A legalidade do aborto de anencéfalos sob o prisma da hermenêutica

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“(…) filosofar consiste,
talvez, em tomar consciência do tempo que somos e discernirmos se fazemos
apenas ciência (nos atendo à letra) ou se filosofamos (se lemos a vida em seu
supra-senso); afinal de contas, sabemos o quanto fica, sempre, de ‘não-dito quando
se diz algo’” (Luiz Rohden)

Resumo

O presente estudo
objetiva demonstrar as diversas respostas sobre a questão da legalidade do
abortamento de fetos portadores de anencefalia decorrentes da adoção de
diferentes métodos hermenêuticos. Para tanto, após a análise do conceito de
anencefalia, é feita uma abordagem sobre as duas formas interpretativas e
colacionados nos quais se observa a aplicação da Hermenêutica Metodológica e da
Filosófica.

Sumário: 1. Introdução; 2. Da anencefalia; 3. Das
hipóteses legais de aborto; 4. Da Hermenêutica Metodológica; 5. Da Hermenêutica
Filosófica; 6. Conclusão.

1 – Introdução

Diante da iminência de
ser prolatada decisão pelo Supremo Tribunal Federal – STF na Argüição de
Descumprimento de receito Fundamental – ADPF n° 54-8/DF acerca da possibilidade
da prática legal de aborto de fetos anencefálicos, torna-se ainda mais
importante a reflexão sobre as várias interpretações que podem ser deduzidas do
texto do art. 128 do Código Penal – CP.

O presente estudo visa justamente
demonstrar que várias respostas podem ser deduzidas para a questão: “O
ordenamento jurídico brasileiro permite a prática de aborto de fetos
anencefálicos? Ou a conduta será punida pelo Estado-Juiz, eis que tipificada
pelo Diploma Repressivo?”[1].
Tais respostas derivam, justamente, do tipo de interpretação levada a cabo pelo
intérprete.

Assim, serão analisadas as respostas
dadas pela Hermenêutica Metodológica e pela Hermenêutica Filosófica, emergindo
ao leitor, desta análise, a possibilidade de, com consciência, realizar a
escolha, inclusive em outros temas com os quais se deparar, sobre o método
utilizado para interpretar o texto legal.

2 – Da anencefalia

Primeiramente, a fim de
que se tenha domínio sobre o tema estudado, mostra-se indispensável a definição
do que é a anencefalia[2].

Trata-se de uma má-formação
congênita que ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, quando
o tubo neural (estrutura fetal precursora do sistema nervoso central) sofre um
defeito em seu fechamento.

Tal defeito não pode ser ligado a
causas específicas, sendo certo que vários eventos podem ocasioná-lo. Dentre
eles podemos citar a deficiência de vitaminas do complexo B, em especial o
ácido fólico, a ingestão de álcool, o tabagismo, questões genéticas e, até
mesmo, a submissão da gestante a altas temperaturas[3].

Deste defeito resulta que a
estrutura encefálica é inexistente ou, caso existente, é amorfa, estando solta
no líquido amniótico ou deste separada por uma membrana. Não há, portanto, a
formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral (que constituem a
estrutura cerebral).

Quanto ao tronco cerebral (estrutura
responsável pela respiração), por ser a estrutura encefálica mais interna, é
possível que não apresente lesões, embora seja muito comum que as apresente.

Percebe-se, assim, que a anencefalia
é uma má-formação que diz com a lesão de parte do encéfalo – a sua parte mais
importante –, qual seja, o cérebro, não sendo possível observar nos fetos
portadores desta anomalia qualquer sinal de “consciência, cognição, vida
relacional, comunicação, afetividade e emotividade”[4].

Seu diagnóstico poderá ser feito, de
forma inequívoca, já a partir do terceiro mês de gestação, utilizando-se, para
tanto, de simples ultra-sonografia, eis que a estrutura craniana do feto
portador desta má-formação é inconfundível: ela não possui o formato
oval/circular, mas tem profunda depressão na parte superior.

Outrossim, poderá ser usado o exame
de sangue para seu diagnóstico, eis que gestações destes fetos geram um
significativo aumento de alfa-fetoproteínas no sangue materno.

Quanto à incidência desta
má-formação, é difícil precisar com que freqüência ocorre, eis que muitas vezes
o abortamento ocorre espontaneamente, não chegando aos órgãos responsáveis
pelas estatísticas a informação desta gravidez.

Entretanto, números existentes
apontam a incidência de 0,6 portadores de anencefalia para cada mil fetos
nascidos vivos[5], sendo o
Brasil o quarto país no mundo com o maior número de incidência de fetos
anencefálicos, ficando atrás apenas de México, Chile e Paraguai[6].

3 – Das hipóteses legais de
aborto

O art. 128 do CP prevê duas
hipóteses nas quais a interrupção da gestação ou aborto não sofrerá punição.
Uma das hipóteses é o aborto necessário, quando não há outra forma de
salvar a vida da gestante, ou seja, quando a continuidade da gestação levará,
sem sombra de dúvidas, à morte da gestante.

A segunda hipótese prevista no
referido artigo é o aborto humanitário ou sentimental. Neste
caso, não se pune a interrupção da gravidez decorrente de estupro, sendo
requisito indispensável que a gestante consinta com a prática abortiva.

Nota-se que, se a interrupção da
gestação for embasada em qualquer outro fundamento, a conduta será tida por
ilícita, sofrendo o agente a incidência da pena cominada pelos arts. 124 a 126
do CP[7].

Do que acima foi dito resulta que
não haverá discussão quanto à legalidade do abortamento de anencéfalos se a
gestação puder ser enquadrada nas hipóteses literalmente previstas no CP de
inaplicabilidade da pena.

Entretanto, em não sendo possível
tal enquadramento, restará a necessidade de se definir se aquele que pratica o
abortamento de fetos com esta característica restará submetido à incidência da
norma incriminadora ou poderá, a exemplo dos demais casos, ser beneficiado,
tendo sua conduta como permitida.

Esta definição será encontrada
através das duas hipóteses de interpretação às quais este trabalho se dispôs a
analisar.

4 –
Da hermenêutica metodológica

Primeiramente, é importante que
sejam feitas algumas observações acerca da Hermenêutica para, somente após
definidas algumas regras ligadas a este método de interpretação, podermos
diferenciar a Metodológica da Filosófica, demonstrando as diferentes
interpretações que delas exsurgem.

O método hermenêutico caracteriza-se
pela circularidade, por um vai e vem entre o todo e as suas partes, pois
considera que somente assim se conseguirá chegar a uma compreensão do objeto a
ser interpretado. Explica-se.

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Para que seja possível alcançar a
compreensão do objeto é indispensável que o intérprete tenha a pré-compreensão
do objeto ou de algo a ele relacionado, já que, sem tal conhecimento prévio,
não se poderia começar o jogo da circularidade.

Vejamos o que foi dito acerca do
método hermenêutico:

“Para se compreender um texto,
deve-se aplicar a arte da interpretação, ou seja, ‘é preciso colocar-se na
posição do autor, e isso tanto do lado objetivo quanto do subjetivo’. Ora, o
lado objetivo é obtido através do conhecimento da ‘língua tal como o autor a
possuiu’, e, subjetivamente, trata-se de obter o conhecimento ‘de sua vida
interior e exterior’. Segue daí que ‘ambas as coisas só podem adquirir-se
completamente através da própria interpretação. Pois apenas por meio dos
escritos de alguém se pode conhecer seu vocabulário, bem como seu caráter e
suas circunstâncias’. (Assim,) ‘o vocabulário e a história da época de um autor
funcionam como a totalidade a partir da qual seus escritos devem ser
compreendidos como algo particular e vice-versa”[8].

Disso resulta que a interpretação de
um texto não pode ser feito de uma única vez: a cada nova leitura se compreende
um pouco mais do texto a ser interpretado, já que os conhecimentos necessários
para uma perfeita compreensão vão sendo por nós incorporados.

Assim, “o conhecimento completo
sempre se dá nesse círculo aparente, de maneira que cada particular tão-só pode
ser compreendido a partir do universal do qual ele é uma parte, e vice-versa. E
todo o saber só é científico ao ser formado desta maneira”[9].

Demonstrada, portanto, a
circularidade do método hermenêutico, passemos à análise da Hermenêutica
Medológica.

Também conhecida como
Hermenêutica Epistemológica, a Hermenêutica Metodológica, criada por
Schleiermacher e Dilthey, é aquela que busca conhecer o objeto de estudo
através de uma análise distanciada que objetiva a neutralidade frente a este
objeto.

Guia-se por um entendimento
dualista, fazendo a cisão entre o objeto de estudo e o sujeito que o
interpreta, e se sustenta sob um ponto de vista cartesiano, segundo o qual as
sensações sentidas pelo sujeito que interpreta não são consideradas para a
interpretação, sendo vistas como meras opiniões.

Desconsiderando a análise pessoal do
indivíduo, ela faz com que a análise do jogo da circularidade fique restrita
somente entre o objeto e o seu autor, não sendo possível qualquer outra
ingerência externa. É, portanto, um método objetivo de interpretação.

Outrossim, leva ao entendimento do
objeto interpretado, sendo analisado apenas aquilo que é visível,
desconsiderando totalmente qualquer informação que não esteja/seja explícita no
objeto.

Isso porque, sendo um método
objetivo, ela busca alcançar a verdade (absoluta) acerca do objeto, pois
entendeu Schleiermacher que seria indispensável um método seguro (não sendo
possível dele extrair várias respostas acertadas) e aplicável universalmente.

Desta forma, “interpreta-se apenas
para ampliar as informações de algo já conhecido, sem se ater á relação pessoal
processual, jogando-se fora a escada após a obtenção de um entendimento maior
sobre algo”[10].

Este método de interpretação é utilizado
por todos aqueles que se filiam à corrente positivista/dogmatista: somente o
que está no texto da lei é que pode ser tido como verdadeiro.

Desta análise se percebe que os
fatos são desconsiderados pelo intérprete, eis que o que dá sentido aos fatos é
a lei – se a lei não disser, o fato não é.

Depreende-se daí que a utilização da
Hermenêutica Metodológica como método de interpretação da questão da
anencefalia levará o intérprete a considerar ilícita a interrupção de uma
gestação de um feto portador desta anomalia.

E isso justamente porque o texto do
art. 128 do CP não exclui a aplicação da pena às hipóteses de aborto
terapêutico, mas tão-somente ao humanitário e ao necessário.

Esta visão é defendida, por exemplo,
pelo Procurador-Geral da República, dr. Cláudio Fonteles, como se pode
vislumbrar da análise do parecer dado na ADPF já comentada.

Assim manifestou-se o
Procurador:

“17. (Os
artigos do CP) Bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam.

18. Aliás, injurídico,
data venia, manusear-se com a interpretação conforme a dizer-se que na
definição dos tipos penais incriminadores
, não seja criminalizada tal
situação (…).

22. As
situações extintivas da antijuridicidade, que enuncia, apresentam “o
sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta
“, para que sejam
rememoradas as palavras de Rui Medeiros (item 9, deste parecer), sentido
inequívoco e preciso, que se completa,
e legaliza o aborto:

a) para que a
mãe não morra (aborto terapêutico
)

b) se a mãe,
vítima de estupro, consente no aborto (aborto sentimental)

23. A
situação de anencefalia não se coaduna, por óbvio, nessas situações.

24. O feto
anencéfalo não causa a morte da mãe. Afasta-o a própria petição inicial.

25. Se
causasse tal situação, ter-se-ia diante o aborto terapêutico.

26. Quanto
ao aborto sentimental não há discrepância na abalizada doutrina penal de que
sua compreensão é limitadíssima à hipótese que enuncia: gravidez
resultante de estupro – grifos do original”[11].

Nota-se, portanto, que para o
Procurador-Geral, o que não está escrito no texto da lei não pode ser
interpretado; não pode ser alargado o conceito expressamente determinado pela
lei: ou está previsto (claramente) ou não o está.

Desta análise nota-se, claramente,
que o fato, a questão posta à baila, que é justamente uma solução para um caso
que traz graves problemas à família da gestante, não é levada em consideração,
sendo o intérprete levado, apenas, à análise fria e objetiva do texto da lei,
muitas vezes persistindo o conflito no caso concreto.

Entretanto, traz maior segurança ao
intérprete-juiz – que poderá dizer que decidiu de acordo com a vontade do
legislador, mantendo, assim, distanciamento dos fatos trazidos à sua
interpretação – e aos jurisdicionados – que terão certeza que somente uma
resposta será dada: aquela previamente determinada pelo legislador, o que gera
segurança jurídica.

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5 – Da hermenêutica filosófica

Ao contrário da Hermenêutica
Metodológica ou Ontológica, a Filosófica preocupa-se com o caminho utilizado
pelo intérprete, o processo de interpretação utilizado, não tendo importância
significativa ou, ao menos, preponderante, o resultado conquistado pelo
intérprete.

Isso porque o importante neste tipo
de interpretação é o ser, o intérprete, o que ele pensa e sente a respeito do
objeto. Suas impressões são imprescindíveis para que se possa buscar a
interpretação.

No que respeita à participação do
intérprete na interpretação realizada pelo método da Hermenêutica Filosófica,
interessante colacionar a explicação feita pelo professor Luiz Rohden que
clarifica a interação entre o objeto e seu intérprete: “(…) há um sujeito que
joga e é jogado; não observa apenas, mas também é afetado pelo processo de
conhecer que envolve sentido e significado”[12].

Assevera, ainda, que

“a Hermenêutica, enquanto filosofia,
não se prende aos trilhos da interpretação casual linear nem à mera análise de
textos ou proposições. Nela, ética e linguagem caminham de mãos dadas,
uma vez que o modo de interpretar implica discernir suas implicações (pessoais
e sociais). Arraigada na finitude humana, a hermenêutica filosófica não se
separa desta sua condição. Daí por que a historicidade e a linguagem assumem os
papéis de protagonistas do pensar filosófico pautado por uma medida de
racionalidade apropriada ao modo de ser humano (grifou-se)”. [13]

A diferença entre as duas
interpretações é claramente demonstrada nos seguintes trechos:

“De um procedimento que julga e
deduz passamos a um modo de ser, a uma postura filosófica que ouve, discerne e
dialoga. Nesse caso, trata-se de um olhar que não apenas enxerga, mas se
enxerga, e estamos às voltas com um dizer que não apenas dita, mas se implica
ao dizer. No primeiro caso, o importante é a análise correta que se faz (de um
texto ou de um contexto), ao passo que ao filosofar o importante é a
consciência da experiência que a consciência realiza”.[14]

“Se, para a primeira
(Metodológica), o mais importante é o ponto de chegada do processo
interpretativo, ou seja, o conhecido representado-adequado, para a segunda
(Filosófica) a ênfase recai sobre o processo mesmo do interpretar, do
compreender, do perguntar, do saber. No primeiro caso, ao final, conhecemos; no
segundo caso conhecemos, mas sabemos também que o real extravasa o conhecido”.[15]

Aqui, é preciso que sejam abertos os
horizontes do intérprete, que ele considere todas as possibilidades e, somente
após feitas todas as considerações é que poderá optar por uma resposta que
entenda correta.

Para a Hermenêutica Filosófica, no
que se refere à interpretação de textos legais, o que importa é o fato, a
realidade vivida, e não o texto da lei. Em outras palavras, é o fato que dá
sentido à lei, e não a lei que atribui conceito aos fatos, do que se depreende
que um olhar dogmático é incompatível com esta forma de interpretar.

Indo além da subsunção do fato na
norma, este método de interpretação aplicado na questão da anencefalia leva a
se considerar legal a conduta abortiva dos fetos portadores desta má-formação.

Isso porque levará em consideração a
realidade fática que envolve a questão família: a tortura psicológica que a
gestante sofre ao saber que o feto que carrega em seu ventre não vingará, não
sobrevivendo mais do que poucos segundos fora do útero materno (isso se se
mantiver vivo até o momento do parto) e o risco de vida da gestante[16],
além da inviabilidade da vida deste feto[17].

Assim, foi lançada a tese de que o
abortamento de anencéfalos se enquadraria na hipótese do art. 128, I, CP.
Partindo do pressuposto que para ter vida é preciso ter saúde, os defensores
desta forme de interpretação afirmam que a gestação de anencéfalos ocasionaria
um mal-estar físico e psicológico que permitiriam a incidência da permissão
prevista neste inciso. Esta é a posição adotada pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde – CNTS, que foi a responsável pelo ajuizamento da ADPF
em comento.

