Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica das fontes do direito reconhecidas pela doutrina brasileira. 3. Fontes do direito brasileiro contemporâneo: conceito na doutrina clássica, atualidades e transformações. 3.1. Fontes informadoras. 3.1.1. Princípios gerais do direito. 3.1.2. O papel da doutrina. 3.1.3. Jurisprudência. 3.1.3.1. Direito Sumular. 3.2. Lei. 3.2.1. O papel da analogia. 3.3. Costume. 4. Conclusão. Bibliografia.
1. Introdução
O propósito deste trabalho é, a partir de uma análise evolutiva do tratamento dado pela doutrina às fontes formais do Direito, demonstrar que o Sistema Jurídico Brasileiro sofre hoje uma grande transformação no que diz respeito às normas jurídicas aplicadas para a resolução de conflitos, em razão, sobretudo, de uma inversão do papel desempenhado pela lei e da força, cada vez maior, dos princípios gerais do Direito e da jurisprudência. Com isso, pretende-se instigar o debate, sobretudo entre os civilistas nacionais.
2. Evolução histórica das fontes do direito reconhecidas pela doutrina brasileira.
Começaremos este estudo traçando a evolução das fontes formais do Direito reconhecidas pela doutrina pátria, desde o século XIX até os dias atuais.
Encontramos entre os primeiros civilistas do Brasil independente o Conselheiro Joaquim Ribas, que escreveu sobre o tema das fontes formais do Direito fortemente influenciado pela Escola Histórica do Direito de Savigny. Veja-se o seguinte excerto:
“O direito preexiste ao legislador na consciência nacional, ele não o inventa, nem o cria; apenas o formula, e traduz em caracteres sensíveis, esclarece-o com as luzes da razão universal, e presta-lhe o apoio da força social.”[1]
Pensando assim, o Conselheiro identificou, como fontes do Direito Civil, a legislação nacional, fonte essencial, e o direito consuetudinário, popular e científico, bem como a legislação estranha, fontes subsidiárias.
Sobre a legislação nacional, explicou: “Tomamos aqui a palavra — legislação — no sentido mais amplo, como o complexo dos atos do poder político, que contém preceitos obrigatórios, quer expedidos no regime anterior, quer no posterior à independência nacional.”[2] Àquela época, compreendiam a legislação nacional, quanto à forma, as leis em sentido estrito, os decretos, os alvarás, as cartas régias, as resoluções de consulta, as provisões, os assentos da Casa da Suplicação, os avisos, as portarias e as ordens; quanto à matéria, os regulamentos, os regimentos, os estatutos, as instruções, as pragmáticas, os forais, as concordatas e os privilégios.
Contemplando as matérias não tratadas pela legislação, Ribas justificou o emprego de fontes subsidiárias:
“Sempre que se apresenta um pleito em juízo, cumpre que o decida o magistrado em cuja atribuição cabe; nem se pode recusar a fazê-lo a pretexto que a lei é omissa, pois esta recusa importa o delito de denegação de justiça.
No atual estado porém da legislação pátria, dificílimo e perigoso seria o cumprimento deste dever, se não houvessem outras fontes subsidiárias do direito; porquanto, deficiente como é esta legislação, o magistrado teria de recorrer frequentes vezes ao direito racional, cuja aplicação às emergências da vida prática não poderia deixar de dar lugar a intermináveis controvérsias, e ampla facilidade ao império do arbítrio disfarçado”.[3]
Uma curiosidade: o referido delito de denegação de justiça era previsto no art. 129, n. 6, e no art. 159, ambos do Código Criminal do Império, de 1830.
As fontes subsidiárias, por sua vez, encontrar-se-iam no direito consuetudinário, em sua vertente popular e em sua vertente científica, ou na legislação estranha. Assim se conceituou o direito consuetudinário popular:
“Já vimos que primitivamente o direito jaz na consciência nacional até que o desenvolvimento social o leva a manifestar-se na legislação e jurisprudência. Mas, enquanto ele jaz assim invisível no seio do povo, devem existir, e de fato existem, meios pelos quais se reconheçam os preceitos; estes meios são os usos e costumes.
Com efeito, a constante repetição de atos uniformes, que constitui os costumes, não pode ser atribuída ao mero acaso ou arbítrio, e sim a um principio racional, a uma convicção comum do povo.
Mas, se o costume não cria, e sim apenas traduz os princípios fundamentais do direito, não sucede o mesmo quanto aos secundários; a respeito destes o povo precisa ver a sua repetida aplicação, ou, como dizia Puchta — o costume para o povo que o estabelece, é um espelho em que ele se reconhece. Mas nem ainda quanto a estes princípios secundários se pode dizer que os costumes sejam produzidos pelo acaso ou pelo arbítrio; são sempre filhos da reflexão, e dominados por princípios racionais.”[4]
Em relação ao direito consuetudinário científico, o Conselheiro pontuou:
“Desde os mais remotos tempos exerceram os jurisconsultos em Roma larga influência, e por suas respostas às consultas dos litigantes, — responsa, bem como por seus debates forenses,—disputatio fori, contribuíram para a formação do direito. […]
Na fase de elaboração em que se achava, e em que ainda se conserva o direito pátrio, não fora possível querer-se, à semelhança do Justiniano, impedir-lhe o desenvolvimento, excluindo absolutamente a influência dos jurisconsultos; […]
Na ausência de disposição legislativa tem, pois, lugar a opinião comum dos jurisconsultos pátrios, como órgãos do direito consuetudinário nacional, e a dos jurisconsultos estrangeiros, como órgãos das nações modernas (usus hodiernus) relativamente á exequibilidade dos textos do direito romano.”[5]
Por fim, identificou como direito estranho o Direito Romano, o Direito Canônico e os Direitos das nações modernas.
Posteriormente, em 1908, Clóvis Beviláqua, jurista consagrado por ter sido o autor do projeto de Código Civil de 1899 (que futuramente se transformaria no Código de 1916), na primeira edição da sua Teoria Geral do Direito Civil, voltou ao tema. Também o mestre identificou a lei como principal fonte do Direito, que chamou de imediata. Mas, reconhecendo a impossibilidade de a lei abarcar todo tipo de matéria, elencou, sob o rótulo de fontes subsidiárias — conforme o fizera Ribas —, o costume, o Direito Romano e o Direito das nações modernas.
“A fonte imediata do direito é a lei. Esta, porém, por mais que se alarguem as suas generalizações, por mais que se espiritualize, jamais poderá compreender a infinita variedade dos fenômenos sociais, que emergem da elaboração constante da vida e vêm pedir garantias ao direito. Desta insuficiência da lei para dar expressão jurídica a todas as necessidades que a reclamam, para traduzir o matiz da vida organizada em sociedade, resulta, em primeiro lugar, que é forçoso manter, ao seu lado, as fontes subsidiárias do direito, que o revelem quando ela for omissa, e, em segundo lugar, que é indispensável aplicar à lei os processos lógicos da analogia e da interpretação, para que os dispositivos adquiram a necessária extensão e flexibilidade.
A Ord. 3, 64, determinava que, na falta de leis regulando a matéria, se resolvessem os conflitos jurídicos pelos estilos da Corte ou costumes. Por estilos da Corte entendiam-se, especialmente, os da Casa da Suplicação, os quais, quando concretizados em assentos, tinham força de lei. Tendo desaparecido esta forma de produção jurídica, a primeira fonte subsidiária do direito pátrio é o costume. […]
Depois dos costumes, seguia-se, na ordem das fontes subsidiárias do direito civil pátrio, o direito canônico. Secularizado, porém, o direito pátrio, em todas as suas divisões e nos seus fundamentos, desapareceu essa fonte, passando o direito canônico a ter apenas interesse histórico. […]
Outra fonte subsidiária do direito civil pátrio, segundo a Ord. 3, 64, era o direito romano, que, para ser aplicável à solução das pendências jurídicas, devia mostrar-se conforme á boa razão. […]”[6]
Quanto ao Direito das nações modernas, Beviláqua ressaltou a existência do Alvará de 30 de janeiro de 1802, título 1º, §3, que tornava o Direito Alemão fonte subsidiária da legislação de minas, e o Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, art. 387, 2ª parte, que determinava que as lacunas do Direito Processual da União fossem preenchidas pelos “estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity”[7].
Ainda em 1908, Eduardo Espínola publicou seu Sistema do Direito Civil Brasileiro. O jurista ressaltou, no proêmio, que o tema do primeiro volume do tratado já fora estudado anteriormente pelo Conselheiro Ribas, cujo livro, não obstante seu valor, cuidou mais do elemento histórico do que do filosófico e social; e esclareceu que não pôde aproveitar o trabalho de Beviláqua, publicado no mesmo ano, pois quando teve a ocasião de ler o precioso livro, o Sistema já se achava completamente impresso[8].
Espínola conceituou as fontes do direito objetivo em nota de rodapé, como “as formas que ele [direito objetivo] assume em sua realização”[9], advertindo que as fontes do direito subjetivo são “os fatos que produzem as relações jurídicas entre as pessoas”[10]. Posteriormente, anotou:
“As fontes do direito civil moderno são, porém, as mesmas em quase todos os povos. Os estados constitucionais, estabelecendo o princípio da chamada divisão dos poderes, têm atribuído a órgãos especiais a função de elaborar as normas de conduta das pessoas que estão em seu território. Assim, em tais prescrições encontra o direito objetivo sua fonte direta e imediata. Mas, além dessas prescrições, há certas regras, que, embora não elaboradas pelos órgãos constitucionais competentes, têm contudo sido aplicadas constantemente e às vezes coativamente impostas, tal a convicção popular de sua necessidade e o reconhecimento de seu valor jurídico, por parte dos órgãos encarregados da aplicação do direito. Ainda mais, há certos princípios constituídos pela ciência do direito, regras sintéticas a que chegaram os cultores da jurisprudência, depois de um estudo analítico das normas de conduta adotadas em todos os tempos, os quais, por sua evidencia, muitas vezes deixam de ser expressos na lei (stricto sensu) e outras vezes são observados, quando ela é omissa.”[11]
Elenca, então, quais seriam as espécies de fontes do direito objetivo: fonte imediata, a lei — “emanação do poder constitucional competente”[12]; fontes mediatas, os costumes — “diretamente derivados da consciência popular”[13] — e os princípios gerais do direito — “obra da técnica jurídica”[14]. Faz uma ressalva em relação ao Direito Romano e ao Direito das nações cultas, que só seriam fontes até 31 de dezembro de 1916 (impende destacar que o Código Civil entrou em vigor em 1º de janeiro de 1917).
Em 1928, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, publica o livro Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, em que, não obstante o título, não tratou do conceito de fontes do Direito, nem das fontes do Direito Civil contemporâneo. No Capítulo II, Pontes de Miranda cuidou das fontes do Direito Civil apenas antes do Código Civil, e ensinou:
“No tumultuário direito civil que regia a vida brasileira antes de 1917, o que mais concorreu para a relativa uniformidade foi a doutrina de Pascoal José de Mello Freire, Coelho da Rocha, Teixeira de Freitas, Lafaiete Rodrigues Pereira e outros. A Consolidação das Leis Civis prestou, neste sentido, magníficos serviços.”[15]
No Direito anterior ao Código Civil, eram fontes do Direito:
“I – As leis que compreendiam: a) a legislação peninsular antiga, feita pelo próprio rei; as cartas de leis, cartas-patentes, ou, simplesmente, cartas; os alvarás (temporários, mas às vezes com a declaração de valerem como leis), também chamados provisões reais; e as cartas régias a determinadas autoridades; b) a legislação propriamente dita: peninsular, até 1822; brasileira, daí em diante. […]
II – O Costume (direito costumeiro). Segundo a ordenação do Livro III, Título 64, mencionavam-se, de preferência, os estilos da Corte, especialmente os Assentos da Casa da Suplicação (Lei de 18 de agosto de 1769, §14).
No Império, o Supremo Tribunal Federal tinha autoridade para tomar assentos, destinados a firmar a interpretação das leis (Decretos de 23 de outubro de 1875 e de 10 de março de 1876). Porém, na República, arrebentou-se esse funcionamento autoritário da elaboração de lei, com o que, certamente, ganhou a evolução social. O Supremo Tribunal Federal não teve o poder da antiga Casa da Suplicação ou do Supremo Tribunal do Império.[16]
III – O direito canônico e o romano: a) Até 1889, o direito canônico fora importante; mas, com a Constituição de 1891, art. 72, §§ 3º a 6º, 28 e 29, desaparecera tal fonte, o que não exclui o valor histórico e documentário, para interpretação do direito positivo, no que provém dele.[17]
IV – O direito das nações civilizadas, o uso moderno, a que se referiram os Estatutos da Universidade de Coimbra (Lei de 28 de agosto de 1772). Era a remissão ao direito estrangeiro.[18]
V – Analogia. Diziam as Ordenações Filipinas, Livro III, Título 69, pr.: “porque não podem todos os casos ser declarados em lei, procederão os julgadores de semelhante a semelhante”. E no Título 81, §2º, dispôs que o julgado, o “dito nestes casos aqui especificados haverá lugar em quaisquer outros semelhantes em que a razão pareça ser igual”.[19]
Conclui, finalmente, da seguinte forma:
“Se miudearmos as fontes de direito, teremos que eram as seguintes: Ordenações, direito romano, leis, decretos, alvarás e cartas régias, resoluções de consultas, assentos da Casa da Suplicação, avisos, portarias, instruções, estilos e praxe, forais, concordatas, tratados, leis de outros povos, analogia.”[20]
No seu Curso de Direito Civil de 1953, Miguel Maria de Serpa Lopes, civilista fluminense da Faculdade Nacional de Direito, conceituou as fontes do Direito como segue:
“Pela expressão — fontes do Direito — podem ser entendidos dois aspectos especiais da origem do Direito: ou num sentido real, dogmático, isto é, os sistemas de fato que dão ao Direito sua própria razão de ser, ou as próprias necessidades individuais ou sociais a que o direito é destinado a satisfazer, caso em que as fontes se confundem com o próprio Direito; ou então a palavra fontes pode significar, mais exata e especialmente para o jurista, os órgãos sociais donde imediatamente deriva o Direito. No primeiro caso, as fontes do Direito representam o elemento básico de todos os estudos jurídicos, de que foram pioneiros Geny e Lambert; no segundo caso, que é o que mais interessa ao jurista, constitui uma categoria formal.”[21]
Especificamente sobre as fontes formais do Direito, anotou o professor:
“Indubitavelmente, nas fontes formais do Direito, encontramos uma primeira categoria composta de fontes preestabelecidas e portadoras de um caráter estático. Mas o movimento das sociedades humanas não se contenta com essas bases exclusivamente estáticas e pede e exige outras mais compatíveis com a sua dinâmica. Assim, as fontes formais do Direito são seguidas de outras, que certos juristas denominam de não formais, sendo que alguns ainda criam uma terceira categoria, de modo a surgirem três espécies de fontes: 1ª) as imediatas ou formais, que são as leis, no seu sentido de regras sociais obrigatórias; 2ª) as mediatas ou geradoras, que são o costume, a ciência do Direito e a jurisprudência dos tribunais; 3ª) as fontes subsidiárias do Direito, isto é, os preceitos aplicáveis aos casos não previstos.
Alguns juristas, porém, reduzem a classificação a dois graus: fontes diretas ou imediatas e fontes mediatas ou indiretas, consoante sejam ou não suficientes a produzir a regra jurídica por sua própria força. E isso na verdade é exato. Rigorosamente falando, intuitivo se nos afigura que só podem ser chamadas de fontes formais do Direito, em seu sentido rigoroso, aquelas efetivamente capazes de produzir de pronto a regra jurídica, e como tal só a lei e o costume se revestem desses atributos. As demais, mediatas ou indiretas, ainda que colaborem bastante para o nascimento da regra jurídica, não passam de um dos seus elementos informadores, sem possuírem requisitos suficientes para surgirem como a única força geradora. Destinam-se a uma melhor compreensão da regra, porém não lhe dão existência, desempenhando mais o papel de fontes do conhecimento do Direito do que mesmo fontes do Direito.”[22]
Washington de Barros Monteiro, civilista consagrado por sua objetividade, em 1956, no Curso de Direito Civil, conceituou as fontes do Direito como “os meios pelos quais se formam ou pelos quais se estabelecem as normas jurídicas. São os órgãos sociais de que dimana o direito objetivo.”[23]
Na mesma linha de seus contemporâneos, Washington de Barros salientou que a mais importante classificação divide as fontes em diretas ou imediatas e indiretas ou mediatas:
“Fontes diretas ou imediatas são aquelas que, por si só, pela sua própria força, são suficientes para gerar a regra jurídica. São a lei e o costume.
Fontes indiretas ou mediatas são as que não têm tal virtude, porém encaminham os espíritos, mais cedo ou mais tarde, à elaboração da norma. São a doutrina e a jurisprudência.”[24]
Em 1957, o baiano Orlando Gomes publica sua Introdução ao Direito Civil. Após alertar para a falta de consenso, na doutrina, em relação às fontes formais do Direito, as conceitua como “forma de expressão do direito positivo”. Posto o conceito, somente seriam fontes formais, inequivocamente, a lei e o costume. Mas, sobre a força de uma e de outra, alertou:
“A formação consuetudinária do Direito, importante ainda hoje, não permite se circunscreva à lei o modo de expressão do Direito. Na ordem jurídica dos povos ocidentais, a organização do Estado dá às regras jurídicas, por ele editadas, uma ascendência que diminui o prestígio do costume como fonte do Direito, assinando-lhe papel secundário. Como o Estado dispõe do monopólio da força coercitiva, pela qual se impõem, ultima ratio, os preceitos jurídicos, a lei é a forma capital de expressão do Direito, valendo ainda quando contrarie costume de longa tradição.”[25]
No que toca à jurisprudência e aos princípios gerais do Direito, bem como à doutrina e à eqüidade — que, segundo Gomes, “outros, menos precisos”[26], incluem no rol das fontes —, afirmou o jurista que nenhum é fonte do Direito.
Em 1961, Caio Mário da Silva Pereira brinda a civilística nacional com a sua obra Instituições de Direito Civil, em cujo primeiro volume, de Introdução ao Direito Civil e Teoria Geral do Direito Civil, discorreu sobre as fontes do Direito. Eis o conceito proposto pelo mestre:
“[…] O meio técnico de realização do direito objetivo é o que se denomina fonte de direito.
A palavra fonte tem, entretanto, dois sentidos. Quando se trata de investigar, cientificamente, a origem histórica de um instituto jurídico, ou de um sistema, dá-se o nome de fonte aos monumentos ou documentos onde o pesquisador encontra os elementos de seu estudo, e nesta acepção se qualifica de fonte histórica. É com este sentido que nos referimos ao Digesto ou às Institutas, como fonte de nosso direito. Quando se tem em vista um direito atual, a palavra fonte designa as diferentes maneiras de realização do direito objetivo (fonte criadora), através das quais se estabelecem e materializam as regras jurídicas, às quais o indivíduo se reporta para afirmar o seu direito, ou o juiz alude para fundamentar a decisão do litígio suscitado entre as partes, e tem o nome de fonte formal.”[27]
Tratando das fontes criadoras, divide-as em principal e acessórias. Identifica a lei como única fonte principal, e a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito, como quer o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, como fontes acessórias, de invocação subsidiária.
Sílvio Rodrigues, em 1962, não dedicou um capítulo de sua coleção Direito Civil ao estudo das fontes do Direito, mas apenas cuidou das lacunas da lei:
“Quando a lei é omissa sobre algum problema, ou sobre a solução de alguma relação jurídica, diz-se que há uma lacuna da lei. Esta é inevitável em qualquer ordenamento jurídico, porque o legislador, por mais sagaz que seja, não pode prever todos os casos capazes de aparecer nas relações entre os indivíduos. E, mesmo que antevisse todas as relações jurídicas presentes, não teria o dom de prever todos os casos que o progresso trará. […]
Não encontrando na lei solução para o litígio apresentado, nem a descobrindo por analogia, deve o juiz recorrer aos costumes.”[28]
Por fim, já no século XXI, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, não inovam ao asseverar:
“Com efeito, é de se concordar com Caio Mário, tomando por base o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, compreendendo, então, como fontes formais do Direito a lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Ademais, há de se atentar para o fato de que as fontes formais se subdividem em principal e acessória. Aquela (fonte formal principal) é a lei, enquanto as demais são as fontes formais acessórias, também ditas secundárias.
Há, ainda, as fontes não formais do direito, que são a doutrina e a jurisprudência. Nesse ponto, sem dúvida, não é possível resumir as fontes do Direito às fontes formais (leis, costumes, analogia e princípios gerais de direito), esquecendo da jurisprudência e da doutrina. É certa e incontroversa a influência da orientação científica emanada dos estudiosos da ciência, bem como dos caminhos de compreensão abertos pela reiteração de decisões pelos nossos tribunais.”[29]
3. Fontes do direito brasileiro contemporâneo: conceito na doutrina clássica, atualidades e transformações
3.1. Fontes informadoras
Da análise feita no capítulo anterior, concluímos que o Sistema Jurídico Brasileiro do século XXI vive uma transformação na aplicação das fontes do Direito, que requer uma reorganização da classificação destas. Em processo semelhante ao vivido nos Estados Unidos no final do século XVIII e início do XIX, no qual os precedentes ingleses, fonte primária do Direito, deram lugar ao chamado judge-made law, ou Direito criado pelos juízes, promovendo grande transformação social, o Direito Brasileiro do século XXI começa a inverter a ordem de aplicação das fontes, passando os princípios gerais do Direito e a jurisprudência a se sobrepor à lei. Os princípios gerais do Direito e a jurisprudência se tornaram verdadeiras fontes informadoras do Direito Positivo, submetendo as demais fontes ao seu crivo.
Na busca pela norma jurídica, a análise empírica do Direito Brasileiro contemporâneo leva o pesquisador a crer que tal é o caminho a perquirir: 1. Quais são os princípios informadores do ramo do Direito de que se trata, e qual é a jurisprudência dos tribunais sobre o assunto? 2. Quais os diplomas normativos reguladores da matéria? 3. Os princípios informadores e a jurisprudência autorizam a existência da norma positiva, ou determinam o seu descarte?
Dessa forma, então, será encontrado o Direito, que será ou derivado imediatamente dos princípios e da jurisprudência, quando não houver regulação legal, ou quando esta houver de ser afastada, ou será fruto da combinação dos princípios e da jurisprudência com a norma positiva. Quando não houver princípios informadores ou jurisprudência, mas houver lei, esta, exercendo papel de fonte subsidiária, dará o Direito. A afirmação deve causar espanto, mas é isso mesmo que se afirma: papel de fonte subsidiária, conforme se pretenderá demonstrar.
A prática judiciária revela com clareza que o juiz contemporâneo não julga desde logo com a lei, mas antes julga a lei, à luz dos princípios gerais do Direito aplicáveis ao caso, e, por vezes, ainda, à luz da jurisprudência, e, resultado de tal julgamento, opta por aplicá-la ou afastá-la.
Dir-se-á, portanto, que são duas as fontes informadoras do Direito contemporâneo: os princípios gerais do Direito, fonte de natureza científica, e a jurisprudência dos tribunais, fonte de natureza pragmática.
Por fonte informadora quer se dizer fonte diretriz; fonte capaz de criar imediatamente o Direito ou servir como parâmetro para análise da norma positiva.
Pede-se licença para se tomar uma lição de Beviláqua e adaptá-la ao tema em exame:
“Em qualquer dos casos, porém, a inteligência do jurista procura revelar o direito latente, não, esforçando-se por descobrir uma pretendida vontade do legislador, mas, como belamente disse Paula Baptista, “na harmonia orgânica do direito positivo com o científico”.[30]
Ou seja, na busca pelo Direito, o jurista buscará a harmonia do Direito científico – expresso nos princípios e na jurisprudência – com o Direito positivo, expresso na lei.
Embora não os tenha listado entre as fontes do Direito Civil, o Conselheiro Ribas comentou sobre os princípios do Direito, fazendo referência às Ordenações Filipinas, Livro 3, Título 14:
“Previdente, determinou a legislação pátria as fontes a que o jurisconsulto deve ir pedir as regras complementares do direito, de sorte que para todas as possíveis relações jurídicas haja sempre princípios que as dominem.”[31]
Beviláqua, na Teoria de 1908, iniciou o estudo dos princípios com estas palavras:
“Se o processo analógico deixa subsistir as falhas da legislação, se nem a lei nem o costume providenciam para a hipótese, que se apresenta ao aplicador da lei, cumpre recorrer aos princípios gerais do direito, com os quais o jurista penetra em um campo mais dilatado, procura apanhar as correntes diretoras do pensamento jurídico e canalizá-las para onde a necessidade social mostra a insuficiência do direito positivo. É, então, que o direito melhor se lhe deve afigurar como a ars boni et aequi.”[32]
Impressionante a visão do inigualável mestre. Embora estudando os princípios como fonte subsidiária do Direito, Beviláqua poeticamente provê fundamento para o que o Direito de hoje quer que aconteça: um Direito não formalista, em que a elevação dos princípios gerais do Direito ao patamar de fonte informadora do ordenamento lhe tornará mais próximo de ser a ars boni et aequi!
Prosseguindo, o civilista aponta a presença dos princípios gerais no Projeto de Código Civil de Nabuco de Araújo, de 1872, art. 82: “quando uma questão não puder ser decidia pela letra, motivos e espírito da lei, ou por disposições relativas aos casos análogos, devem os juízes recorrer aos princípios gerais do direito, até haver providencia legislativa”[33]; no Projeto de Felício dos Santos, de 1881, art. 53: “quando uma questão não puder ser decidida pela letra, motivos ou espírito da lei, ou por disposições em vigor no Brasil, que regulam casos análogos, deve o juiz recorrer aos princípios gerais do direito natural, até haver providência legislativa”[34]; no Projeto de Coelho Rodrigues, de 1890, art. 38 da Lei Preliminar: “aos casos omissos aplicam-se as disposições reguladoras dos casos análogos e, na falta destas, os princípios que se deduzem do espírito da lei”[35]. Posteriormente, na redação do Projeto Beviláqua, de 1899, revisto, na Câmara, por Lacerda de Almeida, manteve-se a redação de Coelho Rodrigues, no art. 7º da Lei Preliminar, apenas substituindo a expressão final por princípios gerais de direito[36].
Vale anotar que Rui Barbosa, no seu polêmico Parecer de 1902, naturalmente, propôs alteração da redação do dispositivo para “aplicam-se nos casos omissos as disposições concernentes aos casos análogos e, não as havendo, os princípios gerais de direito”[37]. O texto aprovado em 1916, não obstante, incluiu vírgulas no texto, que passou a ser: “aplicam-se, aos casos omissos, as disposições concernentes aos casos análogos, e, não as havendo, os princípios gerais de direito”[38].
Na obra Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, de 1916, Beviláqua aprofundou ainda mais seus comentários sobre os princípios. Veja-se o que anotou:
“Não se trata, como pretendem alguns, dos princípios gerais do direito nacional, mas, sim, dos elementos fundamentais da cultura jurídica humana em nossos dias; das idéias e princípios, sobre os quais assenta a concepção jurídica dominante; das induções e generalizações da ciência do direito e dos preceitos da técnica.
Esses princípios, objetam, são vagos, indeterminados. Mas não é tanto assim. Certamente temos de penetrar fundo na filosofia do direito, na história da civilização, e ter o espírito aparelhado por uma educação jurídica bem cuidada, para empreendermos a investigação dos princípios gerais do direito. Mas esse mesmo preparo mental indica a rota a seguir, e habilita o jurista a reconhecer a natureza positiva das coisas, elemento objetivo, impreciso, mas fecundo da investigação jurídica […].”[39]
No Sistema, Espínola cuidou dos princípios gerais do Direito com primor, como segue:
“Os princípios gerais do direito devem ter eficácia em uma legislação sistemática. Constituem a síntese da própria legislação, iluminam seus preceitos e assim é necessário que os completem e expliquem. […] Os princípios gerais do direito deduzem-se de um lado — das leis e dos costumes, do sistema jurídico adotado no direito positivo, mas de outro lado dependem das construções teóricas dos sábios e das circunstâncias históricas que influíram sobre a legislação. […] Não se deve hesitar na afirmação de que em matéria de fonte do direito, tanto a obra científica dos juristas como a jurisprudência dos tribunais têm sua maior importância na fixação dos princípios gerais do direito: a primeira como o estudo histórico e filosófico das instituições sociais e a elaboração sintética das regras teóricas que dominam certos e determinados campos jurídicos; a segunda com a análise dos textos legislativos e das normas consuetudinárias, para a compreensão do sistema jurídico adotado e sua correspondência aos princípios científicos.”[40]
Em outro trecho, explica que:
“Ainda mais, há certos princípios constituídos pela ciência do direito, regras sintéticas a que chegaram os cultores da jurisprudência, depois de um estudo analítico das normas de conduta adotada em todos os tempos, os quais, por sua evidência, muitas vezes deixam de ser expressos na lei (stricto sensu) e outras vezes são observados, quando ela é omissa.”[41]
Em mais um caso de visão de futuro, Espínola comenta a relação entre os princípios gerais do Direito, a jurisprudência e o conhecimento científico e filosófico do Direito. Mesmo escrevendo em uma época de afirmação da lei como fonte primária, o professor identificou o fenômeno, o qual viria, no século XXI, a lutar contra o formalismo legalista pela posição de fonte formal principal do Direito e instrumento de mudança social e realização de ideais de justiça.
Serpa Lopes, atendo-se ao conceito romano de jurisprudência — a ciência e a prática do Direito[42] — chama os princípios gerais do Direito de jurisprudência em sentido estrito. Sobre o caráter conservador e inovador dos princípios, aponta:
“A jurisprudência desenvolve uma dupla função; é conservadora e é inovadora. Conservadora quando, ante uma lei nova, mantém tudo quanto do passado não pareça em antinomia com o Direito presente; inovadora, quando indica os defeitos oriundos do envelhecimento de uma lei, mostrando onde se impõe uma reforma.”[43]
Apesar da brilhante passagem, que parece prover fundamentos para que hoje se afirme a transformação das fontes e o papel de fonte informadora que têm os princípios, o professor conclui pelo caráter indireto dos princípios como fonte, e, por não cuidar da disciplina destes separadamente da jurisprudência dos tribunais, não fornece mais elementos que se possa a este debate acrescer.
O professor Washington de Barros, curiosamente, não considerou que os princípios gerais do Direito fossem fontes deste, mas sim elementos de integração da norma jurídica. Sempre objetivo, afirmou: “nada existe de mais tormentoso para o intérprete que a explicação dos princípios gerais de direito, não especificados pelo legislador”[44]. De fato, não os conceituou, senão mencionou o conceito que extraiu da lição de Beviláqua no Código: “no dizer de Clóvis, eles [os princípios gerais do Direito] são os elementos fundamentais da cultura jurídica humana em nossos dias”[45].
Na mesma linha de Washington de Barros, Orlando Gomes não considera que sejam os princípios gerais do Direito verdadeiras fontes deste.
“Além da jurisprudência e da doutrina, vêem alguns nos princípios gerais do Direito outra de suas fontes formais. A tese não se compadece, porém, com o conceito puro de fonte, mas, como tais princípios concorrem para facilitar a interpretação e aplicação das leis, sua definição interessa ao estudo das fontes do Direito, tendo-se em vista, sobretudo, que explicam e completam muitas regras do direito positivo.”[46]
Não chega a conceituá-los, mas comenta:
“Dos princípios gerais do direito, entendidos como diretrizes ou forças propulsoras do desenvolvimento da ordem jurídica, devem distinguir-se os que, como esclarece F. FERRARA, são extraídos das disposições legislativas concretas, e se ampliam em fórmulas gerais, compreensivas de novas aplicações. São estes que servem como fonte subsidiária na aplicação da lei, pois traduzem o desenvolvimento, mediante o processo lógico e analógico, que o intérprete faz das próprias normas componentes da ordem legal. Os outros constituem, na expressão do mesmo F. FERRARA, as forças animadoras da vida do Estado, em certo momento histórico, sem que possam ser considerados como de direito natural, porquanto têm caráter relativo. Introduzidos no sistema legislativo como postulados pragmáticos, sua importância se revela sob dois aspectos: a) “como normas propulsoras da atividade legislativa e administrativa; b) “como normas inspiradoras da aplicação do direito vigente”.”[47]
Com todo o respeito que merece o civilista baiano, são, não obstante suas considerações, justamente os princípios gerais como postulados pragmáticos, normas inspiradoras, que a análise empírica do Direito Pátrio contemporâneo revela como fontes informadoras do Direito.
Caio Mário, nas Instituições, concedeu aos princípios gerais do Direito a natureza de fontes, ainda que subsidiárias. Explicou:
“Fonte subsidiária, ainda, quando as outras mais diretas falham, ou se mostram insuficientes, é a invocação dos princípios gerais de direito, com a qual o aplicador investiga o pensamento mais alto da cultura jurídica, juntamente com a fixação da orientação geral do pensamento jurídico, e os traz ao caso concreto. Perquire o pensamento filosófico sobranceiro ao sistema, ou as idéias estruturais do regime, e impõe a regra em que dada espécie se contém implícita no organismo jurídico nacional. […]
A invocação dos princípios gerais de direito faz apelo às inspirações mais altas da humanidade civilizada, e joga com aquelas regras incorporadas ao patrimônio cultural e jurídico da nação, permitindo ao juiz suprir a deficiência legislativa com a adoção de um cânon que o legislador não chegou a ditar sob a forma de preceito, mas que se contém imanente no espírito do sistema jurídico.”[48]
Sílvio Rodrigues, legalista, afirmou, sobre os princípios gerais do Direito, que “a expressão é por demais ampla e muitos entendem que é aos princípios de direito natural que o legislador manda recorrer”, em referência à Lei de Introdução ao Código Civil.
Incerto quanto ao tema, questiona-se:
“Talvez mais valha atribuir-se à expressão um sentido diferente, pois parece-me que o legislador quer se referir àquelas normas que o orientam na elaboração da sistemática jurídica, ou seja, àqueles princípios que, baseados na observação sociológica e tendo por escopo regular os interesses conflitantes, se impõem, inexoravelmente, como uma necessidade da vida do homem em sociedade.”[49]
Pois bem. Em que pese a excelente lição de tantos civilistas que abrilhantaram a doutrina do Direito Civil neste país, verifica-se, hodiernamente, que os princípios gerais do Direito ganharam força de fonte suprema do direito objetivo, conforme se explicou retro.
À diferença de outras constituições federais, sobretudo a dos Estados Unidos da América, a Constituição Federal de 1988, ao fundar a República Federativa do Brasil, optou por construir um novo Estado, com o objetivo de garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º), fundada sobre as bases da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político (art. 1º). Para tanto, desceu a minúcias e regulou com detalhe diversas matérias não contempladas por outras constituições. Iniciou, destarte, a transformação da ordem jurídica pátria, ao introduzir no ordenamento uma série de princípios informadores da norma constitucional e que devem orientar a construção e aplicação do Direito.
Veja-se a brilhante lição do professor César Fiuza:
“[…] os princípios gerais do Direito também são fonte jurígena. Deles […] podem ser extraídos outros princípios e regras. Na atualidade, a importância dos princípios aumentou. São várias as razões, entre as quais destacamos duas, talvez as mais relevantes. A primeira é o próprio Estado Democrático de Direito, sob cuja égide vive o Brasil contemporâneo. Segundo o paradigma do Estado Democrático de Direito, todo o ordenamento se submete aos valores e princípios constitucionais, mesmo que não claramente escritos, expressos, desde que se possa extrair da lógica e dos valores do sistema constitucional. Outra razão é a revolução por que vem passando a hermenêutica, que destaca cada vez mais o trabalho do intérprete, que se deve basear cada vez mais nos princípios, a fim de obter a justiça no caso concreto, mesmo porque, havendo contradição entre um princípio e uma regra, prevalece aquele.”[50]
Em sede de Direito Civil, observe-se o papel dos princípios como fonte informadora.
O Direito dos Contratos é regulado pelo Código Civil e por uma série de leis esparsas, fontes criadoras, ressalvada, ainda, a possibilidade de surgimento de novos contratos, não tipificados. De todos os ramos do Direito Civil, é possivelmente o Direito dos Contratos o que mais depende dos princípios gerais, que são indiscutivelmente sua fonte informadora. Haveria contrato se não existisse o princípio da autonomia da vontade?
“O princípio da autonomia da vontade particulariza-se no direito contratual na liberdade de contratar, auto-regulando interesses. Significa o poder dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica. […]
O conceito de liberdade de contratar abrange os poderes de auto-regência de interesses, de livre discussão das condições contratuais e, por fim de escolha do tipo de contrato conveniente à atuação da vontade.”[51]
O que causa espanto é como Orlando Gomes, que tão precisamente discorreu sobre o princípio da autonomia da vontade, pôde, na Introdução, negar o caráter de fonte formal aos princípios gerais do Direito!
Em seguida ao princípio da autonomia da vontade, o mais importante princípio do Direito dos Contratos é o da função social, que chegou mesmo a ser esculpido pelo legislador de 2002 no novo Código Civil, art. 421: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Toda e qualquer outra fonte criadora do Direito dos Contratos está à mercê de tal princípio; tem este o poder de sustentar uma norma ou afastá-la do ordenamento.
Beviláqua, mais uma vez revelando-se à frente de seu tempo, já em 1895, quando da primeira edição do seu Direito das Obrigações, antes mesmo de ser contratado para elaborar o projeto do Código Civil, iniciou o estudo da Teoria dos Contratos com a belíssima introdução sobre a função social do contrato. Não tendo nenhum outro jurista escrito com tanta emoção sobre o princípio, transcrevam-se as palavras do mestre:
“Os grupos primitivos preferiam tomar aquilo que necessitavam, a obtê-lo por troca. […] Mas esse reinado de lutas contínuas não poderia perdurar indefinidamente, sem que fosse sacrificada a humanidade. Foi preciso achar caminhos, por onde de se pudesse salvar a sociabilidade, condição essencial para a vida humana. Quem diz vida humana diz implicitamente coexistência social. Entre os diversos fatores, que concorreram para esse resultado, ocupa lugar saliente o contrato, ou, si preferirem, o comércio, tomada esta palavra em uma acepção mais lata do que a que lhe é comumente assinada em direito.
Pode-se, portanto, considerar o contrato como um conciliador dos interesses colidentes, como um pacificador dos egoísmos em luta. É certamente esta a primeira e mais elevada função social do contrato. […]
Individualizado o contrato, obteve outra significação que se veio colocar ao lado da primeira. Passou a ser um dos modos de afirmar a individualidade humana. Quanto mais variam os contratos, quanto maior é o número de bens sobre que eles versam, tanto mais forte e extensa é a personalidade individual, tanto mais vasto é o granel de utilidades que ela tem a seu dispor.
Desprendida a personalidade individual da nebulosa do coletivizo primitivo, robustecida, enlarguecida, toma o vôo, como uma prole emplumada que abandona as calenturas enervantes do ninho, e começa, por meio dos contratos, na faina de aproximar as utilidades criadas ou apreendidas das necessidades sentidas. E, para realizar essa empresa, vai, progressivamente, estendendo o círculo de sua ação. Hoje um povo, amanhã um grupo de nações vizinhas, mais tarde um continente e, finalmente, o globo inteiro recebem as malhas vigorosas da rede imensa do comércio [contrato].”[52]
Em julgamento de Recurso Especial no Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Luiz Fux teve ocasião de se pronunciar acerca do princípio da função social do contrato, fonte informadora influente no campo das normas de interpretação contratual:
“Deveras, consoante cediço, o princípio pacta sunt servanda, a força obrigatória dos contratos, porquanto sustentáculo do postulado da segurança jurídica, é princípio mitigado, posto sua aplicação prática estar condicionada a outros fatores, como, por v.g., a função social, as regras que beneficiam o aderente nos contratos de adesão e a onerosidade excessiva.
[…] Hodiernamente, prevalece na interpretação o elemento objetivo, vale dizer, o contrato deve ser interpretado segundo os padrões socialmente reconhecíveis para aquela modalidade de negócio.”[53]
Veja-se: o aresto afirma uma norma de interpretação contratual, qual seja, a de que “o contrato deve ser interpretado segundo os padrões socialmente reconhecíveis” para a modalidade de negócio de que trata. Percebe-se, claramente, a ação do princípio da função social do contrato como fonte informadora de regra de interpretação. Mas, dir-se-á que o princípio é mero método de interpretação, de preenchimento de lacuna, como querem os que negam seu caráter de fonte? Conclui-se, forçosamente, que não.
Outro fundamental princípio do Direito dos Contratos é o princípio da boa-fé, mais um que o legislador de 2002 positivou, no novo Código Civil, art. 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Erige-se o princípio da boa-fé na lei, e submete-se a existência de toda e qualquer fonte criadora do Direito dos Contratos ao princípio. Entretanto, naturalmente, o princípio já existia no ordenamento brasileiro à época da vigência do Código de 1916, já sendo, portanto, fonte informadora do Direito. O próprio Orlando Gomes dele cuidou em Contratos:
“O princípio da boa fé entende mais com a interpretação do contrato do que com a estrutura. Por ele se significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível. Ademais, subentendem-se, no conteúdo do contrato, proposições que decorrem da natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força de uso regular e da própria equidade. Admite-se, enfim, que as partes aceitaram essas conseqüências, que realmente rejeitariam se as tivessem previsto. No caso, pois, a interpretação não se resume à simples apuração da intenção das partes. […]
Ao princípio da boa fé empresta-se ainda outro significado. Para traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com boa fé. Indo mais adiante, aventa-se a idéia de que entre o credor e o devedor é necessário a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato.”[54]
É verdade que o conceito de princípio da boa-fé evoluiu desde os escritos de Orlando Gomes, mas o texto cumpre o papel de revelar o caráter de fonte do Direito exercido pelo princípio, independentemente de estar positivado.
Em outro julgado, o Ministro Luiz Fux menciona o princípio da boa-fé:
“A abusividade do Código de Defesa do Consumidor pressupõe cobrança ilícita, excessiva, que possibilite vantagem desproporcional e incompatível com os princípios da boa-fé e da equidade, inocorrentes no caso sub judice.”[55]
Não se está a afirmar a submissão do instituto previsto no Código de Defesa do Consumidor, fonte criadora do Direito, aos ditames do princípio da boa-fé, como fonte informadora, superior à lei?
Passe-se ao campo do Direito das Coisas. O direito de propriedade está formalizado no Direito Brasileiro em duas fontes: na Constituição Federal, no caput do art. 5º; e no Código Civil, no art. 1228, o qual lê: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Não obstante, o inc. XXIII do referido art. 5º da Constituição Federal submete a propriedade ao princípio da função social: “a propriedade atenderá a sua função social”, o qual é repetido no §1º do mencionado dispositivo do Código Civil: “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
Antes de aparecer em texto normativo, o princípio já vivia no Direito das Coisas, conforme se depreende da seguinte lição de Beviláqua (mais uma vez):
“O verdadeiro fundamento da propriedade é o instinto de conservação, que leva a criatura humana a se apoderar das coisas, que lhe servem, a princípio, para satisfazer a fome, e, depois, as múltiplas necessidades de ordem física e moral. […] Com o desenvolvimento da sociedade e sua organização jurídica, o respeito à propriedade alheia se afirma; e a propriedade perde o caráter egoístico originário. […] O interesse social, quando em conflito com o individual, deve prevalecer, porque a sociedade é o meio, em que o homem vive; não há homem fora da sociedade. Mas, também, o individuo é elemento constitutivo da sociedade; se esta lhe tira o estímulo da atividade, não tendo em conta os interesses dele, não poderá ser uma sociedade progressiva, seja do ponto de vista econômico, seja, e principalmente, do ponto de vista moral.”[56]
Mais adiante:
“Em uma palavra, é necessário continuar a reconhecer a propriedade do individuo sobre a terra, com as limitações, que, racional e justamente, exigir a convivência humana, contanto que essas restrições não conturbem ou anulem o estímulo da atividade individual, que é força indispensável ao bem estar e ao progresso da coletividade.”[57]
Orlando Gomes, curiosamente, em Direitos Reais, reconheceu que a fonte de certas limitações ao direito de propriedade são certos princípios gerais do Direito[58]:
“A aplicação de certos princípios jurídicos de incidência sobre todo o território dos direitos subjetivos apresenta-se sob aspectos particularmente interessantes quando apanha o direito de propriedade.”[59]
Ora, está ou não o professor a indicar o caráter de fonte formal dos princípios?
A respeito da função social da propriedade, veja-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana (Súmula 668 do STF).”[60]
Mais uma vez, a pergunta: é o princípio da função social da propriedade mero método de interpretação, de preenchimento de lacuna da norma, ou fonte informadora do Direito, que condiciona a produção das normas sobre a matéria?
Ainda em sede de Direito das Coisas, encontraremos em Teixeira de Freitas, na sua Consolidação das Leis Civis, referência a um princípio de caráter inegavelmente informador:
“Quando as legislações não proíbem expressamente a criação de outros direitos reais, além dos que elas designam, e regulam; a doutrina, e a jurisprudência, inclinam-se, por deferência ao principio da liberdade das convenções, a admitir combinações de todo gênero, uma vez que nada tenham de contrário à ordem publica”.[61]
O texto transcrito, original da primeira edição da obra, que é de 1855, revela que Teixeira de Freitas já dava notícia de princípios gerais do Direito criando o Direito desde meados do século XIX! Como poderia alguém se aventurar a negar o caráter de fonte encontrado na lição do grande ícone do Direito Civil Brasileiro? Como se poderia dizer que o referido princípio da liberdade das convenções tinha caráter meramente interpretativo, ou de recurso de preenchimento de lacuna? Não. A força do princípio, segundo demonstra o jurista, era de impedir que se repelissem combinações de qualquer gênero, criadoras de novos direitos reais, sob o argumento de não terem sido tratadas em lei. E mais: o princípio não se encontrava em qualquer texto normativo; nascera de construção científica, filho da doutrina e da jurisprudência.
Para alargar os horizontes, cumpre analisar alguns exemplos de princípios em sede de Direito Constitucional. Quem, nos dias atuais, negaria força ao princípio da proporcionalidade, ou a princípio da razoabilidade? O Direito Constitucional os inclui no rol dos princípios constitucionais, não obstante não estarem escritos em lugar algum da Constituição Federal. É que se entende que tais princípios decorrem de uma interpretação sistemática do ordenamento.
Vejam-se os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal, todos usando o princípio da proporcionalidade como fonte formal principal do Direito. Da lavra do Ministro Ricardo Lewandoswski:
“Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local.”[62]
Outro, este do Ministro Joaquim Barbosa:
“A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo constitui obstáculo sério (e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direito de petição (CF, art. 5º, XXXIV), além de caracterizar ofensa ao princípio do contraditório (CF, art. 5º, LV). A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao princípio da proporcionalidade. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 32 da MP 1699-41 – posteriormente convertida na lei 10.522/2002 -, que deu nova redação ao art. 33, § 2º, do Decreto 70.235/72.”[63]
Versando o princípio da razoabilidade, o Ministro Eros Grau:
“O sigilo bancário, espécie de direito à privacidade protegido pela Constituição de 1988, não é absoluto, pois deve ceder diante dos interesses público, social e da Justiça. Assim, deve ceder também na forma e com observância de procedimento legal e com respeito ao princípio da razoabilidade.”[64]
Deve-se, por fim, ressaltar que, não obstante se haver percebido o novo papel dos princípios gerais do Direito Brasileiro na fase atual de sua evolução, tal não é um julgamento de mérito, senão uma constatação.
Inicialmente, parece, é verdade que a elevação dos princípios gerais do Direito à categoria de fonte formal principal, informadora do direito objetivo, é, realmente, para expandir o raciocínio de Beviláqua, a mais capaz de levar o Direito a ser a ars boni et aequi. Não obstante, a matéria é delicada ao extremo, e é forçoso que o jurista faça um estudo bastante cuidadoso dos princípios gerais do Direito antes de neles buscar o direito objetivo. Em primeiro lugar, para que se dê a cada princípio o conteúdo mais adequado, e, em segundo lugar, para que se saiba sopesar princípios que pareçam conflitantes.
3.1.2. O papel da doutrina
Neste trabalho, perfilha-se o pensamento daqueles que não vêem na doutrina uma fonte formal do Direito. Raciocinando-se tecnicamente, parece possível afirmar que a doutrina é fonte inesgotável da Ciência do Direito, mas não do direito objetivo. E, por tal razão, por ser o manancial científico e filosófico do Direito, desempenha um papel de enorme importância ao ditar o conteúdo dos princípios gerais do Direito e sua evolução no tempo.
Leia-se Beviláqua, a respeito:
“Entre nós, esta fonte é abundante, porque é, antes, nos compêndios e tratados que se procura a regra jurídica, do que nas leis difusas, que se têm vindo acumulando, por séculos, em vasta coleção de difícil consulta. O escritor apresenta uma interpretação da lei ou uma solução para um caso não previsto na lei, e vê o seu pensamento, aceito pelos contemporâneos, fixar-se na doutrina, que irá inspirar os julgamentos dos tribunais.”[65]
3.1.3. Jurisprudência
A jurisprudência, segundo a classificação apresentada neste trabalho, é a segunda fonte informadora do direito objetivo.
Orlando Gomes tratou muito bem do conceito de jurisprudência:
“Para tomar partido no debate, é necessário, primeiramente, precisar o sentido da palavra jurisprudência. Empregada como sinônimo de Ciência do Direito, tem, contudo, na atualidade, significado técnico mais restrito. Por jurisprudência entende-se o conjunto de decisões dos tribunais sobre as matérias de sua competência ou uma série de julgados similares sobre a mesma matéria: rerum perpetuo similiter judicatorum auctoritas. Forma-se a jurisprudência mediante o labor interpretativo dos tribunais, no exercício de sua função específica. Interpretando e aplicando o direito positivo, é irrecusável a importância do papel dos tribunais na formação do Direito, sobretudo porque se lhe reconhece, modernamente, o poder de preencher as lacunas do ordenamento jurídico no julgamento de casos concretos.”[66]
Lamentavelmente, mesmo após tão brilhante exposição, o mestre baiano negou o caráter de fonte do Direito à jurisprudência, como se verá infra.
Curiosamente, o Direito Brasileiro está revivendo um momento passado. É que, no Direito anterior à vigência do Código Beviláqua, vigoravam as Ordenações Filipinas, cujo Livro 3, Título 64, lia:
“Como se julgarão os casos, que não forem determinados por as Ordenações (3).
Quando algum caso for trazido em prática, que seja determinado por alguma Lei de nossos Reinos, ou estilo de nossa Corte (4), ou costume em os ditos Reinos, ou em cada uma parte deles longamente usado, e tal, que por Direito se deva guardar, seja por eles julgado, sem embargo do que as Leis Imperiais acerca do dito caso de outra maneira dispõem; porque, onde a Lei, estilo, ou costume de nossos Reinos dispõem, cessem todas as outras leis, e Direito.
(3) Vide nos aditamentos a este liv. a L. de 13 de Agosto de 1769, denominada da boa razão pelos jurisconsultos.
(4) Estilo de nossa Corte, i.e., os da Casa da Suplicação. […]
Os estilos da Corte sendo bons e legitimamente estabelecidos constituem lei, e se devem observar como tal.
Hoje somente são havidos como tais os que houverem estabelecidos e aprovados por assento tomado em Mesa grande, na forma da C. R. de 7 de Junho de 1705 § 8 e L. de 18 de Agosto de 1789 § 14.”[67]
Ou seja, no Direito anterior à vigência do Código Civil de 1916, a jurisprudência era fonte formal do Direito Pátrio! Interpretando as Ordenações, quanto à inexistência de uma Casa da Suplicação no Brasil (esta era em Portugal), explicou o Conselheiro Ribas:
“A casa da suplicação não existe entre nós; mas, ao supremo tribunal de justiça compete tomar assentos, para a inteligência das leis civis, comerciais e criminais, quando na execução delas ocorrerem dúvidas manifestadas por julgamentos divergentes havidos no mesmo Tribunal, Relações e Juízos de 1ª instância nas causas que cabem na sua alçada; e assim mais indicar ao governo os pontos sobre que a experiência tiver mostrado vício e insuficiência da legislação, e as suas lacunas e incoerências, afim de que ele proponha ao corpo legislativo as convenientes reformas.”
Ora, vê-se que, no Brasil independente, função análoga à da Casa da Suplicação era a do Supremo Tribunal de Justiça do Império, criado pelo art. 163 da Constituição Imperial de 1824[68], que tinha igualmente o poder de tomar assentos.
“O Supremo Tribunal da organização judiciária monárquica, não existindo mais a casa da Suplicação, tinha competência para tomar assentos destinados a firmar a inteligência das leis civis, comerciais e criminais, quando ocorressem dúvidas na execução delas (decs. de 23 de Out. de 1875 e 10 de Março de 1876). O Supremo Tribunal Federal não tem essa atribuição.”[69]
A mesma Constituição Imperial previa, no art. 179, XVIII, que “organizar-se-á quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade”. O Código, como se sabe, só veio a surgir em 1916. Na defesa de seu projeto, de 1899, Beviláqua anotou:
“Se há necessidade claramente acusada pela consciência jurídica entre nós, é, creio eu, a da codificação das leis civis. Testemunhos irrecusáveis desse estado de espírito se nos deparam nos livros de doutrina que assinalam, deplorando, a dissonância entre o instrumento legislativo de que se servem e a expansão científica que os deslumbra; na Jurisprudência que se esforça por adaptar vetustos preceitos, criados por uma organização social diferente, a novas formas de relações jurídicas; nas insistentes tentativas, por parte dos poderes públicos, de compendiar num todo sistemático a legislação civil, tão vasta e tão complexa; na aprovação geral com que têm os competentes secundado esses esforços, infelizmente até hoje infrutíferos.”[70]
Repare-se bem no que está dito sobre o papel da jurisprudência na passagem do mestre. E bem por pensar assim é que, no art. 8º da Lei de Introdução do seu Projeto, estabeleceu que “uma lei só pode ser derrogada ou revogada por outra, mas a jurisprudência assentada e a praxe forense podem suprir as suas lacunas, na conformidade dos arts. 12 e 13”[71]. Lamentável que a brilhante disposição tenha sido suprimida do Projeto Revisto encaminhado à Câmara.
Em relação ao Supremo Tribunal Federal, criado pelo art. 55 da Constituição Republicana de 1891, como visto retro, na citação de Beviláqua, não lhe foi concedida a atribuição de tomar assentos. Não obstante, o §2º do art. 59 determinava que “nos casos em que houver de aplicar leis dos Estados, a Justiça Federal consultará a jurisprudência dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos Estados consultarão a jurisprudência dos Tribunais Federais, quando houverem de interpretar leis da União.”
Muitos desses preceitos foram inspirados na Common Law. O referido dispositivo da Constituição de 1891 parece fruto de um debate realizado, à época, nos Estados Unidos, exatamente sobre se deveria a Justiça Federal utilizar precedentes das Justiças Estaduais ou não. Verifica-se que, ao final do século XIX e início do século XX, também os juristas de Civil Law questionavam-se sobre o papel do juiz na aplicação do direito objetivo.
No Sistema, Eduardo Espínola cuidou muito bem da questão:
“a) é lícito ao juiz deixar de aplicar a lei que já não corresponde às necessidades sociais e se opõe à instituição e desenvolvimento de relações jurídicas vivamente reclamadas pelo comércio social? b) pode o juiz criar a norma jurídica para suprir as lacunas insolúveis da lei? […]
A doutrina mais recente, aceita por grande número de civilistas de responsabilidade e destinada a romper as resistências de muitos outros, é francamente favorável a uma solução afirmativa. Poderia parecer que, para adotá-la, fosse mister ultrapassar os limites da interpretação.”[72]
Mais adiante:
“A moderna escola do “direito livre” vai, nesse ponto, além do razoável. Abstraindo, porém, das dissertações puramente teóricas, escritores moderados […] não hesitam em reconhecer a utilidade prática de se interpretarem as normas jurídicas de acordo com as necessidades da vida social.”[73]
Já na segunda metade do século XX, Serpa Lopes, no Curso, comemorou a decisão do Supremo Tribunal Federal de criar súmulas, em 13 de dezembro de 1963, em vigor a partir de março de 1964. Ademais, o professor destaca o art. 63 da Lei 5.010/65, o qual “organizando a Justiça Federal, prescreveu, imperativamente, a elaboração das súmulas pelo Supremo Tribunal de Recursos”[74]. Mais tarde, o art. 479 de Código de Processo Civil de 1973 também previu que “o julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência”. Finalmente, a idéia foi abraçada pelo próprio Regimento do Supremo Tribunal Federal, em vigor a partir de 15 de outubro de 1979. Leia-se Serpa Lopes:
“Houve notável inovação na matéria concernente à uniformização jurisprudencial, com a criação da jurisprudência predominante na Suprema Corte, pela organização de súmulas. […] Medida reputada da mais altaneira significação e importância pela incontrastável necessidade de supervisão unificadora através de um colegiado supremo. É nível, único capaz de proporcionar ao nosso mundo jurídico um roteiro, uma bússola na avassaladora e exaustiva pesquisa jurisprudencial. Este é deveras precioso contributo à causa do Direito pátrio, elaborada por uma Comissão de Ministros, criado na sessão de 13 de dezembro de 1963. Passou a vigorar a partir de março de 1964. Tão decisiva foi a contribuição do Ministro Victor Nunes Leal neste sentido, que a sua proposição conseguiu acolhida pelo Regimento do Supremo Tribunal Federal, com vigência em 15 de outubro de 1979.”[75]
Na Universidade de São Paulo, Washington de Barros chegou mesmo a incluir a jurisprudência entre as fontes formais do Direito, no que encontrou a oposição de seu contemporâneo da Bahia, Orlando Gomes. É de se ver o que escreveram.
Após identificar vários exemplos de casos em que enxergou a importância da jurisprudência na formação do Direito, concluiu o professor paulista:
“Impossível, pois, olvidar o papel que à jurisprudência está reservado na formação do Direito. Como bem dizia o Supremo Tribunal Federal, a invariável sequência dos julgamentos torna-se como o suplemento da própria legislação. Praticamente, é o que estaria a suceder, na atualidade, com o direito sumular”.[76]
Combatendo a tese, Orlando Gomes concluiu, após reconhecer, conforme visto supra, a importância da jurisprudência: “mas, daí a incluir a jurisprudência entre as fontes do Direito vai grande distância, porque os julgados dos tribunais não são modo de criação de regras jurídicas.”[77]
Pretender-se-á rebater a tese não por razões meramente científicas, mas, antes, empíricas. Conforme se irá demonstrar, os julgados dos tribunais criam, sim, regras jurídicas. Veja-se a lição do grande processualista brasileiro José Frederico Marques:
“Quando o juiz complementa a lei, para cobrir lacunas nesta existentes, através da invocação dos princípios gerais de direito, a atividade que exerce é de natureza jurisdicional, pois está aplicando o direito objetivo a um caso concreto. Por esse motivo, a decisão que proferir não cria regra nova, mas apenas revela preceito latente na ordem jurídica em vigor. Não fosse assim, inadmissível seria dar efeito ex tunc à norma construída, a qual, portanto, se considera como integrante do direito vigente.
No caso, porém, de consolidação da jurisprudência uniforme e predominante, através de súmulas, para a formulação de regras gerais extraídas de arestos e julgados, os tribunais estão exercendo função normativa semelhante à do legislador, visto que não estão aplicando hic et nunc o direito objetivo, e sim, promulgando preceitos que neste se enquadrarão como normas a vigorar em casos futuros.”[78]
A dificuldade de alguns grandes civilistas em aceitar a jurisprudência entre as fontes do Direito parece advir de uma falta de percepção do Direito como dois fenômenos distintos: o Direito como Sistema Jurídico e o Direito como Ciência. De fato, não é a jurisprudência, ao menos imediatamente, fonte da Ciência do Direito, mas o é do Sistema.
As fontes do Sistema Jurídico não se submetem, na doutrina clássica, à Ciência do Direito (dura lex sed lex). É a proposta contemporânea, justamente, a submissão do direito objetivo ao crivo dos princípios gerais do Direito. Todavia, como no momento da aplicação serão os tribunais que decidirão, por fim, qual é o Direito aplicável ao caso, seria cego negar que, independentemente da aprovação científica do assento, será a jurisprudência fonte indiscutível do Direito.
“Sem dúvida a doutrina e a jurisprudência podem seguir falsa rota, e ou não transpõem o período de flutuação, que é próprio do início de ambas, ou conseguem firmar princípios, que mais tarde se reconhecem falsos.”[79]
Apesar de muito do conteúdo do assim chamado Direito Sumular não coadunar com ditames da Ciência do Direito, não se lhes pode negar o caráter de fonte do Sistema, o que se demonstra pela sua simples aplicação no julgamento dos casos concretos. O papel da Ciência, nesses casos, será apontar para os tribunais o melhor caminho, que estes, entretanto, poderão tomar ou não.
Além disso, parece também muito difícil, para o jurista do Sistema Romano-Germânico, aceitar que os tribunais criam o Direito, pois tal é a conseqüência inevitável da afirmação de que a jurisprudência é fonte do direito objetivo. Nesse sentido, o estudo comparativo com a Common Law, especialmente com o Sistema Norte-Americano, é de grande valia, pois lá a discussão aconteceu há duzentos anos. Naquele sistema, a discussão se encerrou e levou ao surgimento de uma nova expressão para designá-lo, que é o já mencionado judge-made law, ou Direito criado pelos juízes.
A primeira grande lição que se pode extrair de tal análise é a de que não é todo juiz que tem o poder de criar o Direito, mas, na verdade, somente os tribunais superiores; a segunda é no sentido de que o judge-made law não fere o princípio da harmonia entre os Poderes do Estado; e a terceira é a de como se deve cientificamente compreender o fenômeno.
Analise-se, então, cada um desses pontos.
1. O Sistema Jurídico Brasileiro, à semelhança do Norte-Americano, divide o Judiciário em nível estadual e federal. Assim, verifica-se a existência, nos Estados, de uma corte de primeira instância, ou juiz de primeira instância, e uma corte superior, ou Tribunal de Justiça (lá, Supreme Court of the State); e em nível federal, juízes federais de primeira instância e Tribunais Regionais Federais (Circuit Courts). Acima das cortes superiores estaduais e federais, o Superior Tribunal de Justiça (análogo à Court of Appeals) e o Supremo Tribunal Federal (Supreme Court). Ora, nem os juízes de primeira instância estaduais, nem os federais, têm o poder de vincular nos Estados Unidos. Criam Direito, quando o fazem, apenas para o caso; mas tal decisão não é fonte do Direito. As Supreme Courts of the States estabelecem precedentes que se tornam fontes do Direito estadual, e as Circuit Courts estabelecem precedentes que somente vinculam os juízes federais. A jurisprudência da Court of Appeals e da Supreme Court, por sua vez, vinculam todas as cortes inferiores a elas. No Brasil, de modo semelhante, só se devem considerar fontes do direito objetivo as decisões das cortes superiores: Tribunais de Justiça, nos respectivos Estados; Tribunais Regionais Federais, nas respectivas regiões; Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, em todas as instâncias inferiores.
O primeiro problema que se apresenta, entretanto, é o fato de que tanto os TJs quanto o STJ e o STF têm divisões internas, que muitas vezes têm opiniões divergentes. De fato, tal parece obstar à afirmação de que a jurisprudência é fonte do Direito Objetivo. A saída, entretanto, está no fenômeno da jurisprudência consolidada: só pode ser verdadeira fonte a jurisprudência assentada nos plenários dos Tribunais, pois sobre esta os Tribunais não têm dúvida, e sempre a aplicarão. No caso específico do STJ e do STF, é a jurisprudência contida nas súmulas, as quais formam o Direito Sumular.
Leia-se o que já sobre isso ensinara o Conselheiro Ribas:
“Quanto à autoridade moral dos casos julgados pelos tribunais superiores em relação aos inferiores, é lógica consequência do sistema de diversidade de instâncias. Com efeito, pois que a lei autorizou aqueles tribunais a reformarem as decisões destes, e a fazerem que destarte prevaleçam as suas opiniões nos casos particulares, quer implicitamente que, em regra, os tribunais adotem as opiniões dos seus superiores, evitando assim estéril luta em prejuízo das partes; salvo quando poderosas razões gerarem opostas convicções.”[80]
E, mais uma vez, José Frederico Marques:
“A jurisprudência, quando uniforme e reiterada, impõe-se como norma obrigatória, desde que consubstanciada em “súmula”. Trata-se de prática inaugurada pelo Supremo Tribunal Federal[81] e que vem estendendo-se a outros tribunais. Estatui o art. 479, parágrafo único, do novo Código de Processo Civil, que “os regimentos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência dominante”.
A “súmula” contém o enunciado de uma regra jurídica, construída com base em decisões que se apresentam como “jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal”.[82]
2. Quanto à independência dos Poderes, o art. 2º da Constituição Federal da República não estabelece que esta seja absoluta, senão que seja harmônica. Dessa forma, o art. 61 prevê leis de iniciativa do Presidente da República e o art. 62 prevê a edição, pelo Chefe do Executivo, de medidas provisórias em casos de relevância e urgência. Cabe, ainda, ao Presidente da República a sanção ou o veto no processo legislativo. Se a independência entre os Poderes fosse absoluta, tais artigos, ainda que previstos no texto da Constituição, seriam inconstitucionais, por violar o princípio contido no art. 2º. Contudo, não o são, porque a independência deve ser harmônica. Da mesma forma, é o Presidente da República quem escolhe os Ministros dos Tribunais Superiores[83], após aprovação do Senado Federal (art. 84, inc. XIV da Constituição Federal). Outros tantos exemplos poderiam ser citados sobre a harmonia entre os Poderes, provando o caráter não absoluto da independência.
Ademais, seria tolo negar que ao aplicar o Direito o Judiciário o interpreta. Além disso, como se sabe, a boa interpretação sequer busca o sentido que o legislador pretendeu dar ao texto, mas sim o melhor sentido que dele se pode extrair. Mais uma vez, se a independência dos Poderes fosse absoluta, tal não seria possível. Nesse sentido, a Common Law é muito franca ao conceituar o Direito como o Direito aplicado pelas cortes, e o BISHOP HOADLY, desde o século XVI já afirmara que quem tem o poder de interpretar o Direito acaba sendo, em realidade, e para todos os efeitos, o verdadeiro criador do Direito:
“Não, quem quer que tenha a autoridade absoluta para interpretar qualquer lei escrita ou oral, é ele que acaba sendo o verdadeiro criador da Lei para todos os efeitos, e não quem a escreveu ou pronunciou anteriormente.”[84]
Em conclusão, se um Tribunal opta por interpretar o Direito de uma determinada forma, e tomar em assento tal interpretação, por que negar a tal assento o caráter de fonte do Direito? Somente para se fingir que o Judiciário não cria o Direito? Parece que afirmar que o papel do Judiciário seja o de mero aplicador do Direito criado pelo Legislativo, isso sim seria atentatório à própria independência daquele Poder. O Judiciário estaria à mercê do Legislativo, conclusão a que, seguramente, não se pode chegar.
Serpa Lopes pontuou:
“A uniformidade na interpretação de um determinado texto legal deve constituir uma das finalidades da jurisprudência.
Tal é um dos objetivos do Recurso Extraordinário, o qual foi incluído na competência do Supremo Tribunal Federal […].
Também à jurisprudência se entregou a competência para a apreciação da perfectibilidade da lei, precipuamente do ponto de vista de sua harmonia com os preceitos constitucionais.”[85]
Os juristas americanos do final do século XVIII e início do século XIX se questionaram longamente sobre o problema, e acabaram por optar por reconhecer o Poder criador do Judiciário, o que levaria a um grau científico, menos político, do Direito, e, ao mesmo tempo, contribuiria mais positivamente para transformações sociais, pois o processo legislativo é moroso. Muitas vezes, o Legislativo não é capaz de acompanhar as mudanças sociais, cabendo ao Judiciário adaptar o Direito às novas realidades.
Eduardo Espínola já desenvolvera este ponto no Sistema, em 1908:
“A jurisprudência, prática e doutrinária, afirma o saudoso jurisconsulto [referindo-se a REGELSBERGER], não tem simplesmente por objetivo investigar o sentido das regras legais e aplicá-las de acordo com o resultado obtido. Ela é também autorizada a estabelecer, por meio dum profundo exame, o pensamento jurídico latente nas disposições da lei, como corresponda às necessidades da vida prática e, desse modo, a aperfeiçoar incessantemente o direito.”[86]
O professor citou, ainda, Beviláqua: “o intérprete, esclarecendo, iluminando, alargando o pensamento da lei, torna-se um fator da evolução jurídica.”[87]
Por fim, uma curiosidade: Jean-Étienne-Marie Portalis, autor do famoso Código Civil da França de 1804, ou Código Napoleônico, como ficou conhecido, “ponderara que o legislador estabelece as máximas gerais do direito e que compete aos magistrados, penetrando o espírito geral das leis, dirigir-lhes a aplicação”[88].
3. Em relação a como se deve cientificamente compreender o fenômeno. O jurista, ao perceber que os Tribunais Superiores criam o direito objetivo aplicável em suas respectivas jurisdições, não deve, por isso, deixar de fazer uma análise crítica deste Direito. Ora, não há nenhuma diferença com o que se passa em relação às leis. O fato de uma lei ser criada pelo Poder Legislativo não a faz perfeita, e o jurista deve sempre submetê-la à crítica científica. É tal crítica que conduzirá, eventualmente, ao melhoramento da lei. O jurista deve, ainda, verificar se a jurisprudência e a lei obedecem aos ditames dos princípios gerais do Direito, para recomendar sua aplicação ou não. Deve-se ressaltar, aqui, que a aplicação do Direito é atribuição do Sistema Jurídico, e não da Ciência, tendo o juiz, portanto, o direito subjetivo de seguir ou não as lições da doutrina. Se os juízes sempre aplicassem o melhor Direito científico, sequer haveria necessidade de um sistema recursal. Não obstante, o melhor juiz é o que também é jurista, e que, ao decidir o caso concreto, fará a mesma análise científica que faria o jurista puro.
Veja-se o que anotou, a respeito, Beviláqua:
“Se a decisão do juiz não for acertada, como somente se aplica à espécie julgada, será uma tentativa falha de revelação do direito latente; se, porém, corresponder às exigências da razão esclarecida e das necessidades sociais, atuará sobre a inteligência dos outros julgadores, será repetida, firmará jurisprudência, e será ponto de partida para a formação do direito consuetudinário.”[89]
Vê-se, portanto, que a discussão não é nova no Direito Pátrio, e que, na verdade, a doutrina da virada do século XIX para o século XX forneceu todo o substrato para que hoje se chegue às conclusões afirmadas.
3.1.3.1. Direito Sumular
Dando um importante passo no processo de transformação das fontes do Direito pátrio, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, concedeu ao Supremo Tribunal Federal o poder de editar as chamadas súmulas vinculantes, as quais, à maneira dos precedentes judiciais da Suprema Corte nos Estados Unidos, vinculam todas as instâncias anteriores a ela. Veja-se o comando do art. 103-A, acrescido à Constituição pela referida Emenda:
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”
Para demonstrar o papel sem dúvida nenhuma de criação de normas jurídicas desempenhado pelas súmulas vinculantes, cite-se a súmula vinculante nº 25[90], que determina que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. Ora, essa súmula do STF é tão fonte formal do Direito que ela derroga o art. 652 do Código Civil e o próprio inciso LXVII do art. 5º, os quais dispõem, respectivamente, que “seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos” e “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Cabe lembrar, que, em tese, somente outra lei poderia revogar uma lei (art. 2º da Lei de Introdução), e que somente uma emenda constitucional poderia alterar a Constituição. No entanto, essas mudanças foram efetuadas por meio de súmula vinculante. E ainda quem diga que a jurisprudência não é fonte criadora do Direito!
3.2. Lei
Na definição escolástica clássica, que Santo Tomás de Aquino esculpiu na Suma Teológica, a lei é “certa ordenação da razão, em vista do bem comum, promulgada por quem tem o cuidado da comunidade”[91]. Daí se extraem os elementos tradicionais que caracterizam a lei: ser racional, ou seja, obra humana; ter em vista o bem comum; ser promulgada pela autoridade competente.
Em sede de doutrina pátria, Beviláqua apresentou, na Teoria, conceito de inspiração tomista, – que foi, posteriormente, repetido por Caio Mário – no sentido de ser a lei “uma ordem geral (commune praeceptum), emanando de autoridade reconhecida, e imposta, coativamente, à obediência de todos”[92].
Limitando-se ao escopo desta pesquisa, cumpre dizer que a lei é, no Sistema Jurídico Brasileiro, inegavelmente fonte formal principal do Direito, não obstante, como afirmou-se retro, esteja hoje, cada vez mais, à mercê dos princípios gerais do Direito e da jurisprudência.
Rapidamente, citar-se-ão os caracteres que Caio Mário identificou no conceito de lei: “em primeiro lugar, a lei é uma ordem, um comando, uma determinação do legislador aos indivíduos”[93]; “como ordem geral, dirige-se indistintamente a todos; como comando abstrato, não se pode particularizar a uma determinada pessoa”[94]; “ligada à universalidade, assinala-se a permanência”[95]; “a lei deve emanar da autoridade competente”[96]; “finalmente, a lei é provida de sanção, dotada de coercibilidade”[97].
3.2.1. O papel da analogia
É certo que, mesmo ante a grande produção legislativa dos tempos modernos, a lei nunca é suficiente para regular todos os fenômenos que podem ocorrer na vida em sociedade. E, nem sempre, os princípios gerais de Direito e a jurisprudência poderão suprir a omissão legislativa. Aqueles, porque, por definição, são gerais, e não cuidam de minúcias, portanto; esta, por depender de casos terem sido trazidos a julgamento, em especial nos Tribunais Superiores, vez que, conforme se afirmou, somente os julgados destes, consubstanciados em súmulas, é que devem ser considerados verdadeiras fontes informadoras do Direito.
Neste momento, então, revela-se o papel da analogia no sistema jurídico. Não o de fonte formal do Direito, mas de método de integração das normas no caso concreto. Tal é o entendimento do professor César Fiuza:
“Alguns juristas incluem dentre as fontes do Direito a analogia. Reputo equivocada essa opinião. Ora, analogia é método, seja de interpretação, seja de integração do Direito. Momentos há em que a lei não regulamenta determinado instituto, como é o caso do contrato de fidúcia. Teremos, então, lacuna na lei. Como resolver questão envolvendo fidúcia se não há lei regulando a matéria? Usa-se processo analógico, aplicando-se normas que, por analogia, possam enquadrar-se ao caso. Com base nisso, vários juristas dizem ser a analogia fonte de Direito. Na verdade, a fonte, no caso, não foi a analogia, mas sim a própria Lei, que se integrou ao fato concreto por processo analógico.”[98]
3.3. Costume
A última fonte tradicionalmente elencada entre as fontes formais do Direito é o costume. Não obstante, à luz do Direito Brasileiro Contemporâneo, é necessário verificar se o caráter de fonte do Direito ainda está presente no instituto.
A clássica definição de Beviláqua de costume é a seguinte: “costume jurídico, ou direito consuetudinário, é a observância constante de uma norma jurídica não baseada em lei escrita”[99].
Caio Mário, em suas lições, pontuou que:
“A invocação do costume às vezes se dá no silêncio da lei, quando se encontra um aparente hiato nas suas disposições, preenchido pela observância de práticas costumeiras, de que os tribunais se valem para completar-lhe o preceito. Outras vezes, quando é a própria lei que ordena a adoção dos costumes locais, o juiz deve procurar, na sua função aplicadora da norma, casos em que a regra costumeira integra expressamente o direito positivo”[100].
Acreditamos que o costume jurídico ainda é fonte formal do Direito, embora exerça essa função, na atualidade, com menos frequência. Um exemplo interessante, e bem típico da sociedade brasileira, é o costume jurídico de se predatar cheques. Conquanto o cheque seja uma ordem de pagamento à vista, tornou-se prática reiterada no comércio brasileiro, e não repudiada pelo Direito, a emissão de cheques com data futura, e que somente poderão ser descontados naquela data. Baseado justamente nesse costume jurídico, os Tribunais reiteradamente condenaram as pessoas que apresentaram o cheque para desconto antes da data ao pagamento de indenização por danos morais. Esse fato demonstra, claramente, a ação do costume jurídico como fonte do Direito. Cabe frisar, ademais, que tão sólida se tornou a prática do cheque predatado que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 370, de fevereiro de 2009, segundo qual “caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque predatado”.
4. Conclusão
Pretendemos ter demonstrado, ao longo desta breve dissertação, a importância de o jurista parar para refletir sobre as fontes formais do Direito Brasileiro contemporâneo, seja ele advogado, consultor, professor ou cientista. A grande mudança que o Direito pátrio está vivendo, em razão da transformação das fontes, reflete na resolução dos conflitos das partes, nos atos jurídicos em geral praticados no país, no pensamento e na formação jurídica dos acadêmicos, bem como na Ciência do Direito.
Nosso objetivo, neste trabalho, foi tão somente o de incentivar o debate, o de provocar discussões, de contribuir para a evolução do pensamento e da prática jurídica.
Aqui, fizemos apenas constatações, as quais se nos afiguram da maior relevância e importância.
Esperamos que, de futuro, os civilistas deixarão de tratar do tema das fontes do Direito limitando-se a repetir o rol clássico, ou a se apegar ao art. 4º da Lei de Introdução. Contamos com a ajuda dos processualistas, mais atentos às inovações incorporadas pelo nosso ordenamento, sobretudo as de inspiração anglo-saxônica.
E que, desse ambicionado debate, possa o nosso Direito chegar mais próximo de ser a tão sonhada ars boni et aequi.
Informações Sobre o Autor
Felipe Quintella Machado de Carvalho
Coautor do Curso Didático de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Professor titular de Direito Civil dos cursos de pós-graduação do IUNIB professor convidado de Direito Civil do curso de pós-graduação da Anhanguera e professor voluntário de Direito Civil da FD UFMG. Mestrando em Direito e Justiça na UFMG. Consultor jurídico e advogado.