A maioria das legislações municipais, inclusive, a do Município de São Paulo, exige como condição para a adoção do regime de tributação por alíquota fixa, ou do regime especial de pagamento do imposto a constituição da sociedade civil por profissionais da mesma classe ou categoria. Ou seja, não se pode associar um advogado tributarista com um contador, por exemplo, mas, apenas advogado com outro advogado, contador com outro contador, médico com outro medido e assim por diante.
Na verdade, o art. 9º do Decreto-lei nº 406/68, mantido pela atual lei de regência nacional do ISS, não exige o requisito da uniprofissionalidade, mas tão somente que a sociedade seja formada por profissionais legalmente regulamentadas, ou sejam, por profissionais liberais em geral submetidos aos respectivos Conselhos de fiscalização do exercício profissional.
Mais preocupante e incompreensível é a tentativa do fisco municipal de promover o desenquadramento das sociedades uniprofissionais formada por engenheiros de especialidades diversas: engenheiro civil, engenheiro industrial, engenheiro agrônomo, engenheiro eletricista etc.
O que é relevante na sociedade civil de profissionais liberais é que o serviço seja prestado em caráter pessoal pelos sócios e sob sua responsabilidade técnica, podendo contar com a colaboração de auxiliares para execução de serviços-meios. Assim, nada impede de um sócio advogado valer-se do concurso de um estagiário para auxiliá-lo em pesquisas, ou de um digitador para redigir as petições.
No caso da sociedade de engenheiros de que estamos cuidando o importante é que o seu objeto social corresponda à atividade que se insira no campo de atuação profissional do engenheiro de qualquer especialidade ou do arquiteto submetido à mesma lei reguladora da profissão.
A Lei nº 5.194, de 24-12-1966, que regula o exercício profissional do engenheiro, delimita o campo de atuação desse profissional nos seguintes termos:
“Art. 7º As atividades e atribuições profissionais do engenheiro, do arquiteto e do engenheiro-agrônomo consistem em:
a) desempenho de cargos, funções e comissões em entidades estatais, paraestatais, autárquicas, de economia mista e privada;
b) planejamento ou projeto, em geral, de regiões, zonas, cidades, obras, estruturas, transportes, explorações de recursos naturais e desenvolvimento da produção industrial e agropecuária;
c) estudos, projetos, análises, avaliações, vistorias, perícias, pareceres e divulgação técnica;
d) ensino, pesquisas, experimentação e ensaios;
e) fiscalização de obras e serviços técnicos;
f) direção de obras e serviços técnicos;
g) execução de obras e serviços técnicos;
h) produção técnica especializada, industrial ou agro-pecuária.
Parágrafo único. Os engenheiros, arquitetos e engenheiros-agrônomos poderão exercer qualquer outra atividade que, por sua natureza, se inclua no âmbito de suas profissões.”
O art. 8º do referido Diploma Legal ainda prescreve:
“Art. 8º – As atividades e atribuições enunciadas nas alíneas “a”, “b”, “c”, “d”, “e” e “f” do artigo anterior são da competência de pessoas físicas, par tanto legalmente habilitadas.
Parágrafo único – As pessoas jurídicas e organizações estatais só poderão exercer as atividades discriminadas no Art. 7º, com exceção das contidas na alínea “a”, com a participação efetiva e autoria declarada de profissional legalmente habilitado e registrado pelo Conselho Regional, assegurados os direitos que esta Lei lhe confere.”
Como se vê, a exemplo do que ocorre na legislação tributária, o art. 8º da Lei nº 5.194/1966 prescreve que as sociedades de profissionais liberais só podem exercer atividades próprias de engenheiros “com a participação efetiva e autoria declarada de profissional legalmente habilitado e registrado pelo Conselho Regional, assegurados os direitos que esta Lei lhe confere.”
Daí o caráter de pessoalidade na execução do serviço de que falamos.
O fato de a sociedade abrigar engenheiros de diversas especialidades é irrelevante para a descaracterização de sociedade uniprofissional. É que não se pode confundir profissão única com as diversas modalidades ou atribuições dessa profissão submetida a um mesmo estatuto legal disciplinador.
No caso, por exemplo, de uma sociedade de engenheiros voltada para vistoria e avaliação patrimonial em geral como as previstas na letra “c”, do art. 7º da Lei nº 5.194/1966 é indispensável o concurso de profissionais engenheiros de qualificações diversas. Realmente, para vistoria e elaboração de um laudo avaliativo de um imóvel urbano é preciso o concurso de um engenheiro civil ou arquiteto; para vistoria e avaliação de um complexo industrial é imprescindível o trabalho de um engenheiro industrial; para vistoria e avaliação de um imóvel rural com plantações permanentes não se pode dispensar o concurso de um engenheiro agrônomo e assim por diante.
Não é outro o entendimento da jurisprudência de nossos tribunais:
“EMENTA. APELAÇÃO – Ação Declaratória – ISS – Sociedade civil constituída para a prestação de serviços de engenharia agrônoma e civil. 1) Extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido – A ação declaratória de inexistência de relação jurídica mostra-se apta para definir a situação entre as partes. Julgamento do mérito pelo Tribunal por se tratar de questão de direito, cujos elementos necessários, encontram-se nos autos, sendo suficientes para o deslinde da questão. 2) Pretendido recolhimento do tributo em valor fixo anual, conforme disposição prevista no art. 9º, § 3º do Decreto-Lei nº 406/68, que disciplina a cobrança do ISS sobre serviços prestados por sociedades uniprofissionais – Caráter empresarial não demonstrado – Recurso provido.
VOTO
A matéria posta cinge-se ao fato de verificar se tem a autora relação jurídica tributária com a Municipalidade que seja apta a ensejar o pagamento do ISS por valor fixo e anual, ou sob a forma variável em razão do faturamento.
Sem embargos, verifica-se que a autora é sociedade civil constituída por dois sócios, engenheiros, tem como objeto social a prestação de serviços de planejamento, pesquisa, perícia, desenvolvimento e atividades afins à engenharia agrônoma e civil (fls. 36/40), vislumbrando-se a preponderância do caráter pessoal dos serviços prestados pelos seus sócios, na medida em que a responsabilidade técnica de engenharia agrônoma é exercida por um sócio e a responsabilidade técnica de engenharia civil é exercida por outra sócia, de modo que não há como se negar vigência ao § 3º do art. 9º, do Decreto-lei 406/68, que garante às sociedades prestadoras de serviços o pagamento do tributo incidente sobre cada profissional e não em razão do faturamento.” (Apelação Cível com Revisão nº 509.500-5/1-00, Rel. Des. Eutálio Porto, J. em 08-05-2008).
“Ementa.ISSQN – MANDADO DE SEGURANÇA – Preliminar de carência da ação: afastada – Sociedade uniprofissional., constituída por profissionais engenheiros – Aplicação do art. 9º, § § 1º e 3º, do Decreto-lei 406/68 – Prestação de serviços que obedece ao requisito da pessoalidade – Observa-se, no caso presente, a existência de uma única profissão, e que não se confunde com as diversas atribuições que são, na verdade, as diversas modalidades da engenharia – Direito líquido e certo a ser amparado, podendo, a impetrante, fazer jus à tributação determinada pela lei aos profissionais autônomos e liberais – Negado provimento aos recursos, voluntário e oficial, nos termos do acórdão.
É o relatório.
Depreende-se da análise dos autos que a impetrante é uma sociedade uniprofissional, constituída por profissionais engenheiros (v. contrato social), inscritos no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), e que atende ao disposto no art. 9º, § § 1º e 3º, do Decreto-lei 406/68.
De fato, conforme determinado na norma citada, a apelada comprova a prestação de serviços obedecendo ao requisito da pessoalidade, através de documentos que atestam trabalhos realizados e assinados por seus sócios (ou empregados). Incontroverso que cai no vazio o levantado pela apelante, ao relatar que se reveste de caráter empresarial o trabalho desenvolvido pela Century Consulting.
Não obstante, a profissão de engenheiro é única em si mesma: o que se verifica no caso da impetrante, como não poderia ser diferente, é a existência de várias modalidades, ou atribuições, dentro de somente uma profissão (engenheiro mecânico, engenheiro civil, engenheiro naval etc). Destarte, inócua a assertiva da Prefeitura quando diz que se está a deparar com várias profissões reunidas na empresa-impetrante.
Indefensável a tese da Municipalidade, posto não ter comprovado de que a apelada preste serviços de cunho empresarial; ao contrário, o que se constata, como registrado, é a prestação de serviços de engenharia pelos sócios individualmente considerados.
Há direito líquido e certo a ser amparado, conclusivamente, podendo a impetrante fazer jus à tributação determinada pela lei aos profissionais autônomos e liberais.” (Apelação com revisão nº 563.951-5/4-00, Rel. Des.Yoshiaki Ichihara, J. em 27-07-2006).
“EMENTA.PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 544, CPC. ART. 9º, § 3º, DECRETO-LEI 406/68. SOCIEDADES UNIPROFISSIONAIS. ENGENHEIROS. ISS. ALÍQUOTA FIXA. ACÓRDÃO FUNDADO EM INTERPRETAÇÃO DE CONTRATO SOCIAL. PROVAS. APLICAÇÃO DA SÚMULAS 07/STJ. VIOLAÇÃO A DISPOSITIVO LEGAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. 1. A sociedade civil faz jus ao benefício previsto no art. 9º, § 3º, do DL 406/68 desde que preste serviço especializado, com responsabilidade pessoal e sem caráter empresarial, conforme entendimento assente no STJ (AG 458.005-PR, DJ de 04.08.2003, Rel. Min. Teori Zavascki; RESP 456.658-ES, DJ de 19.12.2003, Rel. Min. Franciulli Netto; RESP 34.554-ES, DJ de 11.03.2002, Rel. Min. Garcia Vieira).
2. Assentado o acórdão, com base no contrato social da empresa, que a mesma faz jus ao tratamento favorecido concedido pelo § 3º do art. 9º do Decreto-Lei n.º 406/68 às sociedades profissionais, sem caráter empresarial, no que se refere à tributação pelo ISS, porquanto “a apelante é sociedade civil, uniprofissional, formada exclusivamente por sócios engenheiros, com vistas ao desenvolvimento de atividades de engenharia”, a modificação do julgado implica reexame de matéria fático-probatória, interditado pela via do recurso especial. (Súmula 07/STJ).
3. “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida” (Súmula 83/STJ).
7. Agravo Regimental a que se nega provimento.” (AgRg no Ag 772098/PR, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 18-12-2006, p. 324).
Ao que tudo indica, o reposicionamento do fisco municipal de tentar desqualificar as sociedades uniprofissionais decorre da constatação de movimentações financeiras expressivas por muitas dessas sociedades, como se esse fato tivesse relevância do ponto-de-vista jurídico.
Na realidade, não é o movimento econômico ou financeiro que caracteriza a sociedade empresária, ou a sociedade civil. A questão deve ser analisada à luz do que dispõe o Código Civil em seu art. 966, que é vinculante dentro do Direito Tributário.
“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.”
Como se vê, o Código Civil vigente conceitua a sociedade empresária como sendo aquela cuja atividade é organizada para a produção de bens ou serviços, excluída a atividade intelectual, seja ela de natureza científica, literária ou artística.
Portanto, uma sociedade de engenheiros, que tem por objetivo social o exercício de atividade intelectual pelos seus sócios, sob responsabilidade pessoal deles, não se enquadra dentro dos critérios que devem ser utilizados para classificação de uma sociedade empresária.
Outrossim, o desenquadramento da sociedade uniprofissional com efeito retroativo, como vem sendo feita em alguns casos pela Municipalidade de São Paulo, motivado pela mudança de seu entendimento acerca da matéria, ofende, às escâncaras, o disposto no art. 146 do CTN:
“A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”
Nesse sentido o entendimento do C. STJ sobre o assunto:
“EMENTA.TRIBUTÁRIO. MERCADORIA IMPORTADA. ICMS. MOMENTO DO FATO GERADOR. ARTIGO 155, § 2º, IX, “A”, DA CF/88. ARTIGO 34, § 3º, DO ADCT. CONVÊNIO 66/88. ACÓRDÃO RECORRIDO FUNDADO EM MATÉRIA EXCLUSIVAMENTE INFRACONSTITUCIONAL. ENTENDIMENTO DO STF CONSOLIDADO NA SÚMULA N.º 661. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 577/STF LIMITADA AOS FATOS GERADORES ANTERIORES À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
1. O recolhimento prévio do ICMS como condição para desembaraço aduaneiro de mercadoria importada passou a ser exigido após a promulgação Constituição Federal de 1988, nos termos na Súmula n.º 661, do STF (“Na entrada de mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro”), não mais se justificando, a partir de então, a incidência da Súmula n.º 577/STF (“Na importação de mercadoria do exterior, o fato gerador do imposto de circulação de mercadorias ocorre no momento de sua entrada no estabelecimento do importador”)
2. “A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução” (art. 146, do CTN)
3. “O artigo 146 do CTN positiva, em nível infraconstitucional, a necessidade de proteção da confiança do contribuinte na Administração Tributária, abarcando, de um lado, a impossibilidade de retratação de atos administrativos concretos que implique prejuízo relativamente à situação consolidada à luz de critérios anteriormente adotados e, de outro, a irretroatividade de atos administrativos normativos quando o contribuinte confiou nas normas anteriores”. (Leandro Paulsen, in Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, 8ª ed., Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2006, pág. 1.086)
6. Recurso especial da Fazenda Nacional provido.” (Resp nº 810565/SP, Rel. Min. Luix Fux, DJe de 03-03-2008)
No mesmo sentido Recurso Especial nº. 826.333/PE, DJe de 03-04-2008, de relatoria do Min. Luiz Fux.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.