Medida provisória No 222/2004: caso típico de fraude à constituição

Nos estudos de direito tributário, uma das primeiras e mais importantes distinções feitas envolve os conceitos de competência e capacidade tributárias. Por competência tributária entende-se o poder de instituir ou criar determinado tributo, definindo todos os elementos integrantes da regra-matriz de incidência. Já a noção de capacidade tributária comporta a presença na relação jurídico-tributária, efeito próprio da ocorrência do fato gerador, aqui considerado como fato jurídico.

É importantíssimo salientar que a sede normativa da competência tributária encontra-se na Constituição. Numa Federação, como a nossa, somente o constituinte pode distribuir as “parcelas” do poder de tributar entre os entes políticos existentes. Por outro lado, a sede normativa da capacidade tributária está na lei, ordinária ou complementar, conforme o caso.

É cediço no direito tributário brasileiro que o legislador competente para a instituição do tributo pode e deve estabelecer quem é o sujeito ativo da relação jurídico-tributária surgida com a ocorrência do fato gerador. Este sujeito ativo poderá adotar as providências necessárias, assim como previstas na ordem jurídica, para exigir o tributo do sujeito passivo.

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Quanto às alternativas colocadas para o legislador infraconstitucional na tarefa de definir o sujeito ativo da relação jurídica de tributação, o Código Tributário Nacional, como lei de normas gerais para o Sistema Tributário Nacional, precisamente no seu art. 119 (1), admite a escolha de pessoa jurídica de direito público para a condição em questão.

Assim, concluímos que o sujeito ativo da relação jurídica formada em torno de determinado tributo será definido em lei, pelo ente estatal competente, entre as pessoas políticas (2), integrantes da Federação, ou suas autarquias (pessoas jurídicas de direito público).

Em relação às chamadas contribuições previdenciárias, mais precisamente aquelas incidentes sobre a folha de salários, a cargo do empregador ou do trabalhador, a definição legal pertinente até a edição da Medida Provisória no 222, de 2004, fixava no Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal, a condição de sujeito ativo da respectiva relação jurídico-tributária (3).

Ocorre que a Medida Provisória no 222, de 2004, atribuiu (4):

(a) à Secretaria da Receita Previdenciária do Ministério da Previdência Social a competência para arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento, em nome do INSS, das contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de salários;

(b) à Procuradoria-Geral Federal da Advocacia-Geral da União a competência para inscrição e cobrança judicial da dívida ativa do INSS relativa às contribuições previdenciárias aludidas.

A situação criada por este último diploma legal é, no mínimo, inusitada. Com efeito, em todos os momentos da exigibilidade das contribuições previdenciárias comparece a União, ora pela novel Secretaria da Receita Previdenciária do Ministério da Previdência (5), ora pela Procuradoria-Geral Federal da Advocacia-Geral da União (6).

Diante do quadro posto pela Medida Provisória no 222, de 2004, qualquer operador do direito minimamente informado concluirá que a União, exercendo a competência tributária deferida pela Constituição para a instituição das contribuições previdenciárias, retomou a condição de sujeito ativo da relação jurídico-tributária antes entregue ao INSS.

Entretanto, este raciocínio linear e rigorosamente correto esbarra na cláusula presente no art. 1o da Medida Provisória no 222, de 2004. Diz-se, naquele dispositivo, que a União, por seus órgãos, atuará “em nome” do INSS! A pergunta mais que óbvia é a seguinte: o que esconde esta curiosa construção? Afinal, o legislador poderia ter sido claro e explícito atribuindo a sujeição ativa das contribuições previdenciárias à União, sem qualquer circunlóquio. Por que não o fez? Por que esvaziou completamente o INSS da condição de sujeito ativo das contribuições previdenciárias (7), mas definiu uma estranha atuação da União “em nome” de sua autarquia?

A resposta, infelizmente, flagra uma das condutas mais condenáveis adotadas pelo legislador. Trata-se, não há dúvida razoável em torno da constatação, de uma fraude à Constituição (8). Tentando contornar o disposto no art. 131, parágrafo terceiro do Texto Maior (9), o legislador obrou a pérola em destaque. As definições da Medida Provisória no 222, de 2004, colocam a União na condição de sujeito ativo das contribuições previdenciárias, assim, por via de conseqüência e por estrito respeito à Constituição, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) deveria ser chamada a realizar a execução judicial da dívida ativa das contribuições previdenciárias (10), agora titularizadas pela União.

Um dos aspectos mais preocupantes na adoção da Medida Provisória no 222, de 2004, consiste no fato de ter sido desenhada pela Advocacia-Geral da União, órgão cujo titular foi qualificado pelo constituinte como um dos mais importantes defensores da Constituição, justamente como curador da constitucionalidade nos termos do art. 103, parágrafo terceiro da Carta Magna (11).

Outro aspecto merecedor de preocupações no seio da Administração Tributária consiste na enorme fragilização das atividades de cobrança das contribuições previdenciárias não pagas. Com certeza, ao serem cobrados pela Procuradoria-Geral Federal (PGF), leia-se União, “em nome” do INSS, os devedores argüirão, com razão, a inconstitucionalidade do imbróglio legislativo criado.

Concluímos estas modestas linhas lembrando o famoso tributarista Alfredo Augusto Becker. Ele chegou a identificar, no Brasil, a presença de um “carnaval tributário” (12). Em certo momento, lembrando o italiano Lello Gangemi, cunho a expressão “manicômio jurídico tributário” (13). Provavelmente, diante de iniciativas como a da Medida Provisória no 222, de 2004, apontaria o caminho, a passos largos, para o “apocalipse jurídico tributário”.

Notas:
(1) Art. 119 do Código Tributário Nacional: “Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento”. O dispositivo em questão reclama uma interpretação corretiva e conjugada com o disposto no art. 7o do mesmo Código Tributário Nacional onde está consagrado que “a competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do parágrafo terceiro do art. 18 da Constituição”.
(2) Admitindo-se que uma pessoa política pode atribuir a outra pessoa política a condição de sujeito ativo da relação jurídica de determinado tributo. A hipótese, inclusive, foi delineada constitucionalmente em relação ao Imposto Territorial Rural – ITR no art. 153, parágrafo quarto, inciso III, conforme a Emenda Constitucional no 42, de 2003.
(3) Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991: “Art. 11. No âmbito federal, o orçamento da Seguridade Social é composto das seguintes receitas: I – receitas da União; II – receitas das contribuições sociais; III – receitas de outras fontes. Parágrafo único. Constituem contribuições sociais: a) as das empresas, incidentes sobre a remuneração paga ou creditada aos segurados a seu serviço; b) as dos empregadores domésticos; c) as dos trabalhadores, incidentes sobre o seu salário-de-contribuição; d) as das empresas, incidentes sobre faturamento e lucro; e) as incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos. (…) Art. 33. Ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11, bem como as contribuições incidentes a título de substituição; e à Secretaria da Receita Federal – SRF compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas d e e do parágrafo único do art. 11, cabendo a ambos os órgãos, na esfera de sua competência, promover a respectiva cobrança e aplicar as sanções previstas legalmente. (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 9.7.2001)”
(4) Arts. 1o e 2o da Medida Provisória no 222, de 2004: “Art. 1o Ao Ministério da Previdência Social compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento, em nome do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, das contribuições sociais previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do parágrafo único do art. 11 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e das contribuições instituídas a título de substituição, bem assim as demais competências correlatas e conseqüentes decorrentes do exercício daquelas, inclusive as relativas ao contencioso administrativo fiscal, conforme disposto em regulamento./Art. 2o A Procuradoria-Geral Federal, órgão vinculado à Advocacia-Geral da União, exercerá, sem prejuízo das demais competências previstas na legislação, as atribuições de representação judicial e extrajudicial relativas à execução da dívida ativa do INSS atinente à competência tributária referente às contribuições sociais a que se refere o art. 1º, bem como seu contencioso fiscal, nas Justiças Federal, do Trabalho e dos Estados”.
(5) Art. 8o, inciso I da Medida Provisória no 222, de 2004: “Para assegurar o cumprimento do disposto nesta Medida Provisória, fica o Poder Executivo autorizado a: I – criar a Secretaria da Receita Previdenciária na estrutura básica do Ministério da Previdência Social;”
(6) Art. 9o da Lei no 10.480, de 2002: “É criada a Procuradoria-Geral Federal, à qual fica assegurada autonomia administrativa e financeira, vinculada à Advocacia-Geral da União”.
(7) Art. 8o da Medida Provisória no 222, de 2004: “Para assegurar o cumprimento do disposto nesta Medida Provisória, fica o Poder Executivo autorizado a: I – criar a Secretaria da Receita Previdenciária na estrutura básica do Ministério da Previdência Social; II – transferir, da estrutura do INSS para a estrutura do Ministério da Previdência Social, os órgãos e unidades técnicas e administrativas que, na data de publicação desta Medida Provisória, estejam vinculadas à Diretoria da Receita Previdenciária e à Coordenação-Geral de Recuperação de Créditos, ou exercendo atividades relacionadas com a área de competência das referidas Diretoria e Coordenação-Geral, inclusive no âmbito de suas unidades descentralizadas; III – transferir, do Quadro de Pessoal do INSS para o Quadro de Pessoal do Ministério da Previdência Social, a Carreira Auditoria-Fiscal da Previdência Social, sendo redistribuídos para o Ministério da Previdência Social os cargos vagos e ocupados, aposentados e pensionistas da referida Carreira, assegurada a seus integrantes assistência jurídica em ações judiciais e inquéritos decorrentes do exercício do cargo; IV – fixar o exercício, no âmbito do Ministério da Previdência Social, dos servidores que, na data de publicação desta Medida Provisória, se encontrem em efetivo exercício na Diretoria da Receita Previdenciária, na Coordenação-Geral de Recuperação de Créditos e nas unidades técnicas e administrativas a elas vinculadas, sem prejuízo da percepção da remuneração e das demais vantagens relacionadas ao cargo que ocupem e sem alteração de suas atribuições e de suas respectivas unidades de lotação; V – fixar o exercício, no âmbito da Procuradoria-Geral Federal, dos servidores que, na data de publicação desta Medida Provisória, se encontrem em efetivo exercício nas unidades vinculadas à área de cobrança da dívida ativa e contencioso fiscal da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, sem prejuízo da percepção da remuneração e das demais vantagens relacionadas ao cargo que ocupem e sem alteração de suas atribuições e de suas respectivas unidades de lotação; VI – transferir, do INSS para o Ministério da Previdência Social, os acervos técnico e patrimonial, as obrigações e direitos, seus contratos e convênios, bem como os processos e demais instrumentos em tramitação, relacionados às competências e prerrogativas a que se refere esta Medida Provisória; e VII – remanejar, transferir ou utilizar os saldos orçamentários do Ministério da Previdência Social e do INSS para atender a despesas com estruturação e manutenção de órgãos e unidades a serem criados, transferidos ou transformados, na forma do inciso I deste artigo e do art. 2o, mantida a classificação funcional-programática, bem como os subprojetos, subatividades e grupos de despesas previstos na Lei Orçamentária em vigor”.
(8) Marcos Bernandes de Mello, ao tratar das formas de infração às normas jurídicas, destaca duas possibilidades: “(a) Diretamente, quando se infringe norma jurídica cogente, proibitiva ou impositiva, contrariando frontalmente, sem rebuços ou artifícios, as suas disposições./(b) Indiretamente, quando, por meio que aparenta licitude, se obtém resultado proibido pela lei ou se impede que fim por ela imposto se realize. A essa espécie a doutrina, usual e universalmente, denomina fraude à lei”. Adiante, o mesmo autor, consigna: “Temos, no entanto, a convicção de que não há como negar a aplicação da teoria da infração indireta às normas jurídicas às espécies em que o legislador ‘contorna’ norma cogente constitucional através de normas aparentemente compatíveis com a Constituição”. O ilustre Mestre Marcos Bernardes de Mello destaca, ainda, decisões judiciais neste sentido: (a) “É lícito ao Poder Judiciário reparar ofensas ao preceito contido no art. 37, X, da Constituição Federal. No entanto, para que tal reparação se efetive, é necessária a prova cabal de que houve fraude ao mandamento constitucional. Não demonstrada a fraude, denega-se o Mandado de Segurança” (Rec. em MS 1.796-5-SP, rel. Min. Humberto Gomes de Barros) e (b) “Embora sem usar, explicitamente, a expressão fraude à constituição o TRF da 5a. Região tem considerado inconstitucional a criação de tributo com o nome de contribuição, por considerar infringente, indiretamente, do direito de Estados e Municípios à participação tributária, bem como para “burlar vedações constitucionais”, conforme está claramente dito no Acórdão proferido na Ap. em MS 976-AL”. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Validade. São Paulo: Saraiva, 1995. pp. 81 a 84.
(9) Art. 131, parágrafo terceiro da Constituição: “Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei”. A cláusula final do dispositivo transcrito não autoriza reduções na competência da PGFN, hipótese em que o legislador ordinário esvaziaria o mandamento constitucional. A expressão em questão impõe a observância da legislação pertinente quanto aos procedimentos e instrumentos a serem manejados por ocasião da cobrança. A próposito da competência constitucional da PGFN o Ministro Marco Aurélio registrou: “É que a representação da União na execução da dívida ativa de natureza tributária restou definida, de forma expressa, sem qualquer condição, no corpo permanente da Carta, como sendo da Procuradoria da Fazenda Nacional (§ 3º do art. 131), enquanto somente em relação ao gênero-causa de natureza fiscal, fixou-se essa competência, submetida, no entanto, à condição resolutiva, representada pela promulgação das leis complementares atinentes à Advocacia-Geral da União e ao Ministério Público./Ora, tratando a espécie de execução de dívida ativa de natureza tributária, descabia adentrar o campo regido pelo Ato das Disposições Transitórias, vez que o preceito pertinente somente veio à balha em virtude de necessidade de organizar-se o próprio serviço da Advocacia-Geral da União. Em síntese, pela nova ordem constitucional, restaram definidas as áreas de atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional e da Advocacia-Geral da União. Na primeira, teve-se, de maneira definitiva, introduzida a execução da dívida ativa de natureza tributária, mostrando-se aplicável a norma que assim dispôs, independentemente da lei complementar concernente à Advocacia-Geral da União.” (Voto proferido no RE 180.144).
(10) A natureza tributária das contribuições previdenciárias foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em inúmeros julgados (RE 138.284, RE 146.733, entre outros).
(11) Art. 103, parágrafo terceiro da Constituição: “Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”.
(12) BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. São Paulo: Saraiva, 1989.
(13) BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, pp. 3 e 5.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Aldemário Araújo Castro

 

 


 

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