Ato cooperativo. Intributabilidade


O objetivo deste artigo é o de demonstrar a intributabilidade do ato cooperativo, expressão que estamos cunhando para não confundir com a isenção, que pressupõe situação em que o tributo incidiria não fora a norma legal isentiva.


O que é ato cooperativo?


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Em princípio, pode-se dizer que é toda a atividade desenvolvida entre a cooperativa e seus associados. E o que é cooperativa e qual a sua natureza jurídica?


A lei n° 5.764/74, estatuto básico das cooperativas em geral, dispõe em seu art. 3°:


Art. 3°. Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”


O art. 4°, por usa vez, define as cooperativas como pessoas jurídicas de natureza civil:


Art. 4°. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:


 I – adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;


 II – variabilidade do capital social representado por quotas-partes;


III – limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;


V – incessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;


V – singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade;


 VI – quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital;


 VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;


VIII – indivisibilidade dos fundos de Reserva e de Assistência Técnica Educacional e Social;


 IX – neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;


 X – prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;


XI – área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços.”


A regra de retorno das sobras, que está expressa no inciso VII, é inerente à sociedade cooperativa, à medida que representa expressão do princípio maior do cooperativismo fundado na prestação de serviço ao associado, sem finalidade lucrativa. O art. 21, IV, da Lei determina a prescrição estatutária da forma de devolução dessas sobres.


A definição legal do que seja ato cooperativo está no art. 79 e seu parágrafo único:


“Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.


Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.”


Como se vê, ato cooperativo não se reveste de caráter mercantil, pelo que não pode ser objeto de tributação. Não implica venda de mercadorias ou de serviços. Trata-se de mera prática de ato civil. É como se um determinado colega de trabalho fosse a um bar em busca de lanches para si e seus colegas. As despesas dos lanches são rateadas entre os colegas do grupo. Essa intermediação não se reveste de caráter mercantil, a ensejar tributação.


É verdade que as cooperativas em geral praticam atos atípicos sujeitos à tributação, nos limites permitidos pela lei de regência.


Essas atividades sujeitas à tributação estão disciplinadas nos artigos 85 a 87 da Lei n° 5.764/74:


Art. 85. As cooperativas agropecuárias e de pesca poderão adquirir produtos de não associados, agricultores, pecuaristas ou pescadores, para completar lotes destinados ao cumprimento de contratos ou suprir capacidade ociosa de instalações industriais das cooperativas que as possuem.”


“Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.”


“Art. 87. Os resultados das operações das cooperativas com não associados, mencionados nos artigos 85 e 86, serão levados à conta do “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social” e serão contabilizados em separado, de molde a permitir cálculo para incidência de tributos.”


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A matéria, na verdade, é simples. É questão de separar o ato cooperativo, ato típico insusceptível de tributação, e o ato atípico, ato mercantil praticado pela cooperativa em suas relações com terceiros, implicando operações tributáveis.


Se a própria lei de regência separa uma coisa da outra não pode a doutrina ou os aplicadores da lei pretender escudar toda a atividade da cooperativa no âmbito do ato cooperativo, nem  ancorar toda essa atividade no campo abrangido pela tributação.


Na prática, a confusão entre o ato cooperativo e o ato praticado pela cooperativa com terceiros é generalizada.


Até o legislador fez essa confusão, quando estatuiu uma hipótese de isenção na Lei Complementar n° 70/91, cujo art. 6° assim prescrevia:


Art. 6°. São isentas da contribuição:


I- as sociedades cooperativas que observarem ao disposto na legislação específica, quanto aos atos cooperativos próprios de suas finalidades.”


Ora, inexistente potencialmente situação que enseja tributação não há que se cogitar de norma jurídica isentiva. Seria o mesmo que isentar de multa moratória, por exemplo, aquele que cumpre a obrigação no prazo legal. A revogação da norma isentiva, no caso, não significa que quem promove o adimplemento da obrigação no prazo legal tenha que arcar com a multa.


O mesmo acontece com a isenção tributária do ato cooperativo, que veio a ser revogada pela Medida Provisória n° 2.158-35 de 24-8-2001.


Essa revogação suscitou e continua suscitando controvérsias.


Primeiramente, questionou-se a inadequação da Medida Provisória para veicular matéria tributária, questão que já foi dirimida pela Corte Suprema (ADI n° 2937, Rel. Min. Celso de Mello).


Também, restou decidido pela Corte Suprema que lei complementar extravagante (aquela que versa sobre matéria não reservada à lei complementar) pode ser revogada ou alterada por lei ordinária (RE n° 377457-PR, Rel. Min. Gilmar Mendes).


