Tivemos a oportunidade em referir em
nossa recente obra “Crime de Lavagem de Dinheiro”, que embora existam opiniões
contrárias, entendendo que o autor do crime antecedente, pelo punido pela sua
prática, não poderá sê-lo pela prática do crime de lavagem de dinheiro,
entendemos que há evidente caracterização e viabilidade.
Nos termos da lei, o agente pode ser
processado e punido pelo crime de lavagem de dinheiro, independentemente de
existência de processo e/ou julgamento do crime antecedente (que gerou a obtenção
dos ativos), ainda que praticados em outro país.
Art. 2°: “O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei”: II – “independem do processo e julgamento dos
crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro
país”;
E mais: Art. 2° III; b) § 1°: “A denúncia será instruída com indícios
suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos
previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele
crime”.
Estes dispositivos revelam absoluta
autonomia entre os crimes, o precedente e o conseqüente de lavagem do dinheiro.
Pelo teor da Lei, não há necessidade de existência de processo e/ou sequer
julgamento do crime antecedente, podendo, de forma independente, prosseguir-se
com investigação, processo e julgamento – e condenação do crime de lavagem de
dinheiro. Não obstante, uma vez instaurado o processo do crime antecedente,
evidentemente que a Administração da Justiça deverá velar pela coerência da
existência dos Feitos Criminais. Como a Lei 9.613/98 é específica, e os
dispositivos processuais são “especiais”, aplica-se, por analogia, no que
couber, os dispositivos processuais penais e civis, previstos nos artigos 92 a
94 do Código de Processo Penal, bem como do artigo 265 IV “a” do Código de
Processo Civil, suspendendo-se o processo relativo ao crime de lavagem de
dinheiro. Uma vez julgado o processo relativo ao crime precedente, o Juiz
estará apto a prosseguir ou não com o processamento do delito de lavagem de
dinheiro, servindo aquele como prova emprestada.
Importante ressaltar que o Brasil
ratificou o texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, e que o
Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto Legislativo no 231, de 29 de
maio de 2003, seguindo-se a expedição do Decreto n° 5.015, de 12 de março de
2004, que a promulgou (a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional), especificando que:
Art.
6°, “2”- e) Se assim o exigirem os princípios fundamentais do direito interno
de um Estado Parte, poderá
estabelecer-se que as infrações enunciadas no parágrafo 1 do presente Artigo
não sejam aplicáveis às pessoas que tenham cometido a infração principal; (grifamos)
Ainda de se considerar que, voltando
os olhos para o direito internacional, o Conselho de Europa, na convenção de n°
141, também está consignado que as partes podem prever que o autor do crime de
lavagem de dinheiro não coincida com o autor da infração precedente.
Isto significa, a contrário senso, a
partir de ambas as interpretações, que deveria estar expresso na legislação, o
fato de não ser punível o mesmo agente por ambos os crimes. No Brasil inexiste
tal vedação, sendo este mais um claro indicativo de sua plena possibilidade.
De se considerar, ainda neste
aspecto, que não se torna possível a correlação entre o furto (p. ex.) e a
receptação, com os casos dos crimes precedentes e a lavagem de dinheiro.
Naqueles, a vítima é a mesma, em ambos os crimes. Nestes há vítimas distintas. Enquanto
o crime precedente atinge pessoas ou comunidades determinadas, o crime de
lavagem atinge a administração da justiça e a ordem sócio-econômica, a níveis
transnacionais, e, mais ainda, nos exatos termos da Convenção de Viena, –
“agride as economias lícitas e a segurança e a soberania dos Estados”. (Vd.
JESCHECK, Hans-Heinrich: “Tratado de Derecho Penal – Parte General” Ed.
Comares, Granada, 1993, § 69, II, 3ª – para quem, pós-fatos são puníveis quando
não se trata do mesmo agente ou do mesmo bem jurídico tutelado).
Ainda, para espancar as dúvidas,
haveria absoluta incongruência lógico-penal em casos que a punição do crime
antecedente reveste-se de evidente menor gravidade do que o crime de lavagem de
dinheiro. Tome-se o exemplo do agente que auferiu consideráveis ganhos (por
exemplo, R$ 1 milhão) em decorrência da prática de crime de peculato, corrupção
ou concussão (penas mínimas: 2 anos de reclusão) . Podendo ele ser processado
pela prática de lavagem de dinheiro, cuja pena mínima é de 3 anos de reclusão,
além do seqüestro e confisco dos bens, poderia ele, neste caso, em tese,
“optar” por ser processado somente pelo primeiro, com pena mais branda,
confessando espontaneamente a sua conduta. Assim se veria isento de ser
processado pelo crime de lavagem de dinheiro e ainda sem o confisco dos seus
bens nos termos da mais rigorosa e eficiente legislação. Mesmo que condenado
pelo crime antecedente, teria os benefícios de cumprimento de pena na
conformidade da aplicação de quantum da pena, e poderia usufruir dos ganhos
ilícitos. Seria, mais uma vez, o enriquecimento ilícito vedado pelos mais
básicos princípios constitucionais e legais.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Batlouni Mendroni
Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia