Resumo: O artigo aborda a discussão acerca da determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das revendedoras de veículos automotores, tal qual determinada na IN SRF nº. 390/04, discutindo a tese que defende a invalidade das normas do referido diploma infralegal.
Palavras-chave: Lucro presumido. IRPJ. CSLL. Base de cálculo. Revendedoras de veículos.
Sumário: 1. Introdução; 2. Lucro presumido: breves notas; 3. A legitimidade das instruções normativas da Receita Federal do Brasil. 4. O coeficiente aplicável à hipótese. 5. Conclusão. Referências.
1. Introdução
O presente trabalho pretende discutir a tese segundo a qual sociedades especializadas na compra e venda de veículos automotores, tributadas pelo regime do lucro presumido, de que fazem jus à utilização dos coeficientes de 8% e 12% incidentes sobre a receita bruta, para determinação da base de cálculo do imposto de renda de pessoa jurídica – IRPJ e da contribuição social sobre o lucro líquido – CSLL.
Referido entendimento funda-se em suposta ilegitimidade do art. 96, § 3º, da IN SRF nº. 390/04, por suposta inovação do ordenamento jurídico, ao determinar o coeficiente aplicável (32%) para apuração da base de cálculo estimada do IRPJ e da CSLL, o que não seria admissível.
Costuma-se aduzir, ainda, que a equiparação efetuada pela Lei nº. 9.716/98, entre operações de compra e venda e operações de consignação, não teria o âmbito que lhe emprestara a Autoridade Fiscal, na redação do citado ato infralegal.
Pensamos que referido entendimento não subsiste a uma análise cuidadosa da matéria.
2. Lucro presumido: breves notas
Como se sabe, o imposto de renda das pessoas jurídicas possui dois regimes básicos de apuração: o do “lucro real” e o do “lucro presumido”.
No caso de opção de tributação pelo “lucro presumido”, tem-se regime fiscal pelo qual é considerado “lucro” e, portanto, base de cálculo do IRPJ e da CSLL, um valor obtido por meio de aplicação de um percentual à receita auferida pela sociedade.
Na feliz síntese de ROQUE ANTONIO CARRAZA:
“[…] situações há em que, por opção do contribuinte que atende aos requisitos legais, a tributação em tela se perfaz sobre o montante presumido de sua renda, também chamado de lucro presumido. O quantum debeatur, no caso, é calculado aplicando-se, à receita bruta anual da empresa, coeficientes legalmente definidos, que variam conforme a natureza da atividade por ela realizada.” [1]
Trata-se, portanto, de regime simplificado tributação, ao qual se submetem os contribuintes que, livremente, manifestarem opção de adesão.
Numa simplificação grosseira, pode-se dizer que o regime do lucro presumido impõe duas operações matemáticas fundadas nos conceitos de base de cálculo/alíquota: primeiro toma-se a receita bruta (“base de cálculo”) e sobre ela aplica-se um percentual determinado em Lei (“alíquota”, aqui denominada coeficiente). O resultado é o “lucro presumido”, que será a base de cálculo (no sentido consagrado) do IRPJ e da CSLL, cujos valores serão obtidos pela aplicação das alíquotas previstas nas leis de regência.
O cálculo dos tributos por este regime segue, portanto, neste modelo simplificado, três etapas: apuração da receita bruta, determinação do coeficiente aplicável para obtenção do “lucro presumido”, o que depende do tipo de atividade exercida pela pessoa jurídica, obtendo-se a base de cálculo, e multiplicação desta pela alíquota aplicável.
A última etapa consiste basicamente num cálculo matemático, pelo que não oferece maiores dificuldades. A controvérsia surge do enquadramento determinado pela instrução normativa, relativo ao segundo passo, mas nos parece que tese dos contribuintes se esquece de sua íntima relação com o primeiro, como se demonstrará.
3. A legitimidade das instruções normativas da Receita Federal do Brasil
De início, cumpre tecer breves comentários sobre o ato infralegal questionado.
Não se pode dizer que a instrução normativa, aplicável à hipótese em comento, exorbitou de suas funções.
A concepção de segurança jurídica formal, preconizada pela tipicidade fechada e amparada numa ultrapassada ideia de estrita legalidade, mostra-se irrealizável na prática, visto que a linguagem jamais poderá ser plenamente determinada, sempre havendo espaço para uma ou outra dissonância na caracterização da relação significante-significado.
Adverte HUMBERTO ÁVILA que a ideia de segurança pela estruturação da norma jurídica em uma linguagem absolutamente precisa repousa na falsa identidade entre texto de lei e norma jurídica, e entre esta e o próprio fenômeno jurídico[2]. O texto legal, nessa ótica, seria em si mesmo uma norma jurídica.
Um texto jamais poderá traduzir em si mesmo uma previsibilidade plena das relações jurídicas reguladas pela norma tributária, até porque esta implicaria a construção de uma linguagem absolutamente unívoca.
O texto legal, por mais fechado que seja a sua tipicidade, jamais poderá abranger plenamente a norma. Alerta MISABEL DERZI que somente sob a influência do racionalismo, tanto a jusnaturalistas como a positivistas continuou a preocupar a ideia de sistema cerrado e perfeito, conhecimentos exatos e adequados[3].
Esse modelo de segurança jurídica formal não raro permite a sua manipulação como fator de legitimação de uma série de abusos, todos protegidos sob o manto da previsão no “texto expresso da lei”. A sociedade moderna de “riscos” impõe ajustes às ideias de segurança jurídica e fechamento da linguagem normativa, porque ao lado do valor segurança formal devem ser ponderados diversos outros de mesma importância para o corpo social.
Deve-se reconhecer que há zonas de imprecisão nas leis e certo espaço não preenchido pelo próprio legislador que abrem ao Poder Executivo o poder-dever de complementar a regra.
Além de se trabalhar com a possibilidade de considerações teleológicas, não há como subsistir a ideia de legalidade estrita como a obrigatoriedade de um legislador onisciente prever todas as situações possíveis dentro de um ordenamento sem lacunas.
Adverte EROS GRAU[4] para o fetichismo da doutrina brasileira em torno do princípio da legalidade, como decorrência de uma recepção irrefletida da teoria da “separação” de poderes, aprisionada a arquétipos apriorísticos.
Essa doutrina reforça a concepção da teoria como proposta de separação e não de equilíbrio entre os poderes, além de prestar culto exagerado e radical à ideologia liberal.
Deve restar evidenciado, dessa sorte, não importar ofensa ao princípio da legalidade limitação do horizonte de sentido de um conceito inovador trazido pela lei, apenas complementado a disposição legal e permitindo sua aplicação com impessoalidade e isonomia, ou bem o desenvolvimento do conceito legal, permitindo sua aplicabilidade plena.
4. O coeficiente aplicável à hipótese
Assentada a validade do instrumento normativo, passamos à interpretação das normas pertinentes.
As revendedoras de veículos, nos termos do art. 5º da Lei nº. 9.716/98, se submetem a um regime fiscal específico em dois pontos: admite um conceito de receita bruta diferente do usual (parágrafo único do referido dispositivo legal) e determina o uso do coeficiente de apuração do lucro presumido relativo às prestadoras de serviços e intermediadoras de negócios, nos termos do caput. Veja-se:
“Lei nº. 9.716/98. Art. 5º. As pessoas jurídicas que tenham como objeto social, declarado em seus atos constitutivos, a compra e venda de veículos automotores poderão equiparar, para efeitos tributários, como operação de consignação, as operações de venda de veículos usados, adquiridos para revenda, bem assim dos recebidos como parte do preço da venda de veículos novos ou usados.
Parágrafo único. Os veículos usados, referidos neste artigo, serão objeto de Nota Fiscal de Entrada e, quando da venda, de Nota Fiscal de Saída, sujeitando-se ao respectivo regime fiscal aplicável às operações de consignação.”
Nota-se que se trata de um regime fiscal totalmente diferenciado, a que se submetem as revendedoras de veículos, de forma que não só o coeficiente aplicável para a determinação da base de cálculo é diferente do aplicável aos demais comércios, como também difere da regra comum o próprio método de cálculo da receita bruta.
Permitimo-nos transcrever as normas definidoras da forma de tributação do lucro presumido, para maior clareza:
“Lei nº. 9.249/95. Art. 15. A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determinada mediante a aplicação do percentual de oito por cento sobre a receita bruta auferida mensalmente, observado o disposto nos arts. 30 a 35 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995.
§ 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este artigo será de:[…]
III – trinta e dois por cento, para as atividades de:
a) prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares e de auxílio diagnóstico e terapia, patologia clínica, imagenologia, anatomia patológica e citopatologia, medicina nuclear e análises e patologias clínicas, desde que a prestadora destes serviços seja organizada sob a forma de sociedade empresária e atenda às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa; (Redação dada pela Lei nº 11.727, de 2008)”
Regulamentando referidos dispositivos legais, além da já citada IN SRF 390/04, foi editada também a IN SRF nº. 152/98. Uma vez mais, pedimos vênia para transcrever o quanto relevante, destacando:
“IN SRF nº. 152/98. Art. 1° A pessoa jurídica sujeita à tributação pelo imposto de renda com base no lucro real, presumido ou arbitrado, que tenha como objeto social, declarado em seus atos constitutivos, a compra e venda de veículos automotores, deverá observar, quanto à apuração da base de cálculo dos tributos e contribuições de competência da União, administrados pela Secretaria da Receita Federal – SRF, o disposto nesta Instrução Normativa.
Art. 2° Nas operações de venda de veículos usados, adquiridos para revenda, inclusive quando recebidos como parte do pagamento do preço de venda de veículos novos ou usados, o valor a ser computado na determinação mensal das bases de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, pagos por estimativa, da contribuição para o PIS/PASEP e da contribuição para o financiamento da seguridade social – COFINS será apurado segundo o regime aplicável às operações de consignação.
§ 1° Na determinação das bases de cálculo de que trata este artigo será computada a diferença entre o valor pelo qual o veículo usado houver sido alienado, constante da nota fiscal de venda, e o seu custo de aquisição, constante da nota fiscal de entrada.
§ 2° O custo de aquisição de veículo usado, nas operações de que trata esta Instrução Normativa, é o preço ajustado entre as partes.”
“IN SRF Nº. 390/04. Art. 96. As pessoas jurídicas que tenham como objeto social, declarado em seus atos constitutivos, a compra e venda de veículos automotores poderão equiparar, para efeitos tributários, como operação de consignação, as operações de venda de veículos usados, adquiridos para revenda, bem assim dos recebidos como parte do preço da venda de veículos novos ou usados.
§ 1º Os veículos usados, referidos neste artigo, serão objeto de Nota Fiscal de Entrada e, quando da venda, de Nota Fiscal de Saída, sujeitando-se ao respectivo regime fiscal aplicável às operações de consignação.
§ 2º Considera-se receita bruta, para efeito deste artigo, a diferença entre o valor pelo qual o veículo usado tiver sido alienado, constante da nota fiscal de venda, e o seu custo de aquisição, constante da nota fiscal de entrada.
§ 3º Na determinação da base de cálculo estimada e do resultado presumido ou arbitrado, aplicar-se-á o percentual de 12% (doze por cento) sobre a receita bruta, definida no § 2º, auferida nos períodos de apuração ocorridos até 30 de agosto de 2003, e o percentual de 32% (trinta e dois por cento) para os períodos ocorridos a partir de 1º de setembro de 2003.
§ 4º O custo de aquisição de veículo usado, nas operações de que trata esta Seção, é o preço ajustado entre as partes.
§ 5º A pessoa jurídica deverá manter em boa guarda, à disposição da SRF, o demonstrativo de apuração da base de cálculo a que se refere o § 2º.
§ 6º As disposições desta Seção aplicam-se exclusivamente para efeitos fiscais.”
Pois bem, como visto, o art. 5º da Lei nº. 9.716/98 equipara a compra e venda de veículos à consignação (isto é, consignação por comissão). É precisamente isto que referido dispositivo legal faz.
E o faz, diga-se desde logo, sem ferir qualquer norma de superior hierarquia, pois é sabido e ressabido que a lei tributária pode equiparar institutos diversos para lhes dar o mesmo tratamento tributário, desde que os conceitos equiparados não se prestem à delimitação de competência dos entes tributantes (art. 110 do CTN).
E todos sabem que a compra e venda por consignação (consignação por comissão) encerra entre o consignante e o consignatário uma relação de prestação de serviços, nos termos do art. 703 do Código Civil.
Tudo o que o art. 96, § 3º, da IN SRF nº. 390/04 faz, portanto, é esclarecer as conseqüências da equiparação efetuada diretamente pela própria Lei nº. 9.716/98.
Havendo a equiparação das operações de compra e venda de veículos com as operações de consignação, tem-se uma equiparação do próprio conceito de receita, que servirá de amparo para a determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, mediante aplicação dos coeficientes definidos.
Destarte, a aplicação dos coeficientes referentes à prestação de serviços se impõe, sob pena de adoção parcial de regime jurídico. Caso haja algum vício na IN 390, o vício inquina todo o ato normativo, não apenas o art. 96 §3º, pelo que o afastamento do § 2º, que permite a dedução dos custos de aquisição.
Quer dizer, a partir do momento em que a receita bruta oriunda da venda de veículos automotores passa a ser calculada nos moldes em que calculada a receita bruta advinda das operações de consignação, a aplicação do coeficiente para cálculo do lucro presumido referente a estas operações é medida que se impõe, também por força da interpretação sistemática da legislação.
Não se trata de uma equiparação arbitrária entre dois institutos para mera aplicação de coeficiente diverso, de forma a aumentar ilegitimamente a exação tributária. Longe disto. Tem-se, ao contrário a previsão de um “microrregime tributário” diferenciado.
Repise-se, o art. 5º da Lei nº. 9.716/98 determina a equiparação das operações de compra e venda com as de consignação, para fins tributários, do que decorre não só uma forma específica de determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL para as pessoas jurídicas que exerçam a atividade de compra e venda de veículos, forma esta assemelhada àquela utilizada pelas pessoas jurídicas prestadoras de serviços em geral, mas também no reenquadramento da referida atividade para os fins de aplicação do coeficiente.
A equiparação legal, como é efetuada entre as operações, exige tratamento especial para ambos os passos para a determinação do lucro presumido: o cálculo da receita e a aplicação do coeficiente, o que deve ser feito utilizando-se o modo previsto para a “atividade paradigma”.
Desta forma, como há uma alteração no regime relativo à base de cálculo, há conseqüente alteração no regime da alíquota aplicável, a fim de resguardar o tratamento isonômico entre as pessoas jurídicas: como a receita bruta, por este regime, é significadamente diminuída, o coeficiente aplicável é aumentado, a fim de aproximar a tributação pelo lucro presumido da tributação que resultaria da opção pelo lucro real, visto que o primeiro, apesar de ser simplificado, deve procurar sempre obter fidelidade ao regime do segundo, mesmo por exigência constitucional e do art. 43 do CTN.
Isso fica claro quando se percebe que a receita bruta, para as operações em análise, será apenas a diferença apurada entre as operações de compra e venda. No regime comum de apuração da receita, esta seria calculada pelo valor total auferido pela venda, e não pela diferença.
Em resumo: não havendo a equiparação com o regime das prestadoras de serviço (adotando-se, sempre, regime jurídico integral: ou o da IN 390, ou a afastando por inteiro): receita bruta “comum”, coeficiente de 8% para o IRPJ e 12% para a CSLL; havendo equiparação: receita bruta reduzida, coeficiente de 32% para o IRPJ e para a CSLL.
Neste caso, basta um simples cálculo matemático para demonstrar o equívoco. Tomemos um exemplo:
A empresa A adquiriu, num dado período, dois veículos por R$ 45.000 cada um e os revendeu por R$ 50.000 cada.
Desta forma, pela regra da IN, teríamos: 50.000 + 50.000 – (45.000 + 45.000) = 10.000 x 32% (coeficiente) = 3.200 (base de cálculo de CSLL e IRPJ). Aplicando-se as alíquotas (9% e 15%, respectivamente) tem-se o valor total gasto 288 + 480 = R$ 768.
Caso se aplique a regra geral, teríamos: base de cálculo da CSLL: 12% de 100.000 = 12.000, e base de cálculo do IRPJ 8% de 100.000 = 8.000. Aplicando-se as mesmas alíquotas, teríamos 1.080 (9% de 12.000) + 1.200 (15% de 8.000) = R$ 2.280.
Daí que a adoção, integral, do regime da IN 390, pela empresa A, resultaria em economia de R$ 1.512.
Apenas para esclarecer, caso a empresa A adotasse o regime híbrido, teríamos:
Receita bruta reduzida: 10.000 (como previsto na IN)
Coeficientes: 8% e 12% (sem aplicação da IN)
Resultado: base de cálculo da CSLL: 1.200 e base de cálculo do IRPJ 800 => total devido 108 + 120 = R$ 228.
Ou seja, tese firmada permitiria, sem qualquer amparo legal, economia de R$ 540 pela empresa A.
Ora, fica fácil perceber que insurgir-se contra a interpretação oficial da Lei que a Administração deixou consubstanciada no § 3º do art. 96 da IN 390/04, mas, convenientemente, deixando intacto o §2º, que traz o conceito reduzido de receita bruta para a atividade de compra e venda de veículos cuja norma já se encontrava prevista na IN 152/98, é aplicar um regime jurídico “pela metade”, sem qualquer fundamento, e como se de benefício fiscal se tratasse.
Conclusão
Por todo o exposto, percebe-se a higidez do “microrregime” tributário previsto pelo art. 96 da IN SRF nº. 390/04, que deve ser interpretado seu conjunto. Não só o instrumento que veicula a regra é apto a fazê-lo, como também o conteúdo da norma nada tem de antijurídico.
Não se pode admitir a paradoxal situação em que a apuração de uma base de cálculo reduzida com a aplicação de uma alíquota igualmente reduzida, o que cria benefício fiscal sem prévia permissão legal.
Informações Sobre o Autor
Marco Frattezi Gonçalves
Procurador da Fazenda Nacional