Resumo: A pena de multa que, na legislação brasileira consiste no pagamento ao fundo penitenciário de quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa, configura-se em importante tendência da política criminal contemporânea, sendo adequada à criminalidade de baixo relevo. Ademais, possui vantagens sobre a privação de liberdade, pois além de humanitária, tem força intimidatória nos crimes patrimoniais. Mas sua eficácia está diretamente relacionada com a forma de execução, que deverá, em respeito à sua essência de sanção criminal, ser promovida pelo Ministério Público, órgão legitimado pela Constituição Federal para o ingresso da ação penal pública, junto ao Juízo das Execuções Penais.
Palavras-chave: pena de multa – importância – eficácia executiva – legitimidade ativa do Parquet – juízo competente
Abstract: The penalty of fine, that, at the Brazilian legislation is to pay the fund’s prison sentence in the amount established and calculated a daily fine, appears in an important trend in contemporary criminal policy, while appropriate to the crime of low relief. Besides, it has advantages over the deprivation of liberty, because it is humanitarian, even though as well it has intimidating force in property crimes. But their effectiveness is directly related to the performance mode, which should, in respect of the essence of criminal sanction, to be promoted by the prosecution legitimate body by the Federal Constitution for the entry of public prosecution, with the Chamber of Executing Criminal Penalties.
Keywords: a fine – importance – effective executive – legitimacy active Parquet – competent court – financial penalty
Sumário: 1. Introdução. 2. A importância da multa como sanção penal. 3. Eficácia da pena de multa: um resultado da legitimidade ativa e do juízo competente para a sua execução. 4. Conclusão. 5. Referências.
“A pena pecuniária é perfeitamente variável, desce até os primeiros degraus da escala penal; circunstância esta que a faz muito superior aos castigos corporais, que não prestam para castigar pequenos defeitos, porque sempre trazem consigo alguma sombra de infâmia enquanto nas penas pecuniárias não há outra vergonha mais do que a que resulta do convencimento do crime”. Jeremy Benthan. Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos
1. INTRODUÇÃO
A pena de multa, sanção de caráter patrimonial, que se subsume na diminuição do patrimônio do condenado através de uma prestação em dinheiro, tem assumido papel cada vez mais importante no cenário jurídico-criminal da atualidade.
Na legislação brasileira, está prevista na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLVI, letra “c”, e no Código Penal encontra-se regulada no art. 49, consistindo no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa, sistema este introduzido pela reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984.
O Estatuto Penal pátrio, em seu art. 44, parágrafo 2º, autoriza a substituição da pena privativa de liberdade, em caso de condenação igual ou inferior a um ano, por multa ou por uma pena restritiva de direitos. Se a condenação for superior a um ano, a pena privativa de liberdade poderá ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos. Trata-se da chamada “multa substitutiva”. Pode ainda ser aplicada nos tipos em que é cominada de forma isolada ou alternativa, ou cumulativamente à privação de liberdade naqueles que a abrigam em seu preceito secundário.
A multa traz vantagens substanciais em detrimento da privação de liberdade e, somando-se às restritivas de direitos, constitui arcabouço punitivo de real eficácia, desde que bem aplicada e perfeitamente executada.
Com o advento da Lei n. 9268/96, que transformou a pena de multa em dívida de valor, através da nova redação do art. 51, surgiu na doutrina e jurisprudência pátrias, um sério questionamento sobre a sua forma de pagamento e execução.
Embora o art. 50 do Código Penal estabeleça que a multa deve ser paga dentro de 10 (dez) dias depois de transitada em julgado a sentença, ou ainda em parcelas mensais, conforme requerimento do condenado, permitindo também o desconto no seu vencimento nos casos específicos elencados no parágrafo 1º do mencionado dispositivo, o art. 51 reza que “transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública”.
Surgem, assim, dúvidas relevantes que concernem à subsistência do dispositivo penal inserto no art. 50, ou sobre a sua implícita revogação em face do novo comando do art. 51. E, sobretudo, sobre o juízo competente para efetuar a execução da pena pecuniária e a legitimidade do órgão que deve dar início à sua execução.
Não se pode perder de vista que a solução a ser adotada em nível de competência do juízo e de legitimidade ativa para a execução da pena de multa terá séria repercussão na eficácia desta sanção, assunto que será analisado nas próximas linhas.
2 A IMPORTÂNCIA DA MULTA COMO SANÇÃO PENAL
A pena privativa da liberdade, considerada em meados do século XIX como o principal instrumento punitivo, vem se mostrando, na contemporaneidade, essencialmente ineficaz no combate à criminalidade e também na ressocialização dos condenados, e tem sido mantida, na legislação de diversos países democráticos, por absoluta falta de opção em casos de crimes graves e/ou agentes perigosos.
Nesse passo, é salutar concluir que se houver possibilidade de aplicação de uma pena menos opressiva, a exemplo das restrições de direitos e da pena de multa, estas devem ser fixadas em detrimento da privação de liberdade.[1]
Observa Alberto Silva Franco, acertadamente, que a postura legislativa no sentido de alargar sempre espaços para a pena pecuniária corresponde a uma tendência bem definida da moderna Política Criminal, que lhe dá “inquestionável primazia como tipo de sanção punitiva, adequada em relação à criminalidade de mínimo relevo e preferível no que tange à criminalidade de média importância”.[2]
Luiz Regis Prado, por sua vez, atesta que entre as várias medidas de política criminal alternativa, a sanção pecuniária se destaca não só como a mais importante, mas também como a de utilização cada vez mais freqüente. Ressalta suas vantagens, ao afirmar que tem caráter aflitivo; que é divisível e flexível e se adapta às condições pessoais do condenado; que não degrada, não corrompe e não desonra a família do agente, ao contrário do presídio; que é econômica, porque evita gastos do Estado e se destina à manutenção dos estabelecimentos carcerários; e que é a mais reparável, pois pode ser devolvida em caso de erro judiciário.[3]
Na doutrina, entretanto, levantam-se críticas à pena de multa. Basileu Garcia sustenta o fato de que a multa abastece “as arcas do tesouro nacional” às expensas do crime, que compete ao Estado prevenir, denotando-lhe certo cunho de “imoralidade”. Pontua que esse mesmo Estado se locupleta invocando a sua própria ineficiência.[4]
Nesse pólo, Ferrajoli assegura que a pena pecuniária é uma pena aberrante sob vários pontos de vista: porque é impessoal, ou seja, duplamente injusta, “ao réu, que não a quita e se subtrai” e “qualquer um pode saldar”, em relação a um terceiro (amigo ou parente) que a paga e fica submetido à sanção por fato alheio; que é pena desigual[5], por recair de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio, sendo fonte de intoleráveis discriminações no plano substancial; desproporcional por estar abaixo do limite mínimo que justifica a sua imposição, encontrando-se “destinada a ser percebida mais como um tributo do que como uma pena”.[6]
Por primeiro, oportuno acentuar que o fato de o Estado auferir receita com o pagamento da pena de multa não o torna menos responsável com a prevenção da prática de delitos. Deve adotar, sim, as medidas necessárias para obstar a criminalidade, mas é certo que ilícitos penais sempre serão praticados, ainda que envide esforços no sentido de tomar úteis providências para impedi-los de se consumarem.[7] Desta maneira, é lícito ao agente que infringiu o ordenamento jurídico, desrespeitando as leis penais, contribuir para o sistema carcerário, o qual necessita de fundos para promover o sustento daqueles infratores que se encontram detidos, não havendo qualquer imoralidade em face dessa contribuição.
O argumento de que a pena de multa pode ter repercussão na família ou em pessoas caras ao condenado não é suficiente para rechaçá-la como sanção penal. Há muito se tem conhecimento dos grandes prejuízos sofridos pelos familiares e outras pessoas próximas de réus condenados à pena de prisão.
Também a alegação de que a pena de multa é desigual não encontra relevância, pois a depender do critério em que é adotada, na legislação, pode ser perfeitamente adstrita à situação econômica do condenado. Segundo o sistema de dias-multa, adotado no Código Penal pátrio, por exemplo, é possível proceder à individualização da pena de modo a considerar a situação econômica do agente em face do amplo espectro dimensionado ao valor do dia-multa, como disposto em seu art. 49.[8]
É ainda importante ressaltar que sob a ótica do direito penal mínimo defendido por Ferrajoli, somente devem ser previstas e castigadas como delitos aquelas infrações relativamente graves. Daí entender-se sua posição no sentido de que nenhuma pena pecuniária pode ser considerada suficiente para sancioná-las de maneira adequada.
Acentua Claus Roxin, em outro diapasão, que o princípio da subsidiariedade não está restrito à seleção das condutas típicas penais, mas se concentra também na seleção das penas. Assim, explicita: “De resto, o princípio da subsidiariedade também encerra todo um conjunto de exigências de reforma para a aplicação da pena; apenas mencionarei a substituição das penas privativas de liberdade de curta duração por multas, assim como admoestações e prestações de trabalho”.[9]
Indubitavelmente acertada a posição do jurista alemão, pois embora deva o poder legislativo minimizar o acervo de infrações criminais que poluem os ordenamentos jurídicos de diversos países, importante se faz a reflexão sobre a necessidade de imposição de penas mais humanas e menos dispendiosas, como a pena de multa, adequada, sobretudo, aos crimes contra o patrimônio.
Assim, a par das críticas assacadas contra a pena de multa, não se pode deixar de reconhecer que suas vantagens preponderam sobre as desvantagens.
Com efeito, trata-se de pena que não retira o condenado do convívio com a comunidade, não o afasta do trabalho, com o qual mantém a si próprio e a sua família, nem de suas ocupações normais lícitas; tampouco o corrompe, pois evita sua inserção no meio deletério da prisão. Também não o avilta, por sua ausência de caráter infamante, além de atingir bem jurídico de menor importância que a liberdade. Preserva intacta a personalidade do condenado, possibilita melhor individualização judicial ao se fundar na sua situação econômica, e possui, sobretudo, força intimidatória, principalmente nos crimes patrimoniais, ao recair sobre bens econômicos que, na sociedade capitalista, são tidos de considerável valor.[10]
Urge, entretanto, que a multa seja aplicada de forma adequada ao agente e sua periculosidade, às suas condições econômicas, e também à gravidade do crime praticado, para que atinja os reais fins de prevenção geral e especial, além da retribuição, que deve se pautar na medida de culpabilidade do infrator.[11] Ademais, sua eficácia também está diretamente relacionada com a infra-estrutura estatal no sentido de promover sua execução, sob pena de tornar-se sanção inócua.
Daí a importância a ser creditada ao órgão legitimado para promover a sua execução e ao juízo competente para o seu processamento.
3 A EFICÁCIA DA PENA DE MULTA: UM RESULTADO DA LEGITIMIDADE ATIVA E DO JUÍZO COMPETENTE PARA A SUA EXECUÇÃO
O real propósito da Lei n. 9268/96, consoante se dessume da exposição de motivos n. 288, de 12 de julho de 1998, referente ao projeto que lhe deu origem (Mensagem 785), foi o de revigorar a execução criminal, consignando um procedimento adequado às dificuldades que se opunham à eficácia da pena de multa, como medida de combate à criminalidade patrimonial.[12] Nesse passo, não se pode conceber que o art. 50 do Código Penal tenha sido revogado pelo art. 51. O primeiro dispositivo persiste em vigor para os fins de possibilitar o pagamento da multa, no prazo de dez dias, ou o seu parcelamento, em prestações mensais, além de poder ser descontada no salário do condenado. E, como não poderia deixar de ser, tal procedimento preliminar à execução propriamente dita deve tramitar no Juízo da Execução Penal. Porém, muitas têm sido as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a parte legítima que deverá propor a ação executiva da pena de multa e do seu juízo competente.
A primeira postura, adotada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que segue importante segmento da doutrina, é no sentido de que a multa imposta em processo criminal passa a ser mera “dívida de valor”, e que exclui, nesse contexto, as atribuições do Ministério Público, o qual deixa de ser parte legítima para promover sua execução, concedendo-a ao Procurador da Fazenda, cujo processo deverá tramitar no juízo da Fazenda Pública.
Damásio de Jesus afirma que a execução da pena de multa deixou, com a nova lei, de ser “atribuição do Ministério Público, passando a ter caráter extrapenal”, isto é, sustenta que “a multa permanece com sua natureza penal”, e que subsistem os efeitos penais da sentença condenatória que a impôs. Assevera, entretanto, que a execução é que se procede em termos “extrapenais”.[13]
Em posição semelhante, Paulo José da Costa Júnior vocifera: “Pode-se afirmar, portanto, que a pena de multa será cobrada, na nova disciplina, como se crédito tributário fosse, mediante execução fiscal”.[14]
Na mesma esteira de raciocínio, Luiz Regis Prado sinaliza que “houve, de conseguinte, a transferência para a Procuradoria da Fazenda Pública da titularidade da ação fiscal de cobrança da pena de multa”.[15]
Alberto Silva Franco também se posiciona no sentido de que “diante dos termos explícitos do art. 51 do CP, não se compreende como possa estar, o Ministério Público, do ponto de vista ativo, legitimado para dar início à execução da pena pecuniária”. Inobstante, reconhece que “nasce um inconveniente, uma disfunção da execução da pena de multa pelos Procuradores da Fazenda, enquanto título da dívida ativa, consistente no fato de que não há interesse da Fazenda na execução de pequenos valores, o que descaracteriza a multa enquanto punição estatal, que visa a prevenção e repressão de delitos”.[16]
Celso Delmanto, em posição oposta, atesta que em vista do caráter penal da multa, “a atribuição para promover a sua execução continua sendo do Ministério Público, perante a Vara das Execuções Criminais, aplicando-se a Lei n. 6.830/80”.[17]
Cezar Bitencourt, por sua vez, preleciona que a Lei 9.268/96 não alterou a competência para a execução da pena de multa, que continua sendo regulada pelos dispositivos da LEP. Pontua que a nova redação do art. 51 não faz referência à inscrição na dívida ativa da Fazenda Pública, mas tão-somente determina a aplicação das regras atinentes à execução da dívida ativa da Fazenda Pública, fato que não desnatura a pena de multa enquanto sanção criminal, a qual deve respeitar os princípios constitucionais penais.[18]
Na mesma linha de intelecção, Rogério Greco afirma que mesmo sendo a multa considerada dívida de valor pelo art. 51 do Código Penal, não perdeu a sua natureza de sanção penal, além de não ter ocorrido qualquer mudança no que tange a competência do juízo para a sua cobrança, que deverá ser operada nos trâmites da Lei de Execução Fiscal, sendo o Ministério Público legitimado para a sua propositura.[19]
Guilherme Nucci textualiza: “Segundo nos parece, deveria ser executada pelo Ministério Público, na Vara das Execuções Penais, embora seguindo o rito procedimental da Lei 6.830/80, naquilo que for aplicável”. Assevera que no estado de São Paulo a sua execução vem sendo realizada pela Procuradoria Fiscal, na Vara de Execuções Fiscais, levando a vários inconvenientes, dentre eles, o de que embora a multa penal deva ser cobrada com todo o empenho, pois se trata de sanção criminal, o excesso de execuções fiscais e os valores baixos das multas estabelecidas desestimulam os procuradores e demais agentes a promover a efetiva cobrança. Ademais, ressalta que a certidão de dívida ativa não contém dados do processo criminal que a originou, de modo que, quando o executado morre, não se sabe a quem remeter o feito para que seja julgada extinta a punibilidade. Registra que, na prática, a execução vem sendo arquivada, permanecendo em aberto a questão penal.[20]
Ora, mesmo sendo considerada “dívida de valor” pela legislação vigente, a multa não perdeu sua natureza de sanção penal, como reconhece a doutrina majoritária. E como “dívida de valor” tem, em suma, apenas três conseqüências: a multa não poderá ser convertida em pena privativa de liberdade; a sua execução deverá seguir o rito das execuções fiscais, como bem estabelece o art. 51 do Código Penal; por fim, a atualização monetária da pena de multa deverá ser procedida conforme a lei fazendária. Nesse raciocínio, permanece inalterado o juízo competente para a sua execução e o órgão legitimado para promovê-la.
É importante observar ainda que, antes da edição da Lei 9.268/96, a execução da pena de multa seguia as disposições do art. 164 da Lei de Execução Penal, em cuja leitura se observa a regulação dos trâmites estabelecidos pelo Código de Processo Civil. Rogério Greco[21] adverte, com sapiência, que jamais se disse, por isso, que sua execução deveria competir às Varas Cíveis, a não ser quando a penhora viesse a recair sobre bem imóvel, hipótese em que os autos apartados deveriam ser remetidos ao juízo cível para o prosseguimento da execução, conforme inteligência do art. 165, da LEP.
Saliente-se, como bem observado por Guilherme Nucci, que o Procurador da Fazenda, estando à frente da execução de uma pena de multa, não possui o empenho necessário para a cobrança, pois os baixos valores fixados na sentença pelo Juiz Criminal são tidos como irrisórios e, muitas vezes por motivos administrativos, deixados de serem executados.
Um exemplo dessa situação é o Decreto n. 7.343, de 27 de maio de 1998, do Estado da Bahia, que autoriza o não ajuizamento de execuções fiscais de pequeno valor. In verbis: “Art. 1º. Fica a Secretaria da Fazenda do Estado autorizada a não ajuizar execuções fiscais de valor inferior a 100 UPF’s”.[22]
Outrossim, o argumento que fulmina qualquer discussão a respeito do tema está na própria Constituição Federal. Diz o art. 129, inciso I: “São funções institucionais do Ministério Público: I – Promover, privativamente, ação penal pública, na forma da lei”. Nesse passo, há de se refletir sobre a execução das penas em geral, incluída a pena de multa.
Sem dúvida que a execução de um título judicial, tanto no juízo cível como no criminal, pertence ao vencedor da demanda, parte ativa legítima da fase jus-satisfativa. Ainda que haja uma relação de autonomia entre o processo de conhecimento e o de execução, na seara penal, existe uma relação instrumental entre ambos. E quando a Constituição Federal dispõe que compete ao Ministério Público, “privativamente”, promover a ação penal pública, ao mesmo órgão compete a execução da sentença condenatória.
Nessa porfia, o fato de deslocar a legitimidade processual, na fase executória, para a Fazenda Pública, viola, frontalmente, a atribuição ministerial privativa que lhe foi conferida pela Carta Magna, além de transferir, de forma equivocada, a implementação de sanção penal ao Juízo das Execuções Fiscais, pois a multa penal não deve ser encarada como mero crédito fazendário.
Foi com esse espírito que o então Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, ingressou, em 2004, com a ADI n. 3150, com o escopo de a Corte Suprema dar interpretação conforme a Constituição ao art. 51 do Código Penal, em face da redação que lhe foi estabelecida pela Lei n. 9.268/96. Observa-se, contudo, que esta ação ainda não foi julgada, encontrando-se conclusa ao seu Relator, Ministro Marco Aurélio, desde a data de 17.06.2008.[23]
No entanto, os argumentos expendidos na aludida ação já foram aceitos pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 699286/SP, da relatoria do Min. José Arnaldo da Fonseca, cuja ementa segue transcrita:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO PENAL. MULTA. COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 51 DO CP, COM ALTERAÇÃO DADA PELA LEI 9.268/96. Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal, cabe ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal, promover a execução da pena de multa, perante o Juízo das Execuções Penais. Recurso desprovido.” (REsp 699.286/SP, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 05/12/2005 p. 369).[24]
Os ministros da 5ª Turma do STJ encamparam, nesse julgado, à unanimidade, as razões da Subprocuradora-Geral da República, Célia Regina Souza Delgado que, invocando os ensinamentos de Hugo Nigro Mazzilli, pontuou que a pena de multa não perdeu, em face da nova redação do art. 51, o caráter sancionatório penal, embora seja considerada “dívida de valor”, e decidiram que o Ministério Público é parte legítima para promover sua execução perante o Juízo das Execuções Criminais.
Percebe-se que esse posicionamento respeita a essência da multa como “pena”, preservando o seu próprio conteúdo e, por conseqüência, suas funções intrínsecas que se subsumem na retribuição, na prevenção geral e especial, deixando de considerá-la, por pífias conjunções utilitárias, um mero crédito da Fazenda Pública.
Como diz Edmund Husserl: “em toda a esfera fenomenológica, não há acasos, nem facticidades, tudo é precisamente motivado por essência”. [25] Assim o é também com a “multa-pena”, fenômeno cultural em que se vislumbra, através da consciência racional, seu caráter originário.
4. CONCLUSÃO
A pena de multa é importante ferramenta do direito penal contemporâneo a ser utilizada com os fins de evitar o encarceramento de autores de pequenos delitos por prazo de curta duração, sendo de potencial eficácia quando aplicada em delitos patrimoniais a agentes que não apresentam periculosidade social.
Possui legitimidade ainda que o Estado seja responsável pela prevenção de crimes, pois os membros de uma sociedade também são responsáveis pelas desordens que promovem, e devem contribuir para o restabelecimento da paz coletiva com o seu patrimônio.
A problemática que surgiu em face da edição da Lei n. 9268/96, que deu nova redação ao artigo 51 do Código Penal, tornando-a dívida de valor, deve ser resolvida com base na Constituição Federal, que confere legitimidade ativa ao Ministério Público para o ingresso da ação penal pública e, conseqüentemente, à sua execução.
A eficácia da pena de multa está fundamentalmente ligada à sua adequada execução, que deverá ser promovida pelo Ministério Público, no respectivo Juízo das Execuções Penais, em absoluto respeito à sua real essência de sanção criminal.
Informações Sobre o Autor
Sheilla Maria da Graça Coitinho das Neves
Procuradora de Justiça do Ministério Público da Bahia. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Penal pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Professora convidada do Curso de Especialização em Ciências Criminais da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Capacitação e Educação em Direitos Humanos da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia. Ex-Professora de Direito Penal da Faculdade 2 de Julho