A filiação sócio-afetiva como hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 14, § 7º, CF/88

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Resumo: A afetividade nos tempos atuais configurou-se como um novo critério para a aferição da existência do vínculo parental, fundado no melhor interesse da criação e na dignidade da pessoa humana. Não há mais no direito a possibilidade da distinção dos filhos gerados na constância do casamento, fora dele, ou ainda por adoção. E é justamente na adoção que estão inseridas as modalidades de filiação baseadas no afeto, ainda que sem a tutela integral do direito. Essas novas configurações de entidades familiares geram efeitos não só no Direito Civil, como também em outros ramos do direito, como ó caso do Eleitoral. Assim, o presente artigo pretendeu discutir as implicações da filiação socioafetiva no direito eleitoral no que tange à inelegibilidade prevista pelo art. 14, § 7º, CF.


Palavras-chaves: Constituição FederalDireito Eleitoral – Filiação – Afeto – Inelegibilidade.


Sumário: Introdução. 1. Direitos Políticos. 1.1. Direitos Políticos Negativos. 1.1.1. Inelegibilidades. 1.1.1.1. Inelegibilidades Absolutas. 1.1.1.2. Inelegibilidades Relativas. 2. As hipóteses de inelegibilidade previstas no artigo 14, § 7º, CF/88. 3. Noções gerais de filiação. 4. A filiação no Direito Brasileiro. 4.1. O alcance do artigo 1.593 do Código Civil Brasileiro. 5. Socioafetividade. 6. A filiação sócioafetiva. 6.1. Posse do estado de filho. 6.2. Espécies de filiação sócioafetiva. 7. Os “filhos de criação”. 7.1. O reconhecimento dos “filhos de criação”. 8. A repercussão da filiação sócioafetiva no Direito Eleitoral. Conclusão. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO


Em razão dos novos paradigmas constitucionais, o instituto da filiação foi renovado ao tratar da afetividade como seu elemento principal, deixando em segundo plano o simples caráter biológico que sobrepujava todo seu fundamento.


Diante de tais inovações, surge para o direito eleitoral o fato da inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, CF/88 se restringir apenas à filiação constituída em cartório ou também por aquela determinada por sentença judicial.


Atrelada a este fato, aparece a questão se a filiação sócio-afetiva pode ser impedimento para a candidatura, bem como se a sentença que porventura impeça a candidatura pela filiação sócio-afetiva poderá servir como constituição de parentesco em linha reta descendente.


Em todas as situações previstas como causas de inelegibilidade previstas no artigo 14, § 7º de nossa Carta Magna, está presente, pelo menos em tese, forte vínculo afetivo, capaz de unir pessoas em torno de interesses políticos comuns. Por essa razão, sujeitam-se à regra constitucional do referido artigo.


O termo “adoção”, empregado pela Constituição no artigo supra citado, não revela verdadeiramente a realidade enfrentada pela família brasileira, visto que no Brasil a “adoção à brasileira” e a adoção de fato estão presentes no cotidiano da sociedade.


A adoção, em qualquer de suas formas, fundada, sobretudo, no amor, respeito e reciprocidade, não comporta distinção entre aquela realizada por meio do judiciário ou via registro civil, daquela fundada basicamente na afetividade entre adotando e adotante, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro enfatiza a família estabelecida à luz do princípio da afetividade, sendo inadmissível não se reconhecer juridicamente uma relação de afeto tão forte como é aquela que existe entre filhos e irmãos de criação.


O Direito deve ser analisado intersubjetivamente, não podendo desconsiderar que os efeitos da filiação por afeto são tão fortes quanto os da consangüínea, ou, em certos casos, até superam os efeitos desta última, sendo suficientemente capazes de criar entre os parentes sócio afetivos laços que girem em torno de um interesse político comum.


O fato do Direito Eleitoral ter buscado no Direito de Família elementos para corroborar seus julgamentos, torna de grande importância o assunto em questão, uma vez que o afeto como principal instrumento de ligação familiar é suficientemente forte para influenciar na teoria da inelegibilidade.


Torna-se necessário coibir qualquer forma de dominação política por parte de um mesmo grupo familiar, pois a história brasileira autoriza a presunção de que os componentes de uma mesma família, quando no poder, se organizam em torno dos mesmos interesses políticos e privados, o que não tem se mostrado benéfico ao país.


Necessita-se dessa forma, inserir no contexto do Direito Eleitoral as relações parentais fundadas na afetividade como forma de inelegibilidade, para que assim tais entidades familiares passem a ter um reconhecimento pleno frente ao Direito Brasileiro.


Analisar a possibilidade da filiação sócio-afetiva ser causa de inelegibilidade a cargo de Chefe do Executivo, diante da nova realidade da família brasileira regida pelos laços de afeto.


Pretende-se discutir no presente artigo, a necessidade do reconhecimento da filiação sócio-afetiva no campo do Direito Eleitoral, visto que, quando este busca no Direito de Família elementos para corroborar seus julgamentos, há que considerar-se o afeto com força suficiente para influenciar na teoria da inelegibilidade.


1. DIREITOS POLÍTÍCOS


Direitos Políticos são aqueles instrumentos oferecidos pela Carta Magna, que asseguram ao cidadão brasileiro o exercício da soberania popular atribuindo poderes ao mesmo para interferir na condução do Estado.


De acordo com Alexandre de Morais[1]:


“É o conjunto de regras que disciplinam as formas de atuação da soberania popular, conforme preleciona o caput do art. 14 da CF/88. São direitos políticos subjetivos que investem o individuo no status active civitatis, permitindo-lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da cidadania.”


Segundo Pimenta Bueno[2]:


“São prerrogativas, atributos, faculdades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país, intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a intensidade do gozo desses direitos. São o Jus Civitatis, os direitos cívicos, que se referem ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da autoridade nacional, a exercer o direito da vontade ou eleitor, o direito de deputado ou senador, a ocupar cargos políticos e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado.”


São direitos políticos, a nacionalidade e a cidadania, soberania popular, direito de sufrágio, capacidade eleitoral ativa, direito de voto, alistabilidade e elegibilidade.


A nacionalidade e a cidadania provêm da qualidade da pessoa que nasce no território brasileiro, ou seja, é o vínculo por nascimento ou naturalização. A nacionalidade é pressuposto à cidadania, uma vez que sem aquela impossível esta, visto que só o nacional brasileiro poderá ser cidadão brasileiro.


A soberania popular consiste no poder atribuído ao povo para elaborar sua Constituição através de seus representantes, para decidir que tipo de direito é valido para a coletividade, onde o poder emana do povo. Segundo José Junior Cretella é o “poder de um homem ou de uma coletividade que senhores, povo para decidir, enquanto ao futuro de um grupo, é por esses fatos senhores de todo ordenamento jurídico”.


O direito de sufrágio é a essência dos direitos políticos. É a capacidade de eleger e ser eleito, ou seja, capacidade eleitoral ativa, o direito de votar, e capacidade passiva,o direito de ser votado.


O sufrágio é universal quando o direito de votar é concedido a todos os nacionais independente de fixação de condições de nascimento, econômicas culturais e de outras condições especiais.[3]


A capacidade eleitoral ativa consiste na capacidade do cidadão em votar para escolher seus representantes em uma democracia representativa, de ser eleitor propriamente dito. Já a capacidade passiva consiste na capacidade que o cidadão tem de ser votado, de ser eleito.


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Direito de Voto é o exercício do direito de votar. O voto é direito intransferível, podendo somente ser exercido pelo titular. Em regra há a obrigatoriedade do voto para os maiores de 18 anos, salvo os maiores de 70 anos, além dos maiores de 16 e menores de 18. Entretanto estes últimos, uma vez alistados passam a possuir a obrigatoriedade de votar. A obrigatoriedade no entanto, se verifica apenas no de comparecer às urnas para votar, não sendo o cidadão obrigado a votar em algum candidato, uma vez que possui a faculdade de votar em branco ou até mesmo anular seu voto.


A alistabilidade é a aquisição dos direitos políticos que se faz mediante o alistamento eleitoral, obtida no juízo eleitoral do domicilio em que se esta fazendo o alistamento. Com isso, garante-se o direito de votar e ser votado desde que preencha os requisitos necessários constitucionais e as condições legais necessárias à inscrição como eleitor.


Por fim, a elegibilidade é a capacidade eleitoral passiva, dando ao cidadão determinados poderes políticos, mediante eleição popular, desde que se preencham determinados requisitos,


denominados condições de elegibilidade, que são: a nacionalidade brasileira ou condição de português equiparado, o pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicilio eleitoral na circunscrição e filiação partidária.


Há que ser preenchido ainda o requisito da idade mínima para ser eleito, conforme prevê o artigo 14, 14, § 3, VI, da Constituição, sendo de 35 anos para Presidente e Vice-Presidente da Republica e Senador, de 30 anos para Governador e Vice-Governador de Estado e Distrito Federal, de 21 anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice Prefeito e Juiz de paz, e de 18 anos para Vereador.


1.1. Direitos políticos Negativos


Os direitos políticos negativos são um conjunto de regras que privam definitivamente ou temporariamente o cidadão, que se da pela perda ou suspensão dos mesmos. Os direitos políticos negativos caracterizam-se em privações do cidadão no que tange à condução dos órgãos governamentais, devido à impedimentos.


Na definição de Alexandre de Moraes[4]:


“Os direitos políticos negativos correspondem às previsões constitucionais que restringem o acesso do cidadão à participação nos órgãos governamentais, por meio de impedimentos às candidaturas. […] A inelegibilidade consiste na ausência de capacidade eleitoral passiva, ou seja, da condição de ser candidato e, consequentemente, poder ser votado, constituindo-se, portanto, em condição obstativa ao exercício passivo da cidadania. Sua finalidade é proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influencia do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, conforme expressa previsão constitucional (art. 14, § 9, CF).”


1.1.1. Inelegibilidades


As inelegibilidades são impedimentos, situações que impedem determinada pessoa de ser candidata a um cargo eletivo, em razão de determinada circunstância. Em suma, observa-se a inelegibilidade diante da ausência da capacidade de ser elegível.


As inelegibilidades podem ser absolutas ou relativas.


1.1.1.1. Inelegibilidade Absoluta


As inelegibilidades absolutas consistem em impedimentos eleitorais para qualquer cargo eletivo, atingindo de forma total o direito do cidadão de ser eleito.


As inelegibilidades absolutas estão previstas no art. 14, § 6, CF, dispondo que são inelegíveis os inalistáveis (os estrangeiros e os conscritos) e os analfabetos. Além disso, mesmo possuindo capacidade para alistar-se eleitoralmente, os jovens entre 16 e 18 anos são absolutamente inelegíveis, pelo fato de não possuírem a idade mínima para concorrerem a qualquer cargo público.