Dentro desse quadro, a jurisprudência está caminhando para a tributação de toda e qualquer atividade desenvolvida pelas cooperativas, não mais distinguindo o ato cooperativo do ato mercantil. Para isso contribuem as postulações feitas em juízo fundamentadas, a maioria delas na suposta hierarquia da lei complementar, insusceptível de modificação por lei ordinária, tese já rejeitada pelo STF, como antes mencionado.


Mas, examinemos a questão a partir dos textos constitucionais e veremos que as cooperativas mereceram um tratamento diferenciado das empresas do setor privado.


O art. 5°, XVIII, da CF dispensa a autorização do governo para criação de cooperativas, vedando sua interferência no funcionamento delas.


O art. 174 dedica, nada menos, do que três parágrafos prescrevendo: a) o apoio e estímulo ao cooperativismo; b) estímulo à organização de atividade garimpeira em cooperativas; c) priorização das cooperativas na concessão de pesquisa e lavra de recursos e jazidas minerais.


O art. 187 determina que se leve em conta especialmente o cooperativismo no planejamento e execução da política agrícola.


O art. 192 inclui as cooperativas de crédito no Sistema Financeiro Nacional.


Finalmente, o dispositivo que mais de perto interessa para o exame dessa questão, art. 146, III, c, da CF:


“Art. 146. Cabe à lei complementar:


III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:


c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.”


Interpretando-se literalmente o dispositivo acima poder-se-ia sustentar que o legislador constituinte partiu do princípio de que o ato cooperativo é susceptível de tributação.


Dentro dessa linha de raciocínio o art. 6°, I, da LC n° 70/91 estaria regulando aquele dispositivo constitucional e, assim, não poderia ser revogado por lei ordinária, visto que, a expressão “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” estaria sob reserva de lei complementar.


Entretanto, o STF tem entendimento no sentido de que o art. 146, III, c, da CF não implica imunidade ou tratamento necessariamente privilegiado às cooperativas. Isso é correto, porém, correto, também, que “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” não significa, nem pode significar maior pressão tributária contra as atividades econômicas desenvolvidas pelas cooperativas, à vista das disposições constitucionais retro mencionadas.


É a seguinte a posição atual da Corte Suprema:


A circunstância de dado tributo estar sujeito às normas gerais em matéria tributária não significa que eles deverão ser instituídos por lei complementar, ou então que qualquer norma que se refira ao respectivo crédito tributário também deva ser criada por lei complementar. A concessão de isenções ou outros benefícios fiscais, bem como a instituição dos critérios das regras-matrizes dos tributos não têm perfil de normas gerais (normas destinadas a coordenar o tratamento tributário em todos os entes federados), embora delas extraiam fundamento de validade.” (AC 2209 AgR/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 26-3-2010).


Forçoso é concluir que no entendimento do STF a expressão “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” prevista no art. 146, III, c, da CF refere-se a atos atípicos praticados pelas cooperativas em suas relações com terceiros, naquelas hipóteses previstas nos arts. 85 e 86 da Lei n° 5.764/74. O resultado dessas operações devem ser contabilizados à parte, para fins de tributação, como determina o art. 87 da lei.


Segue-se, portanto, que a isenção revogada diz respeito a operações tributáveis, que em nada afeta as operações insusceptíveis de tributação, ou sejam, os atos cooperativos.


Entender que o ato cooperativo é passível de tributação e que por essa razão o legislador constituinte prescreveu o “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” é o mesmo que afirmar que o tratamento tributário privilegiado está submetido ao princípio da reserva de lei complementar, por decisão política do legislador constituinte. Nesse caso, descabe ao judiciário o reexame da matéria. Cabe apenas ao legislador constituinte dizer que matérias devem ser reguladas por lei complementar.


De duas uma: ou o ato cooperativo é intributável, descabendo cogitação de isenção e, por conseguinte, de sua revogação, ou, o ato cooperativo é tributável e o legislador constituinte reservou à lei complementar a tarefa de atribuir tratamento privilegiado (isenção, não-incidência expressa, redução da base de cálculo etc.).


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Enquanto o legislador ordinário não promover a regulamentação do disposto no art. 146, III, c da CF muitas tintas continuarão sendo gastas em torno dessa questão de tributação dos atos cooperativos. Entretanto, é certo que a omissão legislativa não pode conduzir ao entendimento que implique onerar as sociedades cooperativas, impedidas de optar pelo Simples, mais do que as sociedades empresariais comuns. Aquele preceito constitucional, norma de eficácia limitada, há de ser aplicada nos limites do possível, porque inibe a elaboração legislativa em sentido contrário.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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