Recentes decisões das 7ª e 8ª Câmaras Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, proferidas em ações revisionais de alimentos alteraram, de ofício, o índice de correção da obrigação alimentar. Fixados os alimentos em salários mínimos, e independentemente de solicitação de qualquer das partes, o valor dos alimentos passou a ser estipulado em importância certa em dinheiro e determinada sua atualização anual pelos índices do IGP-M.
A mudança é levada a efeito mesmo sem a comprovação da forma de correção dos ganhos do devedor. Independente da profissão do alimentante e da origem de sua renda, não é sequer questionada a ocorrência de descompasso de seus rendimentos com a valoração do salário mínimo. A intenção é garantir a equalização do valor dos alimentos para o futuro e, com isso, evitar novas demandas. Seja qual for o fundamento da ação, como, por exemplo, o nascimento de outro filho, vem desencadeando a automática mudança do índice de correção.
Talvez o mais inusitado seja o fato de que tal alteração ocorre até quando é o credor quem recorre ao Tribunal. Ou seja, manejado recurso pelo alimentado pleiteando a majoração dos alimentos, o índice de atualização do encargo é alterado, adotando-se outro que lhe é desfavorável. De modo claro trata-se de uma reformatio in pejus, o que é vedado pelo sistema jurídico pátrio.
Um dos fundamentos de tais julgados é que o reajuste do salário mínimo supera os índices da inflação. Porém, não se pode olvidar que durante décadas o salário mínimo perdeu seu poder de compra e sempre foi reajustado bem abaixo da inflação. Somente nos últimos anos a atual política governamental vem buscando assegurar sua valorização. Os dois últimos Presidentes da República, com forte comprometimento de ordem social, procuraram recuperar o seu valor. Ainda assim, não atende à sua finalidade constitucional, de ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. (C. F., art. 7º, IV).
Para superar o hipotético descompasso entre o valor dos alimentos fixados em salários mínimos e os rendimentos do alimentante foi eleito como índice de atualização o IGP-M. No entanto, se a intenção é corrigir o encargo pelo índice de inflação, dito indexador é o menos indicado, porquanto não mede a evolução do poder de compra dos itens que compõem a pensão.
O IGP-M é calculado com base em índices que levam em consideração elementos alheios às despesas que custeiam os alimentos. São eles:
– 60% do IPA (Índice de Preços do Atacado), que mede o preço de 431 produtos do atacado, sem relação imediata com o consumidor final.
– 30% do IPC (Índice de Preços ao Consumidor), que consiste na pesquisa de preços de 388 produtos no eixo Rio-São Paulo e apura a inflação diretamente das famílias que ganham de 1 a 33 salários mínimos.
– 10% do INCC (Índice Nacional da Construção Civil), que mensura a variação de preços de materiais de construção e de mão-de-obra, destinando-se primordialmente à atualização dos contratos de construção civil.
Não se pode descartar outro fato. O ajuste de valores por indicador econômico depende de cálculos matemáticos de certa complexidade. Assim, se o alimentante foi condenado, em julho de 2005, a pagar alimentos de R$ 1.000,00, com correção anual pelo IGP-M, para calcular o valor da pensão, deverá ou consultar um contador ou encontrar jornais onde constem os índices de até um ano atrás. Pode ainda acessar a Internet, que o leva ao Manual da FGV, o qual explica – em treze páginas – como efetuar a atualização.[1] Assim, após identificar o índice anual, que foi de 1,20%, precisará fazer o seguinte cálculo:
1.000,00 x (1 + (1,20 / 100) = 1.012,00
Isso tudo para descobrir que o novo valor dos alimentos: R$ 1.012,00.
Mas não é tudo. Caso os alimentos sejam ajustados conforme índice do IGP-M, dependendo do mês, há o risco de que ocorra decréscimo no valor da pensão alimentícia, pois em muitos períodos esse índice é negativo.
Assim, na hipótese de se pretender utilizar um índice de atualização dos alimentos, parece que o mais adequado não seria o IGP-M mas o IPCA, que é o termômetro para medição das metas inflacionárias, pois verifica as variações dos custos com os gastos das pessoas que ganham de um a quarenta salários mínimos nas regiões metropolitanas de Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Goiânia e Distrito Federal.
De qualquer modo nenhum indexador empresta segurança para medir os custos dos produtos de primeira necessidade. Sequer o IPCA serve como indicador para o ajuste do valor da obrigação alimentar, que, de um modo geral, é a única fonte de subsistência de crianças e adolescentes.
Finalmente, não se pode olvidar que inúmeros indexadores econômicos já foram extintos e ensejaram enxurradas de demandas judiciais. A esta ciranda não se podem sujeitar os credores de alimentos.
Ainda que a Constituição Federal (art. 7°, inc. IV) vede a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, e o Código Civil determine a atualização da das prestações alimentícias segundo índice oficial (art. 1.710) não se revela inconstitucional a indexação das prestações alimentícias pelo salário mínimo. Há longa data o Supremo Tribunal Federal, de forma pacífica, permite a sua utilização como base de cálculo de pensões alimentícias (RE 170203 – Ministro Relator Ilmar Galvão, julgado em 30/11/1993). Esta posição mantém-se até os dias de hoje (RE 274897 – Ministra Relatora Ellen Gracie – julgado em 20/9/2005).
A legitimidade de tal indexação está cristalizada na Súmula 490: A pensão correspondente à indenização oriunda de responsabilidade civil deve ser calculada com base no salário mínimo vigente ao tempo da sentença e ajustar-se-á às variações ulteriores.
Ademais, a utilização do salário mínimo como base de cálculo dos alimentos foi recentemente confirmada pelo legislador, por meio da Lei 11.232/05, que, incluindo no Código de Processo Civil o art. 475–Q, § 4°, determinou a aplicação do salário mínimo para fixação dos alimentos oriundos de indenização por ato ilícito. Esta explicitação foi bem aceita pela doutrina.[2] Na opinião de Glauco Gumerato Ramos:[3] a fixação do valor da pensão em salários mínimos viabiliza uma maior segurança em relação aos valores devidos a este título, independentemente das discussões no plano nacional acerca do poder aquisitivo do valor nominal do salário mínimo. O mais importante, já que se trata de obrigação alimentar, é o firmamento de critérios seguros quanto aos limites da prestação imposta, o que sem dúvida é importante tanto sob a ótica do credor quanto do devedor.
Ora, se por força de lei os alimentos devidos em razão de ato ilícito, que sequer são fixados atentando às necessidades do credor, devem ser fixados com base no salário mínimo, maior razão há para que as pensões alimentícias do âmbito do Direito de Família também o sejam. Nada justifica deixar de fazer uso do mesmo critério atualizador na dívida alimentar decorrente de obrigação que visa a garantir a subsistência do alimentando.
Eleito pela lei o salário mínimo como parâmetro, descabida sua substituição por qualquer índice de atualização monetária na fixação dos alimentos. Não há como simplesmente alterar a base de cálculo sem que alguma das partes tenha buscado reverter o critério de atualização. Nada justifica que passe a Justiça, de ofício, a fixar pensões alimentícias de acordo com indexador sujeito a flutuações que não guardam consonância com a variação dos itens que integram o encargo.
Aliás, sequer está havendo a preocupação de saber se a receita do alimentante está sujeita a qualquer defasagem, qual a forma de atualização de sua renda ou qual o índice de crescimento de seus lucros. Nem sempre os profissionais liberais ou os empresários deixam de ter ganhos compatíveis com o aumento do salário mínimo. Ao menos seria necessária a comprovação de que os rendimentos do devedor não acompanham o reajuste do salário mínimo. Assim, sem a prova de que os rendimentos do alimentante não alcançam os seus índices, é inadmissível a modificação, de ofício, do fator atualizador dos alimentos. Às claras que este proceder, sem que seja buscada tal alteração em juízo, se evidencia flagrantemente prejudicial ao alimentando, não se revelando apto à preservação do princípio da proporcionalidade.
Não bastasse tudo isso, é inadequado o índice escolhido. O IGP-M leva em consideração elementos alheios às despesas a serem custeadas pela prestação alimentícia. Além da insegurança em face da possibilidade da sua extinção, também há o risco da ocorrência de deflação, o que poderia levar a eventual redução do valor dos alimentos. Finalmente, há o inconveniente da mensuração de tais valores, inacessível à maioria da população por exigir cálculos com significativo grau de complexidade.
O salário mínimo como indexador possui a vantagem da simplicidade. Todos sabem, com antecedência, qual será o valor dos alimentos, e conseguem determinar, com facilidade, o que deve ser pago e o montante a ser recebido. Portanto, de todo desarrazoado deixar de aplicá-lo, em prol da utilização de um índice difícil de calcular e que sequer possui relação com as despesas que devem ser custeadas com a prestação alimentícia.
O compromisso da Justiça é resguardar o critério da proporcionalidade, não podendo, por mera expectativa de que futuramente possa haver eventual desequilíbrio, alterar o fator de atualização, sujeitando o credor dos alimentos à insegurança das alterações do índice escolhido.
Ainda que este motivo não deva nunca ser invocado, não há como deixar de atentar à avalanche de demandas que já estão sendo ajuizadas com a finalidade de alterar o índice de correção, uma vez que a quase integralidade das pensões alimentícias são fixadas segundo o salário mínimo.
De forma aleatória, e partindo da hipotética premissa de que eventualmente venha a ocorrer desequilíbrio futuro no binômio alimentar, não pode a Justiça colocar em risco a vida e a sobrevivência de crianças e adolescentes a quem o Estado assegura, com prioridade absoluta, especial proteção.
Informações Sobre o Autor
Maria Berenice Dias
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM