Resumo: Este artigo tem por finalidade realizar uma abordagem a respeito da concessão de uso especial para fins de moradia, como meio de regularizar posses de terras públicas, frente ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Neste viés, verifica-se, atualmente, a massificação do sentimento de orfandade que paira sobre a sociedade civil, restando claro, como determinante de seu fomento, o não cumprimento do princípio normativo da dignidade da pessoa humana, eis que carecemos, dentre outras necessidades, de moradia e habitação, configuradas como direito fundamental e inviolável. Portanto, é inequívoco que se necessita de uma materialização dos direitos concedidos pela nossa Magna Carta, pois, mesmo que isso importe em novas ou remodeladas construções legislativas, será somente assim que poderemos alcançar e garantir o real direito à moradia.
Palavras-chave: uso especial; moradia; federalismo brasileiro; dignidade da pessoa humana.
Abstract: This article has for purpose to accomplish an approach regarding the concession of special use for dwelling ends, as a way to regularize the ownerships of public lands, front to the constitutional principle of the human person’s dignity. In this inclination, it is verified, nowadays, the popularization of the orphanage feeling that hovers on the civil society, clearly remaining, as decisive of its fomentation, the non execution of the normative principle of the human person’s dignity, suddenly we lack, among other needs, of dwelling and house, configured as fundamental and inviolable right. Therefore, it is unequivocal that it is needed a materialization of the rights granted by our Federal Constitution, because, even if that matters in new or remodeled legislative constructions, it will only be like this that we’ll be able to reach and to guarantee the real right to the dwelling.
Keywords: special use; dwelling; Brazilian federalism ;human person’s dignity.
Sumário: Introdução. 1. Terras públicas. 2. A concessão especial de uso – aspectos jurídicos, limites e possibilidades. 3. Dignidade da pessoa humana como princípio parametrizante do direito à regularização da moradia através da concessão especial de uso. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 consagra o Brasil como Estado Democrático de Direito (preâmbulo e artigo 1º), assegurando como um de seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana” (artigo 1º, III). Constituem, igualmente, objetivos fundamentais da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (artigo 3º, I) e “erradicar a pobreza e a marginalização” (artigo 3º, III).
Por sua vez, o Poder do Estado exerce-se por meio de três funções distintas e ao Poder Judiciário é atribuída preponderantemente a função de julgar, daí porque a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXV, dispõe como direito individual a apreciação pelo Judiciário de qualquer lesão ou ameaça de direito.
Sendo assim, este artigo tem por objetivo fazer uma abordagem sobre a concessão de uso especial para fins de moradia, como meio de regularizar posses de terras públicas, frente ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
1. TERRAS PÚBLICAS
A fragmentação do espaço urbano, o contínuo crescimento e adensamento da periferia e o aprofundamento da segregação e exclusão socioterritorial são as principais características do processo de urbanização brasileiro. Esse processo possui íntima relação com o mercado imobiliário formal e informal, cuja dinâmica privatiza a renda fundiária gerada coletivamente e ocasiona a formação de núcleos que não se articulam com a malha urbana existente, produzindo enormes áreas vazias no interior do espaço urbano. Em certos casos, a produção habitacional pelo poder público reproduz esse padrão segregativo e excludente de urbanização periférica, aprofundando as desigualdades socioterritoriais.
O Projeto de Lei 3.057/00, denominado Lei de Responsabilidade Territorial Urbana, disciplina a regularização do solo urbano. A proposta da nova Lei Federal de Parcelamento do Solo para Fins Urbanos e Regularização Fundiária de Áreas Urbanas Consolidadas tem como principal desafio propiciar às nossas cidades condições de urbanidade com ênfase na qualidade do espaço público. A nova lei concebida como a Lei de Responsabilidade Territorial irá contribuir para a consolidação das diretrizes da Política Nacional de Habitação, incorporando a dimensão de regularização dos assentamentos, bem como a ampliação da oferta de lotes populares pelo setor privado, por associações, cooperativas, parcerias públicas ou público-privadas. Para tanto ela engloba quatro objetivos básicos: consolidação da Ordem Urbanística a partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257/01; direito à moradia e função social da propriedade e da cidade (implementação dos princípios e instrumentos do Estatuto da Cidade, destacando o direito à moradia para a população de baixa renda); normas gerais para toda a cidade através da adoção de padrões básicos, únicos para todos, que garantam dignidade e urbanidade para os cidadãos; indução da produção habitacional em áreas urbanas consolidadas.
A pobreza e a desigualdade social foram duas correntes no Brasil e na América Latina durante todo o século XX e permanecem no cenário latino-americano durante este século XXI. Conforme relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre democracia na América Latina (2004), 42,9% da população na região é pobre, ou seja, 218 milhões de pessoas estão abaixo da linha da pobreza. Mais de um terço da população do subcontinente não consegue suprir suas necessidades básicas.[1]
No Brasil, 31,7% de sua população é classificada como pobre e a desigualdade de renda aumentou em 3.654 municípios na década de 90. Vive-se em uma perversa assimetria social em que os 10% mais ricos se apropriam de 46% do total da renda das famílias e os 50% mais pobres possuem cerca de 13%. Segundo dados do Relatório de Desenvolvimento Humano de 1999, a renda média dos 20% mais ricos representou mais de 30 vezes a renda média dos 20% mais pobres. A pobreza é hoje um fenômeno social visível e complexo.[2]
Muitas áreas são ditas como desapropriadas, mas sequer foram pagas as indenizações; outras não são discriminadas, discutindo-se a própria origem do título de dominialidade e falsificações de escrituras, entre outras. O certo é que, ao se rejeitar o interesse jurídico desses entes na demanda, poderão se ocasionados sérios riscos com danos irreparáveis à sociedade. Esse efeito nefasto é evidente, visto que, numa área onde a administração é detentora do domínio, terá o juiz que deferir a sua posse a terceiros, particulares – cuja ação tem natureza dúplice (artigo 922, CPC) –, que poderão, munidos de uma liminar ou sentença, alienar livremente tal “direito” e até, clandestinamente, fracioná-la, correndo-se o risco da proliferação de condomínios irregulares, disfarçados sob o manto da Justiça (artigo 42 e parágrafo 3º do CPC). Assim, a perdurar, consubstanciar-se-ão em prejuízos irreversíveis, resultando na prevalência da manutenção da situação de fato, mesmo manifestamente contrária à situação de direito.
2. A CONCESSÃO ESPECIAL DE USO – ASPECTOS JURÍDICOS, LIMITES E POSSIBILIDADES
A ocupação, geradora do direito de concessão especial de uso, poderá recair sobre bens dominicais do Poder Público, sobre os bens de uso comum do povo, sobre aqueles destinados ao projeto de urbanização, sobre os de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental, de proteção dos ecossistemas naturais, sobre os imóveis reservados à construção de represas, ou sobre vias de comunicação. Nessas hipóteses, é facultado ao Poder Público competente transferir o direito de concessão de uso para outra localidade (artigo 5º).
A concessão especial de uso para fins de moradia não existia no projeto anterior do Estatuto da Cidade e foi o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) que introduziu esse instrumento no projeto. Portanto, para quem acompanhou de perto é inquestionável a responsabilidade do Fórum Nacional de Reforma Urbana como ator da sociedade civil, na defesa da inclusão da concessão especial de uso para fins de moradia no texto do Estatuto da Cidade.
As diretrizes federais e os instrumentos jurídicos e urbanísticos constantes no Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/2001, configuram um avanço significativo no caminho para a reforma urbana. A preocupação com a função social da propriedade está expressa em todo o conteúdo do Estatuto, principalmente na regulação dos instrumentos de controle ou na submissão do exercício do direito à propriedade imobiliária urbana aos interesses coletivos da cidade.
Na verdade, a luta por uma lei federal que regulasse a questão da função social da propriedade imobiliária urbana vem do início da década de 80, com a proposta da então chamada Lei de Desenvolvimento Urbano (LDU).
O Estatuto da Cidade, além dos instrumentos acima comentados, contém uma série de diretrizes que deverão nortear todas as ações relativas à política urbana. Entre as mais importantes, pode ser da garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
A concessão de uso especial para fins de moradia, de acordo com Regis Fernandes de Oliveira[3], “é a única forma de garantir a posse e a permanência daqueles que estariam em condições de adquirir a propriedade desses bens, caso não fossem públicos”.
Para Hely Lopes Meirelles[4],
“Concessão de uso é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo sua destinação específica. Acrescenta que a concessão pode ser remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, mas deverá ser sempre precedida de autorização legal e, normalmente, de licitação para o contrato. Sua outorga não é nem discricionária nem precária, pois obedece a normas regulamentares e tem estabilidade relativa dos contratos administrativos, gerando direitos individuais e subjetivos para o concessionário, nos termos do ajuste.”
Porém, a autorização de uso “pode incidir sobre qualquer tipo de bem”[5], independe de autorização legislativa específica e de licitação e o prazo de uso é curto, “utilização episódica”.[6]
Quando se trata de concessão de uso especial para fins de moradia, a questão extrapola os limites da função jurisdicional e o juiz passa a exercer, também, a função administrativa. Em ambas as atuações, fica o juiz obrigado a observar os fundamentos da República Federativa do Brasil, principalmente a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal) e os objetivos fundamentais, como: a) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; b) a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; e c) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, mais conhecida como Estatuto da Cidade, estabelece as diretrizes básicas da política urbana, na forma do artigo 182 da Constituição Federal (a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes), dispondo no parágrafo 1º que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, acrescentando no parágrafo 2º que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Tem-se, atualmente, no Brasil, inúmeras ocupações decorrentes de invasões ou parcelamentos clandestinos e parte das quais nos próprios municípios, fazendo com que soluções sejam adotadas para inclusão desse segmento no mundo legal.
Não se trata de regulamentar direito de propriedade, mas de conceder uso especial e pode o Município, assim como o Estado, estabelecer outras hipóteses de incidência e prazos diversos, prevalecendo aquele federal em caso de omissão.[7]
O artigo 48 do Estatuto da Cidade[8] assim dispõe:
“Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública, com atuação específica nessa área, os contratos de concessão de direito real de uso de imóveis públicos: I – terão, para todos os fins de direito, caráter de escritura pública, não se aplicando o disposto no inciso II do art. 134 do Código Civil; II – constituirão título de aceitação obrigatória em garantia de contratos de financiamentos habitacionais.”
Segundo o artigo 183, § 1º da Constituição Federal, aquele que tiver possuído por cinco anos ininterruptos, e sem oposição, área de até 250 m2 de imóvel público[9] situado em área urbana, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, tem direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, por via judicial ou administrativa (e registro no álbum imobiliário), desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. O direito é concedido, gratuitamente (artigo 1º, § 1º da MP 2220/01[10]), ao homem ou à mulher ou a ambos, uma única vez ao mesmo concessionário, assim como o filho que reside no imóvel tem preferência sobre os demais herdeiros, em verdadeiro caso de sucessão anômala (artigo 1º, §§ da MP 2220/01). Trata-se de direito que admite a forma coletiva (artigo 2º da MP 2220/01), sendo que a fração ideal de cada possuidor não poderá ser superior a 250 m2. Os ocupantes regularmente inscritos em imóveis públicos, que preencham os requisitos da MP, artigos 1º e 2º, poderão optar pelo regime da concessão especial (artigo 3º), assim como o Poder Público, em caso de risco à vida e à saúde dos ocupantes, pode garantir o direito em outro local (artigo 4º); a mesma coisa pode ser feita no caso de a área situar-se em imóvel de uso comum do povo, destinado a projeto de urbanização, de interesse da defesa nacional, preservação ambiental e de ecossistemas, reservado à construção de represas, ou situado em via de comunicação (artigo 5º). O referido direito pode extinguir-se, cancelando o registro, se o concessionário der destinação diversa da moradia ao imóvel ou se adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural (artigo 8º).
O artigo 9º da MP também faculta ao Poder Público a autorização de uso para fins comerciais, nas mesmas condições da concessão de uso para fins de moradia, mutatis mutandis.
A concessão de uso especial para fins de moradia, unipessoal ou coletiva, depende de registro, a teor do artigo 167, inciso I, n. 37, combinado com o artigo 6º, § 4º da MP 2220/01, muito embora o registro seja, no caso, para mera publicidade. Na aquisição derivada, se houver transferência (artigo 7º da MP 2220/01), aí sim será constitutivo. A outorga para fim comercial também é registrável, e, como a outra, mediante arquivamento da planta e de todos os documentos fornecidos pelo Poder Público municipal (MP 2220/01, artigo 6º, § 2º).
O procedimento administrativo deve encerrar-se em 12 meses, contados da protocolização junto à Administração Pública (MP, artigo 6º, §1º), e a via judicial deve ser buscada excepcionalmente, ou seja, se for negado ou protelado, sem justificativa, o pedido administrativo.
Dessa forma, a Constituição Federal reafirma o conceito de função social do solo urbano através do Imposto Territorial Progressivo em áreas incluídas no Plano Diretor dos Municípios. Esse instrumento deve ser aplicado nos terrenos vazios ou subutilizados, que se localizam em áreas onde é possível aumentar seu adensamento, servidas de infra-estrutura, implementadas com recursos públicos para atender à população e não para garantir uma valorização particular.
Nessas áreas, todos os lotes subutilizados ou vazios terão um prazo de dois anos para que sejam ocupados ou loteados. É o que se chama de loteamento compulsório. Decorrido esse prazo, deve-se aplicar o imposto territorial predial, que aumenta progressivamente durante cinco anos, até chegar ao valor de 125% do valor venal da propriedade. E como última medida, o poder público pode expropriar, pagando a terra em títulos de renda pública. O objetivo é evitar a utilização da terra como reserva de valor e provocar seu uso pelo proprietário, ou sua venda.
Os bens públicos podem ser utilizados pela pessoa jurídica de Direito Público a que pertencem, independentemente da sua classificação (bens de uso comum, de uso especial ou dominial). As questões que mais importam são a utilização do bem público por pessoa diversa do titular; e a forma de alienar. A doutrina e legislação espanhola, por exemplo, não difere dessa posição.[11]
No dia 31 de maio de 2007, foi promulgada a Lei 11.481 que, dentre outras medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da união, incluiu o artigo 22-A na Lei n. 9.636, de 15 de maio de 1998, que, em suma, dispõe sobre a regularização, a administração, o aforamento e a alienação de bens imóveis de domínio da União, para assim preconizar:
“Art. 22-A. A concessão de uso especial para fins de moradia aplica-se às áreas de propriedade da União, inclusive aos terrenos de marinha e acrescidos, e será conferida aos possuidores ou ocupantes que preencham os requisitos legais estabelecidos na Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001.
§ 1o O direito de que trata o caput deste artigo não se aplica a imóveis funcionais.
§ 2o Os imóveis sob administração do Ministério da Defesa ou dos Comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica são considerados de interesse da defesa nacional para efeito do disposto no inciso III do caput do art. 5o da Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001, sem prejuízo do estabelecido no § 1o deste artigo.”
Destarte, as opções de institutos jurídicos passíveis de aplicação em terrenos de marinha e acrescidos, limitada, até então, ao aforamento, conforme o art. 4º do Decreto-Lei n. 3.438, de 17 de julho de 1941, passaram a permitir, com os regramentos supracitados, a aplicação da Concessão de Direito Real de Uso e a Concessão Especial de Uso para Fins de Moradia nos terrenos de marinha.
Carvalho Filho[12] afirma que “o Poder Público sempre deve preferir a adoção das formas regidas pelo direito público, tendo em vista que, em última análise, o uso incide sobre bens do domínio público”; no entanto, nos faz recordar que existem formas de Direito Privado utilizáveis pelos entes públicos titulares dos bens para transferir a posse direta, sem alterar a propriedade.
Hely Lopes Meirelles[13] conceitua esses instrumentos da seguinte maneira:
“Autorização de uso – é o ato unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem público. […] Permissão de uso – é o ato negocial, unilateral, discricionário e precário através do qual a Administração faculta ao particular a utilização individual de determinado bem público. Cessão de uso – é a transferência gratuita da posse de um bem público de uma entidade ou órgão para outro, a fim de que o cessionário o utilize nas condições estabelecidas no respectivo termo, por tempo certo ou indeterminado. […] Concessão de uso – é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo sua destinação específica. […] Concessão de direito real de uso – é o contrato pelo qual a Administração transfere o uso remunerado ou gratuito de terreno público a particular, como direito real resolúvel, para que dele se utilize em fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo ou qualquer outra exploração de interesse social.”
A concessão de uso e de direito real de uso não são instrumentos precários; conferem direitos estáveis, perenes, que permitem a revogação por interesse público, ficando resguardado o direito à indenização do edificado. Diga-se que os dois institutos existem com características diversas.
Para José Rubens Costa[14], entre os direitos coletivos, vem o direito à propriedade (artigo 5º, caput) ou o direito ao acesso ao domínio, inserido em posição limitativa do próprio direito de propriedade (artigo 5º, XXII), este condicionado, ainda, pela função social (artigo 5º, XXIII). É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promoverem programas de construção de moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (artigo 24, IX).
Dessa forma, a conquista do Estatuto da Cidade culmina uma longa história de luta dos movimentos sociais brasileiros e coincide com os veementes questionamentos sobre o modo de vida urbano e as discussões abordando os limites e o esgotamento da cidade e da metrópole. Temas ligados à ingoverrnabilidade, à pobreza urbana, ao narcotráfico, às milícias paralelas são recorrentes, estão presentes na mídia e permeiam a opinião pública exigindo continuados exercícios, inclusive, do acadêmico em busca de explicações e possíveis saídas. Constata-se uma redução acentuada do crescimento demográfico das metrópoles brasileiras, com registro, inclusive, de caso de refluxo migratório para outros municípios das regiões metropolitanas. Em direção contrária, verifica-se o crescimento de cidades médias e afirmação, incontinente, do modo de vida urbano.
3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO PARAMETRIZANTE DO DIREITO À REGULARIZAÇÃO DA MORADIA ATRAVÉS DA CONCESSÃO ESPECIAL DE USO
Segundo Miguel Reale[15], constata-se a existência de, basicamente, três concepções da dignidade da pessoa humana: individualismo, transpersonalismo e personalismo.
Caracteriza-se o individualismo pelo entendimento de que cada homem, cuidando dos seus interesses, protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos. Seu ponto de partida é, portanto, o indivíduo.
Tal juízo da dignidade da pessoa humana, por demais limitado, característico do liberalismo ou do “individualismo-burguês”[16] – “dista de ser una respetable reliquia de la arqueologia cultural”[17] -, compreende um modo de entender-se os direitos fundamentais.
Esses são, antes de tudo, direitos inatos e anteriores ao Estado, e impostos como limites à atividade estatal que deve se abster, o quanto possível, de se intrometer na vida social. São direitos contra o Estado, como esferas de autonomia a preservar da intervenção do Estado. Por isso, são denominados direitos de autonomia e direitos de defesa.[18]
Já com o transpersonalismo, tem-se o contrário: é realizando o bem coletivo, o bem do todo, que se salvaguardam os interesses individuais; inexistindo harmonia espontânea entre o bem do indivíduo e o bem do todo, devem preponderar, sempre, os valores coletivos. Nega-se, portanto, a pessoa humana como valor supremo[19]. Enfim, a dignidade da pessoa humana realiza-se no coletivo.
A terceira corrente, que se denomina personalismo, rejeita tanto a concepção individualista, quanto a coletivista; nega a existência da harmonia espontânea entre indivíduo e sociedade, resultando numa preponderância do indivíduo sobre a sociedade: a subordinação daquele aos interesses da coletividade.
O princípio da dignidade da pessoa humana está localizado no artigo 1º, III da Constituição Federal, como um dos fundamentos do Estado, isto é, inerente à estrutura do Estado, que assim celebra:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana”.
Nesse sentido, defende-se que a pessoa humana, enquanto valor, e o princípio correspondente, de que aqui se trata, é absoluto e há de prevalecer, sempre, sobre qualquer outro valor ou princípio.[20]
Na ótica de Ingo Sarlet[21], a “dignidade é o valor de uma tal disposição de espírito, e está infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade”.
Apesar de continuar, a grande parte da doutrina jurídica, utilizando-se como bases de fundamentação e de conceituação o pensamento kantiano, diante da evolução social, econômica e jurídica de tal utilização, para alguns doutrinadores, deve ser feita com reservas ou deve ser ajustada a essa evolução, visto que seu pensamento (no dizer de alguns estudiosos) apresenta um excessivo antropocentrismo, naquilo em que sustenta que a pessoa ocupa, em razão da sua racionalidade, lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos.
A dupla função defensiva e prestacional da dignidade da pessoa humana refere-se tanto aos direitos de defesa, quanto às prestações fáticas ou jurídicas que correspondem às exigências e constituem concretizações da dignidade da pessoa humana; assim, são estipuladas, simultaneamente, obrigações de respeito e de consideração, além de deveres em face da sua promoção e proteção.
Por apresentar, cada sociedade civilizada, padrões e convenções próprios a respeito do que constitui a dignidade, haveria conflitos caso houvesse a estipulação de um conceito de dignidade como universal, ainda que isso fosse possível. Assim, por mostrar-se mais coeso e completo, utiliza-se o conceito apresentado por Ingo Sarlet[22] sobre a dignidade da pessoa humana, a saber:
“É a qualidade intrínseca e distintiva da cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, alem de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
Para Flademir Jerônimo Belinati Martins[23], o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto valor fonte do sistema constitucional, condiciona a interpretação e aplicação de todo o texto, conferindo unidade axiológico-normativa aos diversos dispositivos constitucionais que, muitas vezes, se encontram sem relação aparente e até mesmo em franca contradição.
Portanto, o princípio da dignidade, como tarefa, impõe como obrigação do Estado a função de promover as condições que viabilizem e removam toda a sorte de obstáculos que estejam impedindo pessoas de viverem com dignidade; assim, impõe a promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos.
Nesse sentido, verifica-se que nos países pobres, onde há desemprego, miséria, falta de escola e de educação, multiplicidade de raças, o problema se agrava e se cronifica e, diante da crise de habitação, todos são obrigados a conviver com o triste espetáculo do crescimento de habitações populares desprovidas de recursos mínimos para o exercício de uma vida digna. O problema social atinge tamanha dimensão que o Poder Público assume não o papel de mera tolerância, mas vai além e, para aliviar a situação do favelado, estende alguns benefícios de saneamento básico a essas comunidades.
A ausência de políticas e condições financeiras e institucionais que ampliem a oferta de novas oportunidades habitacionais não apenas tornam ineficazes as políticas de regularização e urbanização, como estimulam a ocupação de terras e a oferta de lotes irregulares, pois a precariedade e a irregularidade continuarão a crescer, contando com a futura regularização/urbanização por parte do poder público. Os custos dessas soluções tendem a ser crescentes, com soluções de baixa qualidade ambiental e habitacional, gerando, inclusive, “ondas” de urbanização que se aplicam sobre os mesmos assentamentos.
O crescimento das favelas e dos loteamentos irregulares demonstra claramente que a produção informal de moradias precárias em assentamentos ilegais tem sido a forma hegemônica de “solução” adotada pela própria população nas faixas de mais baixa renda e revela o baixo alcance das políticas públicas implementadas ao longo de décadas em que o déficit vem se avolumando.
Além das adequações para viabilizar a integração urbana dos assentamentos precários com as áreas já consolidadas da cidade, é imprescindível a articulação entre a questão urbana e habitacional com aqueles ligados à área social, notadamente no que se refere ao desenvolvimento de melhores condições socioeconômicas das famílias envolvidas e, de modo especial, às ações associadas ao desenvolvimento comunitário, especialmente relacionadas às etapas de pós-ocupação das áreas que receberam intervenções de urbanização.
Coerente com a Constituição Federal, que considera a habitação um direito do cidadão, com o Estatuto da Cidade, que estabelece a função social da propriedade, e com as diretrizes do atual governo, que preconiza a inclusão social, a gestão participativa e democrática e a Política Nacional de Habitação visam promover as condições de acesso à moradia digna a todos os segmentos da população, especialmente aos de baixa renda, contribuindo, assim, para a inclusão social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O compromisso cidadão, na interpretação e análise da cidade como local de direito conquistado a partir de experiências múltiplas, faz do Estatuto da Cidade instrumento privilegiado para discussão e lançamento de propostas sobre a melhoria das condições de vida nas cidades.
Nesse sentido, a função social da cidade deve abarcar também os vazios urbanos e as terras ocupadas, de propriedades públicas, oferecendo instrumentos de acesso a essas terras para moradia popular. É necessário garantir o apoio técnico e jurídico, para alcançar a regularização, mediante a atuação de equipes técnicas subvencionadas pelo Estado. É importante abordar o tema do acesso à terra pública para moradia popular.
Quando da elaboração do Estatuto da Cidade, em reunião com o Governo Federal, o Fórum Nacional de Reforma Urbana manteve a sua posição de defesa, no sentido de a concessão especial de uso para fins de moradia ser mantida no texto da Lei do Estatuto da Cidade. Por parte do Governo foi defendida a proposta de veto ao texto aprovado no Congresso Nacional, havendo o envio de uma medida provisória, visando restringir a extensão desse direito para as áreas públicas ocupadas até a edição do Estatuto da Cidade, bem como disciplinar, de forma diferenciada, a aplicação da concessão de uso para as áreas públicas da categoria dos bens de uso comum e da categoria dos bens dominiais.
Apesar do veto, sobre a forma como foi regulamentada a concessão especial de uso para fins de moradia no Estatuto da Cidade, o Governo se posicionou pela adoção da concessão especial de uso para fins de moradia como forma de reconhecer legalmente, através do Estatuto da Cidade, como direito subjetivo o direito à moradia de quem estivesse na posse de uma área urbana pública, atendendo aos mesmos requisitos da usucapião urbana.
Defendeu-se, portanto, após a aprovação da Medida Provisória 2220/01, a constitucionalidade da concessão especial de uso para fins de moradia, com fundamento na efetiva garantia do direito à moradia, reconhecido no artigo 6° da Constituição Federal, do objetivo fundamental do Estado Brasileiro de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como da competência constitucional da União de regulamentar, através da lei federal de desenvolvimento urbano, a concessão de uso para fins de moradia prevista no artigo 183.
É preciso reconhecer às famílias pobres que ocupam um imóvel público, para fins de moradia, o direito de permanecer, criando um regime diferenciado ao estabelecido pela legislação para a disponibilização desse patrimônio.
Dessa forma, cabe ao Poder Público impedir a construção irregular e em local inadequado, muitas vezes perigoso, de casas; porém, concluída a obra, deverá regularizar a situação ou, não sendo possível por questões ambientais, urbanas, de saúde, as quais devem ser avaliadas, deve viabilizar a concessão de moradia a essas famílias, implementando e incrementando políticas habitacionais, prestações de natureza material que lhes assegurem o mínimo existencial.
Se o Estado pretende impor-se nas comunidades pobres, carentes da atuação do Poder Estatal em múltiplos aspectos, deve, por meio de seus agentes, respeitar a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, à qual foi atribuído pela Constituição o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática. O valor da dignidade da pessoa humana, sendo um fim e não um meio para o ordenamento constitucional, não se sujeita a ponderações.
Informações Sobre os Autores
Ricardo Hermany
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado – da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, e Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos com estágio de doutoramento pela Universidade de Lisboa. Coordenador do subgrupo de estudos Políticas Públicas e Gestão Local, do grupo Estado, Administração Pública e Sociedade (CNPq).
Danielle Soncini Bonella
Advogada, professora universitária, especialista em Processo Civil, especialista em Direito Municipal, mestre em Direito e doutoranda em Direito Público.
Diogo Frantz
Bacharel em Direito pela UNISC, Linha de Pesquisa Gestão Local e Políticas Públicas, coordenado pelo Profº Drº Ricardo Hermany do Programa de Pós Graduação em Direito/Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC – Santa Cruz do Sul – RS