Da inicial da ADPF, primeiramente, é
importante transcrever-se aqui um trecho que demonstra claramente a forma de
interpretação utilizada:

“09.       Note-se, a propósito, que a hipótese em
exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como
excludente de punibilidade (…) porque em 1940, quando editada a Parte Especial
daquele diploma, a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso
de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Não se pode permitir, todavia,
que o anacronismo da legislação penal impeça o resguardo de direitos
fundamentais consagrados pela Constituição, privilegiando-se o positivismo
exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva e dos fins visados pela
norma”[18].

Outrossim, na peça foram expedidos
argumentos que demonstram a análise das circunstâncias externas ao texto como
embasadoras do pedido. É o que se percebe da análise dos trechos a seguir:

“7. Uma
vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer
quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro
clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é
potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo
de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a
má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente
maior do que o inerente a uma gravidez normal (…).

30. (…)
Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com
plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração,
importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial
ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na
hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a
lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar
um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica (…)”[19].

Percebe-se, portanto, que a
Hermenêutica Filosófica leva em consideração outros critérios além da norma
posta, do texto explícito, para alcançar a resposta que entende correta ao caso
concreto.

Disso resulta que cada intérprete
poderá levar em consideração, no momento da interpretação, vários e diferentes
argumentos e situações, do que se percebe que o resultado interpretativo
depende exclusivamente do intérprete, não sendo possível prever o resultado que
será alcançado.

Assim, ao contrário da Hermenêutica
Metodológica, não se tem aqui segurança jurídica, embora sejam almejados
resultados mais justos (embora o conceito de justiça seja algo totalmente
dependente do indivíduo, da mesma forma que o resultado da interpretação
filosófica).

6 – Conclusão

A opção por um dos métodos será
utilizado implicará na obtenção de resultados díspares e, muitas vezes, até
antagônicos, como é o caso da legalidade ou não da prática de abortos de fetos
portadores de anencefalia.

Entretanto, é importante que o
intérprete tenha conhecimento e domine os dois métodos interpretativos, para
que possa optar, no caso concreto, pelo resultado que considerar mais
satisfatório e adequado. Isso porque nenhum deles pode ser taxado como correto:
casos há em que uma interpretação mais conservadora se faz necessária para
atender os interesses em conflito, o mesmo ocorrendo com uma interpretação mais
ampla, que abarque todas as questões ligadas ao caso.

Com relação especificamente ao caso
da anencefalia, parece mais adequado o resultado alcançado pelo método
filosófico, já que a norma que delimitou as hipóteses de exclusão da imputabilidade
é bastante antiga e certamente abarcaria a hipótese se à época existissem os
recursos tecnológicos hoje existentes.

Chega-se a esta conclusão já que o
legislador permitiu a prática legal do aborto sem levar em conta a realidade do
feto, mas exclusivamente a da gestante (tanto que permitiu o abortamento no
caso de estupro), o que demonstra a necessidade de proteção de sua saúde física
e mental. E isto somente será alcançado se a gestante não for obrigada a
levar a cabo uma gestação de um anencéfalo.

 

Bibliografia

CANTARINO, Carolina. Mulher ou
sociedade:
quem decide sobre o aborto. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/rportagens/2005/05/05_impr.shtml>. Acesso em:
10 abr. 2005.

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Estado da Bahia. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília:
Letras Livres, 2004.

FONTELES, Cláudio. Parecer do MPF
na ADPF n° 54/DF.
Disponível em:
<http://www.providaanapolis.org.br/parefont.htm>. Acesso em: 27 de julho
de 2006.

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ecografica del sistema nervioso central del feto.
Disponível em:
<http:/www.medicosecuador.com/sncfetal/articulos/anomalias_del_sistema_nervioso_central.htm>.
Acesso em: 31 ago. 2005.

RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por
anomalia fetal: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no
Brasil. Aborto por anomalia fetal. 1ª Reimpressão. Brasília: Letras
Livres, 2004.

ROHDEN, Luiz. Hermenêutica
metodológica e Hermenêutica filosófica. Filosofia Unissinos, vol. 04, n°
06. São Leopoldo: UNISSINOS, 2003, pp. 109/132.

SANEMATSU, Marisa.  Interrupção da gravