Cooperativismo: é possível a existência de vínculo empregatício entre o cooperado e o tomador de serviços?

1. Introdução

A cooperação sempre esteve presente na vida humana, desde os primórdios a idéia de auxilio mútuo entre os homens serviu para que eles, juntos, vencessem obstáculos que sozinhos seria impossível vencer. Tem-se então a cooperação como forma de organização para a solução de problemas econômicos e sociais do homem.

O cooperativismo tem sua origem na Inglaterra, onde alguns pobres tecelões de flanela da cidadezinha de Rochdale, reunidos como objetivo de encontrar uma saída à ameaça iminente de miséria, depois de discutirem várias alternativas, concluíram que o único meio era a conquista dos direitos políticos pelo povo e, baseados nas idéias socialistas de Robert Owen, se decidiram pela criação de um armazém cooperativo de consumo. Não imaginavam eles que este armazém tornaria-se a matriz do cooperativismo de consumo e a semente do movimentos cooperativista.

No Brasil, é em 1847 que situamos o início do movimento cooperativista no Brasil. Foi quando o médico francês Jean Maurice Faivre, adepto das idéias reformadoras de Charles Fourier, fundou, com um grupo de europeus, nos sertões do Paraná, a colônia Teresa Cristina, organizada em bases cooperativas. Essa organização, apesar de sua breve existência, contribuiu na memória coletiva como elemento formador do cooperativismo brasileiro.

Podemos dizer que uma cooperativa é uma associação de pessoas   que se unem voluntariamente com objetivos comuns, no intuito da satisfação de interesses, sejam eles econômicos, sociais, políticos e culturais.  A base das empresas cooperativas são a ajuda mútua, solidariedade, democracia e participação. Diferenciam-se das demais empresas por  ser, as mesmo tempo uma associação de pessoas e também uma empresa econômica. Assim, para desempenhar bem seu papel deverá equilibrar essa dupla característica: o social e o econômico.

2. Princípios atuais do cooperativismo

São eles: adesão voluntária e livre; espontaneidade quanto a criação da cooperativa e do trabalho prestado; gestão democrática; participação econômica dos membros;  independência e autonomia de seus cooperados, que obedecem apenas as diretrizes gerais e comuns estabelecidas nos estatutos da cooperativa;  educação, formação e informação; intercooperação; interesse pela comunidade; divisão dos lucros, sobras entre os cooperativados; não flutuação do quadro social, entre outros.

3. O empregado

O conceito legal de empregado está contido no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, da seguinte forma:

“Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

Parágrafo único. Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.”

Observa-se que neste dispositivo estão fixados os requisitos básicos para caracterização da relação de emprego, a pessoalidade, a onerosidade, a não-eventualidade da prestação e a subordinação jurídica do empregado ao empregador.

Podemos ver, também, que o caput do art. 472 do mesmo texto consolidado, define que o “Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”, o que demostra que basta a presença simultânea dos requisitos do art. 3º da CLT para ser caracterizada a relação de emprego, mesmo que não haja manifestação escrita ou verbal nesse sentido.

4. A Terceirização

A terceirização constitui-se uma prática empresarial que permite às empresas concentrarem seus esforços em suas atividades essenciais, deixando para terceiros a responsabilidade pela administração e operacionalização de fatores acessórios da produção.

Recentemente vem crescendo muito o interesse pela terceirização por intermédio das cooperativas de trabalho, isto porque o trabalho realizado por estar organizações reduz sensivelmente os encargos de caráter trabalhista (FGTS, 13º salário, dentre outros). Tal fato relaciona-se diretamente com a edição da Lei nº 8.949 de 1994 que introduziu o parágrafo único ao artigo 442 da CLT dispondo que:

Parágrafo único. “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”.

Verifica-se que o legislador tratou de reafirmar o disposto no art. 90 da Lei nº 5.764 de 1971: não existe vínculo empregatício entre a cooperativa e seus associados, e, acrescentou ainda, não existir vínculo empregatício entre os associados e o tomador de serviços da cooperativa.

5. O vínculo empregatício com o tomador de serviços

Se fizéssemos uma interpretação simplista dos dispositivos acima citados concluiríamos que seria impossível a existência de vínculo entre o cooperado e o tomador de serviços, porém trata-se de uma falsa impressão.

O art. 2º da CLT nos dá a definição legal de empregador nos seguintes termos:

Art. 2º. “Considera-se empregador a empresa individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços.

§ 1º. Equiparam-se ao empregador, para os direitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.”

Por sua vez o empregado é entendido como espécie do gênero trabalhador, assim definido pela CLT, como já citado acima.

Com o objetivo de proteger o empregado e evitar fraude aos direitos trabalhistas o artigo 9° da CLT dispõe:

Art. 9º. “Serão nulos de pleno direito os atos praticados como objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”

Percebe-se, da análise sistemática dos artigos citados, que a mera obediência a requisitos formais não é suficiente para a consideração da ausência de vínculo empregatício entre cooperado e tomador de serviços. Há  que se ter em conta os princípios protetivos do direito do trabalho, dentre os quais se destaca o princípio da primazia da realidade, segundo do qual, os fatos prevalecem sobre a forma contratual. Este princípio privilegia o conteúdo sobre a forma na configuração do contrato de trabalho. Desta forma, não são os contratantes que determinam a existência ou não de um contrato de emprego, mas sim o modo pelo qual os serviços são desenvolvidos. Significa que se as estipulações consignadas em contrato não correspondem à realidade não terão qualquer valor jurídico.

Podemos dizer, então, que o contrato de trabalho é um “contrato realidade” pois não basta o rótulo de trabalho cooperativado para que a relação de trabalho fique assim caracterizada. Se, de fato, ocorrer uma relação de emprego, aquela com as características de pessoalidade, não eventualidade, remuneração mediante salário, dependência e subordinação, a forma cede lugar à situação real, reconhecendo-se, assim, o vínculo empregatício entre o cooperado e o tomador de serviços.

Assim tem se posicionado a jurisprudência que, reconhecendo a possibilidade de fraude à legislação trabalhista, vem afastando a aplicação do art. 442 e, reconhecendo o liame empregatício em situações onde evidencia-se um relação de caráter empregatício e não societário, vejamos:

RELAÇÃO DE EMPREGO – CONTRATAÇÃO DE TRABALHADORES ATRAVÉS DE COOPERATIVA – FRAUDE À LEI

Demostrando a prova dos autos que houve clara tentativa de fraude à lei, sendo utilizada a cooperativa como “testa de ferro”, simulando haver ela contratado os trabalhadores, para, assim, dissimular-se a relação de emprego, que, na verdade, existiu entre as partes, aplica-se à espécie o art. 9º da CLT, considerando-se nulos tais atos. (TRT-RO-3839/99. AC. 093/2000, Juiz Octávio José de Magalhães D. Maldonado)

Todavia acham-se também precedentes jurisprudenciais que tutelam as verdadeiras cooperativas, entendidas essas as que observam rigorosamente todos os preceitos legais da Lei nº 5.764/71, sem deixar que se configurem os requisitos caracterizadores do vínculo empregatício.

TRABALHADORES ORGANIZADOS EM COOPERATIVA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO A TERCEIROS – RELAÇÃO DE EMPREGO – INEXISTÊNCIA

Trabalhador associado a cooperativa de trabalho regularmente constituída, que presta serviço a vários tomadores distintos, sem fixação, portanto, a nenhuma fonte de trabalho, não pode ser considerado empregado nem daquela nem de nenhum destes, a teor do que dispõe o parágrafo único do art. 442 da CLT, com redação da Lei nº 8.949/94. (TRT-MG-RO 12736/96 – Rel. Juiz Márcio Ribeiro do Valle)

6. Conclusão

Pelo exposto, pode-se concluir que:

a)      Somente pode ser considerado autêntico cooperativismo aquele calcado nos princípios de adesão livre, gestão democrática, não auferimento de lucro, prestação de serviço aos associados e exercitado com ausência dos pressupostos identificadores da relação de emprego.

b) A Lei nº 8.994/94 que introduziu o parágrafo único no art. 442 da CLT ressaltando que não existe vínculo empregatício entre a cooperativa e seus associados e nem entre estes e o tomador de serviços daquela, deve ser interpretada sistematicamente como o ordenamento jurídico vigente, bem como com princípios do direito do trabalho, principalmente o da primazia da realidade.

c) O contrato de trabalho é um contrato-realidade logo não são os contratantes que  determinam a existência ou não de um contrato de emprego e sim a existência ou não dos pressupostos do vínculo empregatício, que são: pessoalidade, não eventualidade, remuneração mediante salário, dependência e subordinação.

d) A prestação de serviços através de cooperativas estruturadas sem observância dos princípios cooperativistas constitui desvirtuamento e fraude ao Direito do Trabalho, conforme o art. 9º da CLT.

Portanto, conclui-se que é possível a existência de vínculo empregatício entre o cooperado e o tomador de serviços desde que se configure entre eles uma relação de trabalho, com  os requisitos legais acima expostos. Caso sejam observadas as regras pertinentes , ou seja, numa cooperativa regularmente constituída, não há de se falar em relação de emprego com o tomador de serviços.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Isabel Almeida Vasconcelos

 

Formanda do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

 


 

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