Introdução
A cédula de crédito (industrial, comercial ou de exportação), é um instrumento contratual largamente empregado nas relações bancárias, tanto pela praticidade quanto, e principalmente, pela intensiva carga de garantia que dá à instituição financeira.
Criada pelo Decreto-Lei 167/67, a Cédula de Crédito Rural inaugurou a espécie desses instrumentos que Fábio Ulhoa Coelho (Manual de Direito Comercial, 9ª ed, Saraiva, São Paulo, 1997, p.279) classifica de títulos de crédito impróprios, na modalidade de financiamento. A seguir veio a Cédula de Crédito Industrial (Decreto-Lei 413/69), a Cédula de Crédito à Exportação (Lei 6.313/75) e a Cédula de Crédito Comercial (Lei 6.840/80). Em 1966 já havia a Cédula Hipotecária (Decreto-Lei 70/66), destinada ao financiamento da casa própria, mas pela conformação diversa não será aqui analisada.
Junto com as cédulas de crédito vieram as notas de crédito, cuja diferença fica na qualidade da garantia: estas não contam com garantia real, como ocorre com as cédulas. Por isto não serão analisadas, sem prejuízo de a elas serem aplicáveis os preceitos das cédulas, no que couber.
As denominações são auto-explicáveis no tocante à finalidade. Destinam-se a fomentar, através de concessão de créditos, a atividade no meio rural, na indústria, no comércio e nos segmentos de exportação.
Estes diplomas legais são semelhantes no formato: a cédula de crédito rural e a industrial tiveram textos autênticos; as de crédito comercial e à exportação foram instituídas por leis que meramente modificam a denominação e, no mais, reportam-se ao Decreto-Lei 413/69, da cédula de crédito industrial, que é a fonte subsidiária direta. Por isto há basicamente duas normas em debate: as referentes às cédulas rural e industrial, que são extremamente parecidas.
Desde logo é de se determinar que o foco deste estudo estará na cédula industrial, já que a rural tem algumas diferenças que refogem ao alcance da tese sustentada. É o caso, por exemplo, do artigo 41 do Decreto-Lei 167/67, que se reporta expressamente à ação executiva – hoje, processo de execução – o que a diferencia das demais.
Assim, quando se estiver falando em cédula está-se querendo dizer cédula de crédito industrial, com interpretação extensiva à comercial e à de exportação.
A pretensão aqui é sustentar que tem havido uma equivocada aplicação processual à cobrança da cédula de crédito. Tem sido comum, e há tempo, o ajuizamento de processo de execução com base nesta cártula, quando em verdade isto não é possível.
A cédula de crédito não pode ser levada à execução por carecer de alguns dos pressupostos elementares, do que decorre a sua inexeqüibilidade. São cinco requisitos materiais e um formal, dos quais apenas três – dos materiais – estão essencialmente presentes. A ausência de dois dos requisitos materiais e do requisito formal não dão à cédula a necessária condição de exeqüibilidade.
É o que se passa a demonstrar.
A exeqüibilidade
A questão se põe em torno da exeqüibilidade da cédula de crédito industrial. O termo é a exeqüibilidade (do latim exsequibile – “seguir até o fim”), no sentido de “qualidade daquilo que pode ser executado”, porque o punctum saliens está justamente na possibilidade de que esta espécie de título seja admitida no processo de execução.
O que se pretende é responder à pergunta: a cédula de crédito industrial pode ser executada consoante o Livro II do Código de Processo Civil?
Diz o artigo 566, inciso I, do Código de Processo Civil, que pode promover a execução forçada “o credor a quem a lei confere título executivo”. No artigo 583 o texto dispõe: “Toda execução tem por base título executivo, judicial ou extrajudicial”.
Da conjugação destes dois dispositivos tem-se que o processo de execução pressupõe um título executivo, judicial ou extrajudicial, e que tal título assim será segundo previsão legal; a lei é que designará quais são os títulos executivos.
Na seqüência – artigos 584 e 585 – a lei enumera os títulos judiciais e os extrajudiciais. Estes interessam à discussão. Cabem aqui os incisos II e VII do artigo 585, o primeiro sobre instrumentos particulares e o último acerca de previsões legais expressas. A executividade do título se caracteriza exatamente pela sua classificação legal como executivo, judicial ou extrajudicial.
O artigo 586, por sua vez, preceitua que “a execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título líquido, certo e exigível”.
Tem-se, assim, que é requisito da execução o título judicial ou extrajudicial executivo, líquido, certo e exigível. A reunião destes atributos (liquidez, certeza e exigibilidade) somada ao pressuposto da executividade do título, é que caracteriza materialmente a sua exeqüibilidade.
Em síntese, são cinco os requisitos materiais para que se aperfeiçoe a exeqüibilidade: 1) a existência de um título; 2) a liquidez; 3) a certeza; 4) a exigibilidade; 5) a executividade.
São requisitos materiais, pois ligados ao direito perseguido (obrigação). O requisito processual principal, dentre outros acessórios que não vêm ao caso, é a adequação procedimental. Não se pode pretender a execução de uma certidão de dívida ativa pelo rito das execuções comuns, nem a de uma duplicata pela execução de alimentos, nem a de um contrato de locação pela execução fiscal. A cada direito corresponde uma ação, e a cada ação um rito próprio.
A inexeqüibilidade da cédula de crédito
Dito isto, cabe perquirir a respeito da exeqüibilidade (condição de título, liquidez, certeza, exigibilidade, executividade e adequação procedimental) da cédula de crédito.
Demonstrar-se-á que a cédula de crédito não atende a dois dos cinco requisitos materiais da exeqüibilidade, e nem ao requisito formal da adequação da via.
Primeiro requisito: título
O que vem a ser um título? Qualquer documento? Não, é certo que não. Derivado do latim titulus, esta expressão assumiu principalmente o significado de sinal, mostra, nome, rótulo. Seria simplesmente a demonstração de algo. Juridicamente, o título se refere à demonstração de um direito ou mesmo ao fundamento do próprio direito. Ou seja: tanto pode ser o fundamento do direito quanto a prova deste fundamento.
Ocorre que, por razões práticas, inviável é conceber juridicamente um título que não possa ser demonstrado, e esta demonstração se dá por via documental; daí que em regra o fundamento do direito e sua representação andam juntos: o título será o fundamento de direito consubstanciado em documento. E o título é requisito fundamental para a execução. Esta não será possível sem um instrumento que efetivamente comprove o direito pleiteado. Nulla executio sine titulo.
A cédula de crédito industrial é título, e disto não há dúvida, vez que surgiu para representar cedularmente um financiamento. A cédula pressupõe documento, que representa a obrigação e portanto é, mesmo, título.
Segundo requisito: título executivo
Dada a significação de título, impõe analisar o que seja título executivo. Como a questão gira em torno do processo de execução regulado pelo Código de Processo Civil em seu Livro II, é nesta norma que se buscará a delimitação do tema.
Segundo já demonstrado, os artigos 584 e 585 ditam as espécies possíveis de títulos executivos, judiciais ou extrajudiciais. Para além das enumerações daqueles dispositivos, há uma brecha no inciso VII do artigo 585, quando rotula como executivo o título “a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva”. Então são executivos os títulos expressamente enumerados nos artigos 584 e 585 e os expressamente assim declarados por lei extravagante.
A executividade será verificada, então, nos dispositivos do Código de Processo Civil. Sendo título extrajudicial, deverá figurar no artigo 585. Dentre as hipóteses deste artigo, duas são as que, em tese, poderiam se conformar à cédula de crédito. A primeira está em parte do inciso II, que trata de documento particular assinado pelo devedor mais duas testemunhas. A segunda fica no inciso VII, compreendida na disposição genérica sobre os títulos executivos extravagantes (aqueles que não constam no rol mas em leis esparsas que assim os definam).
Delimitada a busca no texto legal, passa-se à leitura dessas duas hipóteses do artigo 585 do Código de Processo Civil:
“Art. 585 – São títulos executivos extrajudiciais: (…)
II – (…); o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas; (…); (…)
VII – todos os demais títulos, a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva.”
É “documento particular” a cédula de crédito? Sim, já que se trata de escrito representando ato celebrado entre particulares, sem intervenção do Poder Público. Então desde que “assinado pelo devedor e por duas testemunhas”, a cédula de crédito seria, sim, título executivo, por previsão do inciso II do artigo 585 do Código de Processo Civil.
Ocorre que a cédula de crédito, em razão da conta-corrente a ela vinculada, não é auto-suficiente; depende sempre da apuração do que foi pago, do que não foi retirado pelo cliente, dos encargos acrescidos pelo banco, et coetera, e esta apuração invariavelmente se realiza mediante extratos emitidos unilateralmente pela instituição financeira.
Ora, tais extratos é que, em verdade, constituem os documentos levados à execução, em complemento indissociável da cédula. E estes documentos não estão assinados pelo devedor e muito menos por duas testemunhas. Obviamente que qualquer alteração ao título só pode ser bilateral, pois do contrário nenhuma eficácia terá contra aquele que não participou da alteração. E a cédula de crédito, repita-se, só está completa quando acompanhada do demonstrativo da conta-corrente, pois é esta a única forma de se verificar o quanto foi recebido, pago e cobrado, tanto do principal quanto dos acessórios. Pois bem. A cédula, sozinha, não tem o condão de representar o valor real do débito. Se acompanhada da conta-corrente, só terá eficácia se este documento complementar estiver assinado pelo devedor e por testemunhas. Como isto nunca acontece (pelo menos não tenho notícia), a cédula de crédito, ainda que acompanhada dos extratos, jamais terá o status de executividade. Daí não se enquadrar no disposto pelo artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil.
Quanto ao inciso VII, este permite a mesma inferência quando classifica de executivos “todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva”. Não se aplica ao caso da cédula de crédito simplesmente porque o Decreto-Lei 413/69 em nenhuma passagem dispõe expressamente que a cédula de crédito industrial tem força executiva.
O que se lê no artigo 10 é sobre a liquidez, certeza e exigibilidade, mas não sobre a executividade do título. O artigo prevê – impropriamente, diga-se – que o título é líquido, certo e exigível, mas não diz em momento algum que é executivo ou que tem força executiva. E o artigo 41 confirma a falta de força executiva quando prescreve um procedimento especial de conhecimento – inclusive com instrução – para a cobrança da cédula.
Vê-se, então, que a cédula de crédito industrial não pode ser admitida como título executivo porque não está enunciada pelo artigo 585 do Código de Processo Civil. Independentemente de ser título extrajudicial líquido, certo e exigível, não é executivo.
Enfim, não se subsumindo a nenhuma das hipóteses do artigo 585 do CPC, a cédula de crédito está despida deste requisito; não é título executivo.
Embora se tenha já aqui neste segundo crivo a ausência de um requisito elementar, é propósito nosso prosseguir na análise dos demais requisitos. O título executivo, por si, não basta à execução. É pressuposto da execução que o título executivo seja provido de liquidez, certeza e exigibilidade.
Esta condição é essencial, já que o artigo 618, I, do CPC, diz ser nula a execução “se o título executivo não for líquido, certo e exigível”. O artigo 10 do Decreto-Lei 413/69 não é suficiente para declarar esta condição. Ora, estes atributos são situações eminentemente de fato. Humberto Theodoro Júnior (O Contrato de Abertura de Crédito… em Processo de Execução e Assuntos Afins, coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, 1ªed, RT, SP, 1998, p.272) leciona que “o título executivo não é apenas o documento que contenha a respectiva denominação e alguns requisitos formais estabelecidos em lei”. E conclui: “Só tem o poder de autorizar a execução forçada quando seja, de fato, título certo, líquido e exigível”. (grifo nosso)
Cada situação deve ser analisada in concreto. Como pode a lei dizer, v.g, que é exigível um título se, de fato, não ocorreu o seu termo? Prossigamos com os demais requisitos.
Terceiro requisito: liquidez
A liquidez do título se configura quando é determinada a sua importância, o seu valor. O Código Civil não distingue certeza e liquidez quando se refere às obrigações em geral no artigo 1.533: “Considera-se líquida a obrigação certa, quanto à sua existência, e determinada, quanto ao seu objeto.”
Mas em se tratando de título executivo a liquidez há de ser entendida especificamente como a qualidade da obrigação cujo objeto independe de apuração ou verificação de adimplemento, tendo valor determinado. Anota Araken de Assis (Manual do Processo de Execução, 5ªed, RT, 1998, p.125) que “a liquidez importa expressa determinação do objeto” e quanto aos títulos extrajudiciais será a “simples determinabilidade do valor (quantum debeatur) mediante cálculos aritméticos”.
Quanto à cédula de crédito industrial o valor a ser exigido é de ser apurado pela liqüidação da conta, com acréscimo dos encargos devidos ao banco e abatimento dos valores restituídos ou não retirados pelo cliente.
Melhor explicitando: a cédula de crédito está indissociavelmente ligada ao sistema de conta-corrente, porque, diferentemente de outros títulos, não tem o caráter da literalidade. O princípio da literalidade é aquele pelo qual só são eficazes os atos jurídicos representados na própria cártula. Um cheque, por exemplo, vale pelo que nele constar; nada além poderá alterar a força do título. Mas a cédula de crédito não atende a este princípio, por uma simples razão: carrega no seu bojo um financiamento.
Sendo um financiamento, a relação necessariamente cai no sistema de conta-corrente, pois o financiamento pressupõe concessão de crédito, e esta, é cediço, se opera e se resolve gradativamente pelas partidas de débito e crédito que as partes fazem. Recebimento, pagamento, encargos, tudo é lançado numa conta-corrente. É assim que funciona o financiamento, e disto não pode fugir a cédula de crédito.
Está claro, então, o porquê de a cédula de crédito não respeitar a literalidade: o valor nela grafado é apenas, e apenas, o ponto de partida – o débito definitivo só será conhecido na finalização da conta. Daí, não sendo literal, a cédula é título que sempre depende de prévia liqüidação – momento em que as partes encerram a conta e apuram o resultado.
Vamos repetir: o valor exigível, na cédula, é aquele resultante da liqüidação. Então, não será líquida a obrigação, pois não se poderia levar à liqüidação o que já fosse líquido.
Este é o ponto: não vai à liqüidação o que já é líquido. Esta iliquidez está na essência da cédula de crédito.
Vejamos a razão disto analisando a sua natureza jurídica.
A cédula de crédito é representativa de um contrato, como qualquer título. Neste caso, é uma espécie do gênero contrato de crédito em conta-corrente, semelhante à abertura de crédito com algumas distinções que adiante serão apontadas. A família contratual se inicia com o contrato de depósito, para chegar – sem classificação exaustiva – ao financiamento representado por cédula de crédito.
O contrato de depósito, na lição de Fran Martins (Contratos e Obrigações Comerciais, Forense, 13ªed, Rio, 1995, p.433) é “a operação bancária segundo a qual uma pessoa entrega ao banco determinada importância em dinheiro, ficando o mesmo com a obrigação de devolvê-la no prazo e nas condições convencionadas”.
Consoante a lição do comercialista, este tipo de contrato se denomina depósito em conta-corrente quando o depositante tem liberdade para tomar de volta o valor depositado a qualquer momento, integral ou parceladamente. Poderá ser ainda contrato de abertura de crédito em conta-corrente, cuja diferença está na origem do valor depositado: é o próprio banco depositário que empresta ao depositante o valor inicial (crédito). O depositante então movimenta a conta da forma que lhe convier mas deve restituir o valor creditado, com os encargos contratuais, ao fim do prazo convencionado.
Já a cédula de crédito industrial é o instrumento através do qual a instituição financeira concede o financiamento regulado pelo Decreto-Lei 413/69.
Tal financiamento, por sua vez, também é uma espécie de contrato de abertura de crédito, em que o banco deixa o valor financiado à disposição do devedor numa conta-corrente (artigo 4º), para que seja sacado segundo a previsão contratual.
Inobstante existam diferenças (disponibilidade de retirada, finalidade do crédito, etc), há certa semelhança entre os institutos, vez que em ambos os casos o banco é depositário de um valor que fica à disposição do depositante. De todo modo, a natureza é a mesma.
E a característica da conta-corrente como essencial não se altera, pelo contrário, se reafirma no caso da cédula de crédito, quando, no parágrafo primeiro do artigo 10 do Decreto-Lei 413/69 a norma manda que se desconte da dívida qualquer parcela paga ou não sacada, “tornando-se exigível apenas o saldo”.
É um comando congruente com a espécie contratual em questão. Isto porque as obrigações dos contratantes são estabelecidas e solvidas a partir de uma conta-corrente, cuja exigibilidade, na lição de Fran Martins (op.cit., p.406), “só se verifica no encerramento final”, momento de verificação do saldo e da extinção do contrato.
Então o limite da exigibilidade há mesmo de se cingir ao saldo final da conta-corrente. É da natureza desta espécie de contrato que a obrigação seja exigível a partir da apuração do saldo.
Assim, como a lei (Decreto-Lei 413/69) define a exigibilidade pelo saldo, e em face da própria característica desta espécie contratual, só mesmo a partir de um encerramento de conta-corrente é que se poderá ter um título completo, pleno, pronto para receber a presunção legal de título hábil à execução.
Por isto, não se pode negar que a cédula de crédito nenhuma força executiva terá se desacompanhada do respectivo demonstrativo, na sua completitude.
Assim, se já é por si e essencialmente ilíquida, a cédula de crédito só poderia ganhar liquidez se acompanhada de um demonstrativo fiel, nos exatos moldes da necessidade de compreensão. Não se trata aqui do mesmo demonstrativo necessário a instruir uma execução. Aquele corresponde à atualização da dívida liqüidada; este, à própria liqüidação.
É preciso atentar para o enfoque do demonstrativo neste tópico. Quando pugnamos pela indispensabilidade do demonstrativo (conta-corrente) para a executividade, estamos nos referindo à necessidade de que o título esteja completo e assinado pelo devedor e testemunhas, porque para a executividade o título só se aperfeiçoa com esta condição. Já no caso da liquidez, não importam as assinaturas, porque a liquidez nada tem a ver com aquela regra de garantia da bilateralidade.
De qualquer forma, vê-se, a falta do demonstrativo tanto contribui para a iliquidez quanto fulmina a executividade.
Por tudo isto, a cédula de crédito, em essência, é ilíquida.
Quarto requisito: certeza
Certeza, nos dizeres da doutrina, é a condição de existência incontestável, como nas palavras do jurista Leib Soibelman: “dívida de cuja existência não se duvida” (Enciclopédia do Advogado, 2ªed, Editora Rio, Rio, 1979, p.134).
Haverá certeza enquanto restar incontroversa a origem e a existência do título. Esta se confirma pela autenticidade do documento, e aquela pela regularidade formal, quando atendidas as exigências legais peculiares à formação do título.
Em relação à cédula de crédito industrial, basta que sejam atendidas as formalidades exigidas para a emissão do título, consoante o artigo 14 do Decreto-Lei 413/69 (elementos extrínsecos), e que não haja desvio de finalidade na aplicação dos recursos (elemento intrínseco).
Presentes tais conformidades, a cédula de crédito será, de fato, um título certo.
Quinto requisito: exigibilidade
Exigível é a obrigação atual, que não depende de que se realize condição ou ocorra termo.
A verificação do implemento do termo não requer prova, já que é fato natural. A realização da condição, ao contrário, deve ser provada. O atendimento a tais requisitos é condição sine qua non para que a obrigação seja exigível, segundo o artigo 572 do Código de Processo Civil.
No caso da cédula de crédito, desde que vencido o prazo final para a devolução do valor financiado e não quitada a dívida, será exigível a obrigação e, com isto, o título.
Resumo dos requisitos materiais
O processualista italiano Francesco Carnelutti (Istituciones del Proceso Civil, trad Santiago Melendo, Buenos Aires, Ejea, 1973, vol 1, p.271) define com brilhante concisão o título certo como aquele sobre o qual não recaem dúvidas acerca da sua existência; o título líquido quando não pende objeção quanto à determinação do objeto; e o título exigível quando irrestritamente atual.
Então está claro que a cédula de crédito industrial será título exigível desde que vencido o prazo sem devolução do valor financiado, e será certo se atendidos os requisitos do artigo 14 do Decreto-Lei 413/69 e não houver desvio de finalidade (artigos 1º e 2º). Mas não poderá ser título líquido já que sempre dependente de apuração do saldo devedor da conta-corrente vinculada (liqüidação). Além de não ser líquido, não poderá ser executivo por não constar no elenco do artigo 585 do Código de Processo Civil. Assim, dois dos cinco requisitos materiais não estão presentes, o que por si basta à inexeqüibilidade do título.
Ainda há, inobstante, mais uma falta, que é a do requisito formal, da inadequação da via. Antes, contudo, de se adentrar neste tópico, é importante apontar uma analogia desta espécie de título com outra, que nos tribunais vem sendo inadmitida à execução por razões correlatas: o contrato de abertura de crédito em conta-corrente. Pela natureza similar, ambas as hipóteses têm em comum requisitos que autorizam a comparação. É um reforço à demonstração de que a cédula é inexeqüivel por carecer de liqüidez e executividade.
Analogia com contrato de abertura de crédito
Há um entendimento jurisprudencial pacificado em torno da inadmissibilidade do contrato de abertura de crédito em conta-corrente como título executivo.
A analogia é aplicável porque o financiamento que embasa a cédula de crédito industrial tem natureza jurídica semelhante ao contrato de abertura de crédito em conta-corrente.
A cédula de crédito industrial é o meio de financiamento à atividade industrial instituído pelo Decreto-Lei 413/69. De acordo com o artigo 4º desta norma, o financiador abre uma conta vinculada à operação em nome do financiado. Diz o comercialista Rubens Requião (Curso de Direito Comercial, 2º vol, 20ªed, Saraiva, SP, 1995, p.475) que “o contrato, portanto, é de abertura de crédito”. Em verdade, é uma espécie de abertura de crédito, já que comporta diferenças.
A abertura de crédito é, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, 4ªed, Forense, Rio, 1978, vol 3, p.241) “o contrato pelo qual o banco se obriga a por à disposição do cliente uma soma dentro de um dado limite quantitativo, e por um certo prazo, acatando-lhe os saques ou acolhendo suas ordens”.
Sérgio Covello (Contratos Bancários, 2ªed, Saraiva, SP, 1991, p.200) o classifica de consensual, bilateral, oneroso, intuitu personae, de execução continuada e não solene, podendo ser simples ou em conta-corrente. Esta última modalidade é a que interessa.
O contrato de abertura de crédito em conta-corrente é a espécie que mais se aproxima da operação representada pela cédula de crédito industrial, já que o banco põe à disposição do cliente, numa conta-corrente, o valor financiado, a ser devolvido no prazo estipulado. As semelhanças, todavia, param aí.
No contrato de abertura de crédito em conta-corrente há liberdade do creditado (correntista) em retirar o valor, integral ou parcialmente, a qualquer tempo e para qualquer fim.
Já no caso do financiamento através da cédula de crédito industrial as retiradas – forma e datas – são previamente estipuladas no próprio título (artigo 4º) e o valor financiado deve ser utilizado “nos fins ajustados” (artigo 2º), dentro de atividades industriais (artigo 1º). O contrato há de ser tratado, então, como uma modalidade especial da abertura de crédito em conta-corrente.
E esta espécie contratual não tem sido admitida, por reiterada jurisprudência do STJ e dos tribunais estaduais, como títulos hábeis à execução. Isto porque, segundo os estudiosos, tais contratos não refletem obrigação de pagar quantia certa e determinada. Estão consolidados os julgados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
“Contratos de abertura de crédito em conta corrente, ainda que aparelhados com os correspondentes documentos de movimentação, não refletem obrigação de pagar valor certo e determinado, pelo que não comportam catalogação no preceito do art. 585, II do CPC, tornando nulas as contendas executórias neles respaldadas.”
TJSC; ApCiv 97.002488-6, Brusque, rel Des Trindade dos Santos, 29.4.97.
“Contrato de abertura de crédito em conta corrente não constitui título executivo extrajudicial, segundo o previsto no art. 585, II, do CPC, por não consubstanciar obrigação de pagar quantia determinada (REsp. n. 761.420-SC, de 21.11.95). No mesmo sentido: Resp. n. 29.597, 36. 391 e 66.266)”
TJSC; AI 10606, Mondai, rel Des Francisco Oliveira Filho.
“Não refletindo obrigação de pagar quantia certa e determinada, os contratos de abertura de crédito em conta corrente, ainda que a eles se acoplem unilaterais extratos de movimentação das contas respectivas, não se identificam como títulos dotados de exeqüibilidade, descomportando, assim, enquadramento nos ditames do art. 585, II, do CPC.”
TJSC; ApCiv 96.010964-1, Lages, rel Des Trindade dos Santos, 15.4.97.
“O contrato de abertura de crédito em conta-corrente, mesmo que acompanhado de extratos de movimentação, não constitui título executivo extrajudicial, na forma do art. 585, II, do CPC, por não ser obrigação de pagar quantia determinada. Inexistindo título executivo hábil ao prosseguimento da execução, deve o processo ser extinto”
TJSC; ApCiv 96.010492-5, Joinville, rel Des Carlos Prudêncio.
Do Superior Tribunal de Justiça:
“Contrato de abertura de crédito em conta corrente não constitui título executivo extrajudicial como preconizado no art. 585, II, do CPC.”
STJ; REsp 57171-5-SP, 17.4.95, rel Min Waldemar Zveiter.
“Contrato de abertura de crédito em conta corrente não constitui título executivo extrajudicial, segundo o previsto no art. 585, II, do CPC, por não consubstanciar obrigação de pagar quantia determinada. Precedentes.”
STJ; Resp 66266-4-MG, DJU 18.9.95, rel Min Costa Leite.
“O contrato de abertura de crédito em conta-corrente, mesmo que acompanhado de extratos de movimentação, não constitui título executivo extrajudicial, nos termos do art. 585, II, do CPC, por não ser obrigação de pagar quantia determinada. Precedentes.”
STJ; Resp 71260/PR, DJU 1º.4.96, rel Min Cláudio dos Santos.
Então, a priori, por ter o contrato que embasa a cédula de crédito industrial natureza semelhante ao de abertura de crédito em conta-corrente, àquele seriam aplicados os julgados acima. Pelas mesmas razões a cédula de crédito industrial não constitui título executivo extrajudicial. Como dito, esta analogia vem reforçar os fundamentos que ora se apresentam.
Inadequação da via procedimental
Por fim, estabelecendo definitivamente a inexeqüibilidade da cédula de crédito industrial está o artigo 41 do Dec-Lei 413/69. É o arremate, com a demonstração de que o requisito formal – adequação procedimental – não se faz presente quando se pretende executar uma cédula de crédito.
O texto legal, sob o Capítulo VI, “Da Ação para Cobrança da Cédula de Crédito Industrial”, diz assim:
“Art. 41 – (…) o processo judicial para cobrança da cédula de crédito industrial seguirá o procedimento seguinte: (…)”
Sendo especial o rito para cobrança desta espécie de título, segundo previsão na própria norma que o instituiu, nenhum outro há de ser admitido. Até porque o procedimento mencionado não é de natureza executiva, mas de conhecimento, ainda que de rito sumário, tanto que prevê instrução (item 5º), com produção de provas.
Rubens Requião (obra citada, vol 2, p.477) é taxativo ao dizer que a ação de cobrança da cédula de crédito industrial “segue rito especial estabelecido no Decreto nº 413, de 1969.” E arremata:
“Com efeito, embora o Código de Processo Civil, no art. 585, tenha efetuado expressa menção, como títulos executivos extrajudiciais, à letra de câmbio, à nota promissória, à duplicata e ao cheque, não o fez em relação às cédulas de crédito industrial e às notas de crédito industrial.
Em nosso entender a alínea VII daquele art. 585 não se presta aos efeitos revogatórios da lei anterior, pois a ela não se refere expressamente.
A alínea referida apenas alude, de forma imprecisa e genérica, a ‘todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva’. Por esses motivos sustentamos que a execução desses títulos industriais, como de resto também os títulos de crédito rurais (nº 684 infra) continuam sujeitos ao processamento disciplinado na lei especial.”
Inobstante, outro indicativo de que à cobrança da cédula de crédito industrial não se aplica o processo de execução é o dispositivo excepcional constante no número 3º do artigo 41 do dito decreto-lei. Ali a norma faz exceção quando manda aplicar o CPC na parte relativa à penhora e desde que inexistindo conflito legal. Se esta é a exceção, a não-aplicação do Código é a regra. E esta regra não foi alterada pela lei processual de 1973.
Não se diga, por outro lado, que o Código de Processo Civil revogou ou derrogou este artigo do Decreto-Lei 413/69. Absolutamente não. A Lei de Introdução ao Código Civil determina no caput do artigo 2º que, não sendo caso de vigência temporária, “a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”.
No primeiro parágrafo o texto é:
“§ 1º – A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”
No caso presente, o Código de Processo Civil não regulou inteiramente a matéria; nem mesmo parcialmente cuidou das cédulas de crédito e a respectiva cobrança. Do mesmo modo não há, entre o Codex de 1973 e o Decreto-Lei 413/69 qualquer incompatibilidade; as regras não se chocam em parte alguma. E, finalmente, não há em absoluto revogação expressamente declarada pelo CPC em relação à legislação das cédulas de crédito; o artigo 1220 é que poderia trazer este comando.
Então, definitivamente não houve revogação do Decreto-Lei 413/69 pelo Código de Processo Civil, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Confirmando, ainda, o inabalado vigor da lei em comento, é relevante trazer à lembrança também o parágrafo 2º do dito artigo 2º da LICC:
“§ 2º – A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”
O Código de Processo Civil, por óbvio, é norma geral, que estabeleceu disposições extras às já existentes no Decreto-Lei 413/69. Sua sistemática pode ser aplicada para o preenchimento de lacunas naquele texto especial, mas nunca sobrepondo-se à regras preexistentes com as quais não tenha conflito. A propósito, é assim que preceitua, estritamente em relação à penhora, o artigo 41, número 3º, da Lei da Cédula de Crédito Industrial.
O comando de que a regra aplicável seja a norma especial continua no texto em vigor, não havendo qualquer conflito e não existindo qualquer revogação ou derrogação pelo CPC.
Desta forma, vê-se claramente que se a via procedimental determinada pela lei é o processo de conhecimento, não tem como subsistir o processo de execução. Da mesma forma como não se poderia, verbi gratia, pretender executar um cheque pelo rito do artigo 733 (dívida de alimentos), pedindo a prisão do devedor.
Obviamente o processo seria extinto sem julgamento do mérito, pois a via é inadequada, sem embargo de ser o cheque desprovido de exeqüibilidade na execução de alimentos do artigo 733, cujo título sempre será judicial. Inviável, portanto, o processo de execução para instrumentalizar a pretensão de cobrança de dívida originada em cédula de crédito.
Conclusão
Dos cinco requisitos materiais (condição de título, executividade, certeza, liqüidez e exigibilidade), dois não restam atendidos pela cédula de crédito: executividade e liqüidez. E o requisito formal, que é a adequação procedimental, igualmente não se faz presente.
Por isto é que, seja pela natureza jurídica da qual resulta a iliquidez, seja pela atipicidade legal do título como executivo, seja pela via procedimental especial para cobrança, conclui-se pela inexeqüibilidade da cédula de crédito industrial, que não pode ser levada à execução segundo o processo previsto pelo Livro II do Código de Processo Civil.
Conseqüências práticas nos processos em curso
Antes de analisar o mérito de qualquer demanda, o juiz verifica a existência e a regularidade da relação jurídica processual (pressupostos processuais), bem como a aptidão ao exercício do direito de ação (condições da ação). São condições da ação a legitimidade das partes, o interesse processual e a possibilidade jurídica do pedido.
A tese ora sustentada demonstra, salvo melhor juízo, que a cédula de crédito não pode servir de título para uma execução. Parece mais razoável que isto represente impossibilidade jurídica do pedido, já que contraria norma posta. Mas também se pode considerar que seja falta de pressuposto de constituição do processo, pois a lei exige requisito (título executivo) desatendido. De qualquer modo, seja por impossibilidade do pedido ou por falta de pressuposto, a conseqüência será a extinção do feito sem julgamento do mérito.
Certas nulidades podem ser alegadas em qualquer fase processual, em qualquer grau de jurisdição. Não apenas pela nulidade em si, mas principalmente por envolver questão de ordem pública. Na processualística jurídica há sempre interesse público naquilo que representar violação às regras de administração da contenda. A parte até pode dispor de seus direitos processuais, mas ao Poder Judiciário não cabe deixar de apreciar a questão.
Diz o parágrafo terceiro do artigo 267 que “o juiz conhecerá de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição”, as matérias elencadas nos incisos IV, V e VI do caput, entre as quais a impossibilidade jurídica do pedido (falta de condição da ação) e ausência de pressupostos de constituição do processo. No caso de um processo de execução em curso, baseado em cédula de crédito, a solução, a qualquer tempo e em qualquer grau, deve passar, necessariamente, pelo reconhecimento da nulidade processual.
E, em instância superior, não se pode falar em ausência de prequestionamento, porque, como já dito, é questão a ser conhecida em qualquer grau de jurisdição e a qualquer tempo, como diz a lei. Para esta matéria não há preclusão, pois o próprio CPC, no artigo 267, § 3º, dispõe que se o réu não alegar na primeira oportunidade responderá pelas custas de retardamento. Isto significa que não preclui a matéria e, portanto, não se aplica para a hipótese a necessidade do prequestionamento. De modo que os processos de execução em curso, seja em que grau estiverem, baseados em cédula de crédito, podem ser extintos com base nos fundamentos expostos, bastando petição avulsa requerendo o conhecimento da questão.
Informações Sobre o Autor
Nelson Zunino Neto
Advogado em São João Batista/SC