Resumo: O texto nos chama para uma viagem sobre o tema Registro Civil. Nesse vôo uma parada significativa se dá na estação Igreja Católica, detentora do monopólio sobre os Registros Públicos no Brasil até 1870. Deste referencial parte-se para um momento de laicização, de onde Notários e Registradores são alçados à condição de agentes públicos, imbuídos de uma Função Social. No seguimento do texto questões de terminologia afeitas ao nome são enfrentadas. Assenta ainda ser o nome um Direito inerente à Pessoa Humana, verdadeiramente um símbolo de identidade, pelo que suplanta a noção de reclamação objetiva para o convívio humano, sendo registro subjetivo impregnado à personalidade. Questões pontuais também são debatidas, como a ligada à declaração de nascimento. Sendo o nome um registro subjetivo, deve dizer pertinência ao seu portador, motivo pelo qual as possibilidades de sua alteração foram colacionadas.
Sumário: Introdução. 1. Registros solenes: origens. 1.1. A igreja católica e o sistema registral. 1.2. Notários e registradores: agentes público. 1.2.1. A Independência dos Registros Civis no Brasil 1.3. Função social dos registros civis. 1.4. Princípios norteadores da atividade registral. 2. O nome civil: direito da personalidade. 2.1. Problematização terminológica: elementos constitutivos do nome. 2.1.1 Prenome. 2.1.2. Sobrenome. 2.2. Legitimados à propositura do ato registral. 3. Possibilidade de alteração do nome. 3.1. Erro gráfico evidente. 3.2. Nome ridículo. 3.3. Apelido público e notório. 3.4. Duplicidade de registro. 3.5. Caso de transexualismo. 3.6. Mudança de sobrenome. 3.7. Proteção à testemunha. 3.8. Homonímia. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Da necessidade de afirmação da individualidade humana surge o nome próprio. Compreende, nos termos do artigo 16 do Código Civil, o prenome e o sobrenome, a que se chama consagradamente patronímico ou apelido de família. Designa a pessoa, servindo de identificação, pelo que merece proteção, possível com o Registro Civil.
Mesmo que decorra do imperativo categórico-ocidental de identificação, é preciso se ter claro que, apesar de próprio, o nome civil pode ser comum a muitos, gerando homonímia. Ainda assim, não restam dúvidas sobre sua essencialidade e função precípua: permitir a que se individualize uma pessoa em meio a muitas.
O nome carrega consigo os reflexos morais e atributos pessoais do indivíduo. É, pois, depositário da imagem pública da pessoa, trazendo consigo as impressões da coletividade sobre o seu portador.
Pelos motivos expostos, entende-se nos dias de hoje que o nome é Direito Fundamental da Pessoa Humana; de todo ser humano. Constitui Direito da Personalidade de natureza moral: atributo inerente à pessoa que se projeta nas relações sociais.
Sendo integrante da personalidade, sinal exterior de individualização pessoal, afere-se ser o nome identidade particular, afirmada publicamente no mundo culturado com o Registro Civil. Desta feita o registro não pode ser relegado, pois a partir dele a potencialidade para aquisição de direitos e deveres na órbita jurídica – manifestação material da personalidade jurídica – se formaliza, não obstante sua natureza jurídica declaratória.
No mundo atual, em que tudo é registrado, nada se faz na vida social sem que se tenha o nome assentado nas serventias competentes para a promoção do Registro de Pessoas Naturais, ponto de partida para a uma plena identificação civil posterior, um cadastramento junto ao Ministério da Fazenda etc.
As referências tracejadas encontram amparo também em outros ramos do conhecimento, consoante se depreende da proposição psicanalítica a informar que “o nome humaniza”[1] e é uma defesa do amor próprio.
Por essa razão o “Direito ao Nome”[2] pode ser vindicado. Tal consideração ganha relevo ao se considerar que sua tutela é tutela da dignidade humana, princípio a que a República Federativa conferiu status de basilar, elencando-o como fundamento do Estado Democrático de Direito no artigo 1º, III de sua Carta Magna.
Nessa seara, impõe-se cuidado para que o registrador não aponha nome que possa expor ao ridículo seu portador, devendo se recusar à promoção de registro que leve a esta situação, pelo que, na hipótese de inconformidade dos legitimados à promoção da declaração de nascimento, resta-lhe submeter a objeção ao juízo competente.
Tal consideração se mostra pertinente diante da possibilidade de livre escolha do prenome, prerrogativa que flerta com o infinito, margeando, por vezes, o bizarro. Evita-se desta forma futuras ações de registrados pretendendo a alteração de seus nomes, imotivada[3] ou em regime de exceção[4]. Quanto ao sobrenome, impõe-se que este deve ser correlato dos apelidos de família dos genitores.
Como características do nome civil deve se destacar a definitividade, passível de mitigação em hipóteses bem delimitadas, já que a segurança jurídica é uma das razões do Direito, e a mantença do nome é um meio de assegurá-la.
A definitividade é locução constante do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, substitutiva da expressão imutabilidade em decorrência da redação trazida pela Lei nº 9.708/98, que, ao positivar a possibilidade da adoção de apelidos públicos e notórios, promoveu um abrandamento no regime jurídico do nome civil, mudança que vem ao encontro da premissa de que este é Direito da Personalidade e nada deve se opor ao seu desenvolvimento.
Na sociedade pós-material[5] vivenciada, consagradora de Direitos Humanos de terceira geração[6], o indivíduo tem direito de ser quem é. Suas convicções pessoais devem ser respeitadas, sob pena de se negar Direitos Personalíssimos. Desta feita, a regra da definitividade não pode ser mantra a impedir o desenvolvimento humano pleno, por vezes condicionado ao nome civil de forma indissociável, caso do transexualismo, em que há cisão latente entre genótipo e fenótipo. No mesmo sentir não se pode ter por definitivo nome que, destoante do gênero, caso “da Wagner”[7], exponha seu portador a constrangimentos.
É no contexto aventado que a questão do nome assume ares de cidadania, exercida quando os indivíduos são plenamente conhecidos e reconhecidos. Para tanto, a primeira de todas as atitudes é dotar o cidadão de um registro junto ao serviço público.
Ainda que por razões de política administrativa se convencione a definitividade do nome, justificável à luz da segurança jurídica, a praticidade não deve ser tomada como referencial para a comodidade estatal, relegando pessoas a sofrimentos. O Estado avocou para si a prestação jurisdicional, não podendo, por isso, ignorar as demandas sociais.
Uma vez vinculado o nome à noção de Direito da Personalidade, razão e objetivo do próprio Estado, este deve reconhecê-lo e tutelá-lo de forma que melhor se associe aos preceitos da dignidade[8]. Deve, pois, abrandar a regra da definitividade, especialmente nos casos de erros gráficos evidentes, nomes ridículos, apostos por quem não era legitimado para fazê-lo, duplicidade de registro, transexualismo, notoriedade de apelidos e proteção a testemunhas.
1 REGISTROS SOLENES: ORIGENS
O intercâmbio entre os povos, a princípio estabelecido pelas guerras de conquistas, permitiu a que se desvelasse um considerável número de pessoas. Esse intercâmbio culminou com um maior desenvolvimento das cidades. Os novos conhecimentos e a maior complexidade das transações comerciais[9] tornaram necessário se provar pactos e convenções através de documentos escritos, substituindo o regime da forma verbal, que se realizava mediante testemunho[10].
Inicialmente os documentos referidos eram redigidos por particulares que sabiam ler e escrever. O passar dos tempos os transformou em oficiais públicos, responsáveis pela transcrição dos fatos, atos e contratos, conferindo-lhes solenidade. Surge assim a noção de Fé Pública[11], ligada de forma simbiótica à atividade notarial e registral.
Do magistério de Almeida Junior afere-se que seiscentos anos antes da era cristã havia os escribas[12], incumbidos da função de receber e selar, com selo público, os atos e contratos apresentados pelas partes. Em breves notas faziam apontamentos taquigráficos das convenções.
O Egito conheceu um sistema de registro em que somente às castas superiores, formadas por sacerdotes e guerreiros, se reconhecia personalidade jurídica. Entre esse povo se consagrou a escritura, o registro, o cadastro, o imposto de transmissão (siza) e o arquivo ou cartório, possibilidades jurídicas limitadas aos dotados de personalidade, à época apenas uma parcela[13] da população.
Os egípcios adotaram um sistema formalista em que os atos jurídicos, via de regra, deviam ser provados por escrito. Os escribas ou as partes do ato jurídico reduziam-no a termo. Para que se tornasse válido, impunha-se ainda a presença de pelo menos cinco testemunhas. Estas, curiosamente, transcreviam o conteúdo do ato testemunhado para só então aporem a assinatura.
Na Grécia se conheceu os mnemons (notários), epistates (secretários ou escrivães) e hierommnemons (arquivistas), funcionários públicos com funções de redigir os atos dos particulares. Tais funcionários emprestavam seu testemunho qualificado ao ato, conferindo-lhe status de prova pré-constituída[14] na hipótese de litígio.
Em Roma encontra-se a figura do tabellio[15], do exceptor[16], do actuarii[17] e do notarii, escrivães da chancelaria imperial dos quais se passou a exigir conhecimento jurídico com a vivência do império de Justiniano[18].
Superada a história antiga, adentra-se a Idade Média, marcada pelo feudalismo, que, dotado de índole isolacionista, acabou não acrescentando contribuições relevantes para a sistemática registral.
Na Idade Moderna, contudo, em que sobejou o Mercantilismo e um processo de integração sem precedentes – sendo destaque as grandes navegações –, além de uma modificação no sistema produtivo de riquezas, cujo ápice foi a Revolução Industrial, necessário se mostrou repensar o modelo registral baseado no absolutismo.
No fim da Idade Moderna os franceses romperam com as estruturas absolutistas, definindo um novo paradigma ideológico para o mundo. A atividade delegada de registro e notas assume os principais aspectos que ostenta nos dias de hoje: Fé Pública, Autoria e Responsabilidade, Controle da Legalidade, Imparcialidade e Independência, Unicidade do Ato, Conservação, Dever de Exercício e Forma de Ser.
No Brasil, até que se promulgasse a Constituição da República Federativa de 1988, foi o Direito Notarial e Registral muito semelhante ao modelo trazido pelos portugueses no exercício de sua função colonial. Assim as práticas Filipinas[19] foram vivenciadas sem nenhuma ressalva até 1822, ano da independência do país.
Uma vez independente, e experimentando desenvolvimento e amadurecimento sócio-econômico, era de se esperar que a atividade, pela relevância social que comporta, fosse adaptada à realidade do país. Essa expectativa, todavia, só foi atendida com a Constituição da República de 1988, com a qual se apontou rumos diferentes[20] nessa área, sobretudo no que concerne à natureza do exercício desta atividade.
1.1 A IGREJA CATÓLICA E O SISTEMA REGISTRAL
Durante muitos séculos da era cristã a convivência entre o Estado e a Igreja de Roma foi muito intensa, não obstante à máxima “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Na verdade, até que se tivesse a Reforma Religiosa, encabeçada por Lutero no século XVI, a Igreja teve grande preocupação com questões materiais, sendo uma extensão do Estado, e este dela. Além disso, consagrou práticas pouco espirituais, como a cobrança de indulgências, um dos pilares da revolta que culminou com a Reforma.
Diante do movimento reformista ficou mais difícil para o Estado manter um controle sobre os registros, já que não mais contava com os préstimos exclusivos da Igreja Católica, e a unidade é uma máxima afeta a estes.
Esta difusão do controle religioso acabou por tornar inviável o sistema registral então utilizado. Deste contexto torna-se necessário um sistema laico, que, a par de atender à máxima da separação Estado-Igreja, permite a que se tenha um efetivo controle sobre os atos da vida civil sujeitos ao registro. Sendo exercido o controle por um único ente, torna-se mais fácil manter a unidade do sistema.
No Brasil os primeiros momentos da atividade registral também foram marcados por grande imiscuidade da Igreja. Até 1870, em verdade, foi a única entidade com prerrogativas para conferir publicidade aos atos que demandavam forma solene como requisito de aperfeiçoamento. Prerrogativa exclusiva teve também no âmbito do matrimônio, onde, até 1861, disciplinou privativamente as questões afetas ao casamento.
Tal influência decorreu da vigência dos dispositivos canônicos acerca do casamento, tornados obrigatórios por Portugal em suas terras. No caso prático, contudo, o não-casamento católico comprometia toda a questão da cidadania, pois o Registro Civil – efetuado por ocasião do batismo com a confecção do batistério – só poderia ser promovido para os filhos de pais católicos, praticantes dos sacramentos da igreja de Roma.
Pela imperatividade vivenciada, o casamento religioso era prática corrente. Até 1861, como se disse, a Igreja foi detentora e exclusiva disciplinadora dos Direitos Matrimoniais, situação revertida nesse ano com a publicação do Decreto-Legislativo nº 1.144, com o qual se conferiu efeitos civis ao casamento religioso não-católico. Regulamentado pelo Decreto nº 3.069 de 1863, surgiu na esteira do aumento de cidadãos não-católicos, provenientes em sua maioria dos países europeus que passaram pela reforma religiosa.
Afere-se, neste diapasão, ter havido íntima ligação entre Estado e Igreja. Um todo indivisível onde padres exerciam forte influência na política estatal. Os sacramentos eram dogmas dotados de coercitividade singular, capaz de fazer dos não-partícipes hereges, verdadeiramente excluídos da vida social.
Em época de estreita ligação Estado-Igreja, as pessoas nasciam e eram batizadas seguidamente. Com o batismo a Igreja efetuava o registro de nascimento, pois apenas ela possuía livro próprio para o assentamento das situações jurídicas vivenciadas com reflexos no estado civil.
Passado o batismo vinha o sacramento da primeira comunhão, igualmente registrado pela Igreja. Depois o casamento, também inscrito. Desta forma, toda a realidade fática afeta ao estado civil ficava confiada à Igreja, verdadeiramente a registradora oficial do Brasil até 1870.
A Igreja Católica adotou, de um modo geral, postura ortodoxa quanto ao Registro Civil. Esta ortodoxia implicava no fato de um sacramento ser condição resolutiva para a feitura do outro, política decorrente da adoção do catolicismo ultramontano: de inspiração “romana, eclesial e sacramental”[21]. Ao adotar linha marcada pelo centralismo institucional romano, optara a Igreja por um projeto de negação do liberalismo e reforço da necessidade de observação dos sacramentos, verdadeiras questões de Estado.
Como nos dias de hoje se diz solteiro, divorciado, viúvo, dizia-se à época batizado, crismado etc. Não restam dúvidas de que a Igreja tinha o papel de anotar todas as questões que importassem em modificações no estado do fiel, como hoje os Registros Civis fazem em relação aos cidadãos. Ocorre que estes procedem de acordo às normas emanadas das Corregedorias-Gerais das Justiças, enquanto ela procedia de acordo aos ditames do poder eclesiástico concentrado nas mãos do papado[22].
Tal concentração, vivenciada em um momento de notada intercessão entre Estado e Igreja, foi uma faceta do catolicismo ultramontano, para Ivan Aparecido Manoel “uma intenção, uma vontade da instituição católica de intervir no governo da polis para transformá-la efetivamente na Civitas Dei”[23]. Essa vontade de intervenção, prossegue, “estava em consonância com as funções que a Igreja sempre se atribuiu e em harmonia com sua filosofia da história”[24], já que, “se a história humana é a história da sua salvação, cabe à Igreja, na qualidade de Mater et Magistra, e a mais ninguém, a tarefa de estabelecer os parâmetros do ordenamento social, de modo a não permitir que o Mal provoque a perdição definitiva do homem.”[25]
1.2 NOTÁRIOS E REGISTRADORES: AGENTES PÚBLICOS
Em seu artigo 236, a Carta Política brasileira estatui que “os serviços notariais e de registros são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. Assim notários e registradores são agentes públicos[26]. Agentes delegados[27] que servem ao Poder Público mediante investidura na atividade estatal[28].
Por delegação[29] deve se compreender a transferência de poder de um ente a outro para execução de atos ou funções que lhe era atribuída ou confiada. Seria, consoante lição do professor Bandeira de Mello[30], a outorga, transferência a outrem do exercício de atribuições que caberiam ao delegante.
Pelas alusões mencionadas, são notários e registradores agentes públicos delegados que exercem função pública em caráter privado.
Como delegatários de um serviço de interesse público, notários e registradores se submetem às regras de Direito Público. Destaca-se, inicialmente, a legalidade[31] prevista no artigo 37, caput da Constituição da República Federativa do Brasil, pela qual os atos de seu ofício devem ser os determinados por lei. Nas relações negociais – como a compra de insumos a serem utilizados na serventia, trato com prestadores de serviços etc –, todavia, a legalidade que exsurge é a prevista no artigo 5º, II da Constituição, em que não-proibido é sinônimo de permitido.
A função é pública, mas exercida em caráter privado. Tal exercício, contudo, não tem o condão de tornar a autonomia da vontade a regra a ser observada por notários e registradores, pois a função é eminentemente vinculada. Nesse sentir, reitera-se que, quanto à atividade fim, os atos notariais e registrais devem ser promovidos em estrita observância à legalidade.
Deve-se atentar também para os demais princípios a comporem a quina estrutural do caput do artigo 37 da Carta Constitucional. Nessa esteira chega-se aos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, esse último fruto do poder reformador experimentado na Emenda Constitucional 19, de junho de 1998.
Como se afigura evidente, os princípios da administração se aplicam à atividade notarial e registral, por óbvio, pública. No sentir asseverado é o magistério do professor João Teodoro da Silva, onde se lê que: “a autonomia, entretanto, é de ser entendida nos limites da obediência aos princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade, do que resulta estarem os atos sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário.”[32]
No que concerne à função registral, os princípios aludidos implicaram na formalidade do concurso público como requisito de promoção ao cargo, ressalvando-se os já ocupantes por ocasião da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A Carta Política acabou por primaziar a extinção da benesse subversiva em que, alquimicamente, o vitalício – enquanto houver vida, aduz o senso comum e dicionarizado – era tomado por perpétuo, contínuo, para além da morte, contexto em que o público se confundia com o patrimônio do delegado. Relegava-se a idéia de representatividade e vicariato, inerentes à atividade pública no Estado Moderno.
Essa sistemática foi superada em um momento de priorização da isonomia, onde a promoção a cargos públicos se faz mediante concurso. Assim, tem-se um particular – notário ou registrador – prestando um serviço público em regime privado, prestação que não tem o condão de promover reordenação em sua natureza jurídica.
1.2.1 A Independência dos Registros Civis no Brasil
Desde o século XIX o Estado brasileiro passa a se preocupar com a questão dos Registros Civis, então realizados pela Igreja com base nos ditames do Concílio de Trento, que, sendo do século XVI, apresentavam deficiências quantitativas e qualitativas.
Os primeiros passos para a vivência da laicização registral foram dados, conforme magistério de Max Fleiuss[33], em 1851, quando se mandou executar o regulamento de registro dos nascimentos e óbitos. Em 1961 – com o Decreto Legislativo nº 1.144, de 11 de setembro – efeitos civis foram estendidos aos casamentos celebrados fora dos moldes católicos. Este mesmo decreto determinou que fossem regulados o registro e provas destes casamentos, assim como dos óbitos e nascimentos, pois não mais seriam alcançados pelo sistema católico.
A partir de 1870 foi consolidada a organização dos registros pelo Estado, que se deu em decorrência da Lei nº 1.829. Esta trouxe consigo a Diretoria Geral de Estatística, órgão responsável pelos dados sobre nascimentos, óbitos e casamentos e pela realização de censos demográficos a cada dez anos, atendendo a uma recomendação internacional. A regulamentação dos Registros Civis, todavia, ocorreu em 7 de março de 1888 com o Decreto nº 9.886.
Com o Registro Civil de nascimento, torna-se possível o reconhecimento jurídico do indivíduo: sua idade, naturalidade e filiação. Relações então adstritas aos limites familiares são publicizadas, fato que permite ao Estado maior controle das demandas públicas, possibilitando-o intervir de forma mais efetiva do ponto de vista econômico e sanitário.[34] [35]
O modelo de Registro Civil no Brasil utilizado é o sistema de que se vale a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE). Este é importante por permitir a apuração do número real de nascidos vivos, dos coeficientes de mortalidade infantil, neonatal, perinatal, natimortalidade, mortalidade materna, natalidade e fertilidade geral, assim como para o planejamento de atividades a serem desenvolvidas na área de saúde materno-infantil.
Assentada a independência do registro público brasileiro, faz-se necessário o tratamento legal para o tempo e o local de realização do registro, situações referidas na Lei de Registros Públicos. Nesta se consagra que para todo nascimento deverá ser dado o registro no lugar de ocorrência do parto[36] ou no lugar da residência dos pais.
O prazo legal para providenciá-lo é de 15 dias para o pai – regra extraída do artigo 50 da Lei nº 6.015/73, já aposto em notas –, prorrogado por mais 45[37] dias para a mãe, na falta ou impedimento do pai. Para os nascimentos ocorridos em locais que distem mais de 30 quilômetros da sede do cartório, o prazo para fazer a declaração é de até três meses.
Regra excepcional acerca do registro de nascimento é a depreendida do artigo 51 da Lei de Registros Públicos. Neste se lê que “os nascimentos ocorridos a bordo, quando não registrados nos termos do artigo 65[38], deverão ser declarados dentro de cinco dias, a contar da chegada do navio ou aeronave ao local do destino, no respectivo cartório ou consulado.”
É de se salientar que o só fato do nascimento ter sido registrado no consulado[39] não é relevante para a aquisição da nacionalidade brasileira; para que se possa ser brasileiro nato ainda que não nascido no Brasil. Nesse sentir apõe-se que, se o pai ou a mãe estavam a serviço público, o filho será considerado brasileiro nato. Se não estavam, todavia, terá esse filho a prerrogativa de opção pela nacionalidade brasileira com efeitos nativos, mas esta fica condicionada à fixação de residência[40] do requerente no país.
O registro de nascimento, até a década de 1980, era efetuado mediante declaração verbal do pai ou responsável, que se faziam acompanhar de duas testemunhas. A partir de 1990, todavia, a Declaração de Nascido Vivo passa a ser necessária para que se promova ao registro.
Trata-se a declaração em comento de impresso fornecido pelo Ministério da Saúde, sistematizado para alimentar o SINASC – Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos. O preenchimento da declaração é responsabilidade dos hospitais e estabelecimentos de saúde que assistem o parto.
Nas hipóteses de parto ocorrido fora desses estabelecimentos, entretanto, em que não há tal declaração, tem o registrador a seu favor o mecanismo depreendido do artigo 52, § 1º[41]. Desta forma, não-existindo a declaração, ou existindo motivo para que se duvide desta, poderá ir à casa do recém-nascido verificar sua existência. Ademais, poderá exigir o atestado do médico ou da parteira que tenha assistido o parto. Poderá ainda exigir o testemunho de duas pessoas que tenham visto o recém-nascido.
Os ditames acerca do procedimento registral estão inseridos na Lei de Registros Públicos. Esta se vale do termo obrigatório[42] para fazer referência ao registro, embora não se trate verdadeiramente de obrigação. Diz-se isso porque se houvesse, ter-se-ia uma sanção para a não feitura do ato, o que não existe in casu. É verdade que no passado se pagava uma multa caso não se registrasse o nascimento do filho no prazo, referenciada no livro AA, mas hoje não mais existe.
Nada obstante, o Registro Civil acaba sendo indispensável para que se alcance certa eficácia jurídica. Não tem o condão de tornar existente a pessoa, certamente precedente a este. Da mesma forma a pessoa natural não tem seu requisito de validade atrelado ao registro. Ainda assim, a propensão para a aquisição de direitos e deveres na ordem jurídica não se dá em nosso sistema sem que se promova ao registro. Para a existência material da pessoa o registro não importa, mas para a sua formalização perante a ordem social este é um pressuposto.
Sendo um pressuposto para a formalização da pessoa natural perante a ordem jurídico-social, o registro assume função de grande relevância, ainda que não estritamente obrigatório. Tal relevância, somada a uma realidade onde pessoas não têm recursos mínimos para sobreviverem – que dirá para pagar emolumentos –, culminou com a preocupação do legislador originário com os reconhecidamente pobres[43].
Cuidou a Constituição da República Federativa do Brasil da situação dos reconhecidamente pobres. Essa é uma garantia petrificada na Carta Magna, que funciona como uma limitação ao poder constituído.
Por certo não pode o legislador ordinário restringir o conteúdo constitucional. Nada obsta, todavia, que se amplie os conceitos ali consagrados. Nesse sentir foi criada em 1997 a Lei nº 9.534, com a qual a garantia da gratuidade constitucionalmente assegurada aos pobres foi estendida a toda população.
A prerrogativa da gratuidade vem para espancar realidades como a narrada na obra Vidas Secas, em que os filhos do casal central da história são simplesmente “filho mais velho” e “filho mais moço”. Deixa, pois, de haver o entrave pecuniário para que seja promovido o Registro Civil.
Essa garantia vem ao encontro da necessidade de se assegurar condição de cidadania[44] a toda a população, atendida quando os indivíduos são conhecidos e reconhecidos. Tal conhecimento e reconhecimento, por certo, só é possível quando se dota o indivíduo de um registro, ponto de partida para a vida civil, em que pese não ser, do ponto de vista dogmático, obrigatório e constitutivo.
1.3 FUNÇÃO SOCIAL DOS REGISTROS CIVIS
O nascimento com vida tem como correlata a aquisição de personalidade jurídica[45], anúncio trazido pelo artigo 2º do Código Civil. Não obstante à locução nascimento, deve se destacar o resguardo dos direitos do nascituro desde a concepção, proteção também assente no diploma civilista e reiterada no Código Penal com a tipificação do aborto[46].
A Função Social dos Registros Civis ganha relevo no contexto em que estes são necessários para o alcance de certos efeitos jurídicos com reflexos na cidadania[47]. No registro se têm os meios hábeis a provar o estado do indivíduo, fixando de modo seguro os atos relevantes da vida humana, cuja conservação pública interessa inclusive a terceiros.
Dada a “imperatividade”[48] do registro e baseado em uma política pública focada no social, entendeu por bem o Estado brasileiro garantir a gratuidade do registro de nascimento. Essa garantia é exarada do que assevera o artigo 30 da Lei de Registros Públicos em redação trazida pela Lei nº 9.534 de 1997. Neste se lê que “não serão cobrados emolumentos pelo Registro Civil de nascimento e pelo assento de óbito, bem como pela primeira certidão respectiva.”
É importante se destacar que o referido caput não faz referência à situação financeira do registrando, razão pela qual toda a população pode se valer dessa prerrogativa. Nesse diapasão um munus público passa a integrar legalmente a atividade registral; um ônus que se justifica por ser o registro ponto de partida para o exercício da Dignidade da Pessoa Humana[49], ainda que sua natureza jurídica seja meramente declaratória[50].
Certamente não tem o Registro Civil o poder de criar uma pessoa, manifestação fisiológica dotada de razão. A atividade registral, todavia, é essencial para que a pessoa alcance status de cidadã – enquanto destinatário de Direitos da Personalidade –, sendo um pressuposto para tal. Sem o registro não há existência formal, formalidade que se justifica em um contexto de massificação, experimentada de forma mais evidente nos grandes centros urbanos, em que a imposição documental é onipresente. No trato comercial não se é ninguém sem identidade, CPF e numerosos comprovantes. As relações são impessoais, na sua maioria, pelo que não se exerce cidadania sem documentos, de feitura condicionada a um prévio assentamento civil.
Opondo-se à idéia de massificação, relevante se mostra ser trazido à colação um pouco da realidade deste continental país que é o Brasil. Assim, ainda que toda a construção legislativa aponte no sentido da imprescindibilidade do Registro Civil, inclusive nas relações do dia-a-dia, é de se destacar que nas comunidades interioranas ainda se conserva uma pessoalidade bastante peculiar.
Nas pequenas cidades do interior o registro não tem a função experimentada nos grandes centros, eis que ali as pessoas se relacionam sem o recurso de documentos. Na prática interiorana são tornados menos imprescindíveis que nas regiões com maior densidade populacional, pois as relações são travadas pela manifestação pública do nome, faticamente um “apelido público e notório”, expressão que não se confunde com o conceito trazido pela Lei nº 9.708/98, justamente por se operar à margem da Lei de Registros Públicos, sendo uma identificação de fato, que, entretanto, não se opõe ao Direito.
A pessoalidade experimentada nas referidas cidades é fato que acaba por impingir um modelo diferenciado de identificação, onde a função do sobrenome – evitar a homonímia – acaba não se operando. De toda sorte tal modelo, a que se chamou diferenciado, converge com a Função Social do nome, que, em qualquer análise ponderada, visa à identificação plena, objetivo que nos parece ser alcançado nesses núcleos populacionais.
É importante se destacar ainda que o modelo de identificação diferenciado, aludido no parágrafo pretérito, acaba por se confundir com o paradigma experimentado pelos gregos. Desta forma, enquanto um grego era identificado, consoante ilustração promovida por João Guilherme Tabalipa, como “Címon, filho de Milcíades, Sakíadas”[51], ali as pessoas são chamadas no trato do dia-a-dia “Lia do Raimundo Teixeira”, “Luzia do Armindo Garcia”, “Maria do Geraldo Martins”, “Geralda do Geraldo Lourenço”, “Marlene do João Marçal”, “Paulinho do José Alves” etc. Na construção grega havia um nome particular, um alusivo à família e outro referente ao gens, nome gentílico. A lógica grega, como se vê, é facilmente percebida nos modelos do interior do Brasil.
Ainda que nas comunidades interioranas a pessoalidade no trato diário sobeje, esta não torna dispensável o registro, que continua sendo requisito para que a pessoa tenha existência formal, sem a qual a cidadania não pode ser alcançada, sobretudo se se considerar que a interação é cada vez mais comum, e o modelo tribal de relacionamentos se encontra superado de há muito. Desta forma, mesmo que entre os conhecidos os documentos tenham relevância acanhada, entre os não conhecidos são as referências objetivas da pessoa.
1.4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ATIVIDADE REGISTRAL
Princípio deriva do latim principium, denotando origem, começo, início de existência. São disposições fundamentais que se lançam sobre as regras, orientando sua confecção e interpretação. Têm, pois, um duplo efeito.
Aponta o mestre Paulo Bonavides[52] que o caminho percorrido pelos princípios até que se lhes reconhecesse força normativa e cogente foi difícil e tortuoso. Por isso, não mais existe fundamento para que se os deixe de ter como normativos e cogentes, ponto de partida dos elementos essenciais ao Direito, indicando seus alicerces e ramos, dentre os quais o Registral.
Mesmo que não estejam normatizados, são os princípios preceitos fundamentais pelos quais se exercem e resguardam direitos. Disto decorre o entendimento dicionarizado por Plácido e Silva, onde se lê que os princípios são:
“as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. Revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas.”[53]
Em matéria registral alguns princípios acabam sobejando. Dentre estes se destaca a Tipicidade, Instância, Facultatividade, Fé Pública, Autoria e Responsabilidade, Controle da Legalidade, Imparcialidade e Independência, Unicidade do Ato, Conservação, Dever de Exercício e Forma de Ser.
Por Tipicidade se entende que somente os atos e negócios previstos no Direito Material podem ser objeto de catalogação registral. Diz-se, por isto, que o registro se submete à tipicidade fechada. Ainda assim, não esgota as hipóteses registráveis a Lei nº 6.015/73, podendo ser criadas pela legislação situações passíveis de registro. Por outro lado, as averbações e anotações não se submetem a qualquer tipicidade, sendo exemplificativo o rol assente na Lei de Registros Públicos.
Preconiza o Princípio da Instância que, por ser a atividade registral inspirada na legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, é vedado ao registrador praticar atos registrais de ofício, devendo manter posição de inércia. Assim, só deve agir se provocado, a não ser que a lei imponha a prática do ato.
Pelo Princípio da Facultatividade – também chamado princípio da voluntariedade –, aduz-se que os registros públicos não são estritamente obrigatórios, mesmo que a lei se vala desta locução muitas vezes. Deve se ter claro, todavia, que o registro pode ser indispensável para que se adquira certo direito ou se formalize uma situação já assente no mundo fático. Com o conceito de facultatividade se supera o momento em que o não-registro da prole no prazo legal importava em pagamento de multa.
Aponta-se a partir do princípio da Fé Pública ser dever do registrador contribuir para a paz social no desenvolvimento de sua atividade. O atendimento às formalidades afigura-se fundamental, assim como às especificidades naturais que regram sua atuação, pois só assim se pode garantir segurança às relações sociais consubstanciadas nos atos jurídicos sujeitos à chancela registral.
Na mesma esteira exsurge o princípio da Autoria e Responsabilidade, com o qual se responsabiliza o registrador pelos assentamentos[54] efetuados. Por certo estes não possuem meios para garantir a inteireza da relação jurídica de Direito Material. Nada obstante, devem se ater à forma pela lei determinada. Com isto sua responsabilidade fica adstrita a garantir correspondência entre o assentado e o declarado pelas partes.
Deve, pois, atentar para não assentar nada divergente do pretendido, pois a dissonância pode ensejar demanda judicial ou procedimento administrativo, neste se buscando aferir responsabilidade funcional. Não se limitar ao que as partes declararam, implica em assunção de responsabilidade que não é do registrador, mas tornada sua pela infidelidade ao sistema jurídico.
É preciso que se fale do chamado Controle da Legalidade. Com este se impõe ao registrador adequar o pretendido pelas partes ao ordenamento jurídico. No caso do Registro Civil deve se ater ainda mais às normas atinentes ao tema, sobretudo ao se considerar a definitividade que o artigo 58 da Lei de Registros Públicos informa. Logo é preciso cuidado para que não assente nome que possa expor seu portador a constrangimentos.
Nesse sentir retoma-se ao esposado na introdução: a possibilidade de livre escolha do prenome é prerrogativa que permite o flerte com o infinito, a passagem pelo bizarro. Tais situações devem ser evitadas pelo registrador, assim como a aposição de nomes que permitam distinções sociais, já que este é um representante da vontade legal e esta não pode permitir distinção de qualquer natureza, conforme anúncio do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil em seu caput.
O juízo da Legalidade implica no exame dos requisitos legais por ocasião da feitura do ato registral. Deve, pois, se ponderar a viabilidade do assentamento de uma vontade que pareça ir de encontro ao Direito. Como não tem o registrador o poder de dizer o direito no caso concreto – prerrogativa jurisdicional conferida aos magistrados –, caso entenda ser a aspiração contrária ao ordenamento jurídico, deve submeter a questão ao juízo responsável através do procedimento de dúvida. Diz-se isso porque não é o registrador mero redutor a termo do que pretende o particular. Em alguns casos deve assim proceder, mas apenas naqueles em que o pretendido encontra subsunção no Direito.
Na hipótese do agnome, por exemplo, um cuidado deve ser tomado pelo registrador, já que sua função semântica é bem delimitada. Por tal razão não deve ser usado fora dos casos de expressa correspondência do nome do pai, tio ou avô com o que se pretende registrar. É preciso se ter claro que a função deste é retomar laços genealógicos. Assim, a prerrogativa do pai de apor o agnome “Júnior” ou “Filho” à prole só exsurge nos casos em que os nomes são idênticos, diferenciados apenas pelo sufixo. O mesmo se diz do avô e do tio que terão seus nomes apostos no neto ou sobrinho.
Por razão de sistematização semântica a correspondência aludida deve ser vivenciada, eis que não faz nenhum sentido à luz do Direito um pai chamado Ignácio Loiola da Costa ter um filho com o nome de Anderson Júnior da Costa. Neste caso, restaria despropositada a utilização do agnome, concebível para a pessoa natural média, mas não para o registrador, conhecedor da técnica jurídica. Como intérprete da lei no caso concreto, deve atuar de forma que o anseio do particular seja subsumível aos liames legais.
Legalidade é, pois, vinculação, quase absoluta, dos atos registrais às normas legais, em que se impõe observância integral das normas orientadoras dos registros públicos, não se podendo cogitar de discricionariedade nesta atividade.
Dentre os deveres do registrador, enumera-se também o de atuar com Imparcialidade e Independência. Deve, deste modo, tratar aos interessados da mesma forma. Observar o que dispõe a Lei de Registros Públicos é dever em qualquer situação, não importando a relação pessoal do registrador com quem está a promover o registro.
O princípio em comento pode ter reflexos sobre o artigo 52 da Lei de Registros Públicos, onde se estabelece taxativa ordem de legitimação para a promoção do Registro Civil, pelo que não devem relações pessoais contrariar ao estabelecido no diploma legal. De igual modo, não pode o registrador deixar de observar os limites de sua circunscrição porque o registrado descende de amigo. Tal imparcialidade garante que sua atuação seja a mais próxima do ideal petreamente consagrado: “todos são iguais perante a lei”.
Na esteira principiológica que ora se percorre, necessário se mostra o trato do Princípio da Conservação, eis que a preservação dos livros e papéis a si confiados é um dever que o registrador assume por ocasião da efetivação da delegação, tornando-se depositário destes documentos. Deve, pois, os conservar de forma a impedir a destruição, sob pena de responsabilidade, afinal a defesa que exerce é forma de preservação do próprio Estado. Ademais, a segurança dos atos jurídicos para os quais a lei impõe forma prescrita em lei – dicção do artigo 104 do Código Civil em vigor – tem sua oponibilidade atrelada ao assentamento cartorário.
Deve-se falar também do Princípio do Dever de Exercício, pelo qual não pode o registrador se eximir à realização de atos de sua função, sobretudo porque muitos desses atos são dotados do caráter jurídico necessário. Logo, reveste-se o exercício do registrador do caráter obrigatório, que permite aferir incorrer tal agente público em responsabilidade administrativa e civil na hipótese de imotivada recusa à promoção dos atos de seu ofício.
Por fim, parece-nos ponderável traçar apontamentos sobre o Princípio da Forma de Ser. Este, também chamado de forma dat esse rei, proclama que todo ato jurídico, para que seja conhecido e produza efeitos, precisa se ater a uma forma de exteriorização. Assim sendo, para aqueles que a lei reserva forma específica de feitura, notadamente os solenes, atender-se esta é imperativo.
2 O NOME CIVIL: DIREITO DA PERSONALIDADE
Nos primórdios das civilizações, Hebreus e Gregos eram identificados por um só nome[55], equivalente ao prenome nos dia de hoje. Tal prática, todavia, foi sendo superada em virtude do crescimento populacional, que acabou impondo a adoção de nomes complementares para evitar a homonímia e alcançar uma identificação efetiva.
Os hebreus, conforme o Novo Testamento, começaram agregar ao prenome mais um, indicativo de sua origem. No sentido da evolução da formatação do nome civil, os gregos[56] também foram mudando suas práticas, acrescentando outros nomes: o nome do pai e o da gens ou tribo.
Os Romanos usavam mais de um nome, acrescentando um apelido relacionado à circunstâncias pessoais. Assim Publius Cornelius Scipio Africanus seria o indivíduo da Cornelia, da família dos Scipio, notabilizado por feitos[57] em batalhas na África. Publius equivaleria ao prenome nos dias de hoje, enquanto os sobrenomes indicariam naturalidade, família e um feito especial, caso houvesse.
Nos dias de hoje adotam os países ocidentais, de um modo geral, a dupla denominação: nome individual, chamado prenome, e sobrenomes. A atual formatação do nome é um dado que deve ser entendido dentro dos ditames dos Direitos da Personalidade.
O professor Gustavo Tepedino leciona que “a categoria dos Direitos da Personalidade é fruto de elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX, compreendendo os direitos inerentes à Pessoa Humana, considerados essenciais a sua dignidade e integridade.”[58]
A despeito[59] do registro histórico do mestre Tepedino, os direitos em comento começaram a ser consagrados com o surgimento de textos fundamentais e históricos como o Bill of Rights, dos Estados Americanos em 1689, a Declaração de Independência das colônias inglesas na América do Norte em 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[60] em 1789, marco da Revolução Francesa.
Nessa linhagem histórica, tem-se ainda a Declaração de Direitos de 1793 – na qual foram considerados naturais os direitos à igualdade, liberdade, segurança e propriedade –, a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948 e a Convenção Européia dos Direitos Humanos, esta de 1968.
Como leciona o professor Francisco Amaral, a personalidade jurídica é a “aptidão para titularidade de direitos e deveres congênitos ao homem”[61], com a qual se atribui à pessoa possibilidade de participar de uma relação jurídica, ou seja, de ser sujeito de direitos. Esses direitos, assentes nos artigos 11 e seguintes do Código Civil, dizem pertinência ao que o dicionarista Houaiss chama de “conjunto de traços distintivos de alguém; caráter; originalidade, identidade”.
Juridicamente os Direitos da Personalidade são consagrados como sendo “o conjunto de todos os direitos subjetivos e obrigações conferidos pela ordem jurídica ao ser humano, a partir do momento em que ele ingressa em sociedade, isto é, quando ele nasce com vida”[62], consoante lição de Flávia de Oliveira.
Infere-se, no sentido colacionado, tratarem-se do conjunto de faculdades que se reconhece à Pessoa Humana; conjunto que decorre de sua própria natureza, não tendo, pois, caráter patrimonial[63]. São os direitos com os quais a pessoa defende o que lhe é inerente, como o nome, não sem razão alçado a esta condição com o advento do Código Civil vigente.
Com os Direitos da Personalidade se tutela aspectos que são próprios da pessoa. Estes incidem sobre o sujeito de direito de forma intangível, não podendo ser destacados[64], caso da vida, do nome, da liberdade, da privacidade, da imagem, da honra etc. Nessa ordem, podemos dizer que estes direitos são dotados de caráter absoluto, sendo imprescritíveis, indisponíveis[65], irrenunciáveis, impenhoráveis, inalienáveis, inatos – já que inerentes ao ser humano – e intransmissíveis.
A Constituição da República de 1988, no afã de atender aos anseios de uma sociedade debelada por um regime totalitário, onde garantias individuais mínimas foram suprimidas, acabou por consagrar muitos Direitos Fundamentais, dentre estes os Direitos da Personalidade.
Nessa esteira, o caput do pétreo[66] artigo 5º da Carta Política garante a igualdade formal, a inviolabilidade da vida e da liberdade. Mais que enumerar taxativamente os direitos em exame, o legislador constituinte usou o expediente de anunciá-los sem afastar outras manifestações da personalidade. Desta forma, como se assevera no parágrafo segundo do citado artigo, os Direitos colacionados não excluem outros não expressos na Carta Política. Ademais, resguardou os direitos que podem ser depreendidos dos princípios pela Constituição adotados e os decorrentes dos tratados internacionais[67] de que seja signatário o Estado Brasileiro.
Uma questão bastante intrigante no que concerne à disponibilidade dos Direitos da Personalidade diz pertinência à possibilidade de ablação de órgãos humanos quando se pretende “assumir a identidade de seu verdadeiro gênero”[68].
A pertinência temática[69] da proposição tracejada com a questão do nome é total, já que da ablação surge um novo corpo, e não nos parece fazer sentido se impor a mantença de um nome que evoca o gênero masculino a quem ostente um corpo feminino e vice-versa, mesmo que tal corpo seja uma manifestação fenotípica construída cirurgicamente, sem correlação com a composição cromossômica.
O diploma civil disciplina em seu artigo 16 que toda pessoa tem Direito ao Nome, constituído pelo prenome – próprio da pessoa – e pelo sobrenome, que indica a filiação: o apelido de família ou patronímico.
Por ser indicativo de família entendeu o Superior Tribunal de Justiça – no REsp 66.643-SP, de relatoria do eminente ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira – em um caso de renegação do sobrenome paterno, configurado na substituição deste pelo da mãe, motivado pelo abandono do genitor, ser possível a troca. Tal entendimento parece-nos ter sido baseado na premissa teleológica e axiológica do sobrenome: identificar laços familiares. Se estes laços não existem, não faz sentido se manter um patronímico que faça remição a estes.
O nome civil da pessoa natural é integrante da personalidade por ser o elemento externo pelo qual se individualiza e se reconhece a pessoa na sociedade, não podendo expor seu titular à situação vexatória. Ao lado do estado civil e do domicílio é um dos elementos a individualizar a pessoa em sociedade[70], sendo um dos mais importantes Direitos da Personalidade.
2.1 PROBLEMATIZAÇÃO TERMINOLÓGICA: ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO NOME
O Direito ao Nome, consoante disposição da Lei de Introdução ao Código Civil[71] em seu artigo 7º, é regulado pela lei do domicílio da pessoa. Verbis: “A lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”.
O sistema depreendido da Lei de Introdução é encampado pelo Código Civil em seu artigo 16, onde se estabelece que o nome compreende prenome e sobrenome, e pela Lei de Registros Públicos, especificamente no Título II – que trata do Registro de Pessoas Naturais –, Capítulo IV, afeito a cuidar do Nascimento, artigo 54.
É importante se destacar que a terminologia adotada na Lei de Registros Públicos diverge da encampada no Código Civil. Neste a locução “nome” é gênero de que são espécies o prenome e o sobrenome. É um conceito coeso e assentado de forma convergente ao longo do texto legal. Em outro sentir, a Lei de Registros Públicos utiliza a expressão “nome” como sendo o correspondente a sobrenome, conforme artigo 54, 4º[72]. Não é um conceito uníssono, todavia, eis que no artigo 57, § 2º[73] quem assume a acepção de sobrenome é patronímico.
A confusão referente ao sobrenome, referenciado de forma diferente ao longo da Lei de Registros Públicos, não se repete quanto ao prenome. Em relação a este, tanto a Lei Registral quanto o Código Civil apontam em sentido convergente, qual seja, a acepção de nome particular.
A idéia de nome particular – aquele de livre escolha pelos legitimados à declaração de nascimento enumerados no artigo 52 –, assume na locução legal um só sentido: o de prenome. É exatamente quanto a este que deve redobrar a atenção o registrador, já que no concernente ao sobrenome existe fórmula legal que norteia sua aposição, pela qual se faculta inclusive a colocação de ofício, consoante anúncio de seu artigo 55[74].
Visto o tratamento legal conferido ao nome na Lei de Introdução, Código Civil e Lei de Registros Públicos, aponta-se que, por razões de sistematização semântica a locução nome será empregada no sentido de gênero do qual fazem parte prenome e sobrenome, na direção consagrada no Código Civil.
Tal orientação, além de se nos parecer proposição coerente, vai ao encontro do que anunciava o professor André Franco Montoro – em sua clássica obra Introdução à Ciência do Direito[75] – ao cuidar do fenômeno da revogação de leis, de onde se depreende que normas de igual hierarquia se revogam quando trazem apontamentos divergentes. Considerando que a Lei de Registros Públicos e o Código Civil são leis ordinárias, e cuidam da questão terminológica de forma divergente, parece-nos que as orientações do codex devem se sobrepor às da lei registral, não obstante a especialidade da lei de 1973. Esse entendimento decorre da necessidade de melhor sistematização dos termos, certamente bem esclarecidos no código.
Superado o tratamento das leis conferido à terminologia do nome, é preciso se compreender como este é percebido no senso comum e na doutrina. Nesse sentir se chega ao consagrado de modo dicionarizado, aferindo-se ser o nome “critério de identificação”, “sinal característico a distinguir dos demais”.
Por um lado o nome identifica e distingue, sendo expressão de cultura e tradição, o que arrazoa a premente necessidade de sua tutela. Por outro atende aos interesses do Estado, já que através deste tem o ente público possibilidade de exercer seu poder de império em questões como tributação, serviço militar, cadastramento de eleitores etc.
Observado sob a ótica do Direito Civil, o nome se mostra uma questão de simples resolução. A partir desta perspectiva é critério de identificação de que se vale o Estado e suas instituições, pelo que todos os indivíduos o portam. Por outro lado, afigura ser um Direito Subjetivo com o qual a possibilidade de identificação exsurge para o particular.
Afora a proposição civilista, resta-nos fora de dúvida que o nome é Direito Fundamental, inserto no contexto dos Direitos da Personalidade. Assim, constatando-se haver um Direito ao Nome, necessário se mostra a proteção[76] de seu titular de situações em que possa haver constrangimentos.
É nessa seara que a possibilidade de mudança do prenome ganha relevo. Essa prerrogativa, a qual se somou as alterações da Lei nº 9.708/98 referentes à adoção de apelidos públicos e notórios, certamente está em sintonia com os conceitos da Cidadã Constituição vigente, que busca dar primazia aos Direitos Individuais.
De há muito apontava o mestre Miguel Maria de Serpa Lopes que “o nome é uma obrigação frente à sociedade, quanto ao seu uso necessário e à sua imutabilidade.”[77] Percebe-se de seu magistério preocupação com o nome enquanto obrigação, e não prerrogativa, entendimento que precisa ser repensado à luz do atual estágio do Direito, voltado para a afirmação da individualidade.
Afirmava ainda o professor Serpa Lopes que o modo de compor o nome e “sua formação ortográfica não podem estar sujeitos ao arbítrio da lei ou do Estado, desde que fiquem respeitados certos princípios essenciais ao seu reflexo na coletividade.”[78]
Em um primeiro momento assinala ser o nome uma obrigação do indivíduo para com o Estado. Logo depois aponta que a formação deste não pode ser controlada pelo Poder Público, a não ser quanto a princípios ditos essenciais. Nesse ponto seus apontamentos vão ao encontro do que consagra a Lei de Registros Públicos ao rechaçar a aposição de prenomes ridículos, pelo que são absolutamente válidos. Quanto à perspectiva meramente obrigacional, entretanto, merecem ser sopesado o entendimento citado.
Por certo não há regras a informar a composição do prenome, mas se afigura claro que a estruturação deste deve ser feita com base em princípios, sobretudo a razoabilidade. Não importa simplesmente a agradabilidade deste aos ouvidos dos pais, mas também, e, principalmente, o interesse do menor, entendimento que encontra respaldo na legislação afeta a cuidar da criança e do adolescente: Lei nº 8.069/90.
2.1.1 Prenome
Prenome é o signo que distingue cada indivíduo. É a marca que o diferencia ante os demais membros da família e o identifica perante as demais pessoas e instituições. Em nosso país – diversamente do que se dá em outros, como a Itália – o prenome vem à frente da procedência familiar; do sobrenome.
É através do prenome que usualmente se identifica seu titular. Claramente esse se sobrepõe ao sobrenome no trato diário. Assim, afere-se que personagens históricos são conhecidos pelo prenome, como Jesus (Cristo) e Napoleão (Bonaparte), ainda que exceções à regra possam ser constatadas, caso do estadista Hitler (Adolph) e do jurista Bobbio (Norberto).
O poder de identificação do prenome é grande, assertiva que se mostra indubitável. Além disso, na escolha deste afloram sentimentos os mais diversos, como a corporificação do amor que é “Jurilza” – filha de Juvenal e Marilza – e muitos outros, sendo certo que os elementos inventivo e criativo são fortes determinantes da escolha.
No trato do prenome não há regras positivadas, a não ser a tutela oblíqua decorrente do que assevera o artigo 55 parágrafo único da Lei de Registros Públicos, de onde se extrai a possibilidade de alteração do prenome ridículo. Teleologicamente se infere, logo, que não devem ser apostos prenomes ridículos, pois estes poderão vir a serem mudados posteriormente.
O Direito brasileiro, como se afere na redação do artigo referido, não se valeu do expediente de cercear liberdades individuais. Na verdade adotou uma postura de maior fiscalização, em detrimento da intervenção. Desta feita se preserva a vontade dos pais, salvo tal aspiração não poder ser albergada pelo Direito, ocasião em que o registrador lançará mão do procedimento de dúvida para que o Juiz com atribuição registral diga da possibilidade ou não do emprego de um prenome.
Por evidente a capacidade criativa não deve ser, em princípio, cerceada, já que é um fato a manter vivo o idioma, permitindo sua evolução. Tal orientação, contudo, não pode ser usada como meio a criar situações embaraçosas, de recorrentes constrangimentos para o registrando.
No sentir da seara que se percorre é lição de Manuel Vilhena de Carvalho, onde se informa que “todas estas restrições relevam da preocupação de apenas deverem atribuir-se às pessoas nomes próprios adequados e idôneos para as designar com a dignidade que lhe é intrínseca e cujo reconhecimento lhes é devido”[79]. Seguindo tal linha de raciocínio aponta ainda que:
“não pode deixar de considerar-se extraordinariamente amplo e rico o campo de escolha de nomes próprios considerados adequados à designação das pessoas e, por outro, parece também defensável que, em cada momento, se impeçam como designações pessoais todas aquelas que possam ferir os seus titulares, agredir a susceptibilidade geral, ou pôr em causa as regras mínimas que a Antroponímia, como ciência dos nomes, estabelece para a sua formação.” [80] (destacou-se)
Equilíbrio é, assim, fundamental. Não se tem como inferir de plano qual é o melhor prenome. Na verdade, o bom prenome será o que resguardar os interesses dos pais e dos filhos, mesmo porque a possibilidade de mudança baseada no ridículo não é de constatação aritmética, sendo conceito sujeito a inferências pessoais. Por isso, nem tudo que é ridículo para uma pessoa será para outra.
O prenome costuma também ser determinado por outros fatores. Certamente as tradições familiares, a vontade dos pais e a referência a sentimentos são pontos de partida muito comuns para a aposição de um nome. Além desses, fatores externos acabam sendo determinantes, como a consideração e respeito nutridos por amigos e o patriotismo.
Historicamente, todavia, a liberdade para a escolha do prenome era pelo menos dirigida. Enquanto unidos de forma indissociável Estado e Igreja, esta acabava por determinar o rumo das políticas estatais. Como recomendava a adoção dos nomes de seus santos e mártires, estes acabaram sendo os mais comuns em sua área de influência. Assim, ainda hoje, os prenomes mais comuns são os consagrados pela Igreja.
O Código de Direito Canônico, publicado em 1915, afirmava ser boa aos olhos de Deus a adoção de prenomes de santos e mártires. Partia-se de um postulado de afirmação, que não se repetiu com a publicação do código de 1983. Neste, parece que a Igreja tomou consciência da nova realidade em que não mais dita os rumos tomados pelo Estado. Sua postura é, pois, apenas de sugerir[81] que pais, padrinhos de batismo e sacerdotes não aponham nome que divirja do sentido cristão, como os alusivos a falsos deuses, a homens impudicos, obscenos etc.
Além do inscrito no Código Canônico, antes referenciado, cumpre informar que a Igreja retoma o tema por ocasião da edição de seu catecismo em 1993, apontando no cânon 2156 que “no batismo, o nome do Senhor santifica todo nome, e o cristão recebe seu nome na Igreja. Pode ser o nome de um santo, isto é, de um discípulo que viveu uma vida de fidelidade exemplar ao seu Senhor”. Assim, os católicos entendem ser a aposição de um prenome referente a santificado forma de consagração do modelo cristão.
Dentro de um contexto de laicização, contudo, as recomendações da Igreja passam a ter um valor relativizado. Além disso, é dever do Estado desde 1870 – ano em que se editou a Lei nº 1.829 – regular e regulamentar os registros públicos e as questões sobre o nascimento e suas implicações jurídicas.
O Direito ao Nome, nos dias de hoje, insere-se em um contexto da democratização do Estado de Direito, onde se consubstanciam duas normas jurídicas fundamentais: a primeira referente à igualdade entre homem e mulher para os fins de dar nome aos filhos, pela qual a ordem do artigo 52 da Lei de Registros Públicos deve ser ponderada no caso concreto, já que não mais subsiste a noção de “chefe de família”[82], sucumbente à idéia de “poder familiar”[83]. A segunda situa-se no plano filial, no qual deixou de haver distinção entre filhos legítimos, ilegítimos e adotados. Todos passam a ter prerrogativa a um prenome escolhido pelos pais e ligado ao sobrenome destes.
Sendo o idioma oficial[84] do Brasil a Língua Portuguesa, esperar-se-ia a utilização do vernáculo na aposição dos prenomes, ressalvadas as situações em que os pais fossem estrangeiros.
Ainda que só o pai ou a mãe tenham raízes no estrangeiro, não é de se dizer sem propósito o emprego de um prenome que retome a história familiar, já que é prática consagrada a utilização de prenome que realce usos e costumes familiares.
O emprego do prenome estrangeiro, em outras hipóteses, restaria injustificado. Nada obstante, a prática não procede no sentido dessa assertiva, vide a enormidade de Willians, Washingtons, Michaels, que de estrangeiros não têm nada, a não ser pais com fixação no que vem de fora. De toda sorte não faz sentido um brasileiro, nascido no Brasil e de pais brasileiros, receber prenome estrangeiro, pois importa na desconsideração do vernáculo como meio oficial de comunicação entre os habitantes do território nacional por estrangeirismos[85] despropositados.
É importante se cuidar ainda nesse tópico dos casos do estrangeiro que ingressa no território nacional, mantendo seu prenome estrangeiro, e do que o altera. Nesse caso é preciso se atentar para o que preceitua o Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815 de 1980, sobretudo seu artigo 31, onde se lê que “o nome e a nacionalidade do estrangeiro, para o efeito de registro, serão os constantes do documento de viagem[86].” Assim sendo, o estrangeiro pode permanecer utilizando seu prenome original, respeitando os laços patrióticos e familiares.
Em outras situações, como as descritas no artigo 43 do Estatuto do Estrangeiro, exsurge a prerrogativa da troca do prenome. São hipóteses a autorizar a troca[87] de prenome as que se seguem: comprovação de erro, assunção de sentido ridículo ou pejorativo na língua portuguesa e a constatação da dificuldade de pronunciação ou compreensão.
Por evidente, a possibilidade de mudança do nome do estrangeiro que se anunciou, só merece prosperar nos casos em que este venha a fixar residência no Brasil, já que o objetivo da alteração é permitir que o estrangeiro possa ter sua convivência facilitada na comunidade brasileira, exercendo plenamente sua cidadania, afinal, em uma comunidade global, todos acabam sendo cidadãos do mundo.
Uma regra também importante no estudo do prenome diz respeito à sua formação no caso de gêmeos, preceitos que decorrem do anúncio do artigo 63[88] da Lei nº 6.015/73. Nesse ponto importa dizer que, ao contrário de outras legislações, a Lei de Registros Públicos é analítica e pouco sintética, não deixando margem de discricionariedade para o Registrador.
Tal ponderação encontra respaldo na constatação de que essa lei contém regras bem definidas – regras em sentido estrito, espécie do gênero norma –, onde a aplicação de uma leva ao preterimento da outra, no exato sentir da máxima defendida por Dworkin[89]: o famigerado “tudo ou nada”.
Do citado artigo 63 se depreende que no caso de gêmeos se declarará no assentamento de cada um a ordem de nascimento. Caso tenham iguais prenomes, estes deverão ser inscritos com duplo prenome ou nome completo diverso, para que o objetivo da distinção e identificação possa se consubstanciar.
A regra referida aos gêmeos também se destina às hipóteses de irmãos com iguais prenomes, conforme leitura do parágrafo único[90] do artigo em comento. Trata-se de solução jurídica para o problema da homonímia, inconveniente para o qual o Direito ainda não consegue dar solução satisfatória, não obstante a riqueza onomástica existente. Por certo não haveria prenomes absolutamente distintos para toda a população, o que não se diz de um grupamento familiar. Como não adotou o Poder Público “política limitativa”[91] nesta seara, o artigo 63 da Lei de Registros Públicos acaba funcionando como o garantidor da finalidade do nome; identificar.
Entendeu por bem, sim, que os membros de uma mesma família que tenham prenomes comuns deverão ter também uma parte absolutamente particular. Desta feita, ter-se-á prenomes compostos, decorrentes da imperatividade legal. A igualdade de um prenome deve ser acompanhada de outro “nome particular”, ficando a encargo deste a função precípua do primeiro.
2.1.2 Sobrenome
O sobrenome, também chamado patronímico, apelido de família, é elemento a compor o nome civil que identifica a família a que pertence o indivíduo. Traz consigo a função de identificar o indivíduo no meio social, além de conduzir através dos tempos a reputação do grupo familiar.
As regras visando à proteção do sobrenome foram evoluindo ao longo dos tempos, experimentando maior importância no final do século XIX, quando o nome passa a ser entendido como Direito da Personalidade.
Em um primeiro momento o sobrenome não fora obrigatório. Esse imperativo surgiu com o maior adensamento da população, em que este desponta como um meio efetivo para evitar o problema da homonímia.
A noção de obrigatoriedade do apelido de família no Brasil se confunde com as tradições reinóis, trazidas pelos colonizadores portugueses, então afeitos à idéia de que a incorporação de sobrenomes importaria em demonstração de importância do grupo familiar, denotando bem-nascença.
Nos dias de hoje a obrigatoriedade é uma regra assente na Lei de Registros Públicos, corporificada no caput do artigo 55, onde a aposição do patronímico pode ser operada de ofício quando o autorizado à promoção da declaração de nascimento não manifesta sua opção por um dos possíveis sobrenomes. Esta afirmativa decorre da aquisição, ipso jure, do sobrenome dos pais pelos filhos, que se opera no nascimento com vida. Como a referida aquisição só se opera em relação ao sobrenome dos pais, é de se destacar o impedimento de que se aponha apelidos de família que sejam estranhos ao grupo familiar. Assim, pode-se concluir que o registro do patronímico tem eficácia declaratória, pois é vedado aos pais escolher apelidos de família que não os seus.
Como se pode perceber, a omissão dos autorizados à promoção do Registro Civil faz surgir para o registrador o poder/dever de apor ao registrando o sobrenome dos pais. Tal possibilidade, todavia, não aduz o dever de assentar todos os sobrenomes que os pais possuam. Esses apontamentos se fazem necessários, porque não há regra a impor a inserção de todos os patronímicos do pai e da mãe.
O registrador deve, por certo, observar os apelidos de família dos pais da criança nos casos em que a lei o autorize apor sobrenome de ofício. A lei é silente quanto à aposição de sobrenomes quando não forem conhecidos os apelidos de família dos pais da criança. Nesse caso, em prol do “melhor interesse do menor”[92] – em que sua proteção se afigura latente –, a Lei de Registros Públicos deve ser interpretada em um contexto de protetividade.
Afere-se, desta feita, que o registrador deve proceder a uma minuciosa averiguação, perquirindo qual apelido deve ser aposto ao registrando. Caso restem infrutíferas as diligências, o oficial deve providenciar um apelido de família para o nascido tendo em vista o bom-senso e os costumes do lugar.
A realidade brasileira, faticamente, ainda relata casos de menores abandonados. Nestas situações, em que não se sabe quem é o pai ou a mãe, não sabe onde nasceu a criança, impõe-se cuidado para a aposição do nome.
Quando se encontra um menor abandonado, normalmente, ele é levado à presença do juízo competente em matéria de criança e adolescente. A despeito de iniciar um procedimento de colocação em família substituta tendente à adoção, oficia ao cartório mais próximo do local do encontro da criança para a promoção do registro.
Tal ofício leva a uma indagação. Como se fazer este registro?
Considerando a lacuna legal sobre o assunto, é a tradição do local que determinará a aposição do nome. Curioso é notar a prevalência do uso de prenomes consagrados no catolicismo por ocasião da feitura do registro em comento, não obstante os mais de 135 anos de independência dos registros públicos no Brasil. Desta forma, o comum é se empregar o nome do Santo do Dia: Rafael no dia de “São Rafael”, João no dia de “São João” etc. Os sobrenomes, também referência religiosa como regra, são Deus ou Jesus. Assim tem-se Rafael de Deus, João de Jesus, para se citar algumas possibilidades.
A par da influência religiosa citada, em que se usam Jesus e Deus como sobrenomes, também é comum o emprego de apelidos familiares como Souza e Silva, tendo em vista o caráter genérico destes.
As hipóteses de não-conhecimento do sobrenome dos pais se configuram nos casos de abandono. Tal situação, contudo, não deve ser sobrelevada por ocasião da feitura do registro. Não se deve fazer menção ao abandono experimentado, sob pena de se impor ao registrado o fardo do desamparo para toda a vida.
Nos casos em que não há omissão na aposição de sobrenomes, mas ao contrário, verdadeiro conflito positivo entre pai e mãe, ambos querendo ver seus laços familiares mantidos na prole, sem que se chegue a um consenso, o oficial não ultimará o registro. Neste caso, não existindo o consenso, e como não há mais o “chefe da família”, tema já enfrentado, a decisão do litígio deve ser levada ao juízo com jurisdição atinente à matéria registral.
De há muito não mais se adota a regra da unidade nominal. Esta informava que todos os membros de uma família deveriam portar idênticos sobrenomes. A superação desta regra importa em maior liberdade para os pais, ou qualquer autorizado enumerado no artigo 52 da Lei de Registros Públicos, para aporem os apelidos familiares que entendam necessários ao registrando, deste que a escolha esteja adstrita aos patronímicos dos pais da criança.
Outra questão importante quanto ao estudo do sobrenome diz pertinência à sua limitação, certamente uma questão delicada. Tal assertiva exsurge em razão de entrarem em choque dois valores: de um lado o desejo dos pais de se verem espelhados nos filhos, atribuindo-lhes todos os seus patronímicos; do outro lado a necessidade de se resguardar a proporcionalidade, pela qual se afigura despropositada um sobrenome demasiadamente grande, pois sua função é individualizar, soando desnecessária a aposição de numerosos apelidos de família.
É preciso, pois, que se pondere os interesses no caso concreto, já que não há regras que limitam a quantidade de sobrenomes. Pode-se dizer, a contrário senso, existir regra da quantidade mínima, depreendida do anúncio do artigo 55 da Lei de Registros Públicos em seu caput, com o qual a aposição do sobrenome é imperativa, autorizando, inclusive, a colocação de ofício.
Questão interessante diz respeito à possibilidade de repetição de sobrenomes, operada pela justaposição de patronímicos de igual teor, como se vê no exemplo seguinte: “Guilherme Araújo e Araújo”, ou ainda “Guilherme Araújo Araújo”. A repetição não é proibida, salvo se se duplicar o sobrenome de um dos pais. O que se permite é a adoção de um apelido de família do pai e outro da mãe, ainda que comuns. Por isso o Guilherme, filho de Antônio José Araújo e Izabel Araújo de Siqueira pode ostentar o nome em que se configure a repetição do sobrenome do pai e da mãe.
Esta possibilidade, todavia, é afastada na hipótese de o Araújo portado pela mãe ter sido adotado por ocasião do casamento. Permite-se a repetição que privilegie os laços de família do pai e da mãe. Desta forma restaria vedada a justaposição do sobrenome do pai[93] pela via oblíqua.
Afora a não mais obrigatoriedade da aposição de todos os sobrenomes ostentados pelos pais da criança – imposição que como se viu chegou ao Brasil com as tradições reinóis –, o bom-senso acaba por ser também um limitador à aposição de apelidos de família.
A liberdade experimentada nos dias de hoje quanto à aposição de sobrenomes diverge, consoante Manuel Vilhena de Carvalho[94], da onomástica européia tradicional, pois nesta se impunha que o apelido de família do pai, “o mais importante dos genitores”[95], deveria estar mais próximo do prenome, em um “local de honra”.
A noção de local de honra foi sendo alterada com o passar dos tempos. Assim passou-se a entender que o patronímico do pai deveria ocupar o último lugar. Tal mudança de paradigma decorreu da assunção de maior importância da tradição francesa e inglesa, onde era o último patronímico o transmitido à descendência. Assim, para que a linhagem familiar paterna restasse preservada, necessário se fez que se promovesse à inversão da ordem até então adotada.
Em outros Estados europeus, todavia, vigia regra pela qual a posição dos patronímicos dos pais variava conforme o sexo do filho. Precisamente em Portugal, a regra adotada apontava para a maior importância do sobrenome paterno, que, no sentido das tradições francesas e inglesas, passou a ser aposto em último lugar para que se o pudesse transmitir aos descendentes.
2.2 LEGITIMADOS À PROPOSITURA DO ATO REGISTRAL
Estatui o artigo 50 da Lei de Registros Públicos, em redação conferida pela Lei nº 9.053 de 1995, que “todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do cartório.”
Como se percebe, em regra o registro deve ser promovido nos quinze dias que sucedem ao nascimento, prazo que pode ser dilatado por até três meses se o local do nascimento distar mais de trinta quilômetros da sede do cartório com a circunscrição sobre o território em que se deu o nascimento.
Analisando o artigo colacionado em consonância com o artigo 52 do mesmo diploma, algumas proposições podem ser tracejadas. Estabelece-se, inicialmente que o artigo 52 anuncia as pessoas obrigadas à feitura da declaração de nascimento. Pela taxatividade do rol, e pela necessidade de sua interpretação à luz da Constituição, sobretudo seus incisos[96] I e II, em que resta evidenciada a prevalência da prerrogativa – obrigação na dicção legal – paterna sobre a materna, necessário se mostra uma detida análise do dispositivo. Observe-se, pois, a transcrição literal do artigo em comento:
“São obrigados a fazer declaração de nascimento:
1º) o pai;
2º) em falta ou impedimento do pai, a mãe, sendo neste caso o prazo para declaração prorrogado por quarenta e cinco (45) dias;
3º) no impedimento de ambos, o parente mais próximo, sendo maior achando-se presente;
4º) em falta ou impedimento do parente referido no número anterior os administradores de hospitais ou os médicos e parteiras, que tiverem assistido o parto;
5º) pessoa idônea da casa em que ocorrer, sendo fora da residência da mãe;
6º) finalmente, as pessoas (VETADO) encarregadas da guarda do menor.
