O aborto de fetos anencéfalos e a ADPF Nº 54: aspectos sociológicos

Resumo: Os avanços tecnológicos levaram a um conhecimento mais amplo da vida intrauterina, permitindo, o diagnóstico de anormalidades no desenvolvimento do feto enquanto a gravidez ainda está em curso. Atualmente essas anormalidades podem ser detectadas na 12ª semana de gestação. Afim de solucionar o problema, foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal uma ação de controle concentrado de constitucionalidade objetivando discutir sobre a descriminalização de aborto de fetos anencéfalos. O presente artigo tem o objetivo de analisar essa ação com foco nos aspectos sociológicos dela decorrentes. Primeiramente, discutiu-se sobre o conceito de aborto, fazendo uma análise dele como fenômeno social. Posteriormente, foi feita uma analise sobre anencefalia. E por fim, falou-se sobre a decisão da Suprema Corte com enfoque nos aspectos sociológicos.

Palavras-chave: Aborto; Anencefalia; Interrupção da gravidez.

Abstract: Technological advances have led to a broader understanding of intrauterine life, allowing for the diagnosis of fetal developmental abnormalities while pregnancy is still ongoing. Currently these abnormalities can be detected at the 12th week of gestation. In order to solve the problem, a Supreme Court decision was filed with the Federal Supreme Court in order to discuss the decriminalization of abortion of anencephalic fetuses. This article aims to analyze this action with a focus on the sociological aspects of it. Firstly, the concept of abortion was discussed, making an analysis of it as a social phenomenon. Subsequently, anencephaly analysis was performed. And finally, there was talk of the decision of the Supreme Court with a focus on sociological aspects.

Keywords: Abortion, Anencephaly, Termination of Pregnancy.

Sumário: Introdução. 1. Aborto. 1.1. Aborto como fenômeno social. 2. Anencefalia – aborto de fetos anencéfalos. 2.1. O que é anencefalia? 3. Análise da ADPF 54. 3.1. Dignidade da Pessoa Humana. 3.2. Direito a vida. 3.3 Princípio da Proporcionalidade: Dignidade da Pessoa Humana x Direito a Vida. 3.4. Princípio da Lesividade. 4. Aspectos Sociológicos. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Sabe-se que o aborto no Brasil é crime tipificado nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. Porém o artigo 128 do Código Penal traz duas hipóteses em que o aborto é permitido: no o primeiro ocorre quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, o denominado aborto necessário e o outro quando a gravidez resulta de estupro, denominado também de aborto humanitário. Importante lembrar, a recente decisão da 1a Turma do Supremo Tribunal Federal em novembro de 2016 sobre a possibilidade da interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação, seria uma quarta exceção: a interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação provocado pela própria gestante ou com o seu consentimento. Vale ressaltar, que ainda não é pacifico o tema, porém essa decisão é um grande indicativo do que o STF poderá decidir caso seja provocado sobre o assunto, tendo o Min. Roberto Barroso proferido um substancioso voto que foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber. Os demais Ministros da 1ª Turma (Marco Aurélio e Luiz Fux) não se comprometeram expressamente com a tese da descriminalização

Muitos juristas falam também do aborto eugênico, onde condenam o nascimento de bebês que nascem com anomalias, heranças hereditárias e outros tipos de deformidades, o que é para eles considerado uma verdadeira crueldade.

Muitos confundem o aborto eugênico com a interrupção da gestação por ser feto anencéfalo. Enquanto o primeiro condena os fetos que tenham sérias anomalias, o que deve ser proibido, o segundo, autoriza a interrupção da gestação, apenas em caso de anencefalia, onde estiver cientificamente comprovado que o feto não viverá senão de forma vegetativa.

Após fazer um breve relato sobre aborto e anencefalia, será analisado o objetivo da ADPF 54, que o que se buscou, foi a opção de interromper a gravidez, de ser uma escolha da mãe, uma vez que, durante os noves meses ela carregará o feto, sabendo que este não terá a possibilidade de vida, tratando-se ainda de uma gravidez que traz risco a sua saúde. Não se pode obrigar uma mãe a ter um bebê, impossibilitado de vida extrauterina. 

Portanto, o caso em estudo se trata, do aborto de fetos anencéfalos realizado por única e exclusiva vontade da mãe, abordando ainda seus aspectos sociológicos.

1. ABORTO

A palavra aborto é hoje uma das palavras mais explosivas e carregadas de tabus e preconceitos na nossa sociedade. Aborto é a interrupção da gravidez antes do bebê atingir a capacidade de viver fora do organismo da mãe. Não é preciso haver expulsão do conteúdo uterino para caracterizar-se aborto, basta cessar o desenvolvimento do feto. Aborto é a interrupção da vida intrauterina com a destruição do produto da concepção. (MIRABETE, 2006, p. 62).

A maioria dos dados só faz com que nos comprovemos o que já é sabido desde os tempos remotos, que essas práticas são feitas de maneiras muitas vezes precárias,  onde as mulheres gestantes praticam esse ato tão lesivo em si própria ou permitem que terceiros não capacitados o provoquem em quaisquer circunstâncias. Pois poucos são os casos que o aborto é permitido e que pode ser realizado por um profissional capacitado e competente, neste caso o médico.

No que concerne aos métodos aplicados temos o uso dos mais diversos objetos perfurantes e cortantes, como também o uso de ervas que provocam contrações fortíssimas no útero, expulsando assim o feto. Tais intervenções feitas sem nenhum preparo e cuidado acabam resultando em infecções, hemorragias intensas, levando as mães a serem hospitalizadas. Quando não essas mulheres acabam por falecer.

Atualmente o aborto é considerado ilegal em diversos países e só é aceito em raras exceções, como em caso de gravidez resultante de estupro, em que a gestante corra risco de vida e o de fetos anencéfalos, Mas nem sempre ele foi visto desta forma, antigamente não era considerado ato criminoso, embora houvesse punições drásticas. Observou-se que em diversos países esta pratica ocorria como meio controle populacional, por exemplo, na Grécia era aplicado para regular o tamanho da população e manter estáveis a condições sociais e econômicas.

Percebemos, contudo que com a mudança de pensamento da sociedade, as leis referentes a este tema mudaram e se adaptaram ao que os homens julgam ser correto.

1.1ABORTO COMO FENÔMENO SOCIAL

Sabe-se que os fenômenos sociais são fatos decorrentes da vida em sociedade que se traduzem por maneiras iguais de agir, pensar e sentir impostos pela mesma sociedade em que o seres humanos estão inseridos. O aborto, por ser um tema com extrema importância na sociedade,  é considerado um fenômeno social total, ou seja estudado por várias disciplinas.

Para conhecê-lo melhor temos que compreender um pouco dessa história, que começa desde o tempo dos assírios, as mulheres que abortavam eram empaladas. No mundo antigo grego e latino ambos com cultura fortemente patriarcal, o mesmo era praticado por médicos, quase sempre em casos de gravidez extraconjugal.

Na Grécia era aplicado para regular o tamanho da população e manter estáveis a condições sociais e econômicas. Na Roma antiga o aborto era permitido, pois o direito romano não considerava o nascituro como pessoa. Com o advento do Cristianismo as práticas abortivas passaram a ser restritas, remonta-se que em meados do século II d.C. surgiram as primeiras leis estatais contra o aborto. As mulheres que abortavam eram exiladas.

Na idade média segundo Aristóteles, o feto se tornava humano depois de 40 dias da concepção para os meninos e de 80 dias para as mulheres, no entanto o aborto e infanticídio eram tidos como meios comuns para limitar a população. Somente a partir do século XVII que muitos países do mundo promulgaram leis que convertiam o aborto como ilegal. Contudo a partir do século XX passou a ser aceito o aborto em casos de risco de vida da mãe ou para proteger a sua saúde.

Existem elementos sociais que configuram para a pratica deste ato, como por exemplo: mães grávidas adolescentes, estupro e no caso de má formação do feto, aqui se enquadra o caso discutido neste trabalho, pois o aborto no caso de feto anencefálico passou a ser permitido no Brasil após muitas mães entrarem com ação pleiteando o direito de vir interromper a sua gravidez por saber que os seus filhos nasceriam com vida, mas não saber de quanto tempo essa vida seria. 

Quando estudado pela ciência social que é a sociologia, o aborto se torna um fenômeno sociológico, por cada vez mais abranger os indivíduos na sociedade modificando, ou defendendo, uma série de valores e hábitos que a mesma sociedade tem. Sabe-se que os fenômenos sociais têm três características: exterioridade, coercitividade e relatividade.

Em primeiro lugar, o aborto é algo relativo, pois depende do tempo e do espaço em que ocorre. Enquanto em Portugal é proibido e punido, na Espanha, o mesmo é permitido. Assim, pode se afirmar que esse fenômeno social é diferente em uma determinada sociedade relativamente a outra.

Em segundo, é exterior, pois se impõe ao indivíduo, como algo exterior a sua consciência sendo um indivíduo condicionado. Como por exemplo, o exterior ( a sociedade que os rodeia e na qual os seres humanos estão inseridos),  condiciona-os bastante, tendo o exterior muita “força” sobre os seres humanos. Assim, mesmo que proibido em muitos países, o aborto é realizado. E a terceira característica a coercitividade, pois a sociedade impõe determinados comportamentos, no qual devem ser obedecidos.

2. ANENCEFALIA – Aborto de fetos anencéfalos

Os avanços tecnológicos levaram a um conhecimento mais amplo da vida intrauterina, permitindo, o diagnóstico de anormalidades no desenvolvimento do feto enquanto a gravidez ainda está em curso. O debate acerca da anencefalia veio a tona com o avanço da tecnologia e da medicina, antes, esta anomalia só podia ser verificada com o nascimento do feto ou na interrupção espontânea da gravidez, atualmente, pode ser detectada na 12ª semana de gestação.

Este avanço gerou muita polêmica e dúvidas na sociedade e doutrinadores, alguns dizendo ser a interrupção da gestação do anencéfalo aborto, e outros tratando do caso como fato atípico. O direito evolui com a sociedade, sendo assim, deve haver uma limitação do Estado em intervir em determinadas condutas dos cidadãos ou obrigar a pratica de outras. O direito Penal que representa a forma mais brutal de intervenção estatal na vida das pessoas, só pode ser utilizado quando há real necessidade, não podendo de forma alguma se mostrar injusto e inadequado. Os direitos humanos fundamentais, deve sempre ser observado e respeitado, sobretudo, o direito a vida e o Principio da dignidade da pessoa humana como será falado adiante.

2.1. O QUE É ANENCEFALIA?

Feto anencéfalo é aquele que por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). (DINIZ, 2001, p. 281).

A anencefalia é uma malformação congênita, apresentada em 8.6 bebês de cada 10 mil que nascem, nestes casos a apreciação pela medicina não apresenta  erros, podendo ser detectada a anencefalia através de ultrassonografia até o final do terceiro mês de gestação. Tal anomalia é demonstrada pela ausência simétrica dos ossos da calota, inicia-se por volta do décimo oitavo dia de gestação a constituição do sistema nervoso com a formação da placa neural. A superfície do ectoderma se espessa e começa a enterrar-se e dobrar-se em si mesma perto da junção do futuro cérebro e da medula espinhal no meio do embrião. O tubo neural pode fechar-se por volta do vigésimo quarto dia, quando o embrião já possui um tamanho de 4,5mm. Se o fechamento não ocorrer é apresentado a anencefalia.

Dessa forma a anencefalia caracteriza-se por ausência de cérebro no todo  ou em parte, e apesar da carência de estruturas cerebrais (hemisférios e córtex), o anencéfalo em razão do tronco cerebral, preserva funções vegetativas, como chorar, respirar, (ainda que com ajuda de aparelhos) e até mamar.

Mesmo que o feto possua tais funções, estas são apenas vegetativas, pois há incompatibilidade do feto com a vida extrauterina e até mesmo dentro do útero da mãe, já que 50% dos fetos portadores de anencefalia morrem durante a gestação, sendo assim, não há possibilidade alguma de vida do anencéfalo, este poderá morrer ainda no útero de mãe ou depois de nascer viverá de forma vegetativa por minutos, horas e raramente por semanas.

Por fim, a anencefalia não pode ser considerada aborto, pois este é crime contra a vida e nestes casos, há somente vida vegetativa. A dificuldade dos médicos e juristas estava na questão de definir a morte do anencéfalo, muitos afirmavam ser a morte cerebral, mas como detectar a morte cerebral de um feto que não possui cérebro? Ou possui apenas uma parte deste toda danificada? Assim, a teoria de morte mais adequada será a teoria da morte neocortical, esta não verificará o quanto o cérebro foi danificado ou a ausência de cérebro, esta se preocupa com a capacidade de interação com o mundo exterior, ou seja como já foi dito, vida extrauterina.

3. ANÁLISE DA ADPF Nº 54

Em primeiro lugar ADPF é uma ação do controle concentrado, abstrato de constitucionalidade, veio com a Constituição Federal de 1988 e por ser uma norma de eficácia limitada, necessitava de uma lei para regulamentá-la, assim, nove anos depois foi editada a Lei 9.882/99.

A ADPF nº. 54 foi proposta ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNTS),  após o desfecho de um processo que se arrastava na Justiça, referente à Gabriela Oliveira Cordeiro. Esta era gestante de um feto anencefálico, e por isso entrou com um pedido de autorização judicial do aborto perante o juiz de direito de Teresópolis. A autorização foi negada. Em apelação ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a autorização foi concedida, mas logo depois cassada. O caso arrastou-se para o Superior Tribunal de Justiça, que negou novamente a autorização, até que foi parar no Supremo Tribunal Federal, por meio de um habeas corpus impetrado pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e pela Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, Cidadania e Desenvolvimento, onde finalmente foi concedida a autorização. Nesse tempo, Gabriela já tinha dado à luz ao bebê, que morreu sete minutos após o parto.

Após esse fato, a CNTS, que restou preocupada com a possibilidade de criminalização dos profissionais da saúde por interromperem a gestação de fetos anencefálicos, tendo em vista que não havia segurança jurídica sobre o assunto, propôs em 2004 a ADPF perante o Supremo Tribunal Federal.

A ação teve como Relator o Ministro Marco Aurélio Mello, e foi proposta como já foi dito em 2004, sendo julgada apenas oito anos depois, em uma votação com a participação dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal durante os dias 11 e 12 de abril de 2012 e aprovado por 8 votos a favor, e 2 votos contra.

O objetivo da ação em questão não era a descriminalização do aborto, bem como nenhuma exceção ao ato criminoso previsto no Código Penal Brasileiro, a ADPF 54 decidiu, porém, que não deve ser considerado como aborto a interrupção induzida da gravidez de um feto sem cérebro.

A decisão do STF muda, a interpretação que a Justiça deve ter sobre tais casos. Antes da sua aprovação, o Estado não tinha uma interpretação definida sobre o tema, fazendo com que a decisão final ficasse para cada Juiz. Na maioria das vezes, a prática era aceita, mas em alguns casos a paciente teve que completar a gestação de um natimorto natimorto sem ter direito a abortar ou, como em outros casos, que a sentença foi dada em um estágio muito avançado da gravidez em que não poderia mais ser feito o aborto.

3.1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade humana pode ser visto sob vários aspectos. Mas como se sabe, nenhum dos princípios fundamentais é absoluto, nem mesmo o direito à vida, mais importante deles. Foi a filosofia grega que construiu a atual concepção do pensamento ocidental sobre a dignidade da pessoa humana. Este principio  é valor central da cultura e do direito pela sua fundamentação na liberdade individual e proteção à personalidade.

A dignidade da pessoa humana é um direito inviolável. Tudo que existe no mundo deve ser usado em proveito da humanidade e nunca para rebaixá-la ou diminuir a sua dignidade. Podemos observar que até mesmo a vida e a morte podem ser vista sobre vários aspectos e pontos de vistas. Assim também é com a dignidade da pessoa humana, onde deve ser analisado sempre o caso real. Um dos exemplos, é o aborto em caso de estupro que pode ser realizado mesmo o feto não tendo culpa, sendo um “bebê” perfeito. Ainda assim, o aborto é permitido.

No caso desse exemplo, prevalece o princípio da dignidade da pessoa humana,

para que a mãe não veja o feto e lembre do que lhe ocorreu, seja também por qualquer outro motivo de foro íntimo que leve a mãe a prática de tal ato, podendo ela agir desta forma, pois esta tutelada pela legislação Brasileira, é o que veremos nos próximos tópicos, se isso também ocorre no caso dos fetos anencéfalos.

Podemos também apontar a dignidade da pessoa humana como algo inerente a natureza do homem, de acordo com a sua cultura, seus costumes e sendo assim, é dever do Estado assegurar esta dignidade. Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é um principio difícil de conceituar por ser abstrato, mas fácil de ser contatado no caso concreto, como por exemplo, protegendo a integridade física, moral e psíquica, proibindo a pena de morte, qualquer tipo de tortura, a eutanásia, e qualquer outro ato que traga o sofrimento a pessoa e/ou a leve a ser tratada como mero objeto.

Segundo Durkheim apud Aron, as sociedades são de natureza diferente das dos indivíduos. Existem fenômenos e forças cujo suporte é a coletividade e não a soma dos indivíduos. Há fenômenos sociais específicos que comandam os fenômenos individuais; o exemplo mais notável são as correntes sociais que levam os indivíduos à morte, embora cada um deles pense que está obedecendo a si mesmo, quando na realidade é joguete das forças coletivas. 

E Max Weber apud Aron, diz que uma das características do estado moderno é se fundamentar naquilo que ele chamou de “ética da responsabilidade”, ou seja, na ideia de que não basta a tomada de decisão; é fundamental se considerar os resultados de tal tomada de decisão. Mais que isso: no mundo em que vivemos, toda tomada de decisão por parte dos estados deve levar em consideração o princípio da dignidade humana, tão bem exposto por Hannah Arendt, dentre outros pensadores contemporâneos.

3.2. O DIREITO Á VIDA

O direito a vida é reconhecido pela doutrina como Direito Humano Fundamental de primeira dimensão, sendo ele o maior e mais importante dentre todos. 

Este direito nem sempre foi tutelado, ou mesmo sendo pelas constituições passadas não era dado o valor que a vida tem hoje, a Constituição Federal de  1988, trouxe um diferencial em seu art. 5º:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Assim, desde a concepção, a vida é protegida em todos seus aspetos pela nossa Constituição, não dando a ninguém o direito de tirar uma vida, este é um direito inviolável e indisponível, ou seja, não podemos dispor deste direito. Para usufruir dos direitos humanos fundamentais é necessário a vida, por isto esta é protegida integralmente, uma proteção plena, onde até mesmo os abortos legais, são tidos por inconstitucionais, porém em alguns casos, o princípio da dignidade humana se sobrepõe ao da vida, como veremos adiante neste trabalho.

O direito de nascer de uma criança encontra-se amparado pelo artigo 227 da Constituição Federal, onde: “é assegurado a criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Não podendo assim violar esses direitos.

No próximo tópico, analisaremos qual o direito mais “importante”, o direito à vida do feto ou a dignidade da pessoa humana da mãe.

3.3. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DIREITO À VIDA x DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Varias são as teorias e discussões sobre o inicio da vida, há quem defenda que desde a concepção, há vida. E há quem diga que só é passível de direito após o nascimento com vida, porém, leva-se em consideração que viver não significa apenas em estar vivo vegetativamente e sim ter potencial para seguir o ciclo da vida, o que não ocorre no caso dos anencéfalos.

Nesses casos, será a pessoa mais prejudicada a gestante que deverá carregar durante 9 meses (se não houver o parto prematuro ou o feto “morrer” ainda dentro do útero) um feto que não terá a possibilidade de vida? ou o feto por não ter o direito de nascer e até quem sabe viver, já que nos casos de anencefalia parcial, há chances de vida extrauterina?

Como obrigar uma mãe a ter um bebê, sem que esta não poderá ao menos comprar suas roupas, arrumar seu quarto, sabendo que seu bebê nem ao menos sairá do hospital? Como fazer planos futuros para esse bebê?

Poderíamos pensar também sobre outro aspecto, o da mãe que mesmo sabendo que seu filho não terá vida, o espera, somente para ver seu rosto e admirá-lo mesmo que apenas por minutos, mesmo que por motivos morais ou religiosos também decida por não interromper a gravidez. Muitas gestantes, mesmo sabendo que o feto é anencéfalo, optam por deixá-los nascerem mesmo sem a possibilidade de vida extrauterina.

A interrupção da gestação do feto anencéfalo sendo tutelada pela legislação Brasileira, não visa obrigar a mãe a interromper a gestação, mas assegura o direito de opção dos pais e protege os profissionais da saúde que também estarão amparados.

A gravidez não modifica apenas o corpo da mulher mas também o seu psicológico. O direito deve acompanhar a sociedade, seus avanços científicos e culturais, de modo que não seria justo obrigar uma mãe a carregar o seu filho sem ao menos ter perspectiva de vida futura.    

Assim, verificada a impossibilidade de vida, poderia a lei autorizar a interrupção da gestação, pois são meses onde a mulher acompanha os avanços de sua gestação, o amor e o apego ao bebê fica cada vez maior, a gravidez aflora sua sensibilidade, assim é uma gravidez normal, o que se transforma em uma grande dor quando a mulher toma ciência da condição de seu bebê.

Algumas instituições, principalmente as religiosas, que defendem o direito à vida desde a sua concepção, tendem a expurgarem de suas manifestações as publicações científicas que comprovam a inexistência de consciência naqueles acometidos de anencefalia. Tais instituições são, naturalmente, formadoras de opinião. Portanto, arrebanham multidões que vigorosamente se colocam contra a conduta do aborto, ainda que nos casos de anencéfalos.

Parece ser uma questão de quanto de informação e de sua qualidade uma sociedade detém para se posicionar a respeito de questões que envolvem a vida humana, ou melhor, o direito de viver. O fato é que, não só a informação ou a desinformação influenciam o comportamento sociológico de uma determinada comunidade. A própria cultura a qual está imbuída esta sociedade acaba por determinar a forma como responderão os atos praticados, via de regra, por aqueles que se avizinham.

Para a parte da sociedade que entende que a vida se faz a partir da sua concepção, o aborto, ainda que nos casos de anencefalia, está diretamente relacionado ao prejuízo à vida do feto, portanto à vida do futuro bebê. O que se percebe é que, sociologicamente, a sociedade humana se vê dividida entre a aprovação e a proibição do aborto, nos casos de anencefalia, por estrita falta de comprovações científicas quanto à existência de vida nos fetos anencefálicos. Há que diga que um feto anencéfalo é incapaz, e que sua condição de vida é de estado vegetativo. Mas há casos de crianças que viveram até mais de 2 anos, sem contar os casos de erros em laudos médicos. Mas como tomar uma decisão de abortar ou não?

Sabemos que já existe decisão autorizando esse tipo de conduta. Porém a escolha deve ser tomada entre a família (mãe e pai). Mas quando paramos para pensar, percebemos que fazendo um aborto de anencéfalo estamos descumprindo a nossa norma maior. Norma essa que diz que todos temos direito a vida. E porque tirar a vida de alguém que não tem calota craniana, por mais que só venha a ter poucas horas de vida? Onde  esta o direito à vida desse feto ? A lei brasileira não limita o direito à vida dependendo do tempo em que se vai viver. O direito á vida é incondicional.

3.4. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE

Outro principio presente nas demandas maternas diz respeito à falta de tipificação como crime nos casos de auto lesão. É o chamado principio da lesividade. Entendem determinados grupos que o aborto é ato que atinge somente o corpo da própria gestante, cabendo a esta a decisão de levar adiante gravidez em que o embrião não desenvolveu o cérebro e o cerebelo.

A discussão gira em torno do questionamento quanto à existência de vida no feto, principalmente nos casos em que diagnosticado precocemente. Não existindo vida, a defesa desta tese é a de que a conduta não excedeu o âmbito da própria gestante. Assim, não há aplicação de punibilidade, que decorreria de crime, se este houvesse sido cometido.

4. ASPECTOS SOCIOLÓGICOS

Fazendo uma análise da ADPF nº 54, percebe-se que houve uma mudança na ação social de grupos interessados, no caso as gestantes de fetos anencefálicos, mas também as organizações de saúde, no sentido de não ser considerado como aborto a interrupção da gestação de um anencefálico, por se presumir a potencialidade de vida extrauterina do feto, não se encaixando assim no texto do Código Penal, com já foi dito anteriormente.

Estudos apontam que em média de 50% dos casos de anencefalia, o bebê morre ainda no ventre materno e, dos que nascem com vida, cerca de 99% morrem poucos minutos após o parto e os demais sobrevivem por poucos dias ou poucos meses.     Assim, os grupos interessados na questão sustentam o entendimento que a interrupção da gestação nesses casos não é aborto, mas antes antecipação terapêutica do parto, e por isso não deve receber a aplicação dos artigos 124 e 126.

A partir disso, pode se afirmar que, para Max Weber, o Judiciário reinterpretou a “lei do aborto” à luz da mudança da ação social dos interessados na decisão, acatando a concepção de que tal lei não se refere a casos em que é exígua a possibilidade vida extrauterina, e dando à gestante a autonomia de decidir se vai levar até o fim a gestação ou não. A decisão, com efeito erga omnes, está amparada de poder coativo, resultando em uma forma de criação de direito que, na concepção weberiana, é legítima ao poder Judiciário.

Sabe-se que para Karl Marx, o direito não passa de ilusão da classe dominante a fim de manter seus interesses. Para ele o direito limita-se apenas a uma estrutura a serviço dos interesses de uma classe dominante, classe esta detentora dos meios de produção material e intelectual, produtora das ideias dominantes, possibilitando, assim, que seus interesses de classe ganhem contorno de interesses universais, como uma forma ilusória de coletividade.

A sociedade brasileira teve sua estruturação histórica e cultural altamente influenciada por valores éticos patriarcais advindos da doutrina cristã, que ainda hoje exerce forte influência na construção das ideias dominantes da sociedade, que assim conseguiram se consolidar como universais.

 Casos como, esse do trabalho, o aborto de fetos anencefálicos, demonstram muito bem este poder que grupos dominantes exercem na sociedade, prova disso é que projetos de lei que tramitam até hoje no Congresso Nacional tratando sobre esse tema nunca conseguiram ser aprovados, em parte, por conta das pressões advindas de esferas religiosas – e a religião, para Karl Marx, também é instrumento de alienação por parte da classe dominante.

CONCLUSÃO

Como foi visto, o aborto de fetos anencéfalos, era um tema bastante controverso na seara jurídica brasileira, mas como foi estudado, em 2012, no julgamento que se iniciou no dia 11 de abril de 2012, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, “julgou procedente o pedido contido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. 

Vale lembrar aqui, que o objeto da ação não era a de descriminalizar o aborto, como já foi dito no trabalho, o que pretendia-se ali era o reconhecimento do direito da gestante de submeter-se ao citado procedimento sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado.

Conclui-se que foi uma importante decisão para o ordenamento jurídico brasileiro, pois deu a prerrogativa de escolha para essas mães que muitas vezes não sabem como lidar com uma situação tão sensível, como a perda de um filho que poderá vir a ter minutos de vida. Não são todos que conseguem encarar a perda de forma tão simples.

 

Referências
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Durkheim, Émile apud (ARON, Raymond. Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002).
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MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 24ª ed., 2006, p. 62
SANEMATSU, Marisa.  Interrupção da gravidez em casos de anencefalia fetal: a cobertura da imprensa sobre a liminar do STF e suas repercussões. Disponível em: <http://www.ipas.org.br/arquivos/10anos> Acesso em: 04 de novembro de 2013.
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Informações Sobre o Autor

Luisa da Silva Marques

Bacharel em Direito UNIFOR Pós-Graduando em Direito Tributário FISIG Advogada


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