contexto, o Estado, apoiado pela mídia, e por organizações não governamentais, formadas em parte pelas vítimas da violência urbana, que buscam a promoção da paz, formulou o Estatuto do Desarmamento que objetiva a diminuição da violência através da redução de utilização de armas de fogo no País. De dados estatísticos como o que afirma que 70% das mortes violentas atingem adolescentes entre 15 e 17 anos, e que 43% dessas mortes advém do emprego de armas de fogo, concluiu-se que, através de uma legislação que além de controlar a circulação dessas armas em território nacional, pudesse também criminalizar o porte, a posse e principalmente o próprio comércio de armas, estaria se acenando a uma política de paz, pois reverteriam esses dados alarmantes. Depositou-se pois a crença na paz a partir do funcionamento seletivo e violento do sistema penal, apostando na ineficaz realização de um prevenção geral contra o uso de armas, inserindo-se na política penalista de defesa da sociedade, e na concepção de segurança pública vinculada estritamente ao combate de criminalidade. Criou-se pois uma solução aparentemente rápida e eficaz, utilizando-se do potencial de espetáculo produzido pelo sistema penal, criminalizando condutas que poderiam ter sido regularizadas no âmbito administrativo.
Por exemplo, na nova legislação os tipos penais previstos produziram penas mais graves do que a legislação anterior, prevendo que o indíviduo sentir-se-á mais coagido com essa previsão mais repressiva. E também possibilitando que, em sendo as penas máximas superiores a três anos, retire-se o julgamento desses crimes da competência dos juizados especiais criminais.
Também a nova legislação torna o porte ilegal de armas um crime inafiançável, caso a arma não esteja registrada em nome do autor do crime. Em primeiro lugar, o simples porte ilegal de arma, além de configurar um tipo de mera conduta, trata-se de um tipo de perigo abstrato. Ou seja, não há uma ameaça real de lesão a bem jurídico alheio no mero porte de arma, condição importante e necessária para criminalização de condutas em um direito penal de um Estado de direito.
Os crimes de porte ilegal de armas de uso restrito, de comércio ilegal e de tráfico internacional, são previstos como inafiançáveis também, e os respectivos autores perdem o direito à liberdade provisória. Em um processo penal em que a regra é aguardar o julgamento em liberdade, essa previsão legal homogeneizante para todos os autores dos tipos penais fere os pressupostos de garantias e direitos individuais. E ademais, acaba-se produzindo um procedimento irracional, já que embora os autores devam aguardar a finalização do processo presos, a condenação por esses atos, devido ao tempo e à espécie da pena, poderão ser apenas aplicação de privativas de liberdade de início em regime aberto e semi-aberto. Ou seja, ele pode aguardar julgamento preso, mesmo tendo a grande probabilidade de ser condenado à pena em regime aberto, e assim que finalizado o processo o sujeito cumpre pena sem privação total de liberdade. O constrangimento processual passa a ser mais grave que a própria pena.
O Estatuto no afã de, através do aumento da criminalização, aproximar-se de uma almejada paz social, ainda produz previsões que tornam o sistema jurídico-penal desproporcional, e por que não dizer, irracional. Se um sujeito é condenado por tentativa de homicídio, a pena mínima que ele irá receber é de 2 anos. Se um sujeito dispara arma em local ou via pública também possui pena mínima de 2 anos, acrescido o fato de essa ser uma conduta inafiançável. Ou seja, é melhor o sujeito alegar que estava tentando matar alguém do que afirmar que estava dando um tiro a esmo em via pública.
No processo de conquistar o controle da violência através da proibição da posse de armas, a legislação, por exemplo proíbe que pessoas menores de 25 anos obtenham a posse regular de arma, justificando que as estatísticas revelaram que o uso preponderante das armas de fogo ocorre entre jovens de 17 e 24 anos. O legislador que fazer crer que o grupo de jovens desta faixa etária obtém as armas através de um procedimento legalizado e regularizado, ignorando que esses grupos que manuseiam e produzem violência com o instrumento da arma, na maioria moradores da periferia, envolvidos com o mercados ilegais e violentos, não utilizam armas regularizadas e dificilmente tenham lançado mão deste procedimento na aquisição das mesmas.
Pois então a sofrível técnica legislativa do Estatuto, o recurso sistemático ao sistema penal como instrumento para coibir práticas de utilização de armas de fogo, a crença na realização de uma prevenção geral negativa, são utilizadas para atingir o objetivo declarado de redução da violência produzida através da utilização desses instrumentos. Todavia, pelos conhecimentos já produzidos por teorias sociológicas que desmistificam o ideal da prevenção intimidatória, e pelo aumento do espaço de violência institucional, e diminuição do núcleo de garantias individuais, o que se conquista, inversamente ao declarado, é um aumento dos conflitos sociais através da atuação, neste caso, a-sistemática, do sistema penal.
A partir do Estatuto corrobora-se a hipótese de que uma vez proibindo-se ou restringindo-se o porte de armas ter-se-ia uma redução drástica da violência, e mais do que isso, uma redução da própria criminalidade urbana. Todavia, essa previsão legal é preponderantemente simbólica, tão simbólica quanto uma passeata pela paz na zona sul carioca. A violência predominante realizada através das armas de fogo não passa pela institucionalização, uma vez que encontra-se na clandestinidade, e clandestinos já são esses portes. Portanto, essa criminalidade violenta urbana não faz parte do destino da norma penal agora estatuída. Embora possamos, hipoteticamente, encontrar, mais tarde, algum reflexo na diminuição das ações violentas no trânsito, entre vizinhos, de pessoas de classe média, classe média baixa. Mas que todavia representam a minoria dos crimes violentos, e que não são os destinatários declarados do combate à violência tradicional urbana.
Também se vendeu a possibilidade, com o referendo que se realizou, de que a proibição do comércio de armas no território nacional significaria o fim do comércio de armas. O que não se comprova. Com essa proibição o que se constrói é a institucionalização de um mercado ilegal ainda mais forte, com suas regras econômicas e sua violência exacerbada como habitual. Esse processo assemelha-se ao mercado ilegal de drogas, que não deixa de existir por conta de uma legislação que proíbe a comercialização, mas que pelo contrário, produz uma rede complexa de um mercado informal, marcado pela violência. O que esta proibição poderia perigosamente instrumentalizar é a própria repressão e sobrecriminalização da mão-de-obra do tráfico de armas, uma espécie de instrumentalização do controle penal da pobreza. Pois se não fosse assim, a legislação buscaria alternativas eficientes para o controle do mercado de armas, como por exemplo, o controle alfandegário de armas importadas, como por exemplo, o rastreamento do dinheiro produzido por esse mesmo mercado, que certamente não se concentra nas periferias, nas mãos da mão-de-obra, mas estão vinculadas aos próprios aparelhamentos institucionais.[12] Senão, basta a pergunta: quem possui o lucro maciço com o tráfico de armas? Ou, quem terá lucro a partir da criminalização absoluta deste comércio? E quais são as medidas adotadas para evitar essa produção extremamente lucrativa?
Portanto, o Estado e os movimentos sociais pela paz têm investido em respostas simbólicas para um fim pacífico, que além de ineficaz, instrumentaliza e alarga um processo de violência institucional, que longe de garantir paz à sociedade, eventualmente garante a paz provisória, a sensação de paz, aos atingidos, vítimas da violência urbana contemporânea.
3. Sobre armas de fogo ou sobre sociabilidade violenta
O discurso que funda as promessas de paz do Estatuto do Desarmamento reproduz dois equívocos básicos. O primeiro, porque relaciona a violência às armas de fogo, como se por conseqüência, diminuindo o número de armas, diminuir-se-iam os conflitos violentos. Ou seja, haveria uma equação lógica entre número elevados de armas e estatísticas de violência. O segundo, porque atribui a manifestação da violência à criminalidade representativa das relações sociais dos grupos marginalizados. Ou seja, focaliza os atos violentos no outro e descontextualiza a manifestação violenta.
O foco do Estatuto pode servir para desfocar as práticas de sociabilidade violenta e as compreensões dessas práticas, reduzindo o processo ao “problema” da violência e às formas eficientes de políticas estatais de combate. O máximo que esse raciocínio pode levar é à conclusão da ineficiência das políticas de segurança na eliminação da violência na sociedade. Os olhos estão voltados para as ações institucionais que seriam capazes de simplesmente eliminar os atos proibidos e deixar obscurecida as relações de sociabilidade violenta. Pressupõe-se que os atos dos grupos de criminalidade violenta sustentam-se por conta da ineficácia das políticas públicas[13] de combate uma vez que os destinatários estariam constituídos por subjetividades e normas semelhantes àquelas da ordem social convencional. Pressupõe-se também que essa violência está vinculada ao tráfico de drogas e de armas, confundindo as condições de produção às causas da violência. Uma vez que essa mão-de-obra está disponível a se vincular a qualquer suporte econômico, que comumente também é base para a reprodução organizada da violência. Ou seja, se não houvesse exatamente esses mercados ilegais, outros seriam utilizados como forma de produção e reprodução de mão-de-obra e de subsistência dos grupos marginalizados, apontando para o inacabado processo de assalariamento da população economicamente disponível no Brasil.[14]
Essa sociabilidade violenta vinculada inicialmente aos grupos sociais marginalizados possui como pressupostos o recurso à violência e um rompimento da alteridade, implodindo os processos de identificação. Todavia, afirmar que essas são expressões próprias dos grupos marginalizados, como subliminarmente o faz o discurso pela paz e a legislação do desarmamento, também produz por outro lado, o obscurecimento de que essas práticas não se reduzem a esses grupos e se encontram mesmo antes do surgimento da sombra da violência urbana.
A sociabilidade de grupos que negam a alteridade, que olham o outro como um objeto diante de si, desumanizando-o pode ser encontrada nas próprias instâncias legítimas de poder, nas próprias práticas das “vítimas” da violência urbana, no próprio processo de urbanização das últimas décadas no Brasil.
A violência física e patrimonial dos grupos marginalizados, por exemplo, encontra eco na violência legitimada pelas potenciais vítimas, reprodutoras do olhar objetal sobre o outro, como a demanda pela pena de morte, o silêncio diante dos extermínios de “bandidos”.
A sociabilidade violenta que faz parte e constitui as relações atuais tem suas fraturas no próprio processo de urbanização, na estrutura econômica e política adotada pelo País. Um distanciamento cada vez maior entre grupos de classes economicamente e culturalmente diferentes, abre lugar a processos de segregação e de fechamento cada vez maior sobre si mesmo, iniciados com as remoções das favelas e higienizações dos centros urbanos, a construção dos grandes condomínios isolados, do enriquecimento e do empobrecimento em larga escala, da altíssima desproporção na concentração de renda.[15]
Ampliar a perspectiva das armas de fogo como causadora da violência para a sociabilidade violenta constitutiva das relações sociais contemporâneas significa olhar para a violência em si, e não apenas no outro. Humanizar o outro, através da própria humanização. Racionalizar o processo de produção legal e penal, que aumenta a objetalização do outro, através de uma reflexão contextualizada de que o outro faz parte do mesmo processo social que cada um participa. Que as passeatas de roupas brancas só significam algo quando se percebe que as próprias roupas estão manchadas com o sangue do outro, segregado, objeto de intervenções penais miraculosas.
Informações Sobre o Autor
Camila Cardoso de Mello Prando
Mestre em Direito pela UFSC. Leciona as disciplinas de Direito Penal I e II no CESUSC/ Florianópolis, e as disciplinas de Criminologia e Direito Penal II na UNIVALI/São José.