Toda ideologia perece com as relações sociais que a engendraram. Mas este desaparecimento definitivo é precedido por uma fase na qual a ideologia perde, sob os golpes desferidos pela crítica, a capacidade de encobrir e velar as relações sociais das quais nasceu. (PASUKANIS, 1989, p. 29)
Sumário: 1. Introdução; 2. Teorias econômicas dos delitos e das penas: fundamentos gerais 3. Dos custos e benefícios da prática delitiva; 4. Política Criminal Economicista 5. Postulados fundamentais da Criminologia Crítica; Conclusão
RESUMO: O presente artigo objetiva fazer uma análise comparativa entre uma das teorias filiadas ao paradigma etiológico ou positivista do Direito Penal, in casu, a teoria economicista dos delitos e das penas, e a Criminologia Crítica, cujos estudos são pautados no materialismo histórico de viés marxista, com o escopo maior de determinar qual das duas vertentes teóricas melhor explica a relação entre o Estado e a sociedade pautada no jus puniendi.
Palavras-chave: Criminologia Crítica, Teorias econômicas dos delitos e das penas, Política Criminal Economicista.
1 Introdução
Desde o advento da primeira edição do livro “O homem delinqüente”, escrito pelo italiano César Lombroso, nos idos de 15 de abril de 1876, que o discurso oficial tenta explicar o crime através do próprio criminoso, levando em consideração, em maior ou menor proporção, fatores imanentes ao próprio delinqüente – atavismo, doenças, taras, desvios, tendências, maldade inata, etc.
Aos que se filiam a tal entendimento, incluem-nos no rol dos adeptos do paradigma positivista ou etiológico, posto que o crime – em última instância – se origina, tem as suas causas em fenômenos naturais – reconhecem os adeptos de tais teorias serem alguns delitos artificiais –, que se pré-constituem ao Direito Penal, sendo uma realidade ontológica, cabendo a este ramo do direito apenas reconhecer, explicar e positivar tais causas como criminosas, para depois combatê-las, “cientificamente”, em defesa da sociedade.
Uma das mais modernas e elaboradas teorias etiológicas da criminalidade é a teoria economicista dos delitos e das penas, que a partir de postulados fundados na economia, tenta explicar as causas do crime e o melhor meio – o mais barato –, no âmbito do Direito Penal material, instrumental e da execução penal, de se opor a tais comportamentos.
A Criminologia Crítica, em frontal oposição ao supramencionado paradigma e a todas as teorias que dele se originam, entende que o crime nada tem de natural e, isto sim, é uma criação social, cujo maior peso decisório encontra-se na caneta do legislador.
Deste modo, antes de analisar as causas dos comportamentos definidos pelo legislador como criminosos, dentre os muitos que são danosos à sociedade e não carregam tal estigma, preocupa-se a Criminologia Crítica em saber quem define e por que determinados comportamentos são definidos como criminosos, assim como, por que somente algumas pessoas que cometem tais comportamentos são efetivamente criminalizadas pela via de um processo explícito de seleção e etiquetamento, ou seja, a quem interessa o hodierno funcionamento do sistema penal.
A análise da pertinência de uma ou outra teoria – posto que excludentes entre si –, ante a realidade social que nos salta aos olhos, é o objetivo do presente artigo.
2 Teorias econômicas dos delitos e das penas: fundamentos gerais
No presente tópico far-se-á uma abordagem sobre uma das inúmeras teorias que tentam explicar o delito e o seu revés, o direito de punir, através de postulados econômicos. Deste modo faz-se uma aproximação definitiva entre a economia e o Direito Penal, matéria de importância basilar para o presente trabalho.
A escolha da teoria econômica dos delitos e das penas cujo maior exponencial é o inglês Gary Backer[1], se deu em razão de ser esta a teoria que possui como fundamento totalmente explícito, categorias econômicas como modo de explicar a prática de comportamentos delitivos e, principalmente, de elaboração de políticas criminais para combatê-los.
Ademais, em razão da metodologia adotada, apresenta-se de imediato a crítica desta teoria, percorrendo os caminhos abertos pela criminologia crítica, com o objetivo maior de demonstrar que a economia, ao longo da história do Direito Penal – desde sempre – esteve intimamente ligada ao mesmo, podendo os interesses econômicos ser considerados o real fundamento do jus puniendi.
Toda a exposição elaborada nesse primeiro momento, portanto, direciona-se a desnudar aspectos da profunda inter-relação entre o Direito Penal e a economia, posto que presente tese que ora se inicia pauta-se em tal constatação, cujo ponto de maturação é a afirmação de que os interesses econômicos daqueles que detêm o poder sempre se constituíram como razão de ser do Direito Penal e que por interesses ideológicos durante muito tempo foram propositalmente ocultados, se encontrando, hodiernamente, em um paulatino processo de explicitação.
Muitos são os autores afirmando em seus trabalhos, que a análise econômica do direito tem se consolidado na esfera acadêmica como uma autêntica disciplina autônoma, posto que as inúmeras investigações feitas a partir de tal pressuposto se constituem em um aporte metodológico fundamental para a Ciência Jurídica[2]. Stigler (1992, p. 458), Prêmio Nobel de Economia, chegou a afirmar que em razão da amplitude dos problemas jurídicos que tem sido enfrentados pela Ciência Econômica, esta “invade todos os domínios do direito”.
Como não poderia deixar de ser, os delitos e as penas também foram objeto de investigação por parte daqueles que compartilham a idéia de que a Ciência Econômica teria amplas condições de determinar as causas da prática delitiva, assim como, de indicar o melhor caminho para combatê-las, objetivo primordial de todas as vertentes que comungam do paradigma etiológico.
Em síntese, afirmam Montero Soler e Torres Lopes (1998, p. 176, tradução nossa):
Em termos mais concretos, o Direito tão-só deve cumprir uma série bem definida de funções. A saber: eliminar ou reduzir os custos de transações que impeçam ou limitem o correto funcionamento do mercado; estabelecer um sistema de direitos de apropriação que garanta o “livre” movimento de recursos para usos mais rentáveis; organizar um sistema de contratos que garanta a exigibilidade, para que as transações que requeiram qualquer tipo de prorrogação temporal não acarretem custos tão altos que as façam irrealizáveis e que minimize os custos derivados das contingências que comumente acompanham as negociações; instaurar um sistema de responsabilidade que estabeleça as condições em que devam ser internalizados os efeitos externos, para uma possível compensação das vítimas e, em última instância, estabelecer um sistema economicamente eficiente de sanções para obstaculizar a prática dos comportamentos criminosos ou, no caso de sua prática, da aplicação das mesmas.
O ponto de partida das teorias econômicas dos delitos e das penas sempre será a análise feita pelos indivíduos sobre o custo/benefício da prática de determinada conduta considerada lesiva pela sociedade, ou seja, tanto aqueles que delinqüem como aqueles encarregados da elaboração de políticas criminais e até mesmo os legisladores devem utilizar como fio condutor tal análise.
Assim, claro está para tais teóricos que se a Ciência Econômica é o ramo do conhecimento que estuda a conduta humana como uma relação entre fins e meios escassos suscetíveis de usos alternativos, as condutas humanas – principalmente aquelas inseridas no ordenamento jurídico – necessariamente assumem forma de eleição, o que levaria a afirmação de que qualquer dimensão da vida em sociedade estaria dentro do campo de estudo da economia.
Em tal contexto, aflora a proximidade entre as teorias econômicas e a teoria da prevenção geral negativa da pena[3], posto que, a possibilidade de ser preso, de cumprir uma pena – privativa de liberdade ou não – seria o preço a ser pago por aquele que se inclinasse a delinqüir e que tal escolha, cometer ou não um delito, se dá exatamente pela via da análise feita a partir de tal preço. Em resumo: a chave para explicação do comportamento delinqüente seria encontrada nos estímulos e dificuldades inerentes à atividade ilegal, ou seja, nos custos e benefícios que a mesma venha a proporcionar.
Por se considerar a pena como equivalente a um preço que se deve pagar pela comissão de uma atividade ilegal deve-se constituir o sistema penal em um conjunto de mecanismos que, de maneira análoga a quaisquer outras atividades de natureza econômica, fixe preços que venham a inibir as atividades economicamente ineficientes (delitos), assim como, em seu revés, deve incentivar as transações que suponham o mínimo custo e a maior utilidade, fazendo o melhor uso possível dos recursos disponíveis para a manutenção da segurança dos cidadãos.
Há, portanto, uma forte inclinação teórica no sentido de vincular-se a quantidade de pena imposta no preceito secundário da norma penal, assim como a efetiva possibilidade de condenação e prisão e o número de delitos cometidos, haja vista que, de forma explícita, postula-se ser uma implicação necessária à lei da demanda, na qual – afirma-se – quando o preço de algo aumenta as pessoas demandam uma menor quantidade daquele produto, não importando serem delitos ou maçãs. (RUBIN, 1978, p. 14)
Deste modo, mister que se ressalte, além dos possíveis efeitos intimidatórios da pena, a importância do funcionamento do sistema de justiça penal, porquanto é tal sistema diretamente responsável pela efetiva e correta aplicação das leis penais, como resposta a crescente demanda pela proteção e segurança dos cidadãos, frente aqueles que ao calcularem entre os custos e benefícios oriundos da prática delitiva, acabaram por inclinar-se pela mesma.
Em uma esclarecedora síntese, Montero Soler e Torres Lopes (1998, p. IX, tradução nossa) assim se posicionam:
O delinqüente se contempla como um agente maximizador que avalia racionalmente as expectativas do custo e benefício que lhe oferece a eventual comissão de uma atividade que tem sido repudiada pela sociedade. A pena, por seu lado, não é senão o preço resultante de um preciso equilíbrio entre a demanda por segurança que realiza a sociedade e a oferta de delitos que corresponde ao delinqüente. O sistema de justiça judicial em geral não seria senão um autêntico mercado no qual se podem resolver esses tipos de transações e no qual se devem otimizar todos os recursos, públicos ou privados, que é preciso investir para alcançar uma combinação desejada entre segurança e gasto que seja mais eficiente.
De ver-se, pois, que as teorias economicistas tradicionais adotam como pressuposto, quiçá como fundamento, a total racionalidade ou possibilidade completa de entendimento daqueles que porventura venham a delinqüir, levando em consideração – de forma paradoxalmente objetiva – somente uma análise dos ganhos e vicissitudes que podem advir da prática de um delito[4].
O paroxismo do entendimento teórico da total racionalidade quando da prática delitiva pode ser apontado através da afirmativa, por parte de tais teorias, de que o sujeito delinqüente analisará até mesmo os benefícios obtidos com a prática delitiva em comparação com o que poderia obter com uma atividade legal, ou ainda, dentre os diversos delitos a serem cometidos qual o que representaria melhor custo-benefício em razão dos ganhos e custos que possa vir a acarretar, ou seja, ganhos superiores às vezes não compensam ante os riscos a serem assumidos[5].
Segundo Becker (1988, p. 545, tradução nossa):
Uma pessoa comete um delito se a utilidade esperada do mesmo excede a utilidade que poderia obter empregando seu tempo e outros recursos em atividades alternativas. Portanto, algumas pessoas se convertem em delinqüentes, não porque suas motivações básicas difiram das de outras pessoas senão porque seus benefícios e custos diferem.
O comportamento delinqüente se assemelha, portanto, a qualquer outro comportamento racionalmente desencadeado no qual o indivíduo, ante uma escolha qualquer, avalia os diferentes custos e benefícios possíveis e previsíveis de sua conduta e atua consciente de suas prováveis conseqüências. Na medida em que os ganhos superem os custos, a conduta será praticada.
3 Dos custos e benefícios da prática delitiva
Dentro do contexto até agora traçado, imprescindível que se enalteça a importância atribuída aos custos que podem acarretar a prática de uma conduta tipificada como delituosa. A relação de custo-benefício é, portanto, uma constante a ser levada em consideração tanto pelo indivíduo – potencial infrator –, como pelo Estado, na elaboração e aplicação de políticas criminais.
Em tal universo, segundo o entendimento das teorias economicistas, o indivíduo, quando de sua análise subjetiva visando à prática de determinada conduta, além dos custos imanentes ao sistema de justiça criminal – possibilidade de condenação e cumprimento de pena – também leva em conta outros fatores.
No âmbito da análise a ser feita para a prática do delito, afloram as várias formas de controle social, dando-se fundamental importância ao grau de interiorização e conformidade do individuo para com a variada gama de princípios e normas que regem a sociedade, o que explicaria o não cometimento de um delito quando da análise favorável para a prática do mesmo[6].
Assim, é bom que se frise, no cálculo a ser feito por aquele que tem propensão à delinqüência, seriam utilizados elementos monetários e não monetários.
Por outro lado, o custo para a sociedade também não é só monetário, não têm natureza exclusivamente econômica, há custos diretos – suportados pela vítima[7], mormente nos crimes patrimoniais – e custos indiretos, suportados pelo Estado através, principalmente, dos gastos com o sistema de justiça criminal que podem ser classificados como exclusivamente econômicos.
No âmbito dos custos não monetários, podem ser elencados aqueles morais e psíquicos imanentes às vítimas, assim como o custo institucional afeto ao Estado[8], enquanto mantenedor da paz e harmonia social. Como bem colocam Calabresi e Melamedi (1972, p. 1.126), “o ladrão não só produz danos à vítima, senão que fulmina também as regras e valores protegidos pela norma”.
Montero Soler e Torres Lopes (1998, p. 25), por sua vez, ainda dividem os custos do delito para aqueles que os cometem em custos imediatos e custos retardados. A primeira espécie se refere aos gastos com a preparação para a prática delitiva, a saber: gastos com utensílios e com o próprio tempo despendido. A segunda espécie, os custos retardados, seriam aqueles que derivam das conseqüências jurídicas, ou seja, especialmente da pena imposta, mas também um forte custo adicional; a descriminação imposta pela sociedade aos ex-presidiários com todas as mazelas que derivam de tal condição: barreiras para incorporar-se ao mercado de trabalho, para ser aceito pela comunidade, enfim, para reincorporar-se ao cotidiano social.
Há também os custos derivados da proteção privada, a que um número cada vez maior de pessoas recorrem como forma de diminuir as probabilidades de vitimização, o qual, por sua vez, acaba por criar um paradoxo, qual seja: o custo social de evitação da prática delitiva – custo indireto – deveria ser suportado pelo Estado com os gastos referentes à manutenção das agências do sistema de justiça criminal e não pela vítima que, quando muito, deveria arcar tão somente com o custo direto do delito, ou seja, com o prejuízo pessoal inerente ao mesmo.
Mesmo reconhecendo que há uma variada gama de custos, como os diretos e indiretos, monetários e não monetários, imediatos e retardados, a serem levados em conta pelo delinqüente quando da execução da conduta delituosa, assim como por aqueles cuja incumbência é evitar a prática delitiva, os economicistas objetivam monetarizar todos estes custos, transformá-los todos em moeda corrente, e é exatamente nesse momento discursivo que a pena privativa de liberdade assoma como a de maior importância dentre todas as utilizadas pelo sistema punitivo oficial[9].
A prioridade para o alcance de tal objetivo, a monetarização dos custos e benefícios da prática delitiva, leva as teorias economicistas a fazerem um grande esforço teórico – em razão da própria controvérsia imanente ao tema – para, em definitivo, determinar os equivalentes monetários para aqueles custos que não se enquadram nessa categoria, posto que inexorável tal medida para que seja possível uma análise global das repercussões econômicas e sociais que os delitos implicam.
Em assim sendo, necessário que se achem valores equivalentes em moeda corrente para todos os custos e benefícios oriundos da prática delitiva, principalmente, para a quantidade de pena privativa de liberdade imposta.
O desiderato maior de toda essa formulação teórica nada mais é do que concluir: o sistema penal deve, preferencialmente, aplicar penas pecuniárias para aqueles que possam arcar com tal conseqüência e penas privativas de liberdade para os delinqüentes que não dispõem de tais recursos. Todo o cálculo deve ser feito a partir de uma estimativa do custo em dinheiro de um dia na prisão, tanto na perspectiva do delinqüente, como na perspectiva do Estado. (BLOCK; HEINEKE, 1975, p. 314)
Como a quase totalidade daqueles que acabam condenados pela prática de um delito não dispõem de recursos para o pagamento de multas, resta à pena privativa de liberdade cumprir o seu papel de principal sanção do sistema de justiça penal na ótica das teorias economicistas dos delitos e das penas.
4. Política Criminal economicista
Do até aqui exposto já nos é permitido afirmar que a partir da análise econômica dos delitos e das penas, ficam formulados de maneira inter-relacionada os dois grandes marcos do Direito Penal oficial, a saber: a natureza e determinantes do comportamento criminal, assim como os indicativos de política criminal que devem ser elaborados, levando-se em conta, principalmente, a destinação de recursos que deve fazer a sociedade, através de seu sistema de justiça criminal, para evitar, ou pelo menos diminuir, a prática de condutas delitivas e assim evitar seus custos de maneira mais eficiente.
Assim, o dano social causado pelo delito é o vetor para o qual convergem tanto a possibilidade de condenação e prisão como a magnitude da pena, posto que na medida em que o delito suponha um maior dano social, deverá ser destinado um maior volume de recursos para intentar descobrir seu autor e, consequentemente, aplicar a sanção penal. Haverá de existir, pois, uma proporcionalidade entre o custo esperado para a aplicação da pena e o custo que o delinqüente impõe à sociedade com suas condutas ilegais[10].
O delito, dentro dessa concepção, de maneira explícita, é considerado o produto de uma demanda social, isto é, a expressão de uma necessidade de justiça ou segurança por parte da sociedade que considera a atividade criminosa como socialmente lesiva, portanto, socialmente onerosa, devendo ser combatido e reduzido pelo sistema de justiça criminal, que por sua vez deve despender gastos menores do que aqueles que procura evitar. Assim sendo, define-se o delito como “uma atividade que impõe externalidades negativas, tanto na riqueza como na utilidade social”. (Ehrlich, 1979, p. 299)
Por outro lado, as teorias econômicas reconhecem a imprescindibilidade do conhecimento das Leis Penais, inclusive de suas mudanças – praticamente diárias no Brasil – por parte daqueles que são as mesmas submetidos, como forma de antecipação e correta incorporação do cálculo dos custos e benefícios quando da prática da conduta delitiva.
Assim, como pressuposto fundamental das políticas criminais a serem desenvolvidas, toda a população, haja vista que todas as pessoas podem ser pelo menos tentadas a praticar uma conduta ilícita, deve estar amplamente informada de todos os detalhes das leis penais, ou seja, alcance dos tipos, penas cominadas, formas de execução, entre outras particularidades imanentes a tal assunto.
Quando críticos levantam a problemática para o alcance de tal desiderato, como a própria ignorância da população frente a complexidade do Direito Penal material, instrumental, assim como da execução penal, a mesma é veementemente refutada sob a alegação de que as incertezas que se acercam de tais problemas são mais aparentes do que reais, porquanto, os meios de comunicação, assim como o contato com outros delinqüentes, particularmente os egressos do sistema penitenciário, permitirão às pessoas fazerem uma idéia aproximada da magnitude da penalidade que se imporia para cada tipo de delito[11]. (BOWLES, 1982, p.58)
Fica claro, então, que os principais instrumentos de política criminal dentro da concepção economicista dos delitos e das penas, deverão ser uma alta probabilidade de condenação e prisão e o tipo e magnitude da pena aplicável, com o que prioritariamente se pretende obstaculizar os comportamentos delitivos.
Fundamentados, talvez em Beccaria, os teóricos do economicismo penal entendem que a certeza da punição, ou seja, da condenação e do efetivo cumprimento da pena imposta, surte um efeito muito maior na política criminal almejada do que, propriamente, a severidade abstrata do preceito secundário da norma penal.
Partindo desse pressuposto defendem a aplicação de um volume maior de esforços que se concretize como uma maior possibilidade de efetivo cumprimento da pena, ainda que a custa de um aumento exacerbado nos modos de controle exercidos para tal fim. Melhor dizendo: deverá haver uma canalização de recursos que aumentem a possibilidade de vigilância do cidadão para que aquele que delinqüir venha inexoravelmente a cumprir uma sanção penal.
Dentro do desiderato economicista da canalização de recursos, quando do emprego dos mesmos, deverá, inclusive, haver um direcionamento especial das políticas criminais adotadas para as regiões nas quais, de maneira geral, haja uma maior propensão para o cometimento de delitos, locais onde os delinqüentes mostrem preferência pelo risco que é imanente – segundo a teoria em comento – à prática criminosa.
Neste diapasão, pode-se inferir que como o que interessa é a redução dos custos, fica evidente que toda a política criminal economicista tem como corolário a função dissuasória da pena, haja vista que é bem mais barato trabalhar-se em um viés de intimidação – para que os delitos não venham a ser cometidos – do que recuperar ou neutralizar o criminoso, medidas que pressupõem vultosos gastos.
Nas palavras de Posner (1992, p. 172, tradução nossa):
O objetivo final, portanto, da análise econômica que se realiza sobre a base destes pressupostos é desenhar um sistema de justiça criminal que, mediante uma aplicação racional da lei, otimize os recursos públicos destinados ao sistema de justiça criminal, mantendo sempre como referente último do mesmo a dissuasão de futuras condutas ilegais, com a finalidade de evitar os custos adicionais que supõe a aplicação da lei uma vez infringida esta. Dito de maneira mais simples: lograr que o sistema criminal como um todo funcione em conformidade com o critério econômico de eficiência no emprego dos recursos que em seu desenvolvimento se põem em jogo.
Fica claro, destarte, que o ponto ótimo da política criminal economicista se encontra, exatamente, na possibilidade de minimização do custo social da prática delitiva – custos diretos –, impedindo-se que crimes sejam cometidos, assim como, com a minimização dos gastos que permitam que os autores de tais crimes venham a ser efetivamente punidos – custos indiretos. Este objetivo somente é alcançado com a confluência – repita-se – entre a evitação da prática delitiva e a otimização dos gastos com as agências do sistema penal no deslinde deste objetivo.
Conscientes de que o delito jamais poderá ser completamente erradicado do meio social, até mesmo porque este ambicioso objetivo lograria consumir um volume de dinheiro não disponível, deve a comunidade aprender a conviver com certo nível de criminalidade.
O nível quantitativo de delitos cometidos a ser aceito pela comunidade está diretamente ligado ao volume de recursos que esta se predispõe a investir para alcançar a taxa de criminalidade desejada[12]. A amplitude quantitativa e qualitativa do sistema de justiça penal estará, portanto, condicionada pelo lugar que a segurança do cidadão ocupe na escala de preferências sociais.
Nas palavras de Ehrlich (1979, p. 302, tradução nossa):
Será ótimo para a sociedade permitir que um certo número de delitos ocorram, não porque o delito em si mesmo seja útil para algum tipo de função social[13], senão porque os custos adicionais de combater a delinqüência mais além de um certo nível finito superam os benefícios adicionais resultantes para a sociedade.
Como resultante dessa inferência lógica, de que independentemente dos recursos alocados o delito jamais será extirpado por completo do meio social, a doutrina economicista dá um lugar de destaque para a aplicação das penas pecuniárias como carro-chefe de sua política criminal, posto que os custos gerados com a sua imposição serão sempre muito mais reduzidos que aqueles oriundos da aplicação da pena de prisão.
A pena de multa chega a ser considerada como um fator que anula os custos sociais carreados pelo delito, haja vista que ao lado de seu baixo custo de imposição e arrecadação, funciona como um compensador para a vitima ou para o resto da sociedade dos prejuízos causados pelo crime, de forma direta se transfere renda do sancionado para aqueles que sofreram tais prejuízos.
Becker (1988, p. 565), chega a sugerir que a pena de multa, para atingir um nível de excelência, deve permitir que dentro da compensação feita pelo infrator à vítima, seja o indivíduo ou o Estado, atinja-se a situação existente antes que o delito fosse cometido, ou seja, o valor decorrente da pena de multa deve fazer jus a total reparação pelo dano sofrido a ponto de restituir a absolutamente mesma situação anterior em que se encontrava aquele que foi prejudicado com a prática do crime.
Quer-se fazer crer, portanto, que a pena privativa de liberdade deve ser aplicada de forma bastante comedida em razão dos altos custos financeiros que a mesma acarreta para a sociedade. A construção, equipamento e manutenção das instalações penitenciárias, além da perda econômica que se supõe manter milhares de pessoas inativas e alheias ao processo produtivo, posto que alijadas de suas profissões habituais desautorizam o indicativo de política criminal alicerçado na aplicação da pena de prisão.
As teorias economicistas, em um momento de luzes, embora de maneira menos contundente, reconhecem para além das possibilidades de se fazer frente à delinqüência com a exasperação do preceito secundário da norma penal, ou ainda, com o aumento de possibilidade de condenação e prisão pela prática delitiva, que existem outras alternativas.
Para tanto, afirmam que tais outras soluções de combate ao crime devem ser buscadas no espaço em que tenham o condão de alterar as condições sócio-econômicas que configuram hodiernamente o ambiente social, melhor dizendo, devem ser envidados esforços que se oponham a crescente injustiça social que assola a sociedade como um todo.
Para além do discurso dissuasório do Direito Penal, deveria ser feita uma profunda análise dos efeitos que uma melhora na renda e nas condições de vida das pessoas que habitam nos subúrbios e bairros marginais que proliferam em torno das grandes cidades, a serem desencadeados no que pertine à diminuição do nível global do cometimento de delitos. (MONTERO SOLER; TORRES LOPES 1998, p. 68)
5. Postulados fundamentais da Criminologia Crítica
O ponto fundamental e unificador das teorias criminológicas que se antagonizam com as teorias positivistas – que legitimam o sistema penal, podendo, portanto, serem denominadas de oficiais – é o entendimento de que todo o saber produzido no âmbito dessa criminologia oficial é profundamente ideológico, cujo objetivo final é obscurecer a consciência real das classes subordinadas, posto que a serviço de um sistema de dominação vinculado a um sistema de produção, no caso o capitalista[14].
É fácil perceber que as teorias criminológicas oficiais – como no caso das teorias econômicas dos delitos e das penas – em suas elaborações, partem necessariamente de um modelo de sociedade consensual, na qual todos vivem em perfeita harmonia que somente é quebrada com a prática de condutas criminosas por aqueles que não se sujeitam as regras estabelecidas para proteger os interesses gerais de tal sociedade. Assim os que cometem delitos são os componentes maus da sociedade, enquanto que aqueles que não violam o Direito Penal são os seus componentes bons.
Nas palavras de Andrade (2003, p. 21):
A chave decodificadora deste senso comum radica no livre-arbítrio ou na liberdade de vontade, tão cara aos liberalismos do passado e do presente. Se tudo radica no sujeito, se sua bondade ou maldade são determinantes de sua conduta, as instituições, as estruturas e as relações sociais podem ser imunizadas contra toda culpa. Os etiquetados como criminosos podem então ser duplamente culpabilizados: seja por obstaculizarem a construção de sua própria cidadania (eis que não fazem por merecer, de acordo com a liberdade de vontade que supostamente detêm, e a moral do trabalho, que dela se deduz); seja por obstaculizarem a plenitude do exercício da cidadania alheia encerrada, que crescentemente se encontra no cárcere gradeado de sua propriedade privada.
Deste modo, o Direito Penal seria o ramo do direito que protege bens jurídicos universais, caros a todos aqueles que fazem parte da sociedade por ele protegida, sendo aplicado de forma rigidamente igualitária e se pautando inexoravelmente no princípio da legalidade[15]. Tem-se assim, configurada, a ideologia da defesa social.
Para obter o desiderato de ampla defesa social, o Direito Penal tem como principal instrumento a pena[16], que através de suas várias funções oficiais e declaradas – retribuição, prevenção geral e prevenção especial –, acaba por reforçar a legitimação do mesmo[17].
No pólo diametralmente oposto, como premissas teóricas gerais, as teorias materialistas adotam o entendimento de que a lei e a seletividade do controle social formal, quando da aplicação do Direito Penal são, em última análise, as instâncias que acabam por produzir a delinqüência, posto que a lei define as condutas a serem taxadas de delituosas e o sistema, entre as muitas pessoas que cometem delitos, seleciona aqueles que devem desempenhar o papel de criminosos.
Assim, enquanto a Criminologia Positivista se ocupa em explicar o crime através de suas causas, se utilizando do método experimental e das estatísticas criminais oficiais, indicando soluções para o combate da criminalidade –
posto que fundamentalmente está a perquerir o que o homem criminoso faz e porque o faz – a Criminologia Crítica desloca o foco de estudos do comportamento desviante para os mecanismos de controle social, ou seja, especialmente para o processo de criminalização. (ANDRADE, 2003, p. 35-48)
Nesta virada paradigmática não mais importa quem pratica o comportamento desviante e porque o faz e sim quem tem o poder de definir quais serão os comportamentos criminosos e quais os objetivos reais almejados quando da utilização do sistema penal como principal forma de controle social[18].
O primeiro momento teórico, cuja elaboração remonta à Criminologia da Reação Social ou Labelling Approach, funda as bases centrais de seu pensamento no entendimento, segundo o qual, o desvio e a criminalidade não são uma qualidade ontológica ou preconstituída à reação social e, consequentemente, à reação do sistema penal e, sim, que o crime e o criminoso são produtos de um processo desencadeado no meio social, no qual determinadas pessoas definem a que condutas devem ser atribuídas a pecha de criminosas e, principalmente, dentre muitos daqueles que praticam aquelas condutas, quais os que devem ser selecionados para desempenhar o papel de criminosos.
Desse modo, a criminalidade não pode ser definida como algo imanente àquele que comete o delito, como um mal já existente que aflora com a prática da conduta descrita no tipo e sim, que em razão da conduta estar descrita no tipo penal como criminosa, haverá uma reação social à prática da mesma, sendo sua origem, portanto, social e definitorial.
Ademais, na sua segunda afirmação basilar, o Labelling Approach, em razão da clientela encontrada nas cadeias e presídios, sempre com as mesmas características, que acabam por convergir e se concretizar como vulnerabilidade social, explicita que o sistema penal é estigmatizante e seletivo, melhor dizendo: em razão de sua total falta de possibilidades operacionais, assim como, da capa de proteção que oferece aos não vulneráveis, o sistema penal, dentre as muitas condutas tipificadas como criminosas e praticadas diuturnamente por todos, ou quase todos que integram o meio social, seleciona, e assim estigmatiza alguns poucos, que acabarão por desempenhar o papel de criminosos.
Sobre o movimento acima delineado, Aniyar de Castro (2000, p. 139) assim se manifesta:
Na realidade, a nova criminologia, ao erigir-se em crítica ao direito penal, reverteria os papéis, de subordinada a dominante (agora o direito penal seria parte de seu objeto estudo), que haviam sido atribuídos ao velho estamento criminológico-penal. Um caminho conjunto entre penalistas e criminólogos críticos, que, se houvesse começado muito antes, talvez tivesse evitado a “conversão” de muitos de nós, daquele direito penal – seco da realidade, despojado de iluminação política, e mínimo em suas conseqüências –, para a criminologia.
Tal giro paradigmático na explicação da criminalidade atingiu o seu ápice teórico com as formulações da Criminologia Crítica, que se utilizando do material até então produzido pela Criminologia da Reação Social, avançou e, através de uma interpretação marxista da criminalidade e do controle social, expôs as razões pelas quais o Direito Penal é, fundamentalmente, seletivo e estigmatizante.
Ao centrar o seu foco sobre a dimensão do poder na sociedade capitalista, com a preponderância para a proteção da propriedade, desnuda-se a violência estrutural, origem das desigualdades sociais, gerada pelo modo de produção adotado – no caso o capitalista –, dando ênfase ao papel desempenhado pelo Direito Penal como forma de manutenção do status quo.
Explicitou-se, de forma definitiva, que em uma sociedade visceralmente desigual, as relações de poder e propriedade devem ser garantidas, inclusive no âmbito ideológico, por um instrumento repressivo e repressor que mantenha o desenvolvimento econômico profundamente desigual, e os privilégios daí decorrentes para uns poucos, em detrimento do mínimo existencial para a maioria dos que compõe o corpo social. Tal instrumento, como já explicitado, é o Direito Penal.
No marco da Criminologia Crítica, a descrição da fenomenologia da seletividade pela Criminologia da Reação Social receberá uma interpretação macrossociológica que, aprofundando a sua lógica, evidencia o seu nexo funcional com a desigualdade social estrutural das sociedades capitalistas e a dominação classista. (ANDRADE, 2003, p. 54)
Em suma, para a Criminologia Crítica o Direito Penal não protege bens jurídicos universais, caros a todos que compõem o meio social; não é aplicado de maneira igualitária, sendo seletivo e estigmatizante; o princípio da legalidade só subsiste na esfera formal, posto que a criminalização e descriminalização de condutas obedece única e exclusivamente aos interesses da dominação de classes, assim como, todo o sistema penal – Polícia, Ministério Público, Magistratura, órgãos da execução Penal – funciona de maneira ideologicamente comprometida, ou seja, a serviço de quem detém o poder.
Conclusão
Ante tantas criminalizações e posteriores descriminalizações de condutas nos mesmos ordenamentos jurídicos – por exemplo, o adultério e a sedução recentemente descriminalizados no Brasil -, como defender a idéia de que o delito é algo natural, que vai contra a natureza do homem. Ademais, como defender que o repúdio a tais condutas tenham validade universal, haja vista a diversidade cultural que faz com diversas práticas ilegais em um determinado ordenamento jurídico sejam legais e corriqueiras em outros.
Como explicar, pautado na igualdade que fundamenta a aplicação do Direito Penal, que todos os presídios e delegacias do Brasil, absolutamente todos, seja habitado por uma clientela que em sua esmagadora maioria é composta apenas por pessoas pertencentes às camadas excluídas da sociedade.
Por outro lado, qual a razão das condutas criminosas comumente praticadas pelos altos estratos da sociedade receberem tratamento diferenciado para melhor – veja-se a causa de extinção da punibilidade pelo arrependimento posterior nos crimes de sonegação fiscal –, quando, na verdade, são bem mais lesivas para o Estado que os delitos comuns praticados contra o patrimônio individual.
Como prosperar a idéia de que em mundo como o de hoje, em que impera a exclusão social, capitaneada pelo neoliberalismo, possam as pessoas analisar o custo e benefício das práticas delituosas, quando, na verdade não se apresentam, na maioria das vezes, opções à tais práticas, sejam por motivos ideológicos – criminalização de movimentos sociais (sem-terra, sem-teto, etc.), sejam por motivos de sobrevivência (crimes contra o patrimônio, tráfico de drogas), etc.
Como buscar as causas de uma conduta delituosa e tentar explicar as razões de sua prática, se com uma simples decisão do legislador tal conduta poderá ser legalizada. Será que a descriminalização tem o condão de transformar aquele homem que com a prática do delito, até então era considerado mal, doente, atávico, entre outros tantos adjetivos maniqueístas, em um cidadão de bem.
Será que o homem médio, que deve ter sido o marido da mulher honesta e irmão do homem de bem (talvez de bens), conceitos fundamentais para as elaborações teóricas da dogmática penal, não seriam construções ideológicas pautadas na moral religiosa e que apesar de não mais constarem dos textos legais estão intrinsecamente ligadas ao imaginário dos operadores do direito.
Enfim, Qualquer que seja a teoria apresentada, e a teoria economicista dos delitos e das penas é apenas uma espécie do mesmo gênero, impossível continuar pensando o Direito Penal e Processual Penal pela ótica maniqueísta do discurso oficial, pautado no paradigma positivista.
Deste modo, cremos, com fundamento nos postulados da Criminologia Crítica, que o sistema penal e os seus principais instrumentos, o Direito Penal material e instrumental, estão de forma clara e explícita a serviço dos interesses daqueles que detém o poder, com o fim de manter as desigualdades sociais sob o jugo da repressão.
Informações Sobre o Autor
Claudio Alberto Gabriel Guimarães
Promotor de Justiça do Estado do Maranhão. Coordenador Estadual da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP. Sócio Fundador do Instituto Panamericano de Política Criminal. Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Docência Superior pelo Centro Universitário do Maranhão – UNICEUMA. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, com área de concentração em Direito Penal. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com área de concentração em Criminologia. Pesquisador do CNPq. Professor Adjunto da Universidade Federal do Maranhão.