Introdução
A Teoria da Desconsideração da Pessoa
Jurídica nasce quando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, distinta de
seus membros, acaba por incentivar a prática de atos fraudulentos, praticados
através da pessoa jurídica, como um verdadeiro instrumento do abuso de direito.
O ordenamento jurídico
brasileiro positivou a mencionada teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, através da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que dispõe sobre
o Código de Defesa do Consumidor.
O referido Código
determinou expressamente em seu art. 28 as condições para a aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, determinando que o juiz poderá
desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do
consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração
também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Destaca-se ainda, que
também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos
consumidores.
Tendo em vista o crescimento de ações
lesivas praticadas por pessoas jurídicas, mesmo após a normatização inicial no
Código de Defesa do Consumidor, a teoria da desconsideração da pessoa jurídica
passou a figurar em diversos instrumentos normativos.
A Lei nº 8.884, de 11 de
junho de 1994, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a
ordem econômica, determinou expressamente em seu art. 18, a questionada
desconsideração da personalidade jurídica.
A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que
dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, disciplinou em seu art. 4º a
questionada teoria, determinando que poderá ser desconsiderada a pessoa
jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
Recentemente, com o
advento do novo Código Civil Brasileiro, através da Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2002, restou disciplinado em seu art. 50 a teoria da desconsideração
da personalidade jurídica, determinando que em caso
de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou
pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de
certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
A
positivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica revela a
preocupação do legislador infraconstitucional, na busca pela proteção da ordem
jurídica, e coibindo abusos da personalidade jurídica empresarial.
A desconsideração da personalidade
jurídica na esfera administrativa e o princípio da legalidade
Determina expressamente a Constituição
Federal em seu art. 37, que a Administração Pública está adstrita aos
princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da
eficiência.
Pelo princípio da legalidade, a atuação da
Administração Pública decorre da lei e ao administrador só é permitido fazer
aquilo que a lei previamente determinou.
No entendimento de Romeu Felipe Bacellar
Filho: “… o administrador público jamais poderá agir contra legem, mas apenas secundum
legem, de modo que a amplitude e o alcance desse princípio fazem da atividade
do agente (público) uma adstrita submissão à manifestação volitiva do
legislador.”[1]
Cabe destacar que a Lei
de Licitações (Lei nº 8666/93) não prevê a desconsideração da pessoa jurídica,
assim sendo, discute a doutrina sobre sua aplicabilidade na esfera
administrativa e se tal providência não seria uma afronta ao Princípio da
Legalidade.
Destaca-se neste particular, a inovação
trazida pela Lei de Licitações do Estado da Bahia (Lei 9433/2005), que tornou
eficaz a punição de fornecedores que cometem irregularidades, desconsiderando a
pessoa jurídica, objetivando que, aquele empresário cuja empresa foi punida com
a suspensão devido a irregularidades constatadas em licitações, não volte a
contratar com a administração pública, até que ocorra o término do prazo de
suspensão da empresa.
É inédita a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica nas hipóteses de fraude na criação de novas
entidades empresariais. O objetivo da medida é evitar que a empresa suspensa
devido a irregularidades no fornecimento de bens ou serviços ao setor público,
volte a participar de procedimentos licitatórios em verdadeiro abuso de
direito.
Embora o tema ainda levante muita polêmica,
importante destacar neste momento, posicionamento jurisprudencial do Superior
Tribunal de Justiça, que admitiu a aplicabilidade da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica em sede de direito administrativo, com fundamento nos
princípios da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos
interesses públicos. Vejamos o importante precedente jurisprudencial.
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.- Recurso a que se nega provimento”.[2]
Trata-se de Recurso
Ordinário Constitucional interposto por G E G Móveis, Máquinas e Equipamentos
Ltda, com fundamento no art. 105, II, “b”, da Constituição da República,
desafiando Acórdão proferido pelas Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de
Justiça do Estado da Bahia. O mandado de segurança foi proposto contra ato do
Secretário de Administração do Estado da Bahia, que fez expedir a Portaria n
650/2000, de 12/09/2000, a qual estendeu à Recorrente os efeitos da declaração
de inidoneidade para licitar emitida contra a empresa COMBAIL LTDA., que se
apresenta composta pelo mesmo quadro societário.
No caso concreto, os
sócios tentaram burlar a lei, mediante a constituição de nova sociedade, com os
mesmos objeto comercial e endereço, para, desta forma, continuarem a participar
dos processos licitatórios, em verdadeiro abuso de direito, fraudando a
aplicação da sanção administrativa imposta.
Cabe ressaltar que a
relação fática levantada nos autos e no processo administrativo estadual,
demonstraram fraude à lei, permitindo a aplicação da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica.
Determinou com precisão o
STJ: “Uma empresa constituída com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e
com sede no mesmo endereço, dificilmente, conseguirá provar que não agiu em
fraude à lei, para furtar-se dos efeitos danosos de uma sanção administrativa.
Parece claro, no presente caso, que a Recorrente valeu-se do “véu da pessoa
jurídica” – para usar de metáfora já consagrada -, com o evidente intuito de
fraudar a lei e descumprir uma punição administrativa que lhe havia sido
imposta.”
O Superior Tribunal de Justiça fundamentou
sua decisão aplicando os princípios da moralidade administrativa e da
indisponibilidade dos interesses públicos, quando a pessoa jurídica utiliza-se
de mecanismos fraudulentos e com abuso de forma. Destacou ainda que a concepção moderna do Princípio da Legalidade não está a exigir,
tão-somente, a literalidade formal, mas a intelecção do ordenamento jurídico enquanto
sistema.
Embora não exista norma
específica sobre a desconsideração da personalidade jurídica em sede
administrativa, nas licitações e contratos administrativos, a Administração
Pública tem o dever de observância dos princípios constitucionais, explícitos
ou implícitos, sob pena de nulidade do ato administrativo, bem como, poderá
aplicar tal tese sem a interveniência do Poder Judiciário, tendo em vista a
auto-executoriedade dos atos administrativos.
Conforme
ilustre manifestação ministerial no mencionado recurso ordinário em mandado de
segurança, o abuso de um instituto de direito não pode jamais ser tutelado pelo
ordenamento jurídico, seria uma grande incongruência admitir-se a validade
jurídica de um ato praticado com fraude à lei, assim como seria desarrazoado
permitir-se, com base no Princípio da Legalidade, a sobrevida de um ato
praticado à margem da legalidade e com ofensa ao ordenamento jurídico.
Afigura-se relevante
esclarecer que para a plena aplicação da mencionada tese, necessário se faz assegurar
ao interessado o direito de defesa e a possibilidade do contraditório, em
processo administrativo regular, tendo em vista a imperiosa comprovação da
ocorrência de fraude à lei e de abuso de forma.
Deste modo, identifica-se
a moderna aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na
esfera administrativa, como um instrumento eficaz de controle de atos
fraudulentos e de abuso de forma, pautando-se a Administração Pública pela
observância dos princípios constitucionais, explícitos e implícitos, como a
Moralidade Administrativa, a Supremacia do Interesse Público e a
Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público, revelando
verdadeira harmonia do ordenamento jurídico enquanto sistema.
Notas:
[1] BACELLAR FILHO, Romeu. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 41-43.
[2] (RMS 15166/BA; Recurso Ordinário em Mandado de
Segurança, Rel. Min. Castro Meira, Órgão Julgador Segunda Turma do Superior
Tribunal de Justiça, Data de Julgamento 07/08/2003, Data da Publicação DJ 08/09/2003)
Informações Sobre o Autor
Otavio Dias Pereira Junior
Advogado Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/PR e pós-graduando em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar.