A definição de Direito como Ciência certamente foi um dos tópicos que mais gerou controvérsia entre os pensadores jurídicos da História Contemporânea.
Muito embora, no passado, não se tenha valorizado essa posição doutrinária, após o notável esforço do inconteste mestre do pensamento jurídico, Hans Kelsen (1881-1973), sobretudo quando da publicação de sua obra “Teoria Pura do Direito”, restou majoritária a corrente que reconhece o Direito como Ciência.
Com efeito, o mentor do positivismo jurídico, naquela inestimável obra, buscou constituir uma Ciência do direito livre de toda ideologia e da intervenção de considerações estranhas ao Direito, expondo a “pureza jurídica do Direito em seu aspecto tipicamente científico[1]”.
Para tanto, afirmou que a Ciência do direito, enquanto conhecimento do direito positivo, deve eliminar todas as considerações que são essencialmente alheias ao seu objeto, visando sempre a purificação do pensamento jurídico, sem nenhuma pretensão a fundamentações sociológicas, políticas ou filosóficas.
Se o Direito constitui-se efetivamente em Ciência ou se seria apenas o objeto de uma Ciência não é o cerne da questão em comento, pois o que realmente merece destaque é o fato de que, atualmente, poucos são os que vêem o Direito como forma não-científica. Para estes, a classificação do Direito como Ciência desobedeceria o rigorismo terminológico, segundo o qual a Ciência pressupõe a existência de princípios de validez universal[2]; ou ainda, tal classificação restaria equivocada, pois a Ciência do Direito estaria voltada para o campo comportamental, e não para a inteligência[3].
Nesse diapasão, cumpre delimitar o conceito de Ciência e aplicá-lo efetivamente na classificação doutrinária de uma Ciência Jurídica, ou Ciência do Direito. Mister destacar ainda que, muito embora seja comum a utilização de ambas as expressões por sinonímia, a expressão mais correta seria “Ciência do Direito”, uma vez que o Direito não se limita apenas ao conteúdo jurídico, mas extrapolando estes limites valorativos para compreender fenômenos metajurídicos.
A Ciência, propriamente dita, representa a busca da verdade, indefinida e permanentemente. Seu compromisso é tão-somente explicar os fenômenos naturais e sociais, visando satisfazer a necessidade humana de conhecer e de entender o mundo em que vive.
O objetivo prático da atividade científica não é o de descobrir verdades absolutas ou ser uma compreensão plena da realidade – ao contrário do que afirmou Paulino Jacques –, mas, sim, o de fornecer um conhecimento que, ainda que provisoriamente, facilite a interação com o mundo.
Ainda assim, definir a Ciência não é tarefa fácil e de pronta solução, pois não se lhe pode traduzir por verdade absoluta – eis que tal não existe –, mas apenas por uma busca incansável pela verdade em sua acepção plena, em consonância com a mutabilidade evolutiva dos princípios e pressupostos científicos. Por tal fundamentação é que se insere o conceito de verdade relativa no estudo científico, como uma alternativa – senão a única – à inatingível verdade universal.
Essa busca pela verdade absoluta – sabe-se, inacessível – representa o desenvolvimento científico humano, limitado apenas por sua própria capacidade de conhecer e conceber verdades, no então denominado raciocínio binário humano. Por conseguinte, toda produção científica e inteligível humana restringiu-se ao modo cognitivo delineado pelo binarismo. Em virtude dessa limitação, o desenvolvimento científico-jurídico seria melhor amparado pelo modelo triangular do conhecimento: as notórias tríades que compõem o estudo do Direito como Ciência – a trilogia básica do processo (ação–jurisdição–processo), a trilogia da relação processual (juiz–autor–réu), etc. – são a forma mais expressiva que norteiam o pensamento jus-filosófico.
A Ciência passou, então, a ser classificada entre Ciências naturais e sociais, e estas, por sua vez, em Ciências do macrocosmo e do microcosmo, e Ciências hermenêuticas e não-hermenêuticas, respectivamente.
Nesse contexto, a Ciência do Direito seria corretamente classificada como uma Ciência social hermenêutica, transcendendo, porém, a simples interpretação da realidade para, ainda, projetar um mundo ideal (meta do dever-ser), através da valoração factual intrínseca aos fenômenos naturais ou sociais. E é essa projeção comportamental o cerne dos debates jusfilosóficos que pretendem, desde épocas passadas, classificar ou não o Direito como Ciência.
Como se viu supra, o neopositivismo de Kelsen pressupõe um Direito puro, livre de interferências morais e éticas efetivamente estranhas aos conteúdos jurídico e metajurídico. A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade, para Kelsen, simbolizam a tão visada autonomia da Ciência jurídica.
Sendo o Direito positivo, pode este ser moral ou imoral, independentemente do que se considere mais justo ou socialmente adequado. Com efeito, ainda que determinada norma contrariasse um preceito de justiça, esta permaneceria eivada de validade jurídica. O Direito Positivo seria, pois, o direito inserido (positum[4] – posto) pelo ente legiferante, dotado de validade e legitimidade, por obedecer a formalismos pertencentes a um determinado sistema jurídico.
O Direito, portanto, não precisa curvar-se à moral para ser definido e aceito como tal, pois sua natureza não pressupõe nada além do valor jurídico. A ordem jurídica será, então, válida mesmo que contrarie os alicerces morais, não importando a definição de justiça ou de injustiça:
“Um Direito Positivo pode ser justo ou injusto; a possibilidade de ser justo ou injusto é uma conseqüência essencial do fato de ser positivo[5]”
Dessa forma, conclui-se que o conceito de justiça não se vincularia à moralidade do resultado final de aplicação e interpretação do ordenamento jurídico, mas ao efetivo cumprimento das normas juspositivistas elaboradas pelo Poder Legislativo. Assim, um comportamento seria considerado injusto quando há uma transgressão das normas jurídicas, pelo que se impõe uma sanção previamente definida pelo Direito positivo, e não por se contrapor ao conceito filosófico ou ético de justo.
Nessas condições, a justiça restringir-se-ia ao fiel cumprimento das normas jurídicas, seja por sua aplicabilidade, seja por sua interpretação. Reis Friede[6] denomina, com bastante propriedade, tal sujeição como sendo uma “prisão” e “conseqüente servidão” a que se vinculam os membros do Poder Judiciário.
Com efeito, aos magistrados não compete aplicarem a Justiça – em sua acepção moralista –, mas serem justos no sentido de obedecerem à norma jurídica, concretizando única e exclusivamente uma ordem juspositivista. Ademais, cabe-lhes a prestação da tutela jurisdicional do Estado, não lhes sendo permitido deixar de aplicar uma norma jurídica com base em ideologias e critérios pessoais. Sua condição particular implica afastar convicções políticas, quando da aplicação da lei objetiva ao caso concreto, independentemente de convicções próprias, ainda que resultando em injustiça decorrente de um juízo de valor personalíssimo.
Trata-se, por conseguinte, de verdadeira limitação jurídico-política, pois, uma vez elaboradas e vigentes as leis, estas serão impostas erga omnes, ainda que moralmente injustas. E, a partir de então, deverão ser cumpridas inquestionavelmente pelo magistrado, pois, apesar de injustas, estarão amparadas pelos pilares da legalidade e juridicidade, prevalecendo sua validade e imperatividade.
Tais características – validade jurídica e imperatividade – atingem não apenas os magistrados, mas todos os entes integrantes da trilogia jurídica (juizes-advogados-membros do Ministério Público), da tríade política do Estado (Poderes Executivo-Legislativo-Judiciário) e dos cidadãos de um mesmo País. São esses elementos que ensejam e fortalecem uma segurança jurídica livre da subjetividade e da inconstância individual, ou, segundo J. J. Calmon de Passos[7], “o Direito é uma coisa que gera ordem” e não necessariamente justiça, sendo esta possível de ser atingida pelo exercício do poder, ainda que não obrigatoriamente.
Portanto, parece-nos razoável conceber a noção de segurança social e jurídica a partir de uma obediência irrestrita ao ordenamento jurídico, uma vez que o interesse maior da coletividade não pode ser jamais considerado em detrimento de anseios individuais. Dada a pluralidade de indivíduos e de suas respectivas personalidades, além da inquestionável instabilidade das relações humanas, não poderia o Estado curvar-se a tais intempéries, visando a satisfação plena, pessoal e individual de cada jurisdicionado, mesmo porque tal realização não é possível. Assim, a perseguição do Bem Comum pressupõe sacrifício individual em benefício de uma coletividade, o que recai também sobre o Direito, sobretudo na concepção positivista.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Fabrício da Mota Alves
Advogado em Brasília – DF. Pós-Graduando em Direito Tributário e Legislação de Impostos pela Universidade Cândido Mendes