§ 1° Quando o oficial tiver motivo para duvidar da declaração, poderá ir à casa do recém-nascido verificar a sua existência, ou exigir a atestação do médico ou parteira que tiver assistido o parto, ou o testemunho de duas pessoas que não forem os pais e tiverem visto o recém-nascido.
§ 2º Tratando-se de registro fora do prazo legal o oficial, em caso de dúvida, poderá requerer ao Juiz as providências que forem cabíveis para esclarecimento do fato.”
O rol constante do artigo colacionado seria excludente, seguindo a prerrogativa de propositura do ato registral ordem de preferência expressa, onde a pessoa constante do inciso posterior só poderá exercê-la diante da inércia de quem a precede.
Tal questão afigura-se bastante clara, a não ser quanto ao caráter de exclusão que a lei parece informar também em relação aos genitores, exclusão que não merece subsistir à luz da Constituição de 1988, em que homens e mulheres foram alçados à condição da igualdade[97] formal.
Nos demais casos, todavia, não há que se levantar discussões, pois a clareza legal não vai de encontro ao preconizado no texto constitucional. Desta forma, deve o registrador estar absolutamente atendo à enumeração, sob pena de eivar de nulidade o ato praticado por si, incorrendo, inclusive, em responsabilidade civil, uma vez que o legitimado preterido pode pretender a modificação do que fora registrado.
Em matéria registral não existe ato anulável. Ou o ato é nulo ou é válido. Por essa razão esta disciplina comporta a subdivisão das nulidades em três modalidades: a exclusivamente formal é inerente ao ato registral, decorrendo tão-somente do descumprimento de regras imperativas que orientam o procedimento de registro; a mista alcança não só o ato registral, mas também o título causal, havendo vício de forma e de conteúdo. Nesta hipótese a declaração de nulidade alcança o ato registral e a relação jurídica de Direito Material; a oblíqua incide exclusivamente sobre o título causal, isto é, na relação fática que o registro relata. Não há que se falar em nulidade sobre o ato de registro, que é atingido de forma indireta em razão do vício apresentado na relação material.
A não-observância da ordem legal pode dar ensejo a questionamentos, como na declaração de nascimento feita pelo avô com o emprego de prenome diferente do pretendido pelos pais, registro efetuado no prazo reservado aos genitores de forma exclusiva.
Para que fiquemos na regra geral, tem-se que o genitor deve fazer declaração de nascimento em quinze dias, conforme anúncio do artigo 50. Passados os quinze dias assinalados – e pela literalidade do artigo 52, II –, a genitora teria mais quarenta e cinco dias para que promovesse à declaração.
Pelo exposto, dentro dos parâmetros regulares, os pais têm o prazo de sessenta dias para que façam a declaração de nascimento. Superado esse lapso, nada obsta a que os legitimados do inciso III – entre eles o citado avô – façam a declaração, empregando, inclusive, o prenome que melhor lhes aprouverem.
A questão a ensejar possível alteração surge em se considerando que a escolha do prenome é faculdade conferida aos pais. Já que a lei os enumera como preferentes para a feitura da declaração de nascimento, reservando um prazo para fazerem-na, não se afigura razoável que alguém, inicialmente preterido, sobreponha sua vontade a quem foi escolhido pelo legislador.
Ainda que a nulidade decorrente da não-observância do rol do artigo 52 da Lei de Registro não seja assunto debatido, talvez pela pouca ocorrência da hipótese, parece estar fora de dúvida que o legitimado preterido pode intentar ação pretendendo ver restabelecida a ordem consagrada pela lei, já que ao ato se impõe “agente capaz”[98], capacidade que, in casu, decorre de expressa locução legal.
O procedimento aventado acabaria sendo o único meio de que se poderia valer o legitimado preterido para estabelecer sua pretensão, já que definitividade do prenome é regra, devendo qualquer alteração, salvo as hipóteses previstas no artigo 56 da Lei de Registros Públicos, ser submetida à via judicial, impondo-se audiência do Ministério Público.
Tal procedimento, como se vê, importaria em um dispêndio para quem tinha a prerrogativa legal de apor o prenome originariamente e viu seu direito relegado. Assim, como a Lei de Registros impõe uma ordem de legitimação, e a atividade registral é vinculada pela própria essência, não pode o registrador deixar de observá-la.
A não-observação, mesmo à luz dos preceitos civilistas gerais[99], implicaria em responsabilidade civil, caracterizando ato ilícito, evidente pela ação contrária à lei. Desta forma, exsurgido restaria o dever de indenizar, pois, no caso de se ter assentado nome diferente do pretendido por quem tinha legitimidade de fazer, estar-se-ia diante de uma demanda necessária ativa[100], que imporia ao preterido procedimento judicial para ver restabelecida ordem assegurada por lei. Situações como esta não merecem subsistir dentro de um Estado Democrático, onde as instituições devem ser respeitadas, sobretudo em se considerando que a atividade do registrador é absolutamente adstrita à lei.
À luz do Código Civil se consegue aferir o dever de indenizar nas hipóteses de se relegar a ordem imposta pela Lei de Registros Públicos que implique contrariedade ao legitimado preterido. Esta consideração ganha ainda mais relevo ao se analisar os artigos 37, § 6º[101] e 236 da Constituição e o 22 da Lei nº 8.935/94, nos quais resta evidenciada a querença do legislador em impor o regime da responsabilidade civil, pessoal e objetiva, a notários e registradores. Desta feita estes responderão pelos danos causados por si e por seus prepostos[102] decorrentes de atos próprios[103], independentemente de culpa.
A objetividade da responsabilidade é imposta pela natureza pública da função exercida. Respondem, por isso, como se Estado fossem. Essa colocação se mostra razoável, pois os bônus da atividade trazem consigo ônus[104], neste caso serem responsabilizados como administração pública.
Segundo o professor Cavaliere Filho, “o dever que se contrapõe ao risco é o dever de segurança”[105]. Assim, notários e registradores, envoltos na Fé Pública delegada por lei, devem proporcionar segurança jurídica aos usuários dos serviços que prestam. A violação a este direito de segurança, justifica, pois, a obrigação de indenizar. Na hipótese colacionada, além da indenização o restabelecimento da ordem que a Lei Registral consagrou.
3 POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO NOME
De acordo ao que expressa o artigo 57 da Lei de Registros Públicos qualquer alteração posterior no nome somente é possível por exceção e motivadamente. Consagra ainda que o juízo competente para a apreciação da pretensão é o que tiver atribuição registral. Percebe-se que a possibilidade de alteração do nome é exceção ao sistema jurídico vigente, consagrador da definitividade, depreendida do artigo 58 da mesma lei.
Ainda que o nome tenha o condão da definitividade, é de se destacar que essa regra comporta exceções. Tais exceções – como se verá no presente capítulo – se processam através de procedimento no qual a intervenção do Ministério Público se faz imperativa.
Como se pode destacar, a possibilidade de alteração do nome se processa através de procedimento administrativo ou judicial, conforme a hipótese, onde o interessado sujeita à administração judicial sua pretensão, sujeição justificada em razão do poder geral de cautela, onde a vontade que não aspire a lesar terceiros deve ser acolhida.
3.1 ERRO GRÁFICO EVIDENTE
Para que se vivencie a segurança jurídica nas relações estabelecidas entre os cidadãos, é conveniente a definitividade do nome, atributo da personalidade. Essa definitividade, contudo, não é absoluta, podendo sucumbir, por exemplo, quando o que se busca fazer é estabelecer a retificação da grafia.
O artigo 58 da Lei de Registros Públicos em sua redação original acabou por consagrar a imutabilidade do prenome, ressalvando os casos de erro gráfico e o nome propenso a expor seu portador ao ridículo.
A primeira hipótese, não repisada na Lei nº 9.708/98, parece-nos permanecer válida, eis que se trata de regra tendente à tutela da correta identificação da pessoa, em que não se cogita ter havido “superação social da norma”[106]. Pelo contrário, a vigência desta regra encontra consonância estrita com o atual estágio do Direito, em que garantias individuais são cada vez mais tuteladas.
As possibilidades de alteração consagradas na Lei nº 6.015/73 foram encampadas pela doutrina e jurisprudência[107], ressalvando apenas os casos em que se poderia vislumbrar fraude. Assim é o caso do manifesto erro de grafia, onde a modificação visa a restabelecer solenemente o que a convivência social e familiar consagrou. Ou ainda, quando a correta estruturação vernacular impõe a retificação.
Nessa seara parece merecer prosperar a pretensão da Jerarda que quer ver assentado o prenome de Geralda, do Nerson que espera a aposição no Registro Civil de Nelson, do Alesandro que pretende a alteração para Alessandro etc. Nesse último caso, resta evidenciado que ocorreu um erro de grafia, ficando latente que o registrador ignorou elementar regra de fonética que aduz possuir o “s”, entre vogais, som de “z”.
Como já consignado, a confecção do nome deve se dar em um ambiente de respeito às normas gramaticais, incluídas as atinentes à morfologia e fonética. Por isso deve ser acolhida a pretensão que visa à inclusão ou exclusão de letra que descaracterize o prenome, desde que não acarrete prejuízo a terceiros ou oculte a identidade, pois a estabilidade nas relações jurídicas é um objetivo do Direito. Deve-se, pois, laurear a busca pela cidadania, evitando situações de embaraços, não podendo esta procura implicar em galardão à má-fé.
No sentido do que se colacionou, foi o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais na Apelação Cível nº 1.0309.03.900041-4/001, relatado pelo desembargador Brandão Teixeira. No caso concreto, entendeu por bem a Segunda Câmara Cível dar provimento unânime ao recurso de Serlene.
Em razões de apelação alegou a recorrente que só tinha registro na memória de ser chamada Selene, prenome que todos de sua família, assim como seus contatos sociais, se valiam para fazer referência à sua pessoa. Com isso imputou ao “r” aposto a seu nome a locução adjetiva “erro de grafia”. Além disso, alegou questões de foro íntimo para ver retirado de seu nome a letra que tanto a incomodava.
O Tribunal de Justiça mineiro acolheu as razões de apelação porque a pretensão peticionada ia ao encontro da realidade fática consubstanciada no reconhecimento público e notório do prenome da apelante sem o emprego do “r”. Na mesma esteira entendeu que a alteração não “causaria prejuízo a ninguém ou ocultaria a própria identidade.” Ao contrário, demonstra que o motivo a ensejar a demanda foi o erro por ocasião da aposição junto ao Registro Civil de seu nome particular.
O entendimento referido vai ao encontro da premissa defendida por Limonge França ainda na década de 1950, quando asseverou que o bem jurídico que o princípio da imutabilidade procurava tutelar seria “a fixidez e regularidade dos meios de identificação dos diversos indivíduos”[108]. Depreende-se deste entendimento que a segurança jurídica decorrente da imutabilidade – definitividade depois da Lei nº 9.708/98 – deve ser perquirida, mas apenas enquanto meio de garantir a regular identificação. A definitividade é meio, e não fim em si mesma. Deve, por isso, sucumbir nos casos em que a alteração do prenome venha ao encontro da efetiva identificação, isto é, nos casos em que o Direito irá reconhecer o que a realidade já consagrou.
O Superior Tribunal de Justiça já esposou entendimento no sentido ora percorrido. No Resp nº 213.682-GO aduziu que imutável deve ser considerado o nome pelo qual a pessoa é socialmente conhecida, e não o nome com o qual fora registrada.
O prenome destina-se à identificação do indivíduo perante família e sociedade. Assim, se a pessoa é identificada de forma diferente do que se registrou, não se pode desconsiderar a realidade na hipótese de a divergência vir ao Judiciário. No caso da Serlene, além da alegação do notório reconhecimento por Selene, foram juntadas aos autos cópia do registro de batismo evidenciando a ocorrência do equívoco.
Em um caso como o colacionado, não admitir a retificação pretendida pela apelante, significaria exagerado apego ao formalismo, capricho que em nada vem a somar aos Direitos da Personalidade, onde se insere o nome civil. Desta feita, não existindo dispositivo legal a vedar a retificação do registro, sobretudo nos casos em que o Judiciário exerce função tipicamente administrativa – e não jurisdicional –, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, logo, impõem-se apenas cautelas que resguardem o interesse de terceiros e a estabilidade das relações jurídicas. Afora isso, não confrontando a pretensão autoral com o resguardo que informa o poder geral de cautela, resta fora de dúvida merecer prosperar a pretensão.
3.2 NOME RIDÍCULO
Nome ridículo é aquele despropositado, cuja manutenção enseja constantes constrangimentos[109] para seu titular, como os pejorativos pela origem, Lúcifer e Hitler, ou ainda, os clássicos Pafúncia e Himineu. São, consoante a lição de Rosário Guérios[110], antropônimos excêntricos, estapafúrdios, que parecem sair de programas humorísticos. Engraçados o são para servir à ironia e ao sarcasmo alheio, mas o mesmo não se pode dizer em relação às pessoas que tiveram certas pérolas apostas no assentamento civil.
A professora trazida à colação relaciona em sua obra curiosa listagem de nomes. Na sua maioria foram descobertos em recenseamentos e nas listagens de eleitores. Trata-se de relação já publicada em outras mídias[111], mas que pelo aporte do ridículo merece ser mais uma vez reproduzida. Verbis:
“Antônio Dodói, Antero Americano do Brasil Mineiro, Abrilina Décima Nona Caçapava Piratininga de Almeida, Amada Sempre, Antônio 20 de Julho de 1895, Amarascoryia, Águas Marinas Gomes, Alarme José, Ariquieta Dadinho, Antônio Morrendo das Dores, Argentina América do Brasil, Abecê Nogueira, Anésio Arcebs de Cantuária (de acordo com a folhinha do dia: Sto. Anésio, Arcebs. (arcebispo) de (Cantuária), Barrigudinha Seleida, Cafiaspirina Cruz, Celeste Batata, Catarina Goiânia de Goiás, Colapso Cardíaco da Silva, Catarina Graciosa Rodello, Céu Azul do Céu Poente, Cento e Três, Crepúsculo das Dores, Dezecâncio Teverêncio de Oitenta e Cinco, Dulcelanauzaura Alves, Dinosauro, Dourado Peitudo, Depozarino, Delícia Leal, Damores Santos, Defensor da Parte, Eclâmpsia, Eclesiaste Cardeal da Costa, Epílogo, Esparadrapo, Éter Sulfúrico Amazonas Rios, Eustácio Ponta Fina Amolador de Ponta Grossa, Frígida, Fachada, Fim Pedro, Francisco Cebola, Fordelícia, Frevorosa, Filosofina, Gilete de Castro, Holofotina, Himeneu Casamentício das Dores Conjugais, Ilegível Inelegível da Silva, Isabel Ignorada Campos, Isso, Inocêncio Coitadinho Sossegado de Oliveira, João Cólica, Jardinino, Joaquim Sherlock Holmes, José Amando e Seus Trinta e Nove, José Salamargo, João Rei Bispo de Deus, Jesus Rei das Nações Diniz, João da Mesma Data, José Casou de Calças Curtas, Liberdade Igualdade e Fraternidade Narbona, Libertina, Lembrança de Aliás, Missa, Milagre Efigênio, Melancio, Maternidade da Silva, Maria Espertina, Motim, Marmolina Terebentina, Maria Passa Cantando, Miramolin Mansour da Linha, Manuel Arrependido Gomes, Maria Coragem da Cruz, Naftalina, Nacionézia, Nacional Futuro da Pátria Brasileira, Nacional Futuro Provisório da Pátria, Povo, Neto Louro das Cotias, Natal Criança de Castro, Náusea Pereira, Ouvindo Pedro Franco, Odin Indiano Americano do Brasil Ótima, Ouriço, Atila Dantas, Oceano Atlântico, Oceano Pacífico, Obstinada, Osso, Primeira Delícia, Palestra Itália, Pegueite, Portaleconina de Assis, Padre Bispo Cardeal, Quimbar-H, Raimundo Papa Leão, Restos Mortais de Catarina e Silva, Raimundo Raio de Estrada de Ferro Brasileira, Rodo Metálico, Sahara, Símio, Termina de Castro, Tox Mix Bala, Tuessanta, Terezinha Tosse, Um Dois Três de Oliveira Quatro, Vai por Mim Beleza etc.”
Na lição de João Tabalipa, ridículos são os nomes imorais ou vexatórios[112], verdadeiras “ameaças à auto-estima das pessoas”[113]. Por se revestirem de caracteres tão depreciativos, evidente se torna a possibilidade de alteração.
Para que um nome não seja ridículo precisa guardar estrita correspondência com o sexo do seu titular. É bem verdade que o passar dos anos pode render incursões em quadros televisivos de natureza humorística, como “a Wagner”, cuja história foi contada por Denise Fraga em 25 de setembro de 2005.
No programa referido, ficou sobejamente comprovado que ser uma mulher a portar nome eminentemente masculino implicava em numerosas situações embaraçosas. Por certo, caso o registrador tivesse atentado para os termos que após no assentamento civil, as mesmas teriam sido evitadas. Ademais, não se afigura abarcada pelo Direito a situação em que se emprega o prenome de um gênero em outro[114], circunstância que não se confunde com os casos de epicenos, já que nestes tem-se um nome que é comum a dois gêneros.
Nesse sentido o mestre português Manuel Vilhena de Carvalho traça ponderações conclusivas sobre como deve portar o registrador e os funcionários das serventias aptas à promoção do Registro Civil. Assevera que, “ao procederem à indicação dos nomes próprios nos actos de registro de nascimento, nem sempre os declarantes o fazem por forma a ter em conta os requisitos legalmente impostos quanto à sua composição.”[115]
Pode até ser que os declarantes, legitimados à declaração de nascimento, não conheçam a lei e, por isso mesmo, superestimem o conteúdo de sua possibilidade de escolha. Os funcionários dos Registros Civis, nada obstante, “zelosos do cumprimento e aplicação das normas que a esta matéria respeitam”[116], devem cuidar para que o ridículo não venha a fazer parte do mundo do direito. Assim, para efeitos da admissibilidade e aceitação de certos nomes próprios, faz-se necessária a interferência do juízo com atribuição registral.
Há prenomes que são ridículos pela extensão, por vezes demasiadamente grandes. Para cuidar desse tema, diferentes posições legais foram experimentadas, chegando a haver casos de limitação à extensão do prenome. Nesse sentido foi o Código de Registro Civil português de 1932, onde se previa que o número de nomes próprios não seria superior a dois, claramente um critério aritmético[117].
A legislação brasileira, entretanto, em nenhum momento cuidou deste assunto. Parece-nos não ter querido a lei limitar o número de prenomes, deixando tal decisão ao arbítrio dos pais.
3.3 APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO
Apelido vem de “apelar”, que significa “chamar-se” ou “ter o nome de”. Na concepção francesa configura o Je m’appele, locução correspondente ao “eu me chamo” no português. Além dessa acepção, o sentido mais comum do termo, sobretudo no meio jurídico, aponta na direção de recurso, que se transcreve por razões dogmáticas, ainda que ao estudo do nome apresente interesse acanhado.
O conceito que se quer analisar, entretanto, assume a acepção de designação especial de alguém, com a qual se é conhecido no meio familiar e social. Tem o sentido de cognome, alcunha, epíteto ou apodo, decorrente, por exemplo, da abreviação do nome, de particularidade física ou moral, do trabalho[118] que se exerce etc.
O fenômeno do apelido público e notório não é uma especificidade brasileira. Basta se lembrar do ex-presidente estadunidense Bill Clinton, cujo prenome é William Jefferson. Esse fenômeno, a que veio a Lei nº 9.708/98 tutelar, recebe o nome de nickname nos países de língua inglesa, em que Robert vira Bob; Edward, Ted; Margareth, Meg; Joseph, Joe; John, Jack.
Na realidade brasileira alguns personagens públicos acabaram por serem conhecidos por seus cognomes, como Pelé, Xuxa, Lula e Ratinho, conceito que não se confunde, ainda que guarde ponto de similitude, com pseudônimo[119]. Tais cognomes, nos casos colacionados, foram acrescidos ao nome, pelo que não podem ser considerados dentro das hipóteses do artigo 58[120] da Lei de Registros Públicos em sua redação conferida pela Lei nº 9.708/98. Trata-se, em verdade, da prática consagrada no artigo 57, § 1º[121] da Lei Registral, embora não houvesse óbice para o enquadramento de tais casos no artigo 58 pela notoriedade com que são conhecidos.
Anuncia o citado artigo 58 que o prenome é definitivo. Essa definitividade vem ao encontro da necessidade de se assegurar segurança jurídica nas relações. Nada obstante, aduz à possibilidade da adoção de apelidos nos casos de notoriedade do mesmo. É importante se destacar que a adoção referida permite a substituição do prenome registrado pelo prenome de uso, ponto em que diverge do artigo 57, § 1º, em que se consagra a prerrogativa de averbação do nome usado como firma comercial ou atividade profissional.
A nova redação do artigo 58 da Lei de Registros Públicos surge em um contexto de reconhecimento da necessidade de efetiva identificação da pessoa, não mais mera obrigação do particular frente à sociedade. Ao contrário, ter uma identificação deixa de ser só uma obrigação para ser prerrogativa através da qual se afirma a personalidade.
Em razão da evidente relevância do nome, com reflexos inquestionáveis no interesse público, é este, em regra, definitivo. A mudança, por isso mesmo, só é possível em casos excepcionais e justificados, nos estritos termos da lei, mediante a intervenção judicial.
A nova redação do artigo 58 deixou patente a possibilidade de se adotar o “prenome de uso”, o que a jurisprudência já vinha admitindo em casos excepcionais. Por isso, apelido público e notório é aquele que realmente identifique a pessoa no meio em que vive, reconhecido pelo juízo para que passe a constar no Registro Civil.
É de se destacar que na seara política[122] há grande incidência de substituição do prenome por apelido, possibilidade que o Código Eleitoral trata de forma expressa, emprestando legalidade às variações nominais antes mesmo da Lei nº 9.708/98. Por isso o tema foi sumulado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que em seu Enunciado nº 4[123] reiterou a possibilidade da variação nominal, cuidando inclusive da homonímia.
Por ser soberana a vida, e não a lei, como bem asseverou Sá Pereira[124], a lei de 98 veio ao encontro dos anseios de muitas pessoas que pretendiam ver reconhecidas pelo Direito a identificação fática, mas que até então se encontravam sem o respaldo de regramento legal no qual pudesse ser subsumido suas pretensões. É de se dizer, assim, que em matéria de nome civil há de se curvar o aplicador da norma à realidade que o cerca, buscando, pois, a real individualização da pessoa perante a família e a sociedade.
Pelo que se expôs, a positivação da possibilidade em comento talvez não fosse tão necessária no estudo do nome. Nada obstante, em razão da tendência literalista de interpretação que povoa o imaginário jurídico tradicional, a presente inovação acabou por espancar as dúvidas acerca do tema, não deixando margem para se indeferir os pleitos com o fundamento de não existir lei sobre o assunto, ponto em que a novidade se mostra positiva.
Os reflexos positivos da referida mudança podem ser facilmente aferidos, vide a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[125]. Com isso se retoma a idéia de soberania da vida, algo absolutamente salutar em um país que tem na Dignidade seu pilar fundamental e uma Constituição que é adjetivada Cidadã.
O Superior Tribunal de Justiça tem sido bastante coerente com o entendimento atual de que o nome é verdadeiramente Direito da Personalidade. Por isso sua sensibilidade aos casos envolvendo o que a lei chama de apelido público e notório merece ser destacada, exemplo do que ocorreu no REsp 538.187-RJ[126], relatado pela ministra Nancy Andrighi.
No referido Recurso Especial se entendeu haver motivo suficiente para a troca almejada: de Maria Raimunda para Maria Isabela. O mesmo foi esposado em razão de se ter aferido não se tratar de mero capricho pessoal, mas de necessidade psicológica profunda. Ademais, o conhecimento no meio social pelo prenome pretendido foi a razão que possibilitou subsumir a vontade da autora ao preceituado na Lei de Registros Públicos.
Maria Raimunda teve a pretensão laureada no Superior Tribunal de Justiça depois de ter tido a aspiração rejeitada no juízo monocrático e no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Desde a primeira instância alegara a autora que o prenome Raimunda lhe trazia constrangimentos, dissabores e transtornos, ensejando brincadeiras de mau gosto. Por essa razão adotara prenome de uso em que restava substituído Raimunda por Isabela, troca que foi assimilada de forma definitiva por seus contatos.
Firme da notoriedade do prenome Isabela, bateu as portas do Judiciário. Na primeira instancia os argumentos não foram acolhidos. O juízo da Vara da Família de sua cidade considerou que a substituição só seria justificada quando o prenome fosse capaz de sujeitar seu portador à situação ridícula ou humilhante, o que não ocorria a seu ver com o prenome Raimunda, para si, perfeitamente normal. Este entendimento foi reiterado pelo Tribunal de Justiça estadual. No SJT, todavia, a notoriedade do prenome, adotado faticamente em razão dos constrangimentos que o antigo lhe ocasionava, foi acolhida.
O entendimento do Superior Tribunal pode ser melhor compreendido em se analisando o resumo estruturado que este disponibiliza em sua página da internet[127]. Neste se percebe alusões claras: “retificação de registro de nascimento; alteração de prenome; caráter excepcional; natureza social do constrangimento; existência de apelido público e notório.” Da referência legislativa fica ainda mais evidenciado que foi a natureza da publicidade e notoriedade que nortearam o entendimento do tribunal em comento: artigo 58 da Lei de Registros Públicos com a redação dada pela Lei nº 9.708/98.
No mesmo sentido do Superior Tribunal, tem se portado o Tribunal do Rio Grande do Sul, como se depreende da interpretação emprestada ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos por ocasião do julgamento da Apelação Cível nº 70000256958[128], julgada pela Oitava Câmara Cível do tribunal referido em 25 de novembro de 1999, e cujo relado coube ao desembargador José Ataídes Siqueira Trindade. Nesta se estabeleceu que, sendo realmente público e notório o prenome que se quer adotar na comunidade em que vive o requerente, e não havendo prejuízo para terceiros, a pretensão merece ser acolhida.
3.4 DUPLICIDADE DE REGISTRO
É importante se consignar, a princípio, que a regra de validade vigente no ordenamento pátrio determina que válido é o primeiro registro de nascimento. Em matéria de registro prevalece o mais antigo.
A título de exemplo estabeleceu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 77.873 ser “contrário ao sistema de Registro Público vigente no Brasil a multiplicidade de assento para um mesmo e único fim”. No mesmo sentido é o entendimento deste tribunal colacionado no repositório de jurisprudência Revista dos Tribunais em seu número 436, pagina 253, onde se lê que: “em face de dois registros de nascimento da mesma pessoa, o primeiro, feito pelo próprio inventariante, que no ato se declarou pai da registranda, é de ser considerado válido até prova em contrário, ou seja, até ser invalidado pelos meios regulares.”
O tópico em estudo, ao contrário da simplicidade que a literalidade nos informa, é por demais complexo. Impõe a que se enfrente questões como boa e má-fé, pois não se pode tratar desiguais de forma igual. Faz-se necessário, pois, que cuidemos da promoção do segundo ato registral sob duas perspectivas: em uma havendo intento de lesar terceiros e em outra não-existindo tal expectativa. Questões éticas devem ser debatidas; questões de justiça[129] maiormente.
O ser humano, por princípio, busca a harmonia e a ordem. O faz por motivação intrínseca e cultural. Desta forma as relações sociais são o somatório de vontades e liberdades, para as quais o Direito tem o dever de apresentar uma resposta satisfatória.
O Direito tem, assim, função de organizar e reorganizar a sociedade, estabelecendo relações interpessoais de maneira justa, ainda que por meios coercitivos.
Pensar o Direito é pensar em Ética. Este deve refletir normas para a ação humana que se voltem para o bem, estando contido na Ética, fundamento último do Direito.
O fato de o Direito buscar pacificar as tensões sociais geradas pelos conflitos resistidos o coloca na condição de instrumento capaz de promover o retorno ao ethos primordial[130], onde a ordem jurídica se confundiria com a ordem dos lares, só que “regidos e orientados pelo Estado”[131]. Uma situação de promoção da desigualdade proporcional, em que o devido a cada um seria assegurado. Com isto o Direito seria efetivamente um espaço para a manifestação da função social[132] ética.
As normas morais resumem-se no fazer o bem e evitar o mal. Deste pressuposto é possível se valorar as ações, mensuradas na medida da aproximação ou distanciamento do bem. Neste ponto a idéia de dever é fundamental, posto nos levar à noção de “bem obrigatório”[133], imposto à consciência que almeja a pacificação social.
Estabelecido que a Ética é o fundamento do Direito, e esta é norma de cunho moral que se configura na busca do bem e rechaçamento do mal, assentados se encontram os pilares para se discutir questões acerca da duplicidade de registro, tema aparentemente pueril, mas que por envolver questões de ordem moral não pode ser tido por tão simplório.
As pretensões lesivas, por óbvio, não podem ser chanceladas pelo Direito. Por essa razão a extirpação de registros promovidos de forma absolutamente contrária ao Direito – com motivação aética – se impõem.Tratando-se de má-fé, a questão que se coloca é facilmente resolvida. Simplesmente se cancela o registro eivado de nulidade.
Assim deve ser cancelado o registro do gato[134]. É bem verdade que a maioria dos casos dessa natureza se processam mediante a omissão ou inserção de dados, o que configuraria o tipo do artigo 299 do Código Penal. Pode ser, contudo, que se promova a uma nova declaração de nascimento. Nesta hipótese, estar-se-ia “criando” uma nova pessoa, que não teria um correlato no mundo fático, argumento mais que suficiente para justificar o cancelamento desse segundo registro, como antes expedindo caracterizando a chamada nulidade oblíqua, já que o título causal ensejador do registro não existe. Do ponto de vista meramente registral não haveria nenhuma nulidade, mas não faz sentido se manter um registro cujo objeto não encontra respaldo na realidade. Também nulos são os atos de adoção à brasileira com motivação aética cujo “adotado” tenha sido anteriormente registrado.
Nas hipóteses aventadas o caminho a se trilhar é o cancelamento do segundo registro, promovido com um objetivo muito claro: usar a máquina pública, ainda que delegada, para lesar terceiros. Ter uma idade cronológica ficta para participar de competições que a real obstaria ou, ainda, o convívio com um ser humano em detrimento do desmantelamento de uma família. A nulidade do segundo ato registral se afigura clara, não merecendo subsistir por ser estranha à relação material.
Nem sempre, contudo, a declaração de nulidade, com o conseqüente cancelamento do ato, é o melhor caminho a se percorrer. Diz-se isto em razão da realidade social que vez ou outra noticia o abandono de crianças, gerando um problema social.
Assim, têm-se situações a confirmar a tese de que “na prática a teoria é outra”. Tal tese, inclusive, foi considerada por nosso legislador ao cuidar da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal[135], o que nos leva a repensar algumas questões, abstratamente fáceis de se resolver.
Observe-se, pois, o registro do menor abandonado que é adotado. Sendo este elaborado em consonância com o que couber do artigo 61[136] da Lei de Registros Públicos, atendendo precisamente às determinações do Juiz com atribuição em matéria de criança e adolescente, ainda que se descubra a posteriori ter sido este previamente registrado, não há dúvidas de que o segundo registro é válido. Houve um segundo registro, mas elaborado nos estritos liames da lei, precisamente o artigo 47, § 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual se assegura a possibilidade da completa alteração do nome do adotado.
É de se destacar, todavia, que há hipóteses onde o segundo registro é promovido em dissonância com os preceitos legais, mas sem mácula axiológica de lesar terceiros – não se aproximando do mal, retomando a discussão Ética –, motivado, em verdade, pelo intuito de fazer o bem, ainda que não se observe a formalidade eleita pelo Direito. Sendo o Direito só uma parte da Ética, e esta não condena o ato sem motivação maléfica, não parece merecer prosperar a tese do necessário cancelamento do segundo registro.
Tais apontamentos foram esposados porque a declaração de nascimento foi feita a margem da lei, mas cercada de uma intenção louvável, de reconhecida nobreza – hipótese do parágrafo único[137] do artigo 242 do Código Penal –, tendente à realização da solidariedade social, pilar da ordem constitucional vivenciada.
A pessoa que encontrou um menor exposto[138] e promove ao ato registral – adoção à brasileira na fria subsunção legal – sem nenhum intento lesivo, mas sim com vontade de trazê-lo para o âmbito familiar como se neste tivesse sido gerado, não pode ser tratada da mesma forma que quem se valeu do sistema registral mediante má-fé. Por esta razão o legislador do Diploma Penalista previu a possibilidade de extinção da punibilidade pelo perdão judicial nos casos de nobreza reconhecida, o que se nos mostra absolutamente razoável: os desiguais acabam sendo tratados de forma desigual, atendendo a postulado universal de justiça.
Tais apontamentos nos levam a uma digressão: como fica o nome do adotado à brasileira mais tarde descoberto? E se a descoberta se der quando este se encontra familiarizado com o novo nome? Terá ele seu segundo registro cancelado, tratando a nulidade nos estritos termos frios, dogmáticos e teóricos com os quais se ficciona não produzir nenhum efeito o ato nulo, ou se observará o caso concreto para saber se a declaração de nulidade não seria mais maléfica?
Tais indagações levam a um questionamento: a ponderação de interesses. Esta faz expressa remição ao conceito de justiça, seu objetivo último. Impõe que se confronte direitos e deveres, mas sem o recurso aos clássicos mecanismos de interpretação, capazes de solucionar apenas demandas adstritas a silogismos.
Em uma constituição como a brasileira, notadamente abarcadora de normas de caráter aberto e compromissário, verdadeira síntese de ideologias, faz-se necessário ponderar interesses, pois a idéia de segurança oriunda do iluminismo setentrista não mais pode ser confundida com o justo.
É sabido que a Constituição brasileira é fruto de uma sociedade pluralista e de demandas latentes. Tem-se, a despeito desta pluralidade, a imposição de respeito à unidade do sistema – decorrente do regime pela Magna Carta adotado – refletindo em todos os textos legais, irradiando o que Jorge Miranda[139] chama de sujeição, inclusive da própria Carta Política, a valores éticos transcendentes, valoração ético-transcendental que permite aduzir hipoteticamente a contrariedade da Constituição por ela própria, sobretudo em um sistema onde as emendas são muito maiores que o soneto: 48 até o dia 10 de agosto de 2005.
Como ponderar é um ato de sopesar, sempre, necessário se faz cuidar para não se relegar os Direitos Fundamentais, impassíveis de relativização à luz da consagração da Dignidade da Pessoa Humana.
Ponderando a questão da duplicidade de registro nos casos de menores abandonados e adoção à brasileira com motivação nobre, temos sim um problema. De um lado a definitividade e a unidade do sistema registral que afere ser válido o primeiro registro. Do outro a possibilidade de reconhecimento da nobreza do ato pelo juízo penal, através do qual exsurge o pressuposto para a não-aplicação da pena decorrente da incursão típica, margeando o conceito de tipicidade conglobante do mestre Zaffaroni, tão em voga nos dias de hoje. Há a previsão típica, mas também há a solidariedade social!
No caso expendido não se afigura razoável o reconhecimento da nobreza do “adotante” e a imposição de cancelamento do segundo registro. Diz-se isso porque, muito provavelmente, um problema seria gerado para o adotado: teria sua referência social compulsoriamente retirada. Pergunta-se, pois: há justificativa ponderável para este cancelamento ou apenas uma solução silogística?
Parece-nos que, nos casos de reconhecida nobreza, não faz sentido se tratar do tipo previsto no artigo 242, parágrafo único do Código Penal como sendo diferente da adoção constante do artigo 47, § 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se na adoção o vínculo com a família adotante se sobrepõe aos antigos liames familiares, entendemos que na adoção à brasileira por motivo nobre o mesmo deve acontecer.
3.5 CASO DE TRANSEXUALISMO
O artigo 13 do Código Civil veda a disposição do próprio corpo, salvo em casos de exigência médica que “não importem”[140] em inutilidade do órgão ou contrariedade aos bons costumes. Por essa disposição resta fora de dúvida que o objeto desse artigo pode ser subsumido aos casos de transexualismo.
O transexualismo é um tema que por si só gera numerosas polêmicas, sobretudo quando a discussão alcança possíveis reflexos no Registro Civil. Inicialmente é preciso se esclarecer conceitualmente essa variante da sexualidade.
Transexualismo significa, em apertada síntese, “divergência entre o fenótipo e genótipo”[141]. A pessoa transexual ostenta convicção inderrogável de pertença ao sexo que não o cromossômico.
Propugna a professora Aracy Klabin que haveria dois tipos de transexual: o primário “compreende aqueles pacientes cujo problema de transformação do sexo é precoce, impulsivo, insistente e imperativo, sem ter desvio significativo, tanto para o transvestismo quanto para o homossexualismo. É chamado, também de esquizossexualismo ou metamorfose sexual paranóica”[142]. O secundário engloba “os pacientes que gravitam pelo transexualismo somente para manter períodos de atividades homossexuais ou de transvestismo (são primeiro homossexuais ou travestis). O impulso sexual é flutuante e temporário, motivo pelo qual podemos dividir o transexualismo secundário em transexualismo do homossexual e do travesti.”[143]
A idéia de pertença ao outro sexo é a tônica do transexualismo primário, doravante apenas transexualismo. O chamado secundário será referido como transvestismo, a fim de que os conceitos não divirjam.
No transvestismo o apossamento da vestimenta do outro gênero é forma de se dar vazão à homossexualidade. Não há, contudo, sentimento de troca de gênero. No homossexualismo existe, sim, a atração afetivo-erótica pelo mesmo sexo, mas não desconformidade no modo de se vestir e na imagem corporal.
As questões suscitadas têm, indubitavelmente, reflexos na vida civil, e não mais podem ser encaradas como no século XIX, quando foram positivadas as formalidades registrais. Nesta época a vivência da distinção genitálica mostrara-se suficiente para atender à necessidade do Registro Civil. Assim como crianças observavam puerilmente por baixo da roupa do colega para saber das semelhanças e diferenças entre eles, caminhou por muito tempo[144] a doutrina registral brasileira.
No Brasil não existe legislação especifica sobre o transexualismo. Tem-se, na área médica, a regulamentação do Conselho Federal de Medicina sobre a cirurgia de transgenitalismo, atualmente pautada pela Resolução nº 1.652[145], de 6 de novembro de 2002.
A citada resolução divulga nova diretriz para que se autorize aos médicos a realização do tratamento cirúrgico de transexuais. Este é feito segundo normas internacionalmente reconhecidas, nas quais se incluem pelo menos dois anos de acompanhamento terapêutico por equipe multidisciplinar. A cirurgia só é autorizada caso o diagnóstico de transexualismo se confirme.
Na esfera jurídica tem-se o projeto de lei nº 70, B – de autoria do Deputado Federal José Coimbra. Este se limita a incluir novo parágrafo ao artigo 129[146] do Código Penal, atribuindo também nova redação ao 58[147] da Lei de Registros Públicos.
A modificação do Código Penal objetiva a possibilitar que se realize a cirurgia sem que esta possa ser entendida como lesão corporal. É bem verdade que a convicção social atual não tem apontado no sentido de se a compreender desta forma, não obstante a literalidade do disposto no artigo 129 apontar nesta direção. Parece ter havido superação social da regra, pelo que o projeto, uma vez aprovado, viria para encampar uma realidade já vivenciada, afastando qualquer discussão sobre o tema.
A seu turno, a redação atribuída ao artigo 58 da Lei Registral, para que passe a tratar da possibilidade de alteração do prenome quando tenha havido intervenção cirúrgica motivada por transgenitalismo tem um duplo efeito: um de caráter solitário, depreendido do parágrafo segundo ao esclarecer ser possível a mudança quando tenha havido intervenção cirúrgica, mas outro de índole notadamente sectarista, segregadora. Este entendimento é retirado do parágrafo terceiro, responsável por determinar a alusão ao transexualismo nos documentos da pessoa. Certamente este parágrafo terceiro traz consigo mácula de inconstitucionalidade, já que vai de encontro ao Direito à intimidade, e, flagrantemente, expõe o transexual ao ridículo. “Tal espécie de obrigação é constrangedora, discriminatória, constituindo-se em um grave atentado contra o Direito à identidade sexual e contra a dignidade de todo o ser humano, não resolvendo, mas agravando o problema de identidade sexual que sofrem todos os transexuais.”[148]
Em razão do disposto no projetado parágrafo terceiro em comento, manifestou-se a CCJR – Comissão de Constituição e Justiça e de Redação – de forma contrária ao seu conteúdo, entendendo que este violaria o teor do pétreo artigo 5º, X, da Constituição da República Federativa do Brasil. Assim, propôs uma redação substitutiva no seguinte sentido: “no caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”. Desta forma o registro passaria a conter o novo nome e sexo do transexual operado. A fim de evitar entendimentos que perpetrassem o preconceito entendeu por bem apresentar emenda aditiva com a qual se acresceria um parágrafo quarto, cuja redação é a que segue: “é vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”. É uma forma de proteger a intimidade do transexual, assim como ocorre atualmente nos casos de adoção.
As modificações aduzidas pela CCJR vêm para regular efetivamente questões prementes, suprindo necessidades da sociedade atual. A redação originária do projeto, ao contrário, importaria em um anacronismo ao ordenamento jurídico, contrariando decisões de nossos tribunais[149] que estão em melhor compasso com os ditames da Dignidade e os Direitos da Personalidade.
Ainda que o Brasil não disponha tratamento legislativo para a questão do transexualismo, não se pode perder de vista o estágio diferenciado em que se encontram outros países, aqui se destacando a Suécia, a Alemanha e a Itália.
A Suécia promulgou em 21 de abril de 1972 Lei permitindo a retificação do registro do transexual. Condicionou, contudo, tal retificação a alguns requisitos, entre os quais os seguintes: ter mais de dezoito anos, ser solteiro e estéril. Lei de 10 de setembro de 1980 cuidou do tema na Alemanha, no que abarcou entendimento jurisprudencial que permitia a modificação do prenome e do sexo no assento de nascimento. A Itália, também influenciada pela inteligência jurídica do país, legislou sobre o assunto em 14 de abril de 1982, o fazendo através da Lei 164. Com esta se passou a permitir a retificação do sexo e a alteração do prenome no registro de nascimento dos transexuais.
Nada obstante o silêncio legislativo brasileiro sobre o assunto, nosso Judiciário vem se manifestado sobre o tema. É certo que há lacunas, mas como se sabe estas não são argumentos a legitimar eventual omissão do julgador, que tem a seu dispor mecanismos de integração.
Nosso Judiciário, no mais famoso caso de transexualismo de que se tem notícia no país, esposou entendimento contrário à mudança de nome e de sexo. Na primeira instância – processo nº 1991.001.054971-3 – a juíza Conceição Aparecida Mousnier da 8ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro esposou entendimento acolhendo a mudança pretendida. Em Apelação Cível – 1993.001.04425 –, contudo, o entendimento da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em voto datado de 10 de maio de 1994, foi no sentido da mantença do nome e sexo constantes do registro de nascimento.
Decisão da Décima Sexta Câmara Cível do mesmo tribunal, nove anos depois, na Apelação Cível nº 2002.001.16591[150], votada em 25 de marco de 2003, cuja presidência e relato coube ao desembargador Ronald Valladares, em sentido diametralmente oposto à decisão de 1994, acolheu a pretensão autoral de mudança de nome e de sexo, determinando que no Registro Civil constasse como sexo o feminino. Determinou-se, contudo, que a decisão judicial de mudança de prenome e sexo fosse averbada apenas à margem do registro, sem se fazer referência nos documentos de identificação alusão à condição de transexual.
No processo em comento, o juízo monocrático deferiu a pretensão autoral de mudança de nome. Entendera, todavia, que a condição de transexual deveria constar do campo sexo no registro de nascimento, exatamente como o almejado pelo parágrafo terceiro do artigo 58 da Lei de Registros Públicos que consta do projeto de lei nº 70, B, rechaçado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação.
No estado de São Paulo a decisão da Quinta Câmara da Seção de Direito Civil na Apelação Cível nº 165.157.4/5, relatada pelo desembargador Boris Kauffmann, merece ser analisada. Em um julgamento paradigmático, e ainda recente, datado de 22 de março de 2001, o tribunal paulista acabou por romper, de forma unânime, com certos dogmas então arraigados naquela corte.
A pretensão do autor visava à alteração do assento de nascimento em relação ao nome e sexo: para feminino ou transexual feminino. Apresentava como fundamento ser uma transexual que se submetera à cirurgia para adequação do sexo físico ao psicológico. Apresentou ainda argumentos como a falibilidade do princípio da definitividade do nome e que a utilização do prenome masculino, sendo de fato uma mulher, o expunha a situações embaraçosas. Estas pretensões restaram rejeitadas no juízo singular, pelo que recorreu à corte paulista.
Uma vez recebido o recurso, pronunciou-se em contra-razões o Ministério Público no sentido que fosse alterado tão-somente o prenome, mantendo-se a indicação do sexo masculino. A Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da procuradora Leila Mara Ramacciotti Vasconcellos, esposou entendimento no sentido de que se provesse na íntegra o recurso, alterando-se o nome e o sexo no assento de nascimento do autor, entendimento que restou consagrado pelo Tribunal de São Paulo.
É evidente que aos ouvidos de qualquer pessoa os prenomes Roberto, Adão e Carlos evocam alguém com atributos masculinos. A não-correspondência desta expectativa é, por assim dizer, no mínimo chocante, capaz de provocar risos e chacotas.
Desta forma, ainda que a desconformidade tenha surgido em razão das modificações provocadas por cirurgias, fato é que, à luz do Direito atual, não se afigura razoável impor a alguém nome e sexo jurídico de um gênero quando faticamente se tenha assumido de outro. Seria uma pena de caráter perpétuo que em nada contribui para a preservação da ordem social. Privilegiar-se-ia uma discrepância genofenotípica, por si só muito mais inadequada para a vida pública do transexual do que uma coerente identificação nominal e sexual. Mais inapropriada seria para a vida privada, eis que se negaria algo que lhe é ínsito: um Direito da Personalidade.
É de se cuidar que a alteração do nome e do sexo no assentamento civil poderia viabilizar um casamento. Para que melhor se esclareça a possibilidade aventada, necessário se mostra a conceituação de sexo.
Sexo é daquelas palavras de múltiplos sentidos: há os que o entendam como parte física da relação sexual[151]; outros como o status sexual masculino ou feminino[152]. De toda sorte, a importância em sua determinação é evidente, uma vez que irá irradiar direitos e deveres diferenciados.
Dentre as espécies de sexo concebidas, destacam-se o sexo jurídico, também chamado legal, e o psicossocial. Aquele é aferido pela observação da genitália externa do recém-nascido, de onde decorrerá o gênero a constar no Registro Civil: masculino ou feminino. Este – o sexo psicossocial[153] – vai além do conceito jurídico antes expendido, transpassando questões genéticas, vez que também sofre influências pré e pós-natais. Estas influências são responsáveis pela estruturação do comportamento da pessoa e pela sua identificação sexual, podendo o ambiente psicossocial se encarregar de manter ou não as diferenças entre o masculino e o feminino.
Vendo as perspectivas tracejadas, uma questão parece exsurgir: qual o conceito consagrado pela Constituição? É de se destacar que a adoção de uma ou outra tese implicará em divergentes conseqüências práticas, principalmente no Direito de Família.
Partindo-se do postulado que o sexo legal – aferido na observância da genitália do recém-nascido – é o que melhor se adequa ao estágio vivenciado pelos Direitos da Personalidade, a conseqüência para o Direito de Família, no âmbito matrimonial, exatamente, é uma só: ignorar as questões psicossociais. Desta forma só poderão contrair casamento – e também União Estável, vez que esta deve poder ser convertida naquele – o homem com a mulher, assim identificados por ocasião do registro. Qualquer outra hipótese adentraria o campo da inexistência.
Em outro giro, a se assegurar efetividade prática ao sexo psicossocial, sustentável seria a defesa do casamento do transexual feminino – por decisão judicial chamado mulher – com um homem e vice-versa. Por isso é importante que se averbe a situação de mudança no Registro Civil.
Esta anotação – em uma digressão que admita eventual casamento, entenda-se – obstaria alegação futura de erro[154] essencial quanto à pessoa do outro cônjuge baseada na identidade[155] ou honra. Assim, admitido o matrimônio nos casos de transexualismo, desde que esta condição seja conhecida pelo outro parceiro antes da união, não há que se falar em anulabilidade do ato, pelo que um ato inexistente – caso se considere apenas o sexo jurídico –, passando-se a adotar entendimento que privilegie o sexo psicossocial, será tomado por válido.
Certamente vozes dirão que dessa união não poderão nascer filhos, o que se apresenta verdadeiro. Esse argumento, todavia, é falho, mesmo porque nem todos os casais “geneticamente heterossexuais”[156] também o podem.
Pelo exposto, é de se destacar o entendimento do magistrado paulista Ênio Santarelli Zuliani em seu voto, restado vencido, na Apelação Cível nº 052.672-4/6 proveniente da Comarca de Sorocaba. Verbis:
“Como a função política do Juiz é de buscar soluções satisfatórias para o usuário da jurisdição – sem prejuízo do grupo em que vive –, a sua resposta deve chegar o mais próximo permitido da fruição dos direitos básicos do cidadão (art. 5º, X, da Constituição da República), eliminando proposições discriminatórias, como a de manter, contra as evidências admitidas até por crianças inocentes, erro na conceituação do sexo predominante do transexual”.
Como restou assentado, deve a resposta do Estado-Juiz chegar o mais próximo possível de onde permita a fruição dos direitos básicos pelo cidadão. Retomando a indagação acerca do sexo legal e psicossocial, qual deles se aproxima mais desta fruição? Responder a esse questionamento não é objetivo fácil, mas parece-nos válida a interrogação.
Dando seguimento a seu voto, assevera ainda que: “a medicina poderá aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O Estado confia que o sistema legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve assumir uma posição que valoriza a conquista da felicidade”. Outra questão exsurge: a felicidade é encontrada na mantença de dogmas ou no reconhecimento das diferenças? Trata-se de outro questionamento de difícil resposta, mas que se justifica à luz da Constituição aberta e compromissária que o Estado Brasileiro promulgou, primaziando logo seu artigo 1º a valorização da Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana.
3.6 MUDANÇA DE SOBRENOME
O fundamento da prerrogativa ao nome reside no Direito Natural de os indivíduos receberem identificação pessoal. Desta feita “o direito ao nome não se limita ao sentido individual.”[157] Sua tutela “abrange a pessoa e a integridade do grupo familiar”[158].
A proteção estatal do nome decorre do fato de que: de um lado o poder público encontra na definitividade um meio para identificar seus administrados; do outro é necessário para o exercício dos direitos dos particulares e para o cumprimento de obrigações.
A relevância dos nomes, utilizados para designar pessoas e famílias, remonta “antiqüíssimo passado”[159]; confundindo-se “com as origens do homem”[160]. Por isso mesmo é de se considerar que, tão logo tenha se tornado complexa a vida em comum, necessária se fez a complementação do nome individual pelo sobrenome.
O sobrenome é meio de designar, de forma comum e invariável, os indivíduos pertencentes à mesma família. Desta forma, parece-nos que, mudando-se o nome do ascendente familiar, nada obsta a que o descendente venha a adicionar este apelido familiar em seu nome. Com isto se preserva a designação do grupamento familiar ante ao meio social.
É de se destacar que o aditamento de sobrenome em razão de modificação nos apelidos de família dos ascendentes diretos não importa em alteração obstada pela Lei de Registros Públicos[161]. Em verdade, é meio de se efetivar faticamente a função do sobrenome: identificar o grupamento familiar. Por isso o acréscimo de apelidos familiares tem sido admitido com liberalidade[162].
Como antes asseverado[163], não mais vige o princípio da unidade nominal familiar. Desta forma, sendo mudado o sobrenome dos genitores, tem os filhos a prerrogativa de intentar procedimento para que se adite a referência em seus nomes, possibilidade potestativa, isto é, que poderá ou não ser exercida, não existindo sanção pela escolha qualquer dos caminhos.
Destaca-se, ainda, que a averbação de um novo sobrenome não elimina a verdade registral de ontem, mantida assentada. A atual será averbada, assim como a futura, em ocorrendo situação jurídica que a autorize. Diz-se isto porque o registro deve refletir a realidade, possibilitando paz social e segurança jurídica, certamente objetivos do Direito.
3.7 PROTEÇÃO À TESTEMUNHA
Da premissa que todos são inocentes até que se prove o contrário, surgiu o mecanismo de proteção à testemunha em análise, uma vez que em muitos casos o esclarecimento de um crime depende exclusivamente de prova testemunhal, debelada por ameaças dos criminosos.
Tal debelamento não é uma exclusividade brasileira. Na verdade faz parte de um pernicioso sistema de manutenção do crime que se alastra mundo afora, inclusive em países de primeiro mundo como Estados Unidos e Itália[164]. Na tentativa de dar uma resposta social satisfatória a esta situação, mecanismos foram criados. Destaca-se, neste momento, a possibilidade de mudança do nome, que a lei brasileira de 1999 acabou por encampar. Trata-se de legislação com a qual se busca dar garantias à produção de provas durante a investigação e o processo criminal.
A possibilidade de mudança do nome, entendidos prenome e sobrenome, associada ao programa de proteção às testemunhas é uma verdadeira conquista da sociedade. Com esta, maiores garantias são deferidas à pessoa que contribua para o esclarecimento de crimes.
Trata-se a possibilidade em estudo de garantia extraída da Lei nº 9.807 de 1999, que incluiu o parágrafo sétimo[165] ao artigo 57 da Lei de Registros Públicos. A partir desta, vítimas e testemunhas de crimes, coagidas ou ameaçadas por colaborarem com a investigação ou processo penal, podem se valer da mudança de nome como meio de preservar sua integridade. A criação da lei ora analisada vem para efetivar direitos e deveres individuais insertos na Constituição da República, mas até então debilitados, no que beneficiavam a marginalidade.
Nos termos do aludido artigo 57, § 7º da Lei de Registros Públicos, o juiz determinará que se averbe no registro de origem a sentença concessiva da alteração motivada por ameaça. Cessando a coação que ensejou a anotação, e conseqüente alteração do nome, extirpa-se a referência aposta no Cartório de Registro Civil.
O Congresso Nacional, ao acolher a iniciativa e aprimorar o projeto original do governo, atendeu ao preconizado pela Organização das Nações Unidas no que diz respeito aos direitos da vítima.
Com o advento da lei sob exame, União, Estados e Distrito Federal têm o pressuposto para a mantença de convênios e acordos, entre si ou com entidades não-governamentais, para realizar programas de proteção especial[166].
A modificação experimentada pela Lei de Registros Públicos tem o condão de permitir que, de forma sigilosa, se possa mudar por completo o nome das vítimas e testemunhas ameaçadas. Esta medida poderá ser dirigida ou estendida ao cônjuge, companheiro, ascendentes, descendentes e dependentes com os quais tenham convivência habitual.
Com o expendido a Maria – casada com José, mãe de Adelson e Márcia, e filha de Raimundo – que presencia um crime passando a sofrer ameaças poderá ser inserida no programa especial de proteção às vítimas e testemunhas ameaçadas. Para que se lhe preserve uma vida normal, faz-se mister a extensão do programa aos seus entes, pois de nada adiantaria a mudança que se restringisse a si, já que a não-alteração na nominação dos elos familiares facilitariam sua identificação. A partir do momento que se tem a vida modificada pelo testemunho prestado, colaborando para com a sociedade, a depoente torna-se diferente, fazendo jus, ela e os seus, a um novo nome.
O ingresso no programa, assim como todas as medidas que dele decorrem, se dará a partir da concordância da pessoa que se pretende proteger ou de seu representante legal. Importa salientar que cada programa será dirigido por um conselho deliberativo, composto de representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário e de órgãos públicos e privados relacionados com a segurança pública e a defesa dos Direitos Humanos.
No contexto em que o Estado tem o direito de punir – mas depende de prova a ser realizada, por vezes tão-somente testemunhal –, e que a vítima e testemunha se recusam a colaborar com a instrução criminal em razão da falta de segurança, o programa examinado tem muito a acrescer à realidade brasileira, que convive com uma situação de violência recorrente. Assim a testemunha, assistente involuntária do crime, ameaçada pelo criminoso, oprimida pelo Estado e cobrada pela sociedade, tem a prerrogativa, não de trocar, mas de preservar sua real identidade e sua integridade física e moral.
No que diz respeito à competência para o procedimento de mudança de nome em razão do testemunho, dispõe a Lei nº 9.807/99 em seu artigo 9º, caput, que o requerimento será encaminhado ao juiz competente para registros públicos. Este dispositivo precisa ser compreendido à luz do asseverado no artigo 25, § 1º[167] da Carta Política, donde se conclui caber ao Estado legislar sobre sua organização judiciária.
No Estado do Rio de Janeiro tem-se o CODJERJ – Código de Organização e Divisão Judiciária. Este determina em seu artigo 9º[168], III, que é competente o Juiz de Direito com atribuição de Registro Civil de Pessoas Naturais para processar e julgar retificações, anotações, averbações, cancelamentos e restabelecimentos dos respectivos assentos. Como se percebe, por ser a matéria de competência concorrente, optou o Estado Federado por tomar um rumo diferente do preceituado pela na Federal.
Ainda que consignado expressamente na lei, resta evidenciado que a alteração do nome da testemunha tem uma série de requisitos que vão além da regra geral depreendida do artigo 282 do Código de Processo Civil. Desta forma a inicial deve fazer menção expressa à inclusão da testemunha na rede de proteção, que se opera por decisão do Conselho Deliberativo. Este, provocado pelo órgão executor ao lhe apresentar pareceres técnicos, decide pela inclusão ou não da testemunha no programa. Este procedimento tendente à inclusão na rede de proteção acaba por comprovar a excepcionalidade do requerido, já que não é qualquer pessoa que se sinta ameaçada que poderá se valer da alteração do nome.
Uma vez deferido o pleito de alteração do nome em razão de testemunho, deve ser oficiado o cartório de origem para averbação, no registro original de nascimento, ter havido alteração, anúncio do artigo 9º, I da Lei nº 9.807/99. Deve também ser oficiado para que faça um novo registro para o requerente, ofício que já conterá o novo nome. No mesmo sentido deve se oficiar o instituto de identificação, inteligência do mesmo artigo 9º em seu parágrafo 4º.
Como se vê, a pessoa adquire uma nova identidade. Destaca-se, todavia, que essa identidade tem um motivo de ser: a existência de coação ou ameaça reconhecida pelo juízo. A justificativa para essa nova identificação, regra que foge à lógica da unidade do registro, só se tem razão de ser no contexto de mantença dos motivos autorizadores, pelo que, deixando de existirem, não há fundamento para a manutenção da nova identidade.
Por fim, para total preservação do sigilo das informações contidas nos autos do processo tendente à alteração de nome pela motivação em exame, determina o Ato Executivo Conjunto nº 09/2001 no Estado do Rio de Janeiro que os autos sejam arquivados imediatamente, tão logo a decisão seja registrada.
3.8 HOMONÍMIA
Como se assentou inicialmente, o nome carrega consigo reflexos morais e atributos pessoais de seu portador, sendo o depositário da imagem pública em que se impregnam as impressões da coletividade. Com este se individualiza e identifica a pessoa.
Não obstante restar claro a função identificadora do nome, destaca-se a impossibilidade de que este seja exclusivo, eis que a riqueza onomástica existente, embora significativa, não consegue afastar o inconveniente da homonímia, problema que o Direito ainda não emprestou solução satisfatória.
Uma das tentativas de se dar alento às situações de homonímia consiste na mudança de nome tendo em vista a abundância de uma denominação, já que a repetição demasiada importaria na relegação de uma premissa básica afeta a este: individualizar.
Por razões de necessária individualização, a tese da alteração do nome civil com base na homonímia não pode ser desconsiderada por si só. Imperativo se mostra a ponderação no caso concreto, sobretudo quando a partícula que se quer acrescer ao nome original já é utilizada pelo requerente no trato diário, ponto em que o argumento da homonímia acaba por fomentar a tese da adoção de apelidos públicos e notórios, esta sim, possibilidade expressamente consagrada na Lei de Registros Públicos.
Não mais se pode deixar de considerar os numerosos transtornos que a homonímia provoca na sociedade moderna, onde as pessoas são, cada vez mais, cadastradas. Nesse sentido foi a consideração do relator da Apelação Cível nº 597.126.705[169], julgada pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 26 de novembro de 1997, desembargador Irineu Mariani. Ainda que o objeto da ação que ensejou a apelação colacionada tenha sido a supressão do patronímico, acrescido em razão de sentença declaratória de paternidade, não olvidou o ilustre desembargador de relacionar seu entendimento quantos às hipóteses autorizativas da mudança de nome, colacionando expressamente a homonímia. Afigura-se-nos ser seu entendimento absolutamente consonante com a sociedade moderna, como dito no relato, marcada por cadastros.
Nada obstante ao entendimento do Tribunal Gaúcho aposto em notas, não se pode perder de vista ao longo do país, fora das situações de notoriedade do apelido que se quer apor ao nome, a tese da homonímia perde força. Só o argumento da homonímia tem sido tido por falho, já que a manifestação desta decorre das limitações onomásticas. Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça[170] tem entendido que a abundância de homônimos não é razão para mudança de nome.
No citado Recurso Especial 647.296, proveniente do estado do Mato Grosso o Superior Tribunal – através da relatora do caso, Ministra Nancy Andrighi – julgou improcedente a pretensão à mudança intentada sob o fundamento de ser o nome muito comum, incapaz de garantir sua individualização na sociedade, face a enormidade[171] de homônimos. Por isso pretendia ver acrescido ao nome o prenome Wesley, com o qual esperava garantir sua identidade assegurada.
O pedido foi julgado improcedente na primeira instância e no Tribunal de Justiça do Mato Grosso[172], sob o entendimento de que a mera alegação de homonímia não aduz o interesse de agir a sustentar a tese de retificação do Registro Civil.
No Recurso Especial entenderam os julgadores que a tese do recorrente de ver alterado seu nome em virtude da homonímia, acrescentando-lhe o prenome Wesley, devia ser analisada à luz da interpretação jurisprudencial dada aos dispositivos da Lei de Registros Públicos afetas ao nome civil, entre os quais o artigo 57, que permite a alteração de nome, desde que motivada e em regime de excepcionalidade, e o 58, onde se afere a possibilidade da substituição de prenomes por apelidos públicos notórios. Com isso a pretensão acabou por não ser provida.
CONCLUSÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil, ao estabelecer como fundamento da República a Dignidade da Pessoa Humana, superou o individualismo. Elegeu a pessoa, em sua dimensão humana, como núcleo irradiador do ordenamento jurídico.
Dentro desta nova visão do Direito, de maior privilégio às situações existenciais, mostra-se producente enfatizar os Direitos da Personalidade, onde sobrevalessem a proteção aos Direitos Essenciais da Pessoa. Desta forma tem-se que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, transcrição do preceituado no artigo 1º do Código Civil Brasileiro. Esta concepção decorre do reconhecimento da personalidade de forma universalizada.
Os Direitos da Personalidade são a inclinação para se titular direitos e deveres inatos ao homem, ou seja, a possibilidade de participar de uma relação jurídica; de se ser sujeito de direitos de forma ínsita. Desta forma se afigura razoável a codificação destes, não obstante a tutela conferida pela Carta Magna e por leis esparsas. O adentramento no código civilista é salutar por esclarecer e sistematizar de modo efetivo os direitos ora em comento. Com o Código Civil, resta regulamentado o nome enquanto Direito da Personalidade, entendimento inscrito em seu artigo 16, donde se depreende que toda pessoa a este faz jus.
Neste contexto a questão do nome assume ares de cidadania, exercida quando se conhece e reconhece os indivíduos como destinatários de direitos e garantias individuais. Assenta-se este entendimento por se considerar que é com o Registro Civil que se formaliza a existência humana no mundo culturado, sendo um elemento fundamental, ainda que sua eficácia dogmático-jurídica seja meramente declaratória. Com este se pode trazer para o mundo do Direito cerca de oitocentas mil crianças por ano, que têm sua existência jurídica negada pelo não-registro, vivendo, pois, à margem do sistema instituído.
Do ponto de vista estrito aponta a locução cidadão para a possibilidade de votar e ser votado, ou seja, fruição dos Direitos Políticos. A noção de cidadania que aqui interessa, todavia, diz pertinência à destinação de direitos e garantias individuais. Ora, quem não é parte do sistema não pode ser destinatário de nada, já que por uma questão lógica não se posta uma correspondência sem ter alguém para recebê-la. Neste ponto o Registro Civil é o endereço que possibilita a pessoa ser o alvo de políticas públicas, já que este torna evidente sua situação jurídica: idade, naturalidade e filiação. A publicização destes dados permite ao Estado maior controle das demandas sociais, possibilitando uma intervenção efetiva do ponto de vista econômico e sanitário.
Por certo o Registro Civil não cria uma pessoa. É essencial, contudo, para que a esta alcance status de cidadã, pois sem este não há existência formal. Sem esta formalidade a inserção na marginalidade social é o único caminho a se trilhar, uma vez que nas relações extrafamiliares há total imperatividade documental.
Carteira de identidade, cadastro de pessoas físicas no Ministério da Fazenda, título de eleitor, carteira de trabalho, passaporte, entre outros, são documentos corriqueiros no dia-a-dia. Não existem, todavia, sem um prévio Registro Civil. Assim este é requisito para o trabalho, fundamento da República, anunciado no artigo 1º, IV da Constituição, e da ordem econômica, conforme artigo 170.
Da mesma forma é pressuposto para a feitura da carteira de identidade. No Ministério da Fazenda é condição para o cadastramento, base das relações comerciais. Até mesmo o Direito de Ir e Vir fica cerceado sem o Registro Civil, pois não se pode ir além das fronteiras sem um passaporte, que por evidente presume o registro da pessoa.
O nome, assim como o estado civil e o domicílio, é um dos elementos que individualizam a pessoa em sociedade. Caracteriza-se por ser: absoluto, inalienável, imprescritível, irrenunciável, impenhorável, intransmissível. Por essa razão é chamado personalíssimo.
Na formação do nome destaca-se tradicionalmente o prenome e o sobrenome. Nada obsta, todavia, que outros elementos possam compô-lo, como o cognome, também chamado apelido, e o agnome, cuja função é retomar laços genealógicos, comumente se valendo dos vocábulos Júnior, Filho, Neto e Sobrinho.
A Lei de Registros Públicos consagra a definitividade do nome. No artigo 58 cuida precisamente do prenome, asseverando ser este definitivo mas antevendo a possibilidade de sua alteração. Esta mesma lei colaciona outras hipóteses de alteração: adoção de apelidos públicos e notórios – artigo 58, caput; coação ou ameaça – artigo 58, parágrafo único; exposição ao ridículo – artigo 55, parágrafo único.
A legislação extravagante também cuida da possibilidade de alteração, como a adoção, prevista no artigo 47, § 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente e 1.627 do Código Civil e a tradução ou adaptação do nome estrangeiro, cuja previsão é feita pelo Estatuto do Estrangeiro – Lei nº 6.815/80 – em seu artigo 43.
Além das hipóteses expressamente consagradas pela legislação pátria, os tribunais têm ampliado o rol de possibilidades de mudança do nome, por exemplo, nos casos envolvendo o transexualismo. Estas decisões têm sido fundamentadas, em sua maioria, no artigo 55, parágrafo único da Lei de Registros Públicos, posto que tendo sido alterada a manifestação fenotípica da sexualidade, a mantença de um nome com base no genótipo tem potencial de submissão de seu portador ao ridículo.
Os casos envolvendo sexualidade precisam ser entendidos dentro do contexto de consideração que homens e mulheres pertencem à mesma raça: a humana. Ninguém é superior a ninguém, sendo o sexo biológico uma contingência que não autoriza nenhum tipo de discriminação. Sendo este contingencial, não subsistem argumentos para que seja forma de negação da identidade pessoal, verdadeiramente uma garantia da Pessoa Humana.
Tratando-se do transexualismo, mais dolorosa que a ablação física sofrida é a negação da real identificação pelo Poder Público, sobretudo nas hipóteses em que o nome foi incorporado de fato ao patrimônio ético do portador. Violência maior que sofrida pelo indivíduo a apresentar cisão genofenotípica é a privação forçada de um bem enraizado na intimidade.
A identidade pessoal, operacionalizada a partir do Registro Civil, é o modo de ser e de estar da pessoa em sociedade, na qual se impregnam qualidades e defeitos, realizações e aspirações externadas, bagagem cultural e ideológica. Enfim, é o Direito que todos os indivíduos têm de serem eles mesmos. A identidade sexual, a seu turno, é um dos aspectos mais importantes e complexos da identidade pessoal, formada na estreita vinculação com a pluralidade de direitos associados ao desenvolvimento da personalidade.
O nome, símbolo de identidade, não é mera reclamação objetiva para o convívio humano. Da mesma forma não se resume à síntese documental de elementos morfossintáticos atribuídos às pessoas. Trata-se, em verdade, de registro subjetivo que constituiu atributo impregnado à personalidade, integrante, pois, da auto-imagem. Através deste a pessoa é percebida e identificada, por si e pelos seus.
[1] MORAIS, Maria Celina Bodin. Sobre o Nome da Pessoa Humana. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 12, p.48-74, 2000.
Informações Sobre o Autor
Alessandro Marques de Siqueira
Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Conferencista do CONPEDI. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.