1. Um prefácio sobre princípios
Atualmente, nesse cenário de aversão social ao processo, urge a necessidade de reconstruir os dogmas processuais desde sua base axiológica, passando pelo nascimento de seus conceitos, com a finalidade de adaptar o processo à realidade dos novos tempos. Isto é, devemos reformular as considerações que agem em todo o sistema processual, sejam normas estritas, sejam princípios, sejam meras nomenclaturas.
Diante da impossibilidade prática de se fixar um rol exaustivo de princípios processuais, frente às infinitas possibilidades de circunstâncias que envolvem uma dada situação processual, nasce a necessidade de desenvolver estudos das principais características de um princípio jurídico, à luz do exame das teorias principiológicas da atualidade.
O operador jurídico, envolvido no caso processual concreto, necessita de critérios e diretrizes suficientes que o auxiliem na identificação e utilização de valores jurídicos que possam ser classificados e manejados acertadamente como princípios processuais na criação da melhor solução jurídica para uma determinada situação processual concreta.
Assumida a premissa pós-positivista, de que os princípios são uma espécie do “gênero norma”, tem-se que os mesmos passaram a informar efetivamente a aplicação e a interpretação do Direito em si, alcançando todas as atividades do mundo jurídico, inclusive na seara processual.
Sobre princípios jurídicos, existem duas correntes principais de investigação citadas por Humberto Ávila[1].
A primeira analisa os princípios de modo a exaltar os valores por eles protegidos, qualificando-os como alicerces ou pilares do ordenamento jurídico, sem, contudo, examinar quais são os comportamentos indispensáveis à efetivação desses valores e quais são os mecanismos metodológicos necessários à fundamentação controlável da sua aplicação.
A segunda investiga os princípios de maneira a privilegiar o estudo de sua estrutura, visando a encontrar um procedimento racional de fundamentação que permita tanto especificar as condutas necessárias à realização dos valores por eles prestigiados, quanto justificar e controlar sua aplicação.
Daí, é incorreto afirmar que a violação de uma regra é mais grave do que a de um princípio, visto que a moderna filosofia principiológica tem maior grau de determinação do que as condutas existentes nas regras.
Posteriormente, com o intuito de avançar para águas mais profundas no estudo sobre o assunto em pauta, antes se faz necessário apurar qual a acepção do vocábulo “princípio” dentro do ordenamento jurídico.
Ora, desde que o homem moderno voltou sua atenção para compreender os diversos fenômenos existentes à sua volta, os princípios sempre ocuparam papel de destaque no mundo das ciências.
Pesquisas em consagrados dicionários pátrios permitem extrair a idéia chave de que dito vocábulo encerra a noção principal “de ponto de partida”[2], o que explica a curiosidade dos cientistas em compreendê-lo e aplicá-lo em suas teorias e experimentos. Identificar o ponto de partida de um determinado objeto de estudo significa desvendar-lhe o que ele possui de mais importante: sua essência, sua raiz.
No entender de Miguel Reale[3] os “princípios são certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber”.
Na lição de De Plácido e Silva[4], estudioso dos vocábulos jurídicos, há o ensinamento de que os “princípios são o conjunto de regras ou preceitos que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando a conduta a ser tida em uma operação jurídica”.
Para Washington de Barros Monteiro[5], os “princípios são os pressupostos lógicos e necessários das diversas normas legislativas.”
Uma das mais atuais concepções dos princípios é dada por José Cretella Neto[6]:
“Toda e qualquer ciência está alicerçada em princípios, que são proposições básicas, fundamentais e típicas, as quais condicionam as estruturações e desenvolvimentos subseqüentes dessa ciência.”
A título de ilustração, expõe-se o comentário tecido por Celso Antônio Bandeira de Mello[7] acerca dos princípios em geral:
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.”
Já Genaro R. Carrió[8] aludiu que a expressão princípio jurídico é utilizada para “referir-se à mens legis ou a ratio legis de uma dada norma ou de um conjunto de normas, ou seja, a finalidade a que se destinam”.
Na mesma busca de uma definição, Karl Larenz[9] postulou que princípios:
“[…] são fórmulas nas quais estão contidos os pensamentos diretores do ordenamento jurídico, de uma disciplina legal ou de um instituto jurídico.”
Em seu turno, Canotilho[10] expressa entendimento de que princípios:
“[…] são ordenações que se irradiam e imantam o sistema de normas; começam por ser a base de normas jurídicas, e podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípios.”
Assim sendo, fica revelada a magnitude de um princípio no sistema jurídico, demonstrando sua importância e função, de maneira que, sem subterfúgios, pode-se concluir que, ao se ferir uma norma, diretamente estar-se-á ferindo um princípio daquele sistema, que na sua essência estava embutido.
Desta feita, conclui-se, das explicações trazidas acima, que os princípios são pontos basilares e que laboram como base para a concepção e aplicação do direito.
A doutrina moderna destaca a importância dos princípios no estudo dos mais diversos ramos do Direito. Se antigamente era negada aos princípios qualquer espécie de densidade jurídica, hoje, os mais renomados cientistas jurídicos reconhecem o significativo papel dos princípios na compreensão dos sistemas da justiça.
2. O princípio processual da cooperação
Já adentrando na tarefa de identificar e catalogar princípios, com o escopo de estabelecer um universo numerus clausus deles, os operadores se deparam como uma difícil solução, senão impossível, razão pela qual, apresenta-se mais relevante e produtivo trabalhar na formulação de uma metodologia que sirva para avaliar se uma determinada norma, de interesse do operador jurídico, é ou não um princípio processual.
Nesse desiderato, como o Direito Processual é uma ciência autônoma, detém tal ramo seus próprios princípios. Entendimento esse que faz parte das seguintes razões de Nelson Nery Júnior[11]:
“[…] se considera ciência aquele ramo de estudos que é informado por princípios. Estes, portanto, é que dão natureza de ciência a determinada matéria.”
Assim sendo, como ramo independente do direito que é, o direito processual não poderia deixar de ser composto por diversos e interessantes princípios.
Cientes disso, é de valia lembrar que os princípios devem ser utilizados e interpretados como fundamentos axiológicos (valores) e a priori às regras legais.
Dentre os princípios processuais, o da cooperação é digno de maior aplicabilidade nos tempos hodiernos, pela simples necessidade que o jurisdicionado tem de receber, de forma mais primorosa, a prestação jurisdicional.
O princípio da cooperação processual está hoje consagrado como princípio angular e exponencial do processo, de forma a propiciar que juizes e mandatários cooperem entre si, de modo a alcançar-se, de uma feição ágil e eficaz, a justiça do caso concreto.
Este princípio vem sendo muito utilizado e já prestigiado em alguns países, justamente pela sua eficácia em prol da busca célere e enérgica de Justiça.
Fredie Didier Junior[12], em dissertação à Revista de Processo, afirma que:
“Atualmente, prestigia-se no Direito estrangeiro – mais precisamente na Alemanha, Franca e em Portugal – e, já com algumas repercussões na doutrina brasileira o chamado princípio da cooperação, que orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do processo, de participante ativo do contraditório e não mais a de um mero fiscal de regras.”
É o que se pede nesse caso e não se obtém resposta, uma vez que todos os aparatos doutrinários, jurisprudenciais e legais estão sendo fornecidos ao juiz a quo e este continua a manter-se inerte, e “incooperativo”, vez que sequer manifesta-se de forma a propiciar eficazmente a justiça.
Trata-se de leitura basilar de texto de lei, sem interpretação merecida e sem procura do bem maior que é o estabelecimento da Justiça do bom desenrolar do processo como um todo.
Preceito implícito no sistema brasileiro, a cooperação tem seu alicerce no devido processo legal e por orientação a interação entre os sujeitos da relação processual. Por este princípio, uma vez detectada questão de ordem pública pelo magistrado, devem as partes serem instadas a se manifestar, a cooperar na sua solução.
Em continuidade a sua explanação, o professor Fredie Didier Junior[13] prossegue:
“[…] O magistrado deve adotar uma postura de diálogo com as partes e com os demais sujeitos do processo: esclarecendo dúvidas, pedindo esclarecimentos quando estiver com dúvidas e, ainda, dando as orientações necessárias, quando for o caso. Encara-se o processo como produto de atividade cooperativa: cada qual com as suas funções, mas todos com o objetivo comum, que é a prolação de um ato final.”
Isso tudo significa que o processo não deve ser encarado como um conjunto de despachos e decisões meritórias desconexas e fixadas na lei pelo simples fato de assim o ser desde sempre.
Na positivação, o princípio em comento pode ser visto no famoso art. 284, caput, do CPC, referente à possibilidade do autor em emendar a petição inicial, caso o pólo ativo sinta necessidade de complementar aditando ou retificando termos da exordial (fatos, alegações e/ou pedidos).
Também, essencial é lembrar que na Ação de Restauração de Autos, de rito Especial, está, intrinsecamente, inserida a cooperação, conforme a solar redação dos arts. 1065 e 1066 do CPC.
Por essas análises podemos complementar que existem quatro princípios que caminham lado a lado com o princípio da cooperação: 1º) – O princípio constitucional da proporcionalidade (art. 5º, caput e V, da CF); 2º) – O princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I da CF); 3º) – O princípio da economia processual e 4º) – O princípio da celeridade processual.
A cooperação em discussão materializa-se no sentido de guiar os membros do processo a um caminho regrado pela colaboração mútua e pelo equilíbrio entre o que deve ser demandado e o que pode ser acordado.
Ora, resta claro que o processo deve ser uma troca de experiências que desembocarão no livre convencimento do juiz sobre um fato ou ato, e que será chamada de sentença.
O mero fato de um incidente processual não estar dentro da imensa lista de fatos já ocorridos (jurisprudência), ou mesmo o fato de um julgador não querer decidir nada mais após sua sentença, não pode se tornar um empecilho para que o direito real se coadune e se torne verdade.
Por todos esse motivos as partes, inclusive o julgador deve colaborar para entender a lei de forma mais contundente ao caso, não se manifestando sempre contrariamente ao processo como se esse fosse seu inimigo devendo ser destruído o mais rápido possível. A cooperação e o entendimento entre as partes deve ser algo freqüente e precedente, uma vez que se trata do direito alheio e não somente de meras especulações doutrinárias lançadas em livros de teses meramente acadêmicas.
Sobre o assunto em tela, Ovídio Baptista Silva[14] preconiza que:
“[…] qualquer procedimento não poderá jamais oferecer uma solução absolutamente ideal e imune a qualquer “inconveniente”, ou seja, independentemente do rito utilizado para se dirimir todas as lides existentes, ainda assim o juiz nunca poderá assegurar em todos os casos que está imune de cometer qualquer injustiça.”
É notório que a não cooperação acarreta na inevitável contemporização do processo, o que, ao entender do supracitado Ovídio Baptista Silva[15], acarreta falta de segurança jurídica:
“[…] um processo extremamente seguro, mas excessivamente lento é tão inadequado quanto outro bastante rápido, mas sem nenhuma segurança, tendo que se buscar formas de equilibrar a balança, garantindo um processo rápido quanto possível, para obter uma maior segurança nos provimentos jurisdicionais.”
Salienta, ainda, que para muitos a justiça que não cumpre suas funções dentro de um prazo razoável é uma justiça inacessível, contrapondo-se ao texto preconizado na Constituição.
É preciso entender que atrás de um processo com suas centenas de folhas encontram-se pessoas e vidas que demoraram anos para chegarem ao patamar em que estão. Não pode haver simplesmente o desprezo quanto a esse fato e o desgarro do juiz ao que é mais importante: a Justiça.
Atualmente, uma das grandes insatisfações da sociedade brasileira repousa, justamente, na indiscutível insuficiência estatal de prover a justiça a quem a ele recorre em busca de uma solução célere para seus problemas. Fundado em modelo obsoleto, face às novas demandas sociais, o processo civil brasileiro atual não tem conseguido responder satisfatoriamente às expectativas de seus usuários.
Abarrotados de processos e pressionados por determinações superiores no sentido de atingirem metas quantitativas previamente estipuladas, juízes tentam desesperadamente, sem êxito, resolver o problema da insatisfação social pela lentidão da prestação jurisdicional, acelerando o ritmo de trabalho para devolver à sociedade uma quantidade cada vez maior de decisões em tempo cada vez menor.
Como resultado dessa luta insana, o tempo necessário à formação da convicção do julgador na prolação de uma decisão também vem sendo diminuído ao que não se tem dado a devida importância na avaliação do problema, pois, afinal, sob a ótica do paradigma atual, bom juiz é aquele que julga o maior número de processos por hora, dia, semana, mês, ano. Sabemos isso não pode continuar assim!
Evidentemente que esta corrida judicial contra o tempo acaba por piorar a já dramática situação do Poder Judiciário brasileiro, pois a pressa do julgador – que é humano, ressalta-se – por vezes, gera decisões equivocadas e, portanto, injustas. Dessa forma, o custoso e inepto aparato judicial estatal acaba reforçando o senso comum do povo no sentido de que algo precisa mudar e rápido no processo civil brasileiro.
Diante desse cenário de obsolescência do sistema processual brasileiro, apresenta-se necessária uma reconstrução dogmática que examine a questão desde sua base axiológica, desde o nascedouro dos conceitos processuais com o fito de adaptar o processo civil à realidade dos novos tempos. E a reformulação conceitual a ser empreendida deverá abarcar a totalidade do sistema processual, implicando criteriosa reavaliação tanto das normas estritas quanto dos princípios vigentes, tudo visando ao aperfeiçoamento do processo civil brasileiro.
Conclui-se que é fato que o princípio da cooperação impele os operadores do Direito ao desafio de lançar-se para um ato o máximo de harmonização ao ordenamento jurídico.
Esse ato de trabalhar em cooperação facilita o trabalho árduo do julgador (não negamos esse caráter espinhoso) e ajuda ao jurisdicionado e a todo o aparato que envolve a justiça, desde advogados, passando por servidores até chegar ao juiz e ao principal: a solução justa da lide.
Informações Sobre os Autores
Emanuel de Oliveira Costa Junior
Advogado militante, consultor jurídico, especialista em Direito Público, especializando em Docência do Ensino Superior, sócio fundador do escritório Costa & Sousa Advogados Associados S/S e Costa & Sousa Eventos Jurídicos, confeccionou e publicou vários artigos científicos nas mais respeitadas revistas jurídicas de alcance nacional e em portais jurídicos na internet
Fernando Alves de Sousa
Advogado militante, consultor jurídico, ex-assessor jurídico de Desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, especialista em Direito Civil, em Processo Civil e em Ensino Superior.