Consumismo e criminalidade

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a relação existente entre o comportamento excessivamente consumista e a criminalidade. A partir de uma breve análise da natureza humana individual e social, dos conflitos surgidos a partir das relações interpessoais, e da sociedade de consumo, será possível identificar o desenvolvimento de atitudes e comportamentos excludentes que colocam determinados indivíduos em circunstâncias favoráveis à manifestação de comportamentos criminosos. Com base no estudo de processos sociais excludentes e categorizações estereotípicas de status social, este artigo se fundamenta na questão dos crimes que se tornam consequência desses processos, especificamente os crimes contra o patrimônio, conforme apresentados na legislação brasileira. Através de pesquisa bibliográfica, será enfatizada a influência que a demanda mercantilista exerce sobre aspectos que levam um sujeito a cometer determinado crime contra o patrimônio de outro.

Palavras-chave: Consumismo. Exclusão. Criminalidade. Estigmatização. Pena.

Abstract: This paper aims to present the relationship between excessively consumer behavior and crime. From a brief analysis of individual and social human nature, conflicts arising from interpersonal relations, and consumer society, it will be possible to identify the development of attitudes and exclusionary behaviors that put certain individuals in favorable circumstances to the manifestation of criminal behavior. Based on the study of exclusionary social processes and stereotypical categorizations of social status, this work is based on the issue of crimes that become a consequence of these processes, specifically crimes against property, as presented in Brazilian law. Through bibliographic research, it will be emphasized the influence that the mercantilist demand exerts on aspects that lead a subject to commit a certain crime against the property of another.

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Keywords: Consumerism. Exclusion. Criminality. Stigma. Punishment.

Sumário: 1- Introdução. 2- Natureza humana, conflitos e desvios. 3- Consumo, consumismo e criminalidade. 4- Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo o estudo da relação existente entre o consumismo e os crimes contra o patrimônio na sociedade brasileira. Buscar-se-á contextualizar o comportamento social que excede ao simples consumo para a satisfação de uma necessidade ou de um desejo pontual, e que se manifesta como decorrência de uma demanda que configura a demarcação de grupos, estabelecendo diferenças de status. A partir dessa configuração, poder-se-á compreender certas motivações para atos criminosos por parte de determinados grupos de indivíduos contra outros.

A proposta deste artigo se fundamenta em pressupostos teóricos sociológicos e criminológicos, com abordagem da legislação brasileira que trata do Direito Penal. O conteúdo deste trabalho será informativo, buscando-se uma análise do homem em seu dinâmico contexto social, enfatizando relações e vicissitudes que originam conflitos interpessoais. Em consonância com o pensamento de Adorno (2013), considerar-se-á a Sociologia como o exame crítico do que é essencial, do que é existente e influente em uma sociedade, ou seja, nesta proposta, o exame dos elementos e das condições que, decorrentes do comportamento consumista, originam o comportamento criminoso.

Adorno também se refere à Sociologia como a análise das ações humanas que, motivadas internamente ou externamente, só fazem sentido quando produtoras de efeitos no outro, no meio social. Essa concepção fundamentará, neste estudo, a valorização atribuída aos processos de exclusão social derivados do consumismo. A partir dessa exclusão verificada, serão apresentados os decorrentes crimes contra o patrimônio.

Este artigo se utiliza ainda das noções de Sociologia Jurídica, apresentadas por Cavalieri (2015). Este autor concebe a Sociologia Jurídica como ramo da Sociologia voltado para o exame de fatos sociais que atraem o ordenamento jurídico. Para Cavalieri, caberia ao Direito a orientação de condutas, o controle social e a coação para se evitar o caos. Neste sentido, a Sociologia Jurídica se voltaria para a averiguação das condutas sociais que estimulariam a produção e/ou aplicação de normas legais, o que, neste artigo, se verificará na relação estabelecida entre o consumismo e a criminalidade que provoca a atuação do poder punitivo estatal.

NATUREZA HUMANA , CONFLITOS E DESVIOS

Para compreender as relações estabelecidas por um indivíduo, capazes de motivar um comportamento criminoso ou simplesmente capazes de desenvolver uma atitude voltada para o consumo de bens materiais, é mister primeiramente identificar alguns elementos essenciais à constituição humana. Alexis de Tocqueville (1987), ao estudar as características da sociedade norte-americana que conquistou a independência e construiu os Estados Unidos da América, apresenta o caráter social dos indivíduos. Em sua grande obra intitulada “A Democracia na América”, Tocqueville transcreve sua concepção de sociedade como resultado de uma necessidade e instrumento de utilidade. Para ele, os homens, não importando suas especificidades internas, biológicas ou psíquicas, se unem aos outros homens, e assim constituem um grupo social, pois dessa união decorre a possibilidade de sobrevivência e desenvolvimento individual.

Esse pressuposto teórico de utilidade para a união entre os indivíduos é mais claramente abordado e expandido por Oliveira Junior e Rocha de Souza (2016) quando estes apresentam suas explicações a respeito do objeto de estudo da Sociologia Jurídica. Conforme os autores, a união entre os homens, chamada pelos sociólogos de relação social, decorre, sim, da utilidade oriunda da aplicação de forças conjuntas, mas comporta elementos ainda mais importantes que configuram os seres humanos como seres pensantes e desejosos, e que os afastam ainda mais dos animais irracionais. A concepção dessa relação social seria uma tendência inata de compartilhamento de opiniões, crenças, valores e costumes.

A partir desse relacionamento entre os homens, segundo Oliveira Junior e Rocha de Souza, as experiências e os aprendizados seriam interpretados e materializados nas instituições, que cumpririam dois papéis diversos e importantes: o papel de refletir os costumes e o papel de regular as interações. As instituições constituídas teriam, consequentemente, o condão de marcar os indivíduos como pertencentes ao grupo que se organizou. Os autores explicam que, dessa marcação, surge a necessidade individual de identificação e pertencimento a determinado grupo, o que une ainda mais os indivíduos.

Oliveira Junior e Rocha de Souza ainda abordam os aspectos do psiquismo na associação entre os indivíduos. Fundamentados na teoria psinacalítica clássica de Sigmund Freud, corrente teórica e prática da saúde mental desenvolvida na Europa no final do século 19, os autores consideram a existência de estruturas coletivas de consciência, explicando que toda produção de sentido contida nas ações individuais decorre necessariamente do que foi instalado no meio social. Isto é, as ações individuais só geram efeito, só colaboram para a construção de instituições, por exemplo, quando decorrentes de sentimentos e valores partilhados por todo o grupo social.

Essa sociabilidade do homem não pode ser compreendida sem que se analise o homem em sua constituição natural. Antes do aspecto social que cerca e motiva o homem a permanecer existindo e se desenvolvendo, é necessário entender que, por essência, os homens, individualmente, carregam consigo o desejo de plenitude e felicidade e a objeção a qualquer tipo de sofrimento. Em sua busca por compreender a natureza humana e a moral social, o iluminista Barão de Holbach (2014) define o homem como um ser que sente, pensa, age e busca o bem-estar em todos os instantes de sua vida. Segundo Holbach, essa definição seria justamente o fundamento da existência da sociedade. Para ele, a sociedade seria o conjunto dos seres humanos reunidos com a intenção de trabalhar em colaboração para a felicidade mútua.

Nesse mesmo pensamento caminhou Sigmund Freud, o médico austríaco que ficou conhecido como “pai da psicanálise”. Freud (2011) também identificou na natureza humana duas metas essenciais: a positiva, ligada à felicidade, e a negativa, ligada à ausência de dor. De acordo com seus estudos, Freud considerou que o comportamento do homem sofre variações ao longo do tempo, ora predominantemente procurando o prazer, ora predominantemente fugindo do sofrimento.

As análises de Freud, conforme o próprio destacou, tornam facilmente identificável nos seres humanos a grande dificuldade para lidar com a realidade da vida, seja ela psíquica (interna, subjetiva) ou social (interpessoal). De acordo com suas concepções, o sentimento de felicidade se manifestaria na satisfação episódica de necessidades (algumas básicas, compartilhadas com os outros seres da mesma espécie, outras particulares, desenvolvidas através das experiências sensoriais do próprio indivíduo), enquanto o sofrimento seria uma experiência mais frequente. Isso porque, segundo Freud, o homem em essência é, desde que nasce, ameaçado por três fontes: o próprio corpo, fadado ao declínio e à dissolução; o mundo externo, através das forças poderosas, inexoráveis e destruidoras da natureza; e as relações com os outros seres humanos, facilmente fragilizadas e abaladas diante da insuficiência e/ou ineficácia das normas que regulam os vínculos na família, no Estado e na sociedade. Freud dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo dessa terceira fonte de sofrimento. Dentre suas contribuições teóricas para a Medicina e para a Psicologia, uma das mais influentes é a apresentação da neurose como perturbação gerada a partir das dificuldades encontradas pelo homem diante da privação de seus instintos em favor dos ideais culturais da sociedade.

Os impactos afetivos, emocionais, psíquicos sofridos pelo homem nas relações que mantém em sociedade foram, ao longo dos últimos dois séculos, vastamente pesquisados. Para bem compreender a questão, não há como descartar a contribuição sociológica de Émile Durkheim (2014). Em sua obra de maior relevância para o mundo acadêmico, “O Suicídio”, Durkheim confere ao ato suicida uma natureza eminentemente social. De acordo com o autor, a sociedade seria responsável por modelar sentimentos e atividades dos indivíduos, regulando o comportamento geral e o individual. Nesse sentido, a sociedade exerceria influência direta, mesmo que de forma pouco ou nada explícita, no comportamento suicida.

Durkheim não ignora os fatores inerentes aos caminhos percorridos individualmente. Para ele, os problemas familiares, a miséria, uma doença grave ou a vergonha diante de uma amarga derrota em algum campo da vida não podem e não devem ser rejeitados como pontos a contextualizar um suicídio individual. Entretanto, ao analisar uma taxa de suicídios em determinados meio social e período de tempo, outro fator seria encontrado como predominante, qual seja, a constituição moral da sociedade em questão. Essa constituição poderia ser traduzida como uma força coletiva que tem origem nos vínculos entre os indivíduos, nos valores compartilhados, nas trocas vivenciadas. Durkheim esclarece que os movimentos negativos (voltados para o ato suicida) que um sujeito realiza, e que aparentemente são expressão de um temperamento pessoal, são na realidade o prolongamento de uma situação criada no interior dos relacionamentos sociais.

Os problemas que se instalam nas relações sociais se devem aos sentimentos, essencialmente humanos, que se formam durante o processo de socialização. Esse é o entendimento de Rodrigues, Jablonski e Assmar (1999). Psicólogos voltados para os estudos em Psicologia Social, os autores destacam que as atitudes humanas são os sentimentos pró ou contra pessoas ou coisas. Essas atitudes poderiam surgir em consequência de determinadas características individuais de personalidade ou de processos cognitivos, mas em todos os casos oriundas da relação entre os indivíduos. Essas atitudes, segundo concepção desses autores, possuiriam três componentes fundamentais: o componente cognitivo (o conhecimento objetivo a respeito do objeto), o afetivo (afeto positivo ou negativo em relação ao objeto, atração ou rejeição pelo objeto) e o comportamental (a atuação sobre o objeto, a consequência da união entre cognição e afeto).

Rodrigues, Jablonski e Assmar entendem que as atitudes são formadas logo no início da vida, na infância, nas experiências das crianças com suas figuras representativas, seus pais, por exemplo. Através da observação ou da imitação, algumas atitudes poderiam ser construídas. Um exemplo para compreensão trazido pelos próprios autores é o preconceito racial, definido como uma atitude negativa voltada para um grupo social, formada por ações, gestos ou palavras reforçadoras provenientes de figuras representativas. As funções dessas atitudes na vida social de um indivíduo seriam, segundo esses psicólogos sociais, a ordenação e a assimilação de informações complexas, a reflexão crítica a respeito de convicções e valores, e o estabelecimento de uma identidade social.

Ponto central no estudo das atitudes é, conforme se observa na obra de Rodrigues, Jablonski e Assmar, o fato de que os homens procuram harmonia em suas cognições (cognições aqui teriam o sentido de conhecimento, opinião ou crença acerca do ambiente ou da própria pessoa). Quando alguns dos elementos das atitudes se tornam dissonantes, se estabelece o que a Psicologia Social chama de “Dissonância Cognitiva”. Essa dissonância representaria um estado desagradável de forças atuantes opostas. Sofreria dissonância um sujeito que atribui valor positivo ao exercício de determinado comportamento, que empreende esforços para exercer esse comportamento, mas que não se satisfaz com suas consequências, por não possuir conhecimento a respeito das condições que se estabeleceriam a partir dessas consequências, não sendo essas realmente suficientes para gerar atração e satisfação. Essa dissonância seria, por exemplo, causa para o sujeito modificar sua atitude em relação a uma pessoa ou grupo social a partir do desenvolvimento de um afeto negativo. Nesse caso, o afeto positivo, propulsor do comportamento que não trouxe a satisfação esperada, torna-se então negativo, gerando inércia/indiferença quanto ao comportamento ou um comportamento negativo/agressivo em relação à pessoa ou grupo.

O que se constata a partir de diferentes estudos sobre a natureza do homem e suas interações com outros homens, e sobre a constituição e a manutenção da sociedade, é a existência de uma série de conflitos que se originam de forma intrapessoal e interpessoal, e nos dois casos produzindo efeitos nas relações sociais. Dessa forma, concebe-se que, para a existência de uma sociedade organizada e pacífica, o convívio entre os indivíduos carece de normas e regras a serem seguidas. Assim nasce o Direito enquanto disciplina fruto da cultura do homem social. Essa disciplina, traduzida em códigos escritos e materializada em instituições dotadas de poder de intervenção sobre a conduta dos indivíduos, torna-se, então, instrumento de paz e de ordem, exigindo a manifestação de determinados comportamentos e posturas, e limitando liberdades individuais em prol do bem comum e de interações harmônicas.

CONSUMO, CONSUMISMO E CRIMINALIDADE

Com o intuito de não extrapolar o objetivo inicial deste trabalho, será considerada apenas a área do Direito que se relaciona às condições e aos elementos da criminalidade: o Direito Penal. De acordo com Zaffaroni, Batista, Alajia e Slokar (2003), o Direito Penal concebe o crime como um conflito social que produz uma lesão jurídica, provocado por um ato humano como decisão de uma pessoa que pode ser censurada e a quem pode ser retribuído o mal causado na medida da sua culpabilidade.

Para que seja possível relacionar o comportamento criminoso ao comportamento consumista, é necessário compreender alguns aspectos essenciais da relação do homem com os bens materiais. Lívia Barbosa (2004), em sua análise sobre o que ela mesma denomina de sociedade de consumo, explica que o ato de consumir é inicialmente uma atividade necessária para que o homem possa sobreviver, se reproduzir e se relacionar socialmente. Posteriormente, esse consumo tomaria formas distintas entre os indivíduos, à medida que outras intenções subjacentes se apresentassem, como a atribuição de status, a diferenciação e exclusão social, a identificação e pertencimento a determinados grupos, ou uma gratificação pessoal, por exemplo.

Barbosa identifica na cultura do consumidor ocidental contemporâneo o consumo como foco central da vida social. Segundo a autora, práticas sociais, valores culturais, aspirações e identidades seriam definidos e orientados em relação ao consumo, e não para outras esferas da sociedade, como o trabalho ou a religião. Nesse aspecto, a sociedade contemporânea seria concebida negativamente como uma sociedade materialista, na qual o valor social das pessoas é aferido pelo que elas têm e não pelo que elas são.

Em consonância com as respostas obtidas a partir do estudo de Barbosa, e fundamentando o foco informativo deste artigo, o Instituto Ipsos, terceira maior empresa de pesquisa e inteligência de mercado no mundo, com sede na França e filial no Brasil, divulgou, em dezembro de 2013, os resultados de uma pesquisa que mediu o índice de consumismo e materialismo de sociedades de vinte países, dentre eles o Brasil. A pesquisa indicou o Brasil como o quarto país mais consumista e materialista dos que foram avaliados. Uma das perguntas centrais da pesquisa relacionava o sucesso pessoal à aquisição de bens materiais (“meu sucesso é medido pelas coisas que eu tenho?”). Como resultado, constatou-se que 48% dos entrevistados brasileiros responderam afirmativamente. Para essa mesma pergunta, apenas 7 % dos entrevistados da Suécia, o país que ficou em último lugar, responderam afirmativamente.

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Isherwood e Douglas (2013), um economista e uma antropóloga, também estudaram a cultura do consumo nas sociedades contemporâneas. Os autores puderam destacar o pertencimento e a exclusão como efeitos do consumismo, concebendo as mercadorias almejadas e obtidas pelos indivíduos não como objetos fins em si mesmos, mas como meios de alcançar determinados fins. As mercadorias, os bens materiais, seriam então utilizados para marcar e classificar indivíduos, separando-os em grupos diversos, unindo determinados indivíduos que fariam parte do mesmo grupo, e excluindo outros que a esse grupo não teriam condições socioeconômicas de pertencer.

 Isherwood e Douglas ainda foram capazes de identificar como os bens materiais que não são essencialmente vinculados à sobrevivência humana se tornaram objetos de necessidades pouco ou nada explicáveis racionalmente. Muito em decorrência do que é imposto ao indivíduo pelos meios de comunicação, objetos como uma televisão moderna ou um telefone celular sofisticado exercem imperativos de aquisição, como se, diante da ausência desses bens, o indivíduo regredisse a uma era mais primitiva.

Como se estivesse trabalhando em conjunto e dando continuidade às constatações de Isherwood e Douglas, Marcus Gomes (2015) estudou as teorias formadas pela Escola de Frankfurt, escola de estudos sociais criada na década de 1920 na Alemanha. Analisando a crítica da sociedade e da indústria cultural feita pelos pesquisadores associados ao instituto, Gomes confirmou e reproduziu o entendimento da função negativa da mídia sobre o comportamento dos indivíduos. Gomes esclarece em seu estudo que os gostos e as preferências das massas são muitas vezes moldados por uma indústria cultural. O desejo de satisfazer necessidades inexistentes e ilusórias seria criado na consciência das pessoas, que perderiam a capacidade própria de avaliação crítica. O consumo desenfreado seria uma ordem, e o consumidor seria um constante insatisfeito, entorpecido e submisso àquilo que leu, ouviu ou assistiu na televisão, nos jornais, no rádio, nos outdoors ou na internet.

O quadro estabelecido até então indica, resumidamente, estar a sociedade humana constantemente sujeita a conflitos, seja por questões instintivas que precedem a interação, seja por questões psíquicas e afetivas que decorrem das relações. Soma-se a isso o consumismo como fator que desperta e estimula as perturbações nas relações sociais ao fomentar diferenciações, exclusões e desigualdades. Destarte, é possível concluir que muitos desses conflitos interpessoais ultrapassam simples desentendimentos com expectativas de resoluções acordadas, produzindo efeitos de cunho jurídico, violando direitos que precisam ser defendidos por uma força maior e soberana, isto é, muitos desses conflitos são geradores de situações jurídicas, de crimes que lesam indivíduos e que carecem de intervenção penal.

A questão até aqui abordada a respeito da problemática relação dos indivíduos que constituem a sociedade contemporânea com o consumo de bens materiais, permite presumir que grande parte dos alvos do comportamento criminoso são, de fato, os próprios bens materiais. Essa presunção se materializa em levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Em junho de 2014, o DEPEN divulgou a existência de 607.731 presos em todo o país. Desse quantitativo, considerando os presos que foram condenados ou aguardam julgamento, e considerando não apenas os crimes definidos no Código Penal Brasileiro, mas incluindo aqueles definidos em legislação específica, o levantamento aponta que 40% dos presos respondem por algum crime cometido contra o patrimônio.

Para melhor compreensão desses crimes, é necessário informar que estão sediados no Código Penal Brasileiro, no Título II da Parte Especial. Sem abordar minuciosamente todos os crimes identificados, mas apenas para permitir a visualização da relação que se quer estabelecer entre consumismo e criminalidade, é possível destacar alguns dos crimes apresentados na lei: o crime de furto (subtração de coisa móvel alheia), o crime de roubo (subtração de coisa móvel alheia mediante grave ameaça, violência ou impossibilitação de resistência), o crime de extorsão (constrangimento alheio, mediante violência ou grave ameaça, com o intuito de obter vantagem econômica, a fazer, tolerar ou deixar que se faça alguma coisa), o crime de extorsão mediante sequestro (sequestro de pessoa com o objetivo de obter vantagem econômica como condição ou preço do resgate), o crime de apropriação indébita (apropriação de coisa móvel alheia a partir de prévia posse ou detenção), e o crime de estelionato (obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou outro meio fraudulento). As ações envolvidas em cada um desses crimes traduzem o desejo que um indivíduo possui de adquirir um determinado objeto consumível, que não pôde ser adquirido licitamente mediante dispêndio de valor econômico, ou o desejo de destituir outro indivíduo da posse de determinado objeto consumível, posse esta que diferencia e afasta os dois indivíduos na esfera social.

A fim de se confirmar a relação existente entre o consumismo e a criminalidade, rememorando a pesquisa já citada que comparou Brasil e Suécia a partir do nível de consumismo e materialismo, buscando abordar novamente um comparativo entre esses países, é mais do que útil trazer para o plano de estudo a pesquisa feita em abril de 2016 pelo Social Progress Imperative, organização estadunidense sem fins lucrativos com filial no Brasil. Nessa pesquisa, o Brasil foi considerado um dos países mais inseguros do mundo. Através da mensuração do nível de criminalidade em 132 países, o Brasil ficou em 10° lugar com 62,50 pontos (contagem de 0 a 100), e a Suécia ficou em 131° lugar com 6,65 pontos (contagem de 0 a 100).

Dentre os diversos fatores da criminalidade, este trabalho buscou analisar o consumismo como um fato social gerador de criminalidade. Fato este que configura a diferenciação entre os indivíduos segundo critérios de status e posição ocupada nos diversos degraus da sociedade. A partir de uma concepção de satisfação e felicidade equivocadamente atrelada ao consumo de bens materiais, identifica-se na sociedade o consumismo, o consumo que excede o necessário e razoável. Em decorrência desse comportamento, grupos passam a se definir e se diferenciar a partir da quantidade e qualidade dos bens materiais que seus membros possuem. Para maior coesão intragrupal, mais consumo e, consequentemente, mais exclusão social. É em virtude dos sentimentos originados com a exclusão que o conflito se instá-la. Seja pelo desejo de pertencimento ao grupo considerado mais valorizado e mais feliz, ou pelo sentimento de inferioridade e infelicidade que produz inveja, raiva e agressão, determinados indivíduos são motivados a se comportar de forma criminosa contra outros indivíduos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conflitos que perturbam o convívio entre os indivíduos, o comportamento desviante, as circunstâncias e os elementos que o estimulam e o alimentam, e as formas de controle social são objetos de estudo da Sociologia, e a relevância penal dessas interações é o objeto mais específico de estudo da Sociologia Jurídica. Com base em pressupostos gerais da Sociologia, da Sociologia Jurídica e da Criminologia, é possível analisar como um fato social motiva o comportamento humano, e como esse comportamento pode trazer consequências negativas e perturbadoras ao meio social.

Alessandro Baratta (2011) permite o enquadramento da ligação entre o consumismo e a criminalidade ao explicar alguns conceitos em seus estudos de Criminologia. Ao abordar a perspectiva criminológica contemporânea do “Labelling Approach” (Teoria do Etiquetamento), Baratta explica que a criminalidade não é um dado naturalizado, pré-constituído, mas uma realidade social constituída por meio de definições estigmatizantes e de reações sociais.

Segundo a teoria do etiquetamento, o comportamento criminoso deve ser considerado em relação às reações do grupo social a determinado fato social. Ou seja, a análise de determinada taxa de criminalidade que engloba os crimes contra o patrimônio em uma sociedade precisa levar em conta a realidade social que despertou o comportamento desviante. Na questão específica tratada neste artigo, para justificar a imputação, sobre um indivíduo, de uma pena concernente a um crime contra o patrimônio de outro indivíduo, é necessário identificar dentre os fatores que contextualizam a ação criminosa os elementos que envolvem a prática do consumismo na sociedade abordada.

Em termos de política criminal, a intervenção estatal sobre o indivíduo a quem se atribui um crime contra o patrimônio deve se fundamentar no exame da motivação social do crime, das carências de atenção e orientação de todo o grupo social que envolve o então criminoso. Esse exame crítico e cuidadoso deve-se ao risco de manutenção e reprodução de uma realidade bastante danosa. O que pode se observar a partir das considerações de Baratta sobre a perspectiva do “Labelling Approach” é que há uma cruel relação de continuidade e circularidade entre o fato social do consumismo, a diferenciação de grupos, os sentimentos de identificação e exclusão, a perturbação na interação social, o comportamento criminoso, a incidência do poder punitivo estatal e a estigmatização do indivíduo.

A adesão social aos valores vis do consumo, que leva à prática do consumo exacerbado, e que cresce na medida em que os indivíduos passam a cada vez mais se identificar com esses valores, produz no meio social os anseios de pertencimento ao grupo que ilusoriamente consegue alcançar a felicidade e as atitudes de separação e evitação daqueles que não compartilham as mesmas condições para consumir da forma como se foi orientado pelos instrumentos ideológicos do meio social. Em decorrência disso, se instala entre os indivíduos o desconforto da desigualdade, se desfaz a empatia que indivíduos da mesma espécie tenderiam a compartilhar em prol da sobrevivência, e comportamentos antissociais começam a ser motivados, levando determinados indivíduos ao cometimento de crimes. Diante da situação antijurídica, o Direito Penal é convocado e o indivíduo recebe a identidade de criminoso. Essa mudança de identidade social do indivíduo, que o estigmatiza perante o grupo considerado saúdável, que não se entregou aos instintos agressivos animais, atribui ao então criminoso o papel de exemplo humano a não ser seguido, de comportamento a ser rejeitado. Ao retornar ao convívio pós-punição, esse indivíduo traz consigo a imagem do ser errante, e diante de cada vez menos oportunidades para se enquadrar no “grupo feliz” (poucas oportunidades de trabalho a ex-presidiários, por exemplo, impedindo o crescimento econômico ou simplesmente a satisfação de necessidades básicas), esse indivíduo novamente se motiva a agir negativamente contra aqueles que desfrutam da felicidade que só os bens materiais podem proporcionar, pois esse é o pensamento que tem predominado nos dias atuais.

 

Referências
Adorno, T.W. (2013). Lições de Sociologia. Lisboa / Portugal: Edições 70.
Baratta, A. (2011). Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. (6ª ed.). Rio de Janeiro: Revan.
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Cavalieri Filho, S. (2015). Programa de Sociologia Jurídica. (14ª ed.). Rio de Janeiro: Forense.
Durkheim, E. (2014). O Suicídio: Estudo de Sociologia. São Paulo: Edipro.
Freud, S. (2011). O mal estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras.
Gomes, M.A. (2015). Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan.
Holbach, Barão de. (2014). A moral universal ou os deveres do homem fundamentados na sua natureza. São Paulo: Martins Fontes.
Isherwood, B. e Douglas, M. (2013). O mundo dos bens. (2ª ed.). Rio de Janeiro: UFRJ.
Oliveira Junior, José Alcebíades de. e Rocha de Souza, Leonardo da. (2016). Sociologia do Direito: desafios contemporâneos. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
Portal Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento de dados do sistema prisional. Crimes contra o patrimônio. Disponível em <https://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf/view >. Acesso em 26 de novembro de 2016.
Portal Ipsos Institute. Pesquisa sobre índice de consumismo e materialismo no mundo. Países mais consumistas e materialistas. Disponível em <http://www.ipsos-na.com/news-polls/pressrelease.aspx?id=6359 >. Acesso em 26 de novembro de 2016.
Portal Planalto. Legislação. Código Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em 26 de novembro de 2016.
Portal Social Progress Imperative. Índice de Progresso Social. Taxa de Criminalidade. Disponível em <http://www.progressosocial.org.br/wp-content/uploads/2016/07/PT_SPI-2016-Executive-Summary.pdf>. Acesso em 26 de novembro de 2016
Rodrigues, A., Jablonski, B., Assmar, E.M.L. (1999). Psicologia Social. (24ª ed.). Petrópolis: Vozes.
Tocqueville, Alexis de. (1987). A democracia na América. (2ª ed.). Belo Horizonte: Itatiaia.
Zaffaroni, R., Batista, N., Alajia, A., Slokar, A. (2003). Direito Penal Brasileiro – I. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Revan.

Informações Sobre o Autor

Pedro Lobato Rangel

Acadêmico de Direito na Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Formado em Psicologia. Pós-graduado em Sociologia e Filosofia


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