Uma visão moderna da função social da propriedade rural

 “Esta cova que estás com palmos medida

É a conta menor que tiraste em
vida

É de bom tamanho nem largo nem
fundo

É a parte que te cabe deste
latifúndio

Não é cova grande, é cova medida

É a terra que querias ver dividida

É uma cova grande pra teu pouco
defunto

Mas estás ancho que estavas no
mundo

É uma cova grande pra ter defunto
parco

É uma cova grande pra tua carne
pouca

Mas a terra dada, não se abre a
boca

É a conta menor tiraste em vida

É a parte que te cabe deste
latifúndio

É a terra que querias ver dividida

Estarás mais ancho que estava no
mundo

Mas a terra dada, não se abre a
boca”

(Funeral de um lavrador- Chico
Buarque)

I- Introdução

A propriedade sempre constituiu um foco
constante de tensões sociais e econômicas, instabilizando relações jurídicas, causando
acirrados conflitos entre as pessoas e, estas e o Estado, enfim, tem fortes
repercussões em todas as esferas sociais.

O Direito sempre procurou criar
instrumentos e meios que pudessem defendê-la e pacificá-la, no sentido de
superar as violentas controvérsias que explodem ao seu redor. Neste sentido, o
operador do direito, fruto de pressões sócio-econômicas, atrelou à noção de
direito de propriedade individualista , a uma função social. O questionamento
em voga na seara jurídica sobre o tema, é saber o que significa “Função
Social da Propriedade”
e como efetivar e concretizar a mesma. Não
apresentaremos aqui um conceito acabado e claro do que seja a função social da
propriedade e nem temos tal pretensão neste trabalho. O que procuramos é
oferecer um ponto de partida do qual pode ser edificada uma nova concepção
dogmática para o direito de propriedade e de sua função social.

O trabalho em tela não é uma mera
elucubração doutrinária, nem uma discussão fradesca. Não objetivamos as galas
de inovador, apenas desejamos expor nossos entendimentos sobre o tema, seguindo
abalizados autores no que entendermos correto e , máxima data vênia, discordando
fundamentadamente do que entendermos incorreto.

II- Histórico

Segundo o culto, José Barroso Filho[1],
Ao homem, de exclusivo, só sua essência, sua alma, tudo mais a que ele se
agrega pode ou não lhe pertencer, de acordo com ideal político que conforma o
sistema jurídico
.” Portanto, para estudarmos a evolução o direito de
propriedade é necessário analisarmos a evolução histórica da sociedade.

A propriedade, nasceu com o homem,
desenvolvendo-se na medida em que as suas necessidades básicas iam surgindo,
passando a possuir algo mais que suas vestimentas. Uma questão de
sobrevivência, é certo. Era, assim, rudimentar, empírica, mas era, de qualquer
modo, propriedade, sem dúvida, o objeto primeiro da aquisição dos meios de
subsistência e sobrevivência alimentar do homem.

Sob a ótica do direito, a propriedade
tem sua raiz histórica no Direito Romano[2]
. Na Era romana preponderava um sentido individualista de propriedade,
considerando o direito à mesma como absoluto (quase absoluto)[3],
permitindo que o seu titular o exercesse como melhor entendesse, levando em
consideração apenas o seu interesse.[4]
Tendo cada coisa apenas um dono com amplos poderes sobre a mesma.

Na Idade Média, a propriedade medieval
perde a característica unitária própria da propriedade romanista. Sobre o mesmo
bem passou a existir a concorrência de dois proprietários. Conforme ensinamento
do ilustre jurista baiano Orlando Gomes: “A propriedade medieval
caracteriza-se pela quebra desse conceito unitário. Sobre o mesmo bem, há a
concorrência de proprietários. A dissociação revela-se através do binômio
domínio eminente e domínio útil. O titular do primeiro concede o direito a
utilização econômica do bem e recebe, em troca, serviços ou rendas. Quem tem o
domínio útil perpetuamente, embora suporte encargos, possui, em verdade, uma
propriedade paralela.”

Vale ressaltarmos que, em momento
histórico diferente, este sistema da propriedade feudal foi ensaiado a sua
efetivação no Brasil, no início de nossa colonização, através do Sistema de
Capitanias Hereditárias[5].

O feudalismo e a propriedade medieval
só foram afastadas com a Revolução Francesa em 1789. O conceito unitário de
propriedade foi restaurado, exarcebando no conceito individualista da
propriedade. O direito a mesma foi super protegido pelo Código Civil Francês[6]
; pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, elevando o
direito a propriedade ao status de
direito natural, “em pé de igualdade” com as liberdades fundamentais; e bem
como, pela 5º Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, que integra
o Bill of Rigths .

Após os surgimentos dos supracitados
instrumentos de proteção da propriedade, a sua configuração passou a depender
do regime político. No regime Socialista, continuava a se admitir a propriedade
privada e exclusiva sobre os bens de consumo pessoal e a propriedade
usufrutuária de bens de utilização direta, já os bens de produção eram socializados
, ou seja , estes bens eram da comunidade e não de um exclusivo indivíduo. Já
no regime Capitalista , dos paises do ocidente, durante todo século XIX e até
as primeiras décadas do século XXI, o direito de propriedade foi encarado como
um direito quase absoluto, apenas sendo restringido às excepcionais hipóteses
previstas em lei. A propriedade continuou a ter uma concepção individualista
até o advento do Estado Social.

Devido ao contexto histórico do século
XIX, os distúrbios sociais ganharam notoriedade. A exploração do homem pelo
homem e a questão do direito de propriedade ganharam evidência sofrendo
questionamentos. Desta forma o absolutismo a respeito da concepção
individualista da propriedade teve que ser revisto. Neste contexto é que surge
a idéia de condicionar o direito à propriedade à sua utilização para o bem
comum.

As encíclicas papais, por sua vez,
abordando questões sociais, enfocaram o problema sob o prisma tomista. A
autencidade cristã do direito de propriedade privada está reafirmado nas
encíclicas “Rerum Novarum”, de Lei XIII, e “Mater et
Magistra”, de João XXIII, embora não deixasse de se fazer menção ao
condicionamento representado pelo bom uso da propriedade, como se vê, também,
na “Quadragésimo Ano”, de Pio XI.

Os pensadores da época passaram a
defender a idéia que a propriedade devia exercer uma função social, e não
apenas uma função individualista, como outrora era pensada. O principal
defensor desta tese foi Leon Duguit, com base nos ensinamentos do
positivismo do douto Augusto Comte, bem como nos ensinamentos de
São Tomás de Aquino e Aristóteles[7].
O mesmo em uma palestra proferida em Buenos Aires , em 1911, expôs a idéia
de que o proprietário não é, em verdade, o titular de um direito subjetivo mas,
apenas, o detentor da riqueza, uma espécie de gestor da coisa que deveria ser
socialmente útil.

“a propriedade não era um direito subjetivo,
mas a subordinação da utilidade de um bem a um determinado fim, conforme o
direito objetivo”[8].

“A
propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar
uma função social do detentor da riqueza mobiliaria e imobiliária; a
propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de emprega-la
para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só
proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a
riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum , um
direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve
modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.”[9]

Vale ressaltarmos , que segundo esta
nova forma de entender a propriedade, a mesma continua sendo um direito
individual, mas, um direito individual condicionado ao bem-estar da comunidade.

A doutrina que entende que a
propriedade deve atender uma função social cria corpo e se espalha pelas
constituições nascentes no início do século XX. Foi o caso da Constituição do
México, de 1917, e da Constituição de Weimar, de 1919.

No Brasil, apenas em 1934 se teve pela
primeira vez, menção a restrição do direito de propriedade, assim constava no
citado texto:

“Art.
113…. 17) É garantido o direito de
propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo,
na forma que a lei determinar”.

Com perdurar
dos anos as Constituições Brasileiras foram se alteando uma sobre as outras,
aprimorando o conceito de propriedade e da função social da mesma, eclodindo na
Constituição de 1988 que inovou ao incluir a função social da propriedade entre
os direitos e garantias individuais e coletivos( art.5º, XXII), conferindo-lhe
, assim, o status de Clausula Pétria
( art.60,parágrafo 4º,IV). Além disso a atual Constituição manteve a função
social da propriedade entre os princípios da ordem econômica(art.170, III) e,
não satisfeita, cuidou de, inclusive , prever requisitos mediante os quais a
propriedade de bens imóveis , sejam urbanos ou rurais, cumpram sua função
social.

Portanto, depois de discorrermos sobre
a evolução histórica da propriedade, resta cristalinamente demonstrado que este
instituto sofreu uma publicização. O mesmo sofreu uma relativação, ou
socialização como prefere o sábio Caio Mario da Silva Pereira. A
propriedade não é absoluta e individual como outrora. Agora o seu exercício tem
que buscar o bem estar social.

III-Conceito

Na atual
concepção e disciplina positiva do instituto não se pode falar de um só tipo de
propriedade, mas se deve falar de tipos diversos de propriedade, cada um dos
quais assume o seu aspecto característico.

Nesse sentido, discorre José Afonso da
Silva :

A Constituição consagra a tese, que se
desenvolveu especialmente na doutrina italiana, segundo a qual a propriedade
não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em
correlação com os diversos tipos de bens e de titulares, de onde ser cabível
falar não em propriedade, mas em propriedades. Agora, ela foi explícita e
precisa. Garante o direito de propriedade em geral (art. 5º, XXII; garantia de
um conteúdo mínimo essencial), mas distingue claramente a propriedade urbana
(art. 182, §2º) e a propriedade rural (art. 5º, XXVI, e, especialmente, arts.
184, 185 e 186), com seus regimes jurídicos próprios, sem falar nas regras
especiais para outras manifestações da propriedade.”[10]

Devido a
existência de vários tipos de propriedade e a infinita gama de poderes oriundos
do direito de propriedade, conceituar a propriedade se torna uma tarefa árdua.

Primeiro
iremos analisar etimologicamente o termo propriedade.

Para alguns
doutrinadores  vocábulo em tela, vem do
latim proprietas , derivado de proprius, designando o que pertence a
uma pessoa. Nesse sentido , propriedade teria um significado amplo, sendo toda
relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou
incorpóreo.Entendimento que nos coadunamos. Já outros doutrinadores , entendem
que o termo em questão, é oriundo da idéia de dominus, casa, em que o senhor da casa se denomina dominus. “O domínio seria o poder que se
exerce sobre as coisas que lhe estiverem sujeitas”[11]
, possuindo uma concepção mais restrita de propriedade. Vale ressaltar que o
Código Civil emprega a palavra propriedade neste sentido.

Sob uma
análise da natureza jurídica, a propriedade é um direito real. É o mais amplo
dos direitos reais.

Devido a sua
amplitude, a conceituação da propriedade pode ser feita segundo três critérios.
O sintético; analítico; e o descritivo. Segundo o critério sintético, Windscheid, a define como a submissão
de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, entende
a mesma como o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e o de reavê-lo de
quem injustamente o possua..Já descritivamente, a propriedade é entendida como
um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual a coisa fica
submetida à vontade de uma pessoa , com as limitações da lei.

Segundo Orlando
Gomes:

“Se é certo
que nem um desses critérios satisfaz isoladamente, o conhecimento dos três
permiti ter o direito de propriedade noção suficientemente clara. É analise de
seus caracteres que torna entretanto mais nítidos os seus traços”[12]

A
propriedade possui cinco caracteres. Ela é entendida como um direito complexo,
absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual a coisa fica submetida à vontade de
uma pessoa , com as limitações da lei, além de possuir como característica a
elasticidade.

A propriedade
é um “direito complexo, se bem que unitário, constituindo um feixe de
direitos consubstanciados nas faculdades de usar, fruir e dispor de um bem, e o
de reavê-lo de quem injustamente o possua.”[13]

O direito de
propriedade tem um caráter absoluto não só devido a sua oponibilidade erga
omnes, mais também por ser o mais completo de todos os direitos reais, que dele
se desmembram, e pelo fato de que seu titular pode desfrutar e dispor do bem
como quiser, sujeitando-se apenas às limitações impostas em razão do interesse
público ou da coexistência do direito de propriedade de outros titulares.

A
perpetuidade entre os caracteres da propriedade, significa dizer que o direito
à mesma não tem limite temporal, não se extinguindo pelo simples desuso.

A exclusividade
ou pessoalidade são caracteres do direito de propriedade, ou seja,
exclusivo é o domínio porque o direito do seu titular é exercido sem
concorrência de outrem, podendo excluir terceiros da utilização da coisa ,
manifestando-se, assim, a oponibilidade erga omnes como atributo da
exclusividade.” [14]

O caráter
elástico da propriedade tem como principal defensor Orlando Gomes.
Assim, o define: “ Tem ainda, como característica a elasticidade, pois pode
ser distendido ou contraído, no seu exercício, conforme se lhe entreguem ou
retirem faculdades destacáveis.”[15]

Já o novo
Código Civil, assim como o atual, adotou o critério analítico para definir
propriedade.

“Parece-nos que o critério mais acertado é o primeiro, que
tem por base o conteúdo da propriedade, ao enunciar os poderes do
proprietário.Esta foi a solução adotado pelo Código Civil, que apesar de não
ter definido propriedade, no seu art. 1.228, caput, descreve seu conteúdo, ao
prescrever: o proprietário tem a faculdade de usar , gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que se injustamente a possua ou
detenha”[16]

Vale
ressaltarmos, que a opção adotada pelo Código Civil Brasileiro para conceituar
propriedade, foi adotada também por outros paises como o Alemanha, Suíça,
França e Áustria.

Os elementos
constitutivos da propriedade segundo a conceituação do Código Civil são os
direitos de usar, gozar, dispor e reaver a coisa.[17]

Segundo
Maria Helena Diniz:

“O direito
de usar a coisa é o de tirar dela todos os serviços que ela pode prestar, sem
que haja modificação em sua substancia . O titular do jus utendi pode
empregá-lo em seu próprio proveito ou no de outrem., bem como deixar de
utilizá-lo, guardando-o ou mantendo-o inerte. Usar o bem não é apenas retirar
vantagens, mas também ter o bem em condições para servir. O jus utendi é o
direito de usar a coisa, dentro das restrições legais, a fim de evitar o abuso
do direito, limitando-se, portanto, ao bem estar da coletividade.

O jus
fruendi exterioriza-se na percepção dos frutos e na utilização dos produtos da
coisa. É o direito de gozar da coisa ou de explorá-la economicamente…

O jus
abutendi ou disponendi equivale ao direito de dispor da coisa ou poder de
aliená-la a título oneroso (venda) ou gratuito (doação), abrangendo o direito
de consumi-la e o poder de gravá-la de ônus (penhor ou hipoteca, servidão etc)
ou de submetê-la ao serviço de outrem (…)

(…) E,
finalmente, rei vindicatio é o poder que tem o proprietário de mover ação para
obter o bem de quem injustamente o detenha, em virtude do seu direito de
seqüela, que é característica do direito real”[18]

Ao se
analisar um instituto jurídico, devemos buscar, além do seu conceito, o seu
objeto e sujeitos.

Uma parte da
doutrina defende que só os bens corpóreos são susceptíveis de ser objeto de
propriedade. Defendem este entendimento tradicionalista, os abalizados juristas
Orlando Gomes.[19] e Wolff,
dentre outros.

De forma
sensata, uma parte da doutrina admite bens incorpóreos como objeto do direito
de propriedade. Com a evolução do conceito de propriedade, este foi se
alargando e englobando os bens incorpóreos, como por exemplo os direitos
autorais protegidos pela Constituição Federal do Brasil no art 5º, XXIX. Tanto
as coisas corpóreas como as incorpóreas podem ser objetos do domínio desde que
apropriáveis pelo sujeito de direito, que como sujeito da relação jurídica,
poderá exercer sobre elas todos os poderes dentro dos limites impostos pela
ordem jurídica. Portanto, de forma genérica, tudo aquilo que não for excluído
por força de lei, pode ser objeto da propriedade.

O
entendimento supracitado, máxima data
vênia
, que nos coadunamos, foi pacificado com o Código Civil de 1916 e com
a Constituição Federal, que regularam os bens incorpóreos como objeto de
direito de propriedade.

Superada a
questão anteriormente citada, se questiona sobre os limites vertical e
horizontal da propriedade imobiliária.

Horizontalmente,
atualmente, o limite do bem imóvel é regulado pelo direito de vizinhança. A
questão tormentosa na verdade é saber qual é o limite vertical da propriedade
imobiliária. O Direito Romano não limitava verticalmente esta espécie de
propriedade, vindo a ser limitada pela primeira vez pelo Código Civil Alemão. O
Código Civil conjugou com o mesmo entendimento do BGB no seu artigo 1.229 ao prescrever
que “ a propriedade do solo abrange o do espaço aéreo e subsolo
correspondente , em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o
proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma
altura e profundidade tais, que não tenha ele interesse legitimo para
impedi-las”

Portanto, os
proprietários dos bens corpóreos imobiliários serão limitados verticalmente por
leis espaças e pelo critério da utilidade do exercício do seu direito. Ele terá
ampla liberdade no seu direito se nenhuma lei especialmente o limitar e se o
mesmo estiver exercendo de forma útil o seu direito.

Assim,
existem três princípios que recaem sobre os bens corpóreos, objeto do direito
de propriedade: o da corporeidade ou materialização, a da individualização e o
da acessoriedade. O objeto deverá ter valor econômico materializado,
individualmente determinado, com todos os seus acessórios.

O titular do
direito de propriedade pode ser tanto a pessoa natural, quanto a pessoa
jurídica. Não existindo restrição quanto à titularidade do direito em tela para
as pessoas jurídicas tanto de direito público e privado. A única ressalva que
deve ser feita sobre o assunto em questão, é que a capacidade para ser sujeito
de direito de propriedade não se confunde com capacidade para adquiri-lo.

IV- Função
Social da Propriedade

Conceituar
“Função social da propriedade” se torna uma tarefa árdua na atual concepção e
disciplina positiva do instituto propriedade, pois não se pode falar de um só
tipo de propriedade, mas se deve falar de tipos diversos de propriedade, cada
um dos quais assume o seu aspecto característico e conseqüentemente uma função
social própria.

Com o
desenvolvimento das civilizações, os bens de interesse dos sujeitos de direito
não se limitaram aos bens corpóreos. Os bens incorpóreos passaram a ser
regulados e protegidos pelas legislações

Devido
a pluralidade de tipos de propriedades e de disciplinas particulares, o
princípio da função social atua diversamente, tendo em vista a destinação do
bem objeto da propriedade.

Tudo
isso, aliás, não é difícil entender, desde que tenhamos em mente que o regime
jurídico da propriedade não é uma função do direito civil, mas de um complexo
de normas administrativas, urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis
(certamente), sob fundamento das normas constitucionais.

Para
tentarmos superar a dificuldade em tela, devemos analisar o surgimento deste
instituto jurídico, demonstrando que o mesmo passou a fazer parte de um novo
conceito de propriedade e não apenas um limite a ela imposta.

Entendemos que o surgimento da idéia de
função social se deu de forma mais visível na Antiguidade, os filósofos gregos,
dentre os quais destaca-se Aristóteles, na sua obra “ A Política” defendeu que
os bens possuem uma imanência social; ou seja, embora apropriados pessoalmente
fazem parte de um processo interativo que posteriormente foi adotado por Max
Weber, que passou a denominar de ação social – ou seja, a produção de fenômenos
sociais que têm a sua significação baseada na existência do “outro”,
termo que encontra amparo também na psicanálise.

Sem dúvida que o pensamento jus naturalista de Santo Tomáz de
Aquino, como outrora foi explicado, muito influenciou a construção dos
regramentos jurídicos. A defesa da posse dos bens materiais está colada ao
exercício da garantia da mantença, sem, contudo desprezar o aspecto social
imanente aos bens oriundos da ação da natureza. De certa forma advém do tomismo
a idéia de bem comum, mais tarde revigorada pelas teorias do Estado
Moderno. Sem dúvida a presença eclesial na discussão sobre o uso da terra
não parou com Tomáz de Aquino. Prosseguiu com as Encíclicas já citadas em ponto
anterior[20]

A Revolução Francesa fortaleceu a tese
de que a propriedade privada da terra não pode assumir uma feição absoluta,
posto que a ação do homem sobre ela importava inclusive aos que não a possuíam,
ou seja, a coletividade. A partir do Código de Napoleão passamos inclusive a
vislumbrar um mecanismo de desapropriação que, por um lado protege a
propriedade privada, mas por outro submete a mesma ao interesse público.

Devemos ressaltar também a influência
na consolidação deste princípio, da Declaração dos Direitos dos Homens e do
Cidadão e a 5º Emenda do Bill of Rights.

No campo doutrinário, o grande
precursor à doutrina da função social da propriedade se deve a Duguit
(Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Bordéus, na
França) ao proferir palestra, em 1911, na Faculdade de Direito de Buenos Aires,
na Argentina, defendeu a função social da propriedade. Para ele “a
propriedade não era um direito subjetivo, mas a subordinação da utilidade de um
bem a um determinado fim, conforme o direito objetivo
[21].
Defendendo que o proprietário não é, em verdade, titular de um direito
subjetivo mas, apenas, o detentor de riqueza, uma espécie de gestor da coisa
que devia ser socialmente útil.

No campo constitucional, a idéia de
função social se positivou com as constituições Weimar[22]
e do México[23], do chamado
Estado Social.

Segundo parte da doutrina[24],
o princípio da função social da propriedade foi introduzido no Brasil pela
Emenda Constitucional nº 10, 09 de novembro de 1964 à Constituição de 1946. Máxima data Vênia, entendemos conforme
outra parte da doutrina[25]
, que o condicionamento do direito à propriedade privada ao cumprimento de sua
função social, ganhou status constitucional com a Carta de 1937,
inspirado no modelo alemão, nos seguintes termos:

“Art
133, item 17 – É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar.
A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da
lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como
guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar a propriedade
particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito de indenização
ulterior” 

Atualmente,
no Brasil, a função social da propriedade não esta apenas regulada pelo direito
civil, como também está regulada por um complexo de normas administrativas,
urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis (certamente), sob fundamento
das normas constitucionais.

A
constituição vigente, inovou substancialmente as constituições anteriores, em
relação à matéria em tela. A mesma inclui a função social da propriedade entre
os direitos e garantias constitucionais (art.5º, XXIII), atribuindo à mesma o
status de cláusula pétria (art. 60,
parágrafo 4º, IV). Manteve também a função social da propriedade entre os
princípios da ordem econômica (art.170,III), além de prever os requisitos
necessários para que os imóveis urbanos
(art.
182, §2)[26]
ou rurais (art.186)[27],
cumpram suas funções.

Segundo
a doutrina mais moderna, a função social, partindo de uma análise sistemática
da constituição de 1988, passou a fazer parte do conceito de propriedade. Ela
modela o conceito de propriedade não sendo portanto, um limite ao direito a
mesma.

O
sujeito de direito só terá o direito de propriedade se a mesma estiver
exercendo sua função social. Ele não terá o direito de propriedade, caso a
propriedade não exerça uma função coletiva.

“Com efeito , ao
asseverar que é ‘garantido o direito de propriedade’ mas, também, no mesmo
dispositivo constitucional e, portanto, com o mesmo campo de aplicação, que a ‘
a propriedade atenderá sua função social’, o constituinte de 1988 deixou claro
que todo o direito à propriedade está condicionando a que esta cumpra sua
função social. Ou, por outra, apenas a propriedade que atende a sua função
social está albergada pela Constituição, como um direito, ou garantia,
fundamental.

Outra não pode ser,
data vênia, a inteligência da analise sistêmica do art.5º da Constituição. Na
verdade, empregada tivesse sido, pelo legislador constituinte, a correta
técnica legislativa, os comandos esculpidos nos incisos XXII e XXIII do art.5º
da Carta Magna deveriam estar contidos num mesmo dispositivo, cujo teor seria;
“é garantido o direito de propriedade, desde que esta atenda a sua função
social”, ou algo do gênero

De qualquer modo,
embora não tenha o legislador fundamental conferido à matéria o formato mais
adequado, do ponto de vista técnico, resta claro que a inclusão do texto do
inciso XXIII no art.5º, logo após o inciso XXII, que garante o direito de
propriedade, não teve outra finalidade senão a de condicionar tal garantia.

Esta redação da
matéria em dois dispositivos distintos, ainda que do mesmo artigo, além de
poder ser creditada à falta de intimidade do constituinte, de modo geral, com a
boa técnica legislativa, também se explica pela sistemática utilizada pela
Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88, e à disputa político-ideológica
que se travou em seu seio.”[28]

 Vale
aduzirmos aqui as opiniões de abalizados juristas, que coadunam com o nosso
entendimento sobre o tema.

Orlando
Gomes:
“O
princípio da função social da propriedade atinge a substancia do direito de
propriedade, dando origem a uma nova concepção do instituto
[29]

Fábio
Konder Comparatto:
“A
chamada função social da propriedade representa um poder-dever positivo,
exercido no interesse da coletividade, inconfundível,como tal, com as
restrições tradicionais ao uso dos bens próprios”[30]

“o principio da
função social da propriedade, ao invés de se revelar uma mera restrição ao
direito de propriedade, compõe o próprio desenho do instituto, de sorte que, a
partir de 05 de outubro de 1988, no Brasil, somente é garantida a propriedade
particular que cumpra com sua função social”[31]

Acreditamos
também que a função social não está restrita apenas aos bens corpóreos meios de
produção. Defendemos com base em uma analise sistemática da Constituição, bem
como no que foi disposto anteriormente, que a função social abrange todos os
bens corpóreos e incorpóreos susceptíveis de apropriação.

O
constituinte ao dispor sobre o direito de propriedade no artigo 5º e 170 da
CF/88, objetivava abarcar todos os tipos de propriedade. Tanto isso é verdade,
que a mesma protege bens incorpóreos como direitos autorais e marcas nos art.
5º XXVII, XXIX do diploma constitucional brasileiro respectivamente.

“…a expressão ‘
propriedade’, nos art.5º e 170, da Constituição, é utilizada em sentido amplo,
de forma a englobar a titularidade de quaisquer bens ou direitos do particular,
seja de natureza corpórea, ou não”
[32]

Embasado
nos nossos entendimentos já explanados, sendo a função social parte integrante
do conceito moderno constitucional de propriedade e, os bens corpóreos e
incorpóreos objetos do direito de propriedade, por uma análise sistemática da
Constituição, os mesmos também tem que possuir uma função social. Eles devem
buscar a sua finalidade em si mesma. Eles têm que exercer sua função de
existência.

Acreditamos
portanto, que para que o bem exerça sua função social, não necessariamente
necessita de forma precípua beneficiar a coletividade. O direito sobre o bem
tem que ser exercido sem abuso, objetivando a sua função de existência.

Partindo
deste conceito de função social da propriedade, um bem de consumo ao ser usado
sem abuso na sua função para qual foi criado ou destinado, o bem em tela,
estaria exercendo sua função social, concorrendo de forma secundária para o bem
da sociedade.

Portanto,
máxima data vênia, não coadunamos com
o entendimento de ilustres doutrinadores, que defendem que o princípio da
função não estendem aos bens incorpóreos e não duráveis. Temos a consciência da
dificuldade em analisar no caso concreto, com base no nosso entendimento sobre
a função social da propriedade, se os bens incorpóreos e os não duráveis
exerceram , ou não, sua função social. Sabemos que a linha é tênue entre a
resposta positiva e negativa, mas acreditamos que este é o entendimento correto
devido a análise sistemática da Constituição, da evolução do instituto da
propriedade e da própria função social da mesma.


que a função social da propriedade não é limite para o direito de propriedade,
e sim, parte integrante e modeladora do mesmo, devemos analisar as limitações
aos caracteres clássicos da propriedade tradicional, decorrentes da função
social e do conceito moderno de propriedade.

A função social da propriedade não pode
ser confundida com os sistemas de limitação de propriedade, ou seja, a afetação
de seus caracteres tradicionais (direito absoluto, exclusivo e perpétuo). Dizem
sim respeito ao exercício do direito, ao proprietário, e, não à estrutura
interna do direito à propriedade, estando sim subordinados à função social da
propriedade, como bem leciona José Afonso da Silva :

“(…) a função social da propriedade se modifica com
as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorrera, houvera
transformação na estrutura interna do conceito de propriedade, surgindo nova
concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que a propriedade atenderá a sua função,
mas especialmente quando o reputou princípio da ordem econômica, ou seja: como
um princípio informador da constituição
econômica brasileira com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social (art. 170, II e III), a Constituição não
estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus
relativamente à propriedade privada, princípio
também da ordem econômica, e, portanto, sujeita, só por si, ao
cumprimento daquele fim. Pois, limitações, obrigações e ônus são externos ao
direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário,
interferindo tão-só com o exercício do direito, os quais se explicam pela
simples atuação do poder de polícia”[33]

Os sistemas de limitação de
propriedade, ou seja, de afetação de seus caracteres tradicionais , são
classificados em restrições, servidões, desapropriações e usucapião.

Na exata manifestação do Prof. Robério
Nunes dos Anjos Filho[34]
:

“As
restrições, limitam o caráter absoluto da propriedade, condicionando sua
faculdades de fruição, trans formação ou alienação, como por exemplo o
tombamento. As servidões (e outras formas de utilização de propriedade alheia),
atingem o caráter exclusivo da propriedade, que passa a servir também a outrem,
como por exemplo o art. 5º, XXV. Já a desapropriações e os usucapiões afetam o
caráter perpétuo da propriedade. A desapropriação atinge o caráter perpétuo da
propriedade porque é o meio pelo qual o poder Público determina a transferência
compulsória da propriedade particular especialmente para o seu patrimônio ou de
seus delegados, o que só poderá verificar-se por necessidade ou utilidade pública,
ou por interesse social, mediante previa e justa indenização em dinheiro,
ressalvados os casos previstos na CF/88, que são as desapropriações- sanção por
não estarem as propriedades urbanas ou rurais atendendo à sua função social,
quando então as indenizações se farão mediante Títulos da divida pública ou
divida agrária (art, 182,184, e 5º,XXIV)”
(Apontamentos
em aula – Curso Intensivo para carreira jurídica- Juspodivm – 2002)

V- Função
Social da Propriedade Rural

O conceito de imóvel rural no Brasil
foi pacificado pela doutrina e jurisprudência, após uma discussão
teórico-legislativo-jurisprudencial acerca de sua definição. Foi adotado o
critério da destinação para classificar o imóvel como rural, ou seja, se o
imóvel tiver uma destinação relacionada à agricultura, pecuária e similares,
esta propriedade imobiliária será considerada um imóvel rural. Nesse sentido, a
função social da propriedade, aplicada ao imóvel rural, tem o caráter de
regularização econômica e ambiental do uso da terra, numa perspectiva de bem
estar social.

Se analisarmos o art. 2o, § 1o do
Estatuto da Terra (Lei no 4.504/64) e o art. 186 da Constituição Federal
observaremos profunda identidade entre a redação de ambos; enfatizando-se a
necessidade de simultaneidade no cumprimento das medidas ali elencadas para que
se considere cumprida a função social da propriedade.

Art.
186 da Constituição Federal de 1988: 
“A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigências estabelecidas
em lei, os seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de
trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e
dos trabalhadores”

Portanto o art. 186 da CF/88 é o
dispositivo constitucional que elenca os requisitos (quatro) para que a
propriedade rural tenha atendida sua função social, ou seja para se configure o
direito a propriedade, quais sejam: aproveitamento racional e adequado;
utilização adequada dos recursos naturais existentes e preservação do meio
ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e
exploração da propriedade, desde que favoreça o bem-estar dos proprietários e
dos que nela trabalham. Somente a propriedade que atenda a todos esses
requisitos é que terá atendido a sua função social. Assim, por exemplo, ainda
que produtiva, a propriedade rural não atenderá a sua função social se a sua
produção estiver baseada em violação das normas trabalhistas, não sendo
portanto protegido o seu direito constitucional de propriedade. Em suma, a
produtividade da terra não pode se sobrepor ao cumprimento dos demais
requisitos norteadores da função social da propriedade. Todos requisitos
citados devem ser atingidos concomitantemente.

Desse modo, a exigência de cumprimento
da função social da propriedade não se confunde com comunismo ou socialismo. A
função social da propriedade é um instrumento capitalista, que entre outras
coisas preserva o direito de propriedade, bem como, a mesma não é um artifício
para a realização da Reforma Agrária. Este instituto é resultado do processo
civilizatório da humanidade, com o intuito de considerar a terra com um bem
básico e coletivo, embora particularmente apropriado segundo o sistema
econômico de cada cultura.

Além disso, a função ecológica da
propriedade rural está intimamente ligada à função social da mesma. Portanto a
proteção da flora e da fauna com a conseqüente vedação de práticas que coloquem
em risco a sua função ecológica projetam-se como formas instrumentais
destinadas a conferir efetividade ao direito a propriedade rural e sua função
social. A necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos
naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, é
requisito indispensável para o exercício da função social em tela, sob pena de,
em descumprindo desses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere
o art. 184 da Lei Fundamental.

O exercício do direito de propriedade
está condicionado ao atendimento da função social da propriedade rural,
sujeitando seu infrator à sanção expropriatória, conforme faculdade a ser
exercida pelo Poder Público. Vale ressaltar que, a pequena ou a média
propriedade rural, definida pela lei 8629/93, desde que seja o único imóvel
rural de que disponha o proprietário, não poderá ser desapropriada para fins de
reforma agrária, mesmo quando não cumpra a sua função social, ao contrário da
grande propriedade, que não pode ser desapropriada se for produtiva.[35]

Quando necessário, o Poder Público pode
efetivar a desapropriação para o atendimento do interesse público. Esta
desapropriação não será uma sanção, cabendo a indenização ser prévia e em
dinheiro ( art. 5º, XXIV, CF/88). A desapropriação por desatendimento da função
social da propriedade rural difere da expropriação supracitada, pois esta não é
uma penalidade. A garantia constitucional citada no parágrafo anterior, porém,
não impede a desapropriação de nenhum imóvel por necessidade ou utilidade
pública, casos em que a indenização deverá ser paga à vista, em valor de
mercado e em dinheiro, ao contrário do imóvel que for expropriado para fins de
reforma agrária, quando a indenização, a despeito de ser à vista e em valor de
mercado, será feita em títulos de dívida agrária, resgatáveis em até 20 anos, o
que pode levar a até 22 anos, haja vista que o prazo tem início no segundo ano
de sua emissão.

Art. 184, CF/88: “Compete a
União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel
que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização
em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real,
resgatáveis no prazo de vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e
cuja utilização será definida em lei
“.

Entendendo
que a função social, modela o conceito de propriedade rural, faz-se necessário
determinar os destinatários específicos da função social. Segundo André Osório Gondinho:

“função
social da propriedade tem destinatários específicos: o titular do direito de
propriedade, o legislador e o juiz”.

Para
o primeiro, ‘a função social assume
uma valência de princípio geral´: isto é, o proprietário não pode
perseguir, ao exercer seus atos e atividades, uma função anti-social ou até
mesmo, antijurídica, ao passo em que deve ter garantido a tutela jurídica a seu
direito.

O
legislador é destinatário da função social da propriedade porque este não pode
conceder ao titular do direito de propriedade, através de normas
infraconstitucionais, poderes extravagantes ou em contrário ao interesse social
previamente tutelado.

Em referência à atividade judicante,
o magistrado e os demais operadores jurídicos devem encarar a função social da
propriedade como um “critério de
interpretação e aplicação do direito, deixando de aplicar as normas que lhe
forem incompatíveis”[36]

O imóvel rural que descumprir com sua função
social, de forma analógica ao art.182, parágrafo 4º e seus incisos da CF, e com
fulcro no art.186 e 153, parágrafo 4º da CF, poderá ser sancionado de forma
menos gravosa que a desapropriação, com a progressividade do ITR[37].

Ao nosso entender, defendemos que a Constituição
federal de 1988, regulou de forma implícita outra sanção pelo não cumprimento
da função social da propriedade. Ao incluir no art 5º o inciso XXIII, pois
modelou o conceito de propriedade. A função social passou a fazer parte do
conceito de propriedade. O não cumprimento da função social da mesma, levaria a
inexistência do direito à propriedade e conseqüentemente perderia todas as
garantias atinentes à mesma, constitucionalmente ou infraconstitucionalmente
constituídas. Portanto, o proprietário do imóvel rural, que não atendesse aos
requisitos constitucionalmente estabelecidos para atingir a função social da
mesma, não teria direito a utilização de ações possessórias ou
reivindicatórias.

“Pessoalmente, entendermos que as
conseqüências do descumprimento da função social da propriedade não se limitam
à aquelas expressamente arroladas pelo constituinte. Como, conforme já visto, o
princípio da função social integra o próprio conceito( constitucional) de
propriedade privada, no Brasil, ou, pelo menos, o próprio conceito da
propriedade privada que goza de garantia constitucional ( art. 5º caput, e incisos
XXII e XXIII), a conclusão inexorável é a de que apenas esta propriedade( no
sentido lato) é que merece a proteção da ordem jurídica

Em outras palavras, todas as
garantias, prerrogativas e privilégios que o direito brasileiro outorga a
propriedade( e à posse) inclusive às relativas à proteção possessória, estariam
restritas, a partir de 5 de outubro de 1988, a propriedade( e à posse) que
cumprir sua função social”[38]

Segundo José Afonso da Silva:

“aquela
norma tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito e
propriedade, valendo como regra que fundamenta o novo regime jurídico desta.
Transformando em uma instituição de Direito Público, especialmente, ainda que
nem a doutrina, nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhe dada
a adequada aplicação, como se nada tivesse mudado”[39]

Vale ressaltarmos que, essa forma de
sanção pelo não exercício da função social da propriedade, tem que ser
analisada com cautela. A verificação do atendimento, ou não do princípio da
função social da propriedade deve ser feito pelos destinatários da função
social supraditos, em cada caso, sempre com muita cautela, e sendo necessário,
com a utilização de um perito. Assim, pelo simples fato de aparentemente o
imóvel rural estar sem uso, não autoriza a ninguém a concluir que sua função
social não esteja sendo preenchida 

Segundo José Afonso da Silva:

“ o princípio da função social
da sociedade não autoriza suprimir, por via legislativa a instituição da
propriedade privada embora possa fundamentar até mesmo a socialização de algum
tipo de propriedade, onde precisamente isso se torne necessário”[40]
 

Fica mais fácil adotar a sanção em
tela, quando no caso concreto a invasão do imóvel rural, que não esteja
exercendo sua função social, tenha sido promovida por pessoas carentes, que não
disponham do mínimo necessário a uma existência digna. Pois neste caso estaria
em confronto o aparente direito fundamental de propriedade, supostamente
conferido ao titular do domínio, com outro direito fundamental, a dignidade da
pessoa humana, conferido aos invasores. O suposto direito a propriedade cederia
ao direito à dignidade humana.

Já nos casos em que aparentemente
o imóvel rural não esteja exercendo sua função social, e o mesmo seja invadido
por pessoas carentes e necessitadas, a solução será mais difícil, pois o juiz,
destinatário da função social, deverá analisar o caso concreto com cautela
ponderando sobre o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana e o
princípio da propriedade. O mesmo deve utilizar os critérios defendidos por Robert
Alexy
para solucionar a colisão entre dois princípios. Observa Robert
Alexy
[41] que um
princípio deve ceder em relação ao outro, sem que se lhe declare a invalidade
ou se lhe insira cláusula de exceção. Pode ocorrer também que um dos
princípios, dado sua inserção no ordenamento jurídico constitucional, preceda
ao outro, ou em determinados casos concretos, tenha um peso maior. Portanto, a
depender da análise cautelosa do caso concreto, ele utilizará um dos dois
critérios dirimentes de colisão entre princípios constitucionais.

VI- Conclusão 

Foi demonstrado ao longo do texto, que
o conceito de propriedade evoluiu durante a história, tendo seus caracteres
relativizados. Atualmente, o seu conceito incorporou a função social. A mesma
deu uma nova modelagem ao tradicional conceito de propriedade. Ocorrendo,
portanto a publicização da propriedade.

Entendemos, por uma análise sistemática
da Constituição de 1988, que só há direito à propriedade, constitucionalmente
protegida, quando a mesma cumpre sua função social. Os critérios para análise
do exercício da função social da propriedade encontram-se no art 186 e seus
incisos, cabendo sanções pelo seu descumprimento.

Para a aplicação das sanções explicitas
pela CF/88(a tributação progressiva do ITR e a desapropriação), bem como das
implícitas (a perda de todas as garantias, prerrogativas e privilégios que o
direito brasileiro outorga à propriedade( e à posse) inclusive as relativas à
proteção possessória), deve-se analisar cautelosamente o caso concreto, levando
em consideração também o princípio da dignidade da pessoa humana. Não deve
existir uma conclusão a priori do magistrado sobre o atendimento, ou não, da
função social da propriedade rural. Em caso de conflito aparente entre os
princípios supracitados, deve-se utilizar os critérios defendidos pelo culto Robert
Alexy.

Conclui-se que a propriedade e sua
função social estão ligadas intrinsecamente. A função social é, portanto, um
atributo constitutivo e inerente ao direito de propriedade e não um limite ao
exercício dele.

Ex positi, Temos que
a propriedade rural pode e deve ser sancionada quando desatender os critérios
constitucionalmente postos para verificar o atendimento da função social,
tratados no decorrer deste trabalho

 

Referências Bibliográficas

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document.write(capturado());
10 dez. 2002.

Notas:

[1]BARROSO
FILHO, José. Propriedade: A quem serves?. Jus Navigandi, Teresina, a. 6,
n. 52, nov. 2001. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2453>. Acesso em:
document.write(capturado());
10 dez. 2002.

[2]
“No inicio das civilizações as formas originárias da propriedade tinham uma
feição comunitária…..havia domínio comum das coisas úteis , …
individualizando-se, tão-somente, a propriedade, de certos moveis” DINIZ, Maria
Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, vol I, 17. ed., São
Paulo: Saraiva, 2001, p.99

[3]
O direito a propriedade não era totalmente absoluto, pois o mesmo tinha que
observar algumas restrições, por exemplo, as restrições contidas nas Leis de XII tábuas.

[4]
Vale ressaltar que, apesar da era romana preponderar a propriedade no sentido
individualista, a mesma teve no seu primórdio duas formas de propriedade
coletiva; a da gens e a da família.

[5]
“Esse sistema de
colonização portuguesa adotou, basicamente, um sistema jurídico em relação à
terras, que passaram todas ao domínio público da Coroa, adquiridas por fato
jurídico de direito internacional. A propriedade privada foi instituída pela
Coroa Portuguesa mediante doações, reguladas pelas Ordenações do reino, àqueles
que aqui aportaram, estimulando-os a ocupar e desbravar a terra descoberta,
embora não fosse transferido o domínio pleno das Capitanias. Os capitães
recebiam da Coroa como patrimônio uma área de dez léguas, chamada sesmaria,
isenta de qualquer tributo, e as cinqüenta léguas restantes seriam do reino. Os
capitães donatários poderiam doar essa terras a quem pretendesse cultivá-las,
sob pena de vê-las retornar à Coroa. Assim, as terras devolutas eram doadas a
particulares e pelo não-uso podiam ser restituídas à Coroa[5].
Vigorou esse sistema até 17 de julho de 1822”. QUEIROZ, Luiz Viana, O
Direito no Brasil colônia
, In: Revista Jurídica da
Unifacs; Mai.2002. Disponível em:
<http://www.revistajuridicaunifacs.com.br>. Acesso em:
document.write(capturado());
10 dez. 2002.

[6] Também
chamado de “ Código da propriedade” ou “Código de Napoleão”

[7] Na obra “A Política”

[8]
COLARES, Marcos. Breves notas sobre a função social da propriedade . Jus
Navigandi
, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2254>. Acesso em:
document.write(capturado());
10 dez. 2002

[9]
GOMES,Orlando Gomes, Direitos Reais,
14. ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p.109

[10]
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª
ed.., São Paulo: Malheiros1994: p. 266

[11]
DINIZ, Maria Helena, Op. cit., p.105

[12]GOMES,Orlando
Gomes, Op. cit., p.97

[13]
GOMES,Orlando Gomes, Op. cit., p.97

[14]DINIZ, Maria
Helena, Op. cit., p.109

[15]
GOMES,Orlando Gomes, Op. cit., p.98

[16] DINIZ,
Maria Helena, Op. cit. p.106

[17]
A propriedade pode reunir todos esses elementos, constituindo a chamada
propriedade plena, ou desmembrá-los, criando direitos outros direitos reais,
como por exemplo o direito real de usufruto.

[18]DINIZ, Maria
Helena, Op. cit., p.107 e 108

[19]
Subsiste, assim, a doutrina de que o
objeto do direito de propriedade não pode ser senão bens corpóreos
.”
GOMES,Orlando Gomes, Op. cit., p.99

[20]
“Encíclicas Rerum Novarum (Leão XIII – 1891), Quadragésimo Anno
(Pio XII – 1931) e Mater et Magistra (João XXIII – 1962), todas
asseverando, em algum momento, acerca da importância da inclusão social via
trabalho e distribuição das riquezas. Sem dúvida que o Concílio Vaticano II e
mais tarde a Teologia da Libertação deram forte impulso a discussão acerca do
uso da terra e do tributo social que sobre ela repousa.” COLARES,
Marcos, Op cit.

 

[21] MARQUES,
Benedito Ferreira. Direito agrário
brasileiro
. 2ºed.. Goiânia
: AB, 1998, p 50

[22] Em 1919

[23] Em 1917

[24] COLARES, Marcos, Op. cit.

[25] ARAÚJO
LEONETTI, Carlos, Função social da
propriedade: Mito ou Realidade;
Revista
Síntese de Direito Civil e Processual Civil;Vol 03 p.75, Porto Alegre;
Jan-Fev-2002

[26]O
art. 182, §2º, da Constituição Federal de 1988 dispõe que: “A
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

[27]
O art. 186 da Constituição Federal de 1988 dispõe que: “A função social é
cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios
e graus de exigências estabelecidas em lei, os seguintes requisitos: I – aproveitamento
racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

 

[28] ARAÚJO LEONETTI,
Carlos, Op cit..p.77

[29]
GOMES, Orlando. A função social da
propriedade
. In:_ Anais do XII Congresso Nacional de Procuradores de
Estado. Salvador:,1986, p.63.

[30]COMPARATO,
Fábio Konder. Função social da
propriedade dos bens de produção
. In Revista de Direito
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro (nova série). São Paulo,
RT, n.º 63, jul-set/1986, p. 76.

 

[31] ARAÚJO
LEONETTI, Carlos, Op. cit. p.78,

[32] ARAÚJO LEONETTI, Carlos, Op.
cit. p.78

[33] SILVA, José
Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed., São Paulo:
Malheiros, 1994: p. 294

[34]
Procurador-Chefe da Procuradoria da República na Bahia, Membro do Conselho
Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, Mestrando em Direito Econômico/UFBA.

[35]
“A lei 8629/93, embora específica para regulamentar o art. 185, CF, que trata
da desapropriação da fins de reforma agrária, é aplicável ao art. 5º, XXVI, CF,
pelo que o imóvel rural com até 4 módulos fiscais, não rurais, é considerado
pequeno para fins de impenhorabilidade. O fato ser pequeno o imóvel de até 4
módulos fiscais, não basta para torná-lo imune à penhora, sendo essencial que a
dívida seja decorrente de atividade produtiva do devedor e que seja ele
trabalhado pela família, o que exclui a garantia quando se tratar de imóvel do
tipo fim-de-semana ou quando a dívida for de outra natureza; O art. 649, X, que
também cogita da impenhorabilidade do imóvel de até um módulo, embora não
especifique se fiscal ou rural, deve ser interpretado sistematicamente, como
uma unidade do sistema, pelo que aplica-se a primeira unidade de medida, isto
é, deve ser entendido como imóvel de até um módulo fiscal, por outro lado,
mesmo que se trate de imóvel de até um módulo fiscal, é certo que o art. 649,
X, CPC, não é a norma regulamentar do art. 5º, XXVI, CF, nem com ela é
incompatível, vigendo, pois, os dois, cada qual com um campo de alcance. Para o
art. 649, X, CPC, é impenhorável qualquer imóvel de até um módulo fiscal, desde
que seja o único de que disponha o devedor, qualquer que seja a dívida, e seja
ele explorado pela família, ou mesmo não explorado, ressalvando-se apenas a
hipoteca para fins de financiamento agropecuário, enquanto que o art. 5º, XXVI,
CF, protege apenas a propriedade pequena que, explorada pela família, tenha
contraído dívidas para sua própria atividade. Enfim, a distinção básica entre o
art. 649, X, CPC, e o art. 5º, XXVI, CF, é que este especifica a dívida que não
pode sujeitar o imóvel à penhora, desde que tenha até 4 módulos fiscais, embora
não seja o único do proprietário, enquanto que aquele exclui da penhora o
imóvel de até um módulo fiscal, qualquer que seja a dívida, desde que seja o
único bem do devedor”. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Proteção constitucional da
pequena propriedade rural . Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 45, set.
2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1676>.
Acesso em:
document.write(capturado());
10 dez. 2002.

 

[36]GONDINHO,
André Osório. Função Social da Propriedade. In Problemas
de Direito Civil – Constitucional. Gustavo Tepedino (Coord.). Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 421

[37]
Imposto sobre propriedade rural, de competência da União

[38]ARAÚJO LEONETTI, Op. cit. p.81

[39] SILVA, José
Afonso da., Op. cit., p. 690

[40] SILVA, José
Afonso da., Op. cit. p. 255

[41]ALEXY,
Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. espanhola de Ernesto
Gazón. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.


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João Alves de Almeida Neto


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