1.1.1.2. Inelegibilidade Relativa


As inelegibilidades relativas consistem em restrições que impedem a eleição do cidadão para determinados cargos, em razão de circunstâncias ou motivos específicos.


Segundo Alexandre de Moraes[5]:


“As inelegibilidades relativas, não estão relacionadas com determinada característica pessoal daquele que pretende candidatar-se, mas constituem restrições à elegibilidade para certos pleitos eleitorais e determinados mandatos, em razão de situações especiais existentes, no momento da eleição, em relação ao cidadão. […]O relativamente inelegível possui elegibilidade genérica, porém, especificamente em relação a algum cargo ou função eletiva, no momento da eleição, não poderá candidatar-se.”


As inelegibilidades relativas estão previstas no art. 14, § 5 ao §9, CF.


A inelegibilidade relativa ocorrerá por motivos funcionais, por motivos de casamento, parentesco ou afinidade, em relação aos militares e por previsões de ordem legal.


A inelegibilidade relativa por motivo funcional impede que o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído nos seis meses anteriores ao pleito para os mesmos cargos, concorram ao mesmo cargo para um terceiro período subseqüente.


Da mesma forma, são relativamente inelegíveis, dentro do território de jurisdição do titular, o cônjuge, os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção quanto aos cargos de Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do DF ou de Prefeito. Aplica-se tal regra a quem tiver ocupado aqueles cargos em substituição nos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de cargo eletivo e candidato a reeleição.


Já os militares podem ser eleitos desde que atendidas as condições impostas pelo parágrafo 8º do artigo 14 da Constituição Federal, quais sejam:


– Se contar menos de 10 anos de serviço, deverá afastar-se da atividade;


– Se contar mais de 10 anos, será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato de diplomação, para a inatividade.


Por fim, o artigo 14, parágrafo 9º da Carta Magna, autorizou a edição de lei complementar para regular outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, com a finalidade de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato.


Dessa forma, a Lei Complementar 64/90, modificada pela Lei Complementar 81/94 disciplina tais casos de inelegibilidade.


3. NOÇÕES GERAIS DE FILIAÇÃO


A definição de filiação baseia-se fundamentalmente na relação de parentesco mais próxima existente. A filiação deve-se ao fato da união de uma pessoa àquelas que a geraram, bem como entre uma pessoa àquelas que lhe propiciaram carinho, amor e fraternidade, capazes de configurar uma relação apoiada no afeto, a denominada filiação sócioafetiva.


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A evolução pela qual a entidade familiar foi submetida, não mais comporta a filiação baseada apenas na filiação biológica.


De acordo com Silvio Venosa, “sob perspectiva ampla, a filiação compreende todas as relações, e respectivamente sua constituição, modificação e extinção, que têm como sujeitos os pais com relação aos filhos”.[6]


Nos tempos hodiernos, devidos aos avanços científicos e tecnológicos, mesmo sendo possível obter-se uma afirmação quanto à filiação do indivíduo, nem sempre tal fato é absoluto, visto que o legislador deve considerar não só a verdade biológica, mas também as implicações de ordem afetiva que prevalecem na filiação.


O Código Civil de 1916 trazia normas que ignoravam os filhos advindos de uma relação adúltera, deixando à margem situações sociais que já faziam parte do cenário da família brasileira.


Com o advento da Constituição Federal de 1988, profundas reformas foram inseridas no direito civil brasileiro, tais como a igualdade entre os filhos havidos no casamento, fora dele ou até mesmo por adoção.


Assim, o princípio da igualdade entre os filhos insculpido na Constituição Federal Brasileira faz com que mesmo aqueles filhos advindos de valoração sociológica e afetiva, equiparem-se àqueles oriundos do fator biológico.


4. A FILIAÇÃO NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO


A concepção do Código Civil de 1916, no que tange à filiação, fundou-se basicamente na idéia de filiação legítima, ilegítima ou adotiva.


 Segundo o Código de 1916, os filhos legítimos eram aqueles concebidos na constância do casamento, mesmo que anulado ou nulo, desde que contraído de boa-fé. Havia no entanto situações em que poderia haver a legitimação do filho, equiparando-o aos filhos legítimos.


Quanto aos filhos ilegítimos, eram aqueles que não possuíam os pais unidos através de laços matrimoniais, distinguindo-os dentre os ilegítimos como os naturais e os espúrios.


Os filhos ilegítimos naturais eram aqueles que se descenderam de pais entre os quais não havia nenhum impedimento matrimonial, no momento em que foram concebidos


Já os filhos ilegítimos espúrios seriam oriundos da união de homem e mulher entre os quais havia impedimento matrimonial, sendo assim espúrios, os adulterinos e os incestuosos.


A adoção para o ordenamento jurídico anterior e para o vigente é uma forma artificial de filiação que tem a intenção de igualar a filiação natural, sendo também conhecida como filiação civil, pois o seu resultado não é de uma relação biológica, mas de uma exteriorização de vontade .


No entanto, com o advento da Constituição Federal de 1988 tais terminologias foram abolidas de nosso ordenamento jurídico por força do parágrafo 6º do artigo 227 da Carta Magna, que dispõe:


Art. 227 – […]


§6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”


Além do mais, o princípio da igualdade, consagrado no art. 5º[7], CF/88, contribui significativamente para que essas classificações quanto à filiação fossem extirpadas do ordenamento jurídico brasileiro.


Dessa forma, em conformidade com a Constituição, o Código Civil de 2002 trouxe importantes inovações relativas à filiação.


Prova maior disto é o artigo 1.596[8] do Código Civil de 2002, que repete, na íntegra, o disposto no Art. 227, § 6o , da Cons­tituição da República de 1988, que, em preservação da dignidade da pes­soa humana, veda as desigualdades entre os filhos.


No magistério de Zeno Veloso[9]:


“A Lei Maior não tem preferidos, não elegeu prediletos, não admite distinção em razão de sexo, aboliu por completo a velha ditadura dos varões e acabou, definitivamente, com a disparidade entre os filhos, determinando a absoluta igualdade entre eles, proibindo, inclusive, os designativos que funcionavam como autêntica maldição.”


Na lição de Luiz Edson Fachin[10]:


“Esse preceito coroou uma longa e árdua evolução da sociedade e do di­reito, já que, durante muito tempo, filhos havidos fora do casamento não tinham os mesmos direitos dos oriundos de matrimônio civil, sendo ex­cluídos da “cidadania jurídica”, em favor de uma falsa harmonia nas relações matrimoniais.”


Assim, tornou-se vedada a classificação da filiação, feita no regime anterior, por ser discriminatória, assegurando à todos os filhos, independentemente de sua origem, os mesmos direitos.


Já o artigo 1.597 implementou inovações correlatas aos avanços científicos, visto que acresceu três hipóteses ao rol extraído do artigo 338 do Código anterior. Tais inovações referem-se aos incisos III, IV e V, que tratam dos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que haja prévia autorização do marido.


Outra mudança extremamente relevante foi inserida pelo artigo 1.593, que será discutido a seguir.


4.1. O alcance do artigo 1.593 do Código Civil


Diz o artigo 1.593 do Código Civil que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consaguinidade ou de outra origem.


A expressão “ou outra origem” caracteriza-se como sendo de conteúdo jurídico indeterminado, oferecendo ao intérprete o desafio de definir seu alcance.


Ao ser acrescido a expressão “ou outra origem” ao termo “adoção” previamente utilizado, pretendeu-se que essa nova redação tivesse uma abrangência maior que a adoção em si, visando alcançar também os filhos da reprodução heteróloga, os filhos de criação, entre outros.


Notório é que a afetividade afirmou-se hoje como o paradigma que orienta todas as questões do Direito de Família.


Nesse sentido, é coerente dizer que a idéia de afetividade deve estar presente na expressão “outra origem” do artigo 1.593 do Código Civil. Cabe ao Magistrado, concretizar essa norma, com fundamento nos princípios constitucionais e nos valores sociais da sociedade.


A doutrina tem contribuído muito bem para a elucidação da mens legis do art. 1.593, no que pertine ao alcance da idéia de parentesco. 


Paulo Luiz Netto Lôbo[11] entende que constituem parentescos de ‘outra origem’ os parentescos por afinidade e por adoção”.


Para Sílvio Rodrigues[12]:


Pelo artigo 1.593, será natural o parentesco consangüíneo ou de outra origem, assim acrescentado no texto “quando da redação final elaborada pela Câmara dos Deputados, para contemplar a situação da inseminação artificial, em que o próprio Código também considera a paternidade presumida, com resultado.”


Idêntico à filiação consangüínea(art. 1.597).


Em comentários ao referido artigo, em obra coordenada por Heloísa Maria Daltro Leite, depara-se com a conclusão que:


“Tem-se, assim, no art. 1.593 do novo Código Civil, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar.”[13]


5. SOCIOAFETIVIDADE


A modificação de paradigmas que originou a Constituição Federal de 1988, bem como dos vários fenômenos apontados pela doutrina que refletem significativamente no Direito de Família, entre eles a publicização do Direito Privado, a constitucionalização do Direito Civil, bem como o fenômeno da repersonalização das relações familiares, permitiram que a afetividade fosse inserida nas discussões doutrinárias acerca da família contemporânea.


 Foi justamente esse vínculo emocional que contribuiu para a distinção do que deve ser tutelado pelo direito das obrigações, cujo núcleo é a vontade, daquilo que deve ser tutelado pelo direito de família.


Isso fez com que a socioafetividade tornasse um das principais características da família atual, se apresentando nas relações familiares onde o amor é cultivado cotidianamente. A partir de tal contexto, é que se funda a família atual, permitindo o surgimento do Principio Jurídico da Afetividade, que decorrendo de outros Princípios Constitucionais, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é considerado princípio implícito.


Segundo Paulo Luiz Netto Lobo[14]:


“Encontram-se na Constituição Federal brasileira algumas referências, cuja interpretação sistemática conduz ao princípio da afetividade, constitutivo dessa aguda evolução social da família, especialmente:


a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º)[15]; b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º)[16];


c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º)[17] [18];


d) o casal é livre para extinguir o casamento ou a união estável, sempre que a afetividade desapareça” (art. 226, §§ 3º e 6º).


Devido ao fato da afetividade ser uma construção cultural retirada do mundo fático e, por não apresentar significado certo e determinado, é que o Princípio da Afetividade, como todos os outros princípios, devem ser determinados pelo aplicador do Direito ao caso concreto.


6. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA


A filiação socioafetiva baseia-se na idéia de qualidade de filho, onde os elementos formadores da relação paterno-filial são construídos através dos laços do amor visando a felicidade dentro da família.


A filiação socioafetiva pode ocorrer em diversas situações, podendo inclusive comungar do mesmo liame da paternidade biológica e registral ao mesmo tempo, o que seria o ideal, afastando então o entendimento de que a adoção é a única espécie de família afetiva, incluindo-se também a adoção “à brasileira” e o “filho de criação”.


Segundo Belmiro Pedro Welter[19]:


“A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção, denominado filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e


sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu.”


Nos ensinamentos de José Bernardo Ramos Boeira[20]:


“A verdadeira paternidade passou a ser vista como uma relação psicoafetiva, existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas sobbretudo afeto, amor, dedicação e abrigo assistencial reveladores de uma convivência paterno-filial, que, por si só, é capaz de justificar e identificar a verdadeira paternidade.”


Segundo ensinamento de Luiz Edson Fachin, “o que determina a verdadeira filiação não é a descendência genética, e sim os laços de afeto que são construídos, em especial na adoção”.


Assim também entende Rolf Madaleno[21]:


“Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição.”


A paternidade socioafetiva se fundamenta na distinção entre pai e genitor e no direito ao reconhecimento da filiação, já que entende por pai aquele que desempenha o papel protetor, educador e emocional.


Portanto, juntamente com os critérios jurídico e biológico, a socioafetividade se tornou um novo critério para a definição da filiação.


6.1. Posse do estado de filho.


O instituto da posse de estado de filho surge diante da necessidade de se buscar efetivos meios probatórios da paternidade socioafetiva. A posse de estado de filho é a exteriorização à sociedade do laço paterno-filial, independentemente se há ou não vínculo biológico. É a aparência dos papéis sociais de pais e filho através da afetividade.


Nas palavras de José Bernardo Boeira Ramos[22]:


“Entende-se a posse de estado de filho como sendo “uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.”


Sua importância é maior quando ocorrem conflitos entre as paternidades biológica, registral e socioafetiva.


Neste sentido, contrabalançando a verdade biológica e a sócio-afetiva, é que surge o instituto da posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, o caráter sociológico da filiação


Assim, a doutrina estabeleceu alguns elementos principais que caracterizam a posse de estado de filho.[23]


Os elementos que podem constituir o instituto da posse de estado de filho são determinados pela doutrina como sendo o nome (“nomem”), o trato (“tractatus”) e a fama (“fama”)[24]. No entanto, como bem ensina o professor Luiz Edson Fachin, “é sabido que estes são os principais dados formadores daquele conceito, mas nem a doutrina nem o legislador se arriscam em dar um rol completo ou definição acabada dos fatos aptos a constituí-lo”.[25]


Rosana Fachin[26], na obra Direito de Família e o Novo Código Civil, ao tratar do tema, leciona que:


“Essa visão formal concernente às provas da filiação convive à margem no novo texto com a possibilidade de se aferir a paternidade socioafetiva, para a qual a posse do estado de filho se funda na nominatio (pelo apelido de família), no tractus (designativo no tratamento de pai e filho), e na reputatio (aparência social da relação paterno-filial).”


São eles o nome (nomen ou nominatio), o trato (tractus), e a fama (fama ou reputatio).


O primeiro elemento caracteriza pelo uso do nome da família do pai afetivo por seu pretenso filho, ou seja, é a atribuição do nome do pai ao filho. É a utilização perante terceiros do nome de família daquele que considera seu pai, o que faz supor a existência do laço de filiação.


Entretanto, tal elemento, segundo a doutrina, não tem o status de essencial para a configuração da posse de estado de filho, visto que, muitas vezes, a informalidade dessa condição faça com que o filho não utilize o nome de seu pai. Assim, estando caracterizados os outros dois elementos, quais sejam, o trato e a fama, a posse de estado de filho configurar-se-á.


O trato corresponde aos atos que expressam a vontade de tratar a criança como a trataria um pai, através da criação, educação, convivência e afetividade, comuns aos pais no tocante aos filhos.


Importante salientar que não se torna necessário a assistência material e afetiva cumulativamente, uma vez que o pai pode não ter condições de prestar a assistência financeira, ou que o filho não necessite.


Ademais, indispensável também não é o chamamento de pai ou filho, visto que a valorização deve fundar-se no amor, na educação e tudo mais que um pai dispensa a um filho.


 Já a fama é a exteriorização desse estado da pessoa para o público, isto é, a sociedade deve reconhecer a pessoa como sendo filha daquela. É a expressão da publicidade desta relação à sociedade. Tal situação no entanto não pode ser reconhecida por suposições ou afirmações duvidosas.


 A posse de estado de filho ainda não foi expressamente reconhecida como elemento constitutivo da filiação, podendo ser considerada implícita no art. 1.605 do Código Civil, que dispõe ser possível provar-se a filiação “quando houver começo de prova por escrito” ou “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.


Em novembro de 2004, civilistas de todo o país, reuniram-se no auditório do STJ para estudo do atual Código Civil e, ao final do encontro, emitiram enunciados, dentre os quais um referente ao artigo 1593, de autoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos (TJ-RS), com a seguinte redação: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” 


6.2. Espécies de filiação socioafetiva.


Várias situações podem englobar a filiação socioafetiva, podendo até mesmo se originar do mesmo liame da paternidade biológica e registral, inclusive ao mesmo tempo.


Tal concepção afasta a idéia de que a adoção é a única espécie de família afetiva, incluindo-se neste caso também a adoção “à brasileira” e o “filho de criação”.


A adoção judicial é um ato jurídico, de vontade, de amor e de solidariedade. Trata-se de um ato solene, sendo exigidos alguns requisitos, tais como a diferença mínima de idade entre o adotante e o adotado, a efetivação por maior de 18 anos, entre outros.


Por se tratar de ato solene, a adoção deve se efetivar por meio de escritura pública, no caso do adotado ser capaz, ou por sentença judicial, nas adoções de incapazes.


Já adoção “à brasileira”, por ser um fenômeno comum em nosso país, foi assim denominado pela jurisprudência pátria. Consiste no registro da criança diretamente em nome dos pais afetivos, sem as devidas formalidades legais, como se filhos daqueles fosse.


A adoção quando apenas um dos pais não tem legitimidade para fazer o registro, como é o caso do companheiro da mãe biológica que conscientemente registra a criança como se fosse também seu filho biológico, é considerada como adoção “à brasileira”


Mesmo constituindo-se em crime, previsto pelo art. 242[27] do Código Penal, a maioria da doutrina e da jurisprudência vê essas adoções como “informais” e não com o estigma de “ilegais”, justamente pela quantidade desses casos, e também para preservar uma situação de fato vantajosa para o filho, muito mais do que pelo “motivo nobre” que pudesse ter existido, a justificar a isenção da pena.[28]


Portanto, dúvidas não restam que a adoção “à brasileira” vem sendo admitida em nosso ordenamento jurídico.


7. OS “FILHOS DE CRIAÇÃO”.


Denomina-se “filhos de criação” como sendo aqueles que se submetem a uma guarda de fato, ligando-se à família simplesmente por uma relação afetiva. São aqueles indivíduos que apesar de serem tratados como filhos pela família, não possuem qualquer vínculo biológico ou registral.


Acerca do tema, Belmiro Pedro Welter[29]:


“A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção, denominado filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu.”


Da mesma forma Adalgisa Chaves designa os filhos de criação como ocorrendo nos casos em que alguém adota informalmente outrem, passando-o a tratá-lo como filho e apresentá-lo em sociedade como tal, embora não tenha sido providenciada a regularização do vínculo.[30]


Neste mesmo sentido, Maria Berenice Dias[31] disciplinou brevemente o assunto, apresentando inclusive críticas à expressão “filho de criação”:


“A partir do momento em que passou a vigorar o principio da proteção integral, a filiação não merece designações discriminatórias. A palavra filho não admite qualquer adjetivação. […] A pejorativa complementação ‘de criação’ está mais que na hora de ser abolida.” (DIAS, 2006 p. 398)


A expressão “filho de criação” apesar de soar com certo tom discriminatório, tem o condão de mostrar seus contornos, sendo assim utilizado popularmente, bem como pala jurisprudência e doutrina.


Outros termos como adoção de fato, adoção tácita ou guarda de fato, vêm sendo empregados por alguns autores.


Essa ligação entre o “filho de criação” e seus pais se origina sempre pela socioafetividade, possuindo em certos casos, efeitos mais verdadeiros e concretos que a ligação biológica.


Assim, não se deve levar em consideração o motivo pelo qual esse filho foi acolhido pela família, pois o que realmente importa é a reciprocidade do afeto na relação de filiação.


7.1. O reconhecimento dos “filhos de criação”.


Apesar de nossa legislação civil ter sido há pouco tempo reformulada, acrescida ao fato da figura do “filho de criação” ter grande ocorrência em nossa sociedade, tal relação carece de uma tutela capaz de assegurar-lhe garantias jurídicas mais concretas.


Assim, diante da inexistência explícita de uma proteção à figura dos “filhos de criação”, cada ato que necessitam praticar causa-lhes grande insegurança jurídica.


Fundamentos para que o reconhecimento dos direitos desses filhos sejam efetivados não faltam, tanto os de ordem legal quanto os de ordem principiológica, jurisprudencial e doutrinária.


Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade na filiação, insculpidos no art. 1º, inc. III[32] e art. 227, § 6º[33], respectivamente, fornecem embasamento legal para esses filhos marginalizados perante o direito tenham essa situação reconhecida. O reconhecimento assegurar-lhes-iam todos os direitos pessoais e patrimoniais atinentes à qualquer filho registral.


 Além de tal relação ser amparada por diversos princípios constitucionais, diversos outros fundamentos infraconstitucionais também a tutelam.


O artigo 1.593 do Código Civil dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra origem”.


A expressão “outras origens” criou a possibilidade de se construir um conceito jurídico de filiação em sentido amplo, tornando possível o enquadramento da paternidade afetiva nessa brecha deixada pelo legislador.


Ainda nesse diapasão, Belmiro Welter[34] afirma:


“Ser possível fundamentar a paternidade afetiva também no artigo 1596, que ratifica a igualdade constitucional prevista para a filiação; art. 1.597, V, que aceita a paternidade simplesmente sociológica nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga; restando ainda a hipótese prevista no art. 1.605, II, no que diz respeito à prova da filiação derivada da posse de estado de filho afetivo.”


Ademais, o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil determina que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.


Cediço é que a situação dos “filhos de criação” é prática mais que comum na sociedade brasileira, permitindo assim, diante da omissão da lei, decisões fundadas nesse costume.


Importante ressaltar também que os filhos de criação já tem alguns direitos expressamente reconhecidos, segundo o entendimento do Tribunal de Contas da União, que considerou a guarda de fato para fins previdenciários, ao tratar da pensão militar, na súmula 116[35].


Assim, a ação de investigação de paternidade seria uma possibilidade do filho pleitear judicialmente seu reconhecimento, fundando-se a prova na posse de estado de filho, através da afetividade.


Para Belmiro Welter[36], “é cabível a propositura de uma ação de investigação de paternidade/maternidade em que a causa de pedir seja a filiação afetiva, sendo desnecessária qualquer legislação infraconstitucional para seu ajuizamento”.


Diante da necessidade de regular essa situação, a jurisprudência começa a se posicionar no sentido de reconhecer os “filhos de criação”, através de diversos tipos de ação propostas sendo pioneiros os seguintes julgados:


“AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO.APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70008795775 COMARCA DE PORTO ALEGRE”


“APELAÇÃO CRIME – FURTO – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – DELITO PATRIMONIAL – ESCUSA ABSOLUTÓRIA – FILHA “DE CRIAÇÃO” – FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA – PARENTESCO CIVIL CARACTERIZADO – EXEGESE DOS ARTS. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL, 181, II DO CÓDIGO PENAL E 227, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – EXCLUSÃO DA PUNIBILIDADE SOMENTE DA RÉ (ART. 183 DO CP) – INEXISTÊNCIA DE RECURSO DA ACUSAÇÃO – SÚMULA 146 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PENA INFERIOR A UM ANO – PRESCRIÇÃO – INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 109, VI E 110, § 1º DO CÓDIGO PENAL – DECURSO DE LAPSO TEMPORAL SUPERIOR A DOIS ANOS ENTRE A DATA DA PRÁTICA DO DELITO E A DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA – PRESCRIÇÃO RETROATIVA – EXCLUSÃO E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DA RÉ E DO RÉU, RESPECTIVAMENTE – RECURSO PREJUDICADO. . Tribunal de Justiça do Estado do Paraná APELAÇÃO CRIME nº 342.796-7, DA COMARCA DE ARAPONGAS – VARA CRIMINAL E ANEXOS.”


8. A REPERCUSSÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO DIREITO ELEITORAL.


É notório que a afetividade afirmou-se como o paradigma do amor autêntico que orienta grande parte das questões no direito de família.


No entanto, questão da socioafetividade não se limita apenas ao direito de família, estando presente em outros ramos do direito.


A Constituição Federal determina em seu art. 14, § 7º, que “são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.


Em julgamento feito pelo TRE do Maranhão, foi levantada a inelegibilidade de uma candidata que era irmã de criação do atual prefeito de um município, em seu segundo mandato. Na instrução de tal recurso, restou provado que a candidata tinha a fama e o tratamento de filha de criação dos pais do prefeito.


Apesar das inúmeras provas que apontavam a candidata como sendo irmã de criação do prefeito em exercício de um segundo mandato, o Tribunal descaracterizou a inelegibilidade pleiteada.


Eis a ementa do acórdão nº 5.593, de 02/09/2004, proferido pelo Re. Juiz Carlos Madeira:


Eleições 2004. Recurso inominado. Adoção de fato. Inelegibilidade. Descaracterização. Recurso conhecido e desprovido.– Adoção meramente de fato não rende ensejo à inelegibilidade de que trata o art. 14, § 7º, da CF.– Recurso conhecido e desprovido.”


 Neste mesmo sentido, o Tribunal Superior Eleitoral já havia se manifestado no que tange à adoção de fato, rejeitando a ocorrência da inelegibilidade, em acórdão que teve a seguinte ementa:


“ACÓRDÃO N° 13.068 (11.3.97) RECURSO ESPECIAL ELEITORAL N° 13.068 – PIAUÍ (62 Zona – Santo Antônio de Lisboa). Relator: Ministro limar Galvão. Recorrente: Diretório Municipal do PSDB. Advogados: Drs. Erivan José da Silva e outro. Recorrente: Paulo José da Luz, candidato a Prefeito pela Coligação “Para Recuperação do Município”. Advogado: Dr. Erivan José da Silva. Recorrido: Diretório Regional do PTB, por seu Delegado. Recorrida: Luzanete Rodrigues da Silva, candidata a Prefeita. Advogados: Drs. Macário Galdino de Oliveira e outros. REGISTRO DE CANDIDATURA. PARENTESCO. ADOÇÃO. A adoção meramente de fato não enseja a inelegibilidade prevista no art. 14, § 7°, da Constituição Federal. Recurso não conhecido.”


Em razão da impossibilidade de se investigar a paternidade em sede de recurso eleitoral, o parentesco socioafetivo seria o meio mais hábil para se comprovar a filiação.


Como enfatiza a desembargadora Maria Berenice Dias[37], “em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado, a prova mais exuberante e convincente do vínculo parental”.


Outro fator que poderá contribuir para a consolidação da inelegibilidade pautada na afetividade é a Súmula nº 7, do TSE, pois preceitua que “é inelegível para o cargo de prefeito a irmã da concubina do atual titular do mandato”, sendo posteriormente revogada pela Resolução nº 20.920/TSE.


 Analogicamente, o mesmo argumento adotado pelo TSE ao elaborar tal Súmula, poderá ser empregado para o reconhecimento da inelegibilidade do irmão de criação.


Isto porque, em votações recentes[38], a Súmula nº 7 TSE praticamente repristinou a Súmula nº 7, após a vigência do novo Código Civil, que trouxe a previsão legal (art. 1.595) para sustentar a incidência que antes não havia, pois o código anterior não reconhecia a união estável.[39]


Precedente maior para o reconhecimento da adoção de fato como causa de inelegibilidade foi aberto TSE, por meio do acordão nº 24.564[40], onde este tribunal reconheceu a existência de união estável numa relação homoafetiva, submetendo-os à regra da inelegibilidade do art. 14, § 7º, CF.


CONCLUSÃO


Durante muitos anos prevaleceu no Direito Brasileiro a distinção entre os filhos havidos no casamento ou fora dele.


 No entanto, com o advento da Constituição Federal de 1988, extirpou-se do ordenamento jurídico brasileiro essa distinção, assegurando igualdade de direitos aos filhos havidos no casamento, fora dele, ou ainda por adoção.


Dessa forma, amparado pelo princípio da igualdade entre os filhos, o legislador permitiu que aqueles filhos oriundos de uma relação social e afetiva, por meio da adoção, se igualassem àqueles que possuíam um liame biológico com os pais.


Entretanto, tal vedação à distinção entre os filhos não solucionou completamente o problema, visto que a intenção do legislador ao se referir à adoção, foi tratar apenas daquela filiação registral, obtida por meio do judiciário.


 Regulou-se assim apenas aquelas situações já reconhecidas pelo direito, uma vez que a adoção é apenas uma espécie de família adotiva, deixando à margem da lei os casos de adoção “à brasileira” e do “filho de criação”.


Não se pode desconsiderar os efeitos culturais da filiação socioafetiva, uma vez que são tão fortes, ou em certos casos até superiores, aos da filiação biológica.


E é justamente pelo fato do Direito ser intersubjetivo, que surge a necessidade do reconhecimento da filiação socioafetiva como forma de adoção, tornando essa tipo de filiação como uma das causas de inelegibilidade previstas pela Constituição Brasileira, assim como já vem ocorrendo com a união estável, e até mesmo a união homoafetiva, que são consideradas pelo Tribunal Superior Eleitoral como hipóteses para a inelegibilidade de um cidadão.


Diante do exposto, conclui-se que o reconhecimento das filiações socioafetivas necessitam ser inseridas no contexto do Direito Eleitoral para que se possa coibir qualquer forma de dominação política por parte de um mesmo grupo familiar, visto que buscam os mesmos interesses políticos.


Assim, tal medida contribuirá para que tais entidades familiares passem a ter um reconhecimento pleno frente ao Direito Brasileiro.


 


Referências bilbliográficas

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de família. 3.ed.São Paulo: Atlas, 2003.

 

Notas:

[1] MORAES, Alexandre de. 2006, p. 207.

[2] BUENO, Pimenta. 1958, p. 128.

[3] Idem, 2006, p.207.

[4] Idem, 2006, p.207.

[5] Ibidem,2006, p.216

[6] Venosa, Sílvio de Salvo. 2003, p.264.

[7] Art. 5º, caput, CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[8] Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

[9] VELOSO, Zeno. 1997, p.87.

[10] FACHIN, Luiz Edson. 1999, p. 15.

[11] Lôbo, Paulo Luiz Netto. 2003, p. 265.

[12] Rodrigues, Sílvio. 2002, p.318.

[13] Amin, Andréa Rodrigues [et. Al]. 2002

[14] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas, 2006.

[15] Art. 227, § 6º, CF: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

[16] Art. 227, § 5º, CF: “A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte dos estrangeiros”.

[17] Art. 226, § 3º, CF: Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

[18] Art. 226, § 4º, CF: Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 

[19] WELTER, Belmiro Pedro, 2007, p. 4-5

[20] BOEIRA, José Bernardo Ramos, 1999, p. 53

[21] MADALENO, Rolf. In: Revista Brasileira de direito de família,n23, p.22.

[22] Idem, 1999, p. 60.

[23] FACHIN, Luiz Edson. 1996, p. 65.

[24] Idem, 1996, p. 126.

[25] FACHIN, Luiz Edson. 1992, p. 156.

[26] FACHIN, Rosana. 2002, p. 118-119.

[27] Art. 242 – Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Parágrafo único – Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, podendo “o juiz deixar de aplicar a pena”. 

[28] ROCHA, Maria Isabel de Matos. 2006 p. 15

[29] WELTER, Belmiro Pedro. 2007, p. 4-5

[30] CHAVES, Adalgisa Wiedemann. 2005 p. 151 

[31] DIAS, Maria Berenice. 2006 p. 398. 

[32] Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito

Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana;

[33] Art. 227, § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

[34] WELTER, Belmiro. 2003, p. 161.

[35] SÚMULA 116: Ainda que não instituídas como beneficiárias, equipara-se a mãe de criação à mãe adotiva, bem como a filha de criação à filha adotiva, para feito de lhes ser assegurada a pensão militar prevista na Lei nº 3.765, de 04/05/60, desde que comprovadas nos autos essas qualificações e não haja herdeiros prioritários

[36] Idem, p. 160.

[37] DIAS, Maria Berenice. 2005, p.342.

[38] É inelegível o irmão ou irmã daquele ou daquela que mantêm união estável com o prefeito ou prefeita(Res. Nº 21.376, de 1.4.2003 – Rel. Min. Carlos Madeira).

[39] SOUSA, Lourival de Jesus Serejo Sousa. 2008, p. 2.

[40] Acórdão nº 24.564/TSE: Registro de candidato. Candidata ao cargo de prefeito. Relação estável homossexual com a prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. Art. 14, § 7º, da Constituição Federal.

Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art.14, § 7º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento.(Respe.24.564. Rel. Min. Gilmar Mendes) 


Informações Sobre o Autor

Guilherme Ribeiro Teixeira

Acadêmico de Direito de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos(Unipac)-Ubá.


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