O modesto e despretensioso estudo que ora se apresenta tem por
finalidade demonstrar da maneira mais concisa e didática que nos é possível a
inegável aplicação da Lei n.º 8.078/90 (Código de
Defesa do Consumidor) aos contratos bancários. Assim, quer seja pela combinação
daquilo disposto nos artigos 2º; 3º, §2º; ou ainda por aquilo constante no
artigo 29 da aludida norma legal, demonstrar-se-á que a pretensão de
inaplicabilidade de tão salutar norma, que veio a devolver às relações entre
instituições financeiras e seus clientes o equilíbrio até então inexistente –
em que pese os diligentes esforços em contrário de parte da jurisprudência
pátria – não encontra guarida no direito positivo brasileiro e, portanto, vem
cedendo pouco a pouco espaço a maioria de nossa doutrina e jurisprudência que
entendem plenamente aplicável à tal espécie de
contratos a norma objeto do presente estudo.
Em primeiro lugar, cumpre notar que para a aplicação do CODECON a uma
espécie de relação jurídica mister se faz estarem configurados nos pólos
subjetivos de tal relação as figuras do consumidor,
bem como do fornecedor. Em outro dizer, não havendo a subsunção do estado de
uma das partes ao conceito legal previsto no CODECON, forçoso é concluir a
impossibilidade de disciplinação de tal relação
jurídica em face daquilo disposto em tal norma.
Como ilustração a tal regra, pode-se citar a hipótese de um dono de
padaria vender pão estragado a seus clientes, donde a responsabilidade daquele
resta disciplinada pelo CODECON, sendo tal norma plenamente aplicável ao caso,
eis que presentes as figuras do consumidor, assim como a do fornecedor. Nada
obstante, acaso o mesmo dono de padaria vendesse a caminhonete que utiliza para
a entrega de seus produtos, estaria tal relação jurídica ao abrigo do diploma consumerista? Por certo que não, uma vez que tal atividade
não resta abrangida pela natureza dos serviços oferecidos pelo vendedor,
inexistindo, portanto, a figura do fornecedor e não aplicando-se
a tal caso, como corolário lógico, o CODECON.
Passemos, então, ao exame dos conceitos de consumidor e fornecedor insculpidos no CODECON, de forma a verificar a
possibilidade de aplicação de tal norma aos contratos bancários.
Portanto o conceito de consumidor encontra-se previsto no artigo 2º do
CODECON que determina ser este “toda
pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como
destinatário final”.
De tal definição dois aspectos demonstram-se merecedores de especial
atenção. Em um primeiro momento, resta claro na definição legal acima
transcrita que os benefícios de tal norma legal não restringem-se
somente às pessoa físicas, abrangendo-se também aí as pessoas jurídicas.
Em um segundo momento, importante é notar que a necessidade, para a
configuração de consumidor, da aquisição ou utilização de serviços em caráter
final.
Assim é que Nelson Nery Júnior, na obra Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 305, Ed. Forense
Universitária, 1991, assevera que “havendo
outorga do dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário
final, há a relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC.
Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo,
não será destinatário final e portanto não há que se
falar em relação de consumo.”
Em face de tal observação é que alguns juristas contrários à
aplicabilidade de tal norma legal aos contratos bancários encontram supedâneo
para tanto, pois asseveram que aquele que recorre aos mútuos bancários jamais
haverá de ser o destinatário final do objeto de tal negociação, pois certamente
procederão, de alguma forma, o repasse da quantia
obtida.
Nada obstante o magistério acima colacionado, pedimos a venia para notar
que naquilo que pertine às relações mantidas junto a
instituições financeiras, mesmo em casos onde não configura-se
o devedor como destinatário final, deve tal relação jurídica ser disciplinada
pelo diploma consumerista, uma vez que o próprio
CODECON trata de afastar a pertinência do magistério do renomado mestre acima
citado naquilo que alude aos contratos bancários. Tal se dá em face daquilo
disposto no artigo 29 de tal norma legal que dispõe que “para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele
previstas”. Importante esclarecer que os capítulos a que refere-se
tal dispositivo são os Capítulos V e VI, que disciplinam, respectivamente, as “Práticas Comerciais”, bem como a “Proteção Contratual”, sendo, portanto,
exatamente aqueles utilizados por quem pretende ver, em juízo, respeitados seus
direitos de consumidor em face da voracidade demonstrada pelas instituições
financeiras.
De forma mais clara e concisa segue o magistério do Excelentíssimo Sr.
Juiz de Alçada Dr. Antonio Manyr Dall’Agnol Júnior, exarado nos autos da Apelação Cível n.º 193051216, 7ª Câmara Cível do extinto Tribunal de Alçada
do Rio Grande do Sul, julgada em 19/05/1993, que assevera: “ (…) não obstante a resistência de alguns (v.g., José Geraldo Brito Filomeno,
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, cit.,
pp. 24-27), denotativa de
preconceitos, afinal não abrigados pelo direito positivo pátrio, correto é o
entendimento, esposado por um especialista do nível de Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, de que ‘o consumidor é,
então, não apenas aquele que adquire ou utiliza produtos ou serviço (art. 2º),
mas igualmente as pessoas expostas às práticas previstas no Código (art. 29)’”
Em outro dizer, os argumentos que possam vir a ser
utilizados com o escopo de afastar a aplicabilidade do CODECON aos contratos
bancários restam plenamente espancados pela própria norma legal que, pródiga em
conceitos, manifesta claramente a intenção de proteger a todos da abusividade e excessiva onerosidade verificada nos
contratos mantidos junto a instituições financeiras, em face da grande
relevância social que o tema demonstra.
Em um segundo momento, cumpre notar que também o conceito
de serviço encontra-se cristalinamente delineado no diploma legal ora em
estudo, eis que no §2º de seu artigo 3º consta que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
Portanto, não há como negar-se a subsunção dos negócios
jurídicos mantidos juntos a instituições financeiras ao CODECON, uma vez que
não só a natureza dos serviços prestados por tais instituições enquadra-se ao
conceito legal citado, mas, como se tal não bastasse, há ainda a expressa
determinação legal de que assim o seja quando alude tal dispositivo às atividades de natureza bancária,
restando portanto tal mandamento legal imune às mais
agudas inteligências – especialmente no âmbito de nossa Corte Constitucional –
especializadas na deturpação exegética da vontade do legislador expressamente
positivada.
Neste diapasão preconiza o mestre Arruda Alvin que “tal opção de política legislativa revela a
preocupação de não se dar azo a divergente exegese, que pudesse vir a excluir
do conceito geral atividades de grande movimentação de consumo, como as
relacionadas, notadamente os bancos e as seguradoras, sejam públicos ou
privados”. (in, Código de Defesa do
Consumidor Comentado, 2ª ed. rev. e ampl., 1995)
Em que pese o grande esforço e competência do legislador pátrio,
encontra-se tramitando junto ao Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de
Inconstitucionalidade, tombada sob o n.º 2591, movida
pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro, que pretende a declaração de
inconstitucionalidade do §2º do artigo 3º da norma aqui abordada, ou seja, do
dispositivo legal que dispõe acerca do conceito de serviço – incluindo-se aí os
serviços de natureza bancária –, consoante demonstrado alhures. Tal pretensão
tem como supedâneo a alegação de que seria o CODECON norma formalmente
inconstitucional ao interferir no âmbito do sistema financeiro nacional
porquanto preconiza o artigo 192, caput
da Carta Política a necessidade de lei complementar a regulamentar tal matéria,
não sendo possível, assim, a interferência do CODECON – lei ordinária – no
âmbito do sistema financeiro nacional.
Ao nosso ver, tal argumentação não
procede, uma vez que a própria defesa do consumidor encontra-se prevista em nossa Carta Magna,
mais precisamente no inciso XXXII de seu artigo 5º, i.e., inserida entre os direitos constitucionais fundamentais, o
que demonstra inequivocamente que a defesa do consumidor encontra-se em patamar
constitucional hierarquicamente superior à regulamentação do sistema
financeiro, devendo esta sofrer a ingerência daquela, e não o contrário, como
pretendido pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro. Assim é que o
grande constitucionalista José Afonso da Silva, realça a importância da defesa
do consumidor, em face da “sua inserção
entre os direitos fundamentais, com o que se erigem os consumidores à categoria
de titulares de direitos constitucionais fundamentais”. (in, Curso
de Direito Constitucional Positivo, pág. 255, 10ª ed., Malheiros Editores, 1995)
De qualquer sorte, o que se pode notar é mais uma
tentativa – que esperamos demonstre-se malsucedida –, por parte daquele setor
social ao qual assiste flagrante superioridade econômica e, por via de
conseqüência encontra-se em mais confortável posição política e, por que não
dizer, jurídica; em frustar o
excepcional trabalho realizado pelo legislador pátrio que se deu por ocasião da
elaboração do CODECON, norma que, consoante já aqui exposto, demonstra-se
pródiga em conceitos, precisa em seus objetivos e que veio devolver às relações
mantidas entre a população hipossuficiente e as
instituições financeiras equilíbrio indispensável à manutenção das relações
jurídicas firmadas, dentro de parâmetros justos e equânimes.
Por fim, cumpre notar tratar-se tal norma legal de
meritório passo em sentido à humanização de tal espécie de relação jurídica. Nada obstante, mister é observar ser este apenas o primeiro
movimento de tão árdua caminhada, porquanto fica tão salutar proteção conferida
pelo código em comento restrita àqueles que buscam o Poder Judiciário em
salvaguarda de seus direitos, o que, desnecessário dizer, trata-se de parcela
ínfima de nossa população, fazendo-se imperiosa a extensão de tais direitos a
todos, de forma a obter-se, somente então, mais uma vitória na guerra pela
justiça social que nos é tão cara.
Informações Sobre o Autor
André Ramos Rodrigues
Acadêmico de Direito da Fundação Universidade do Rio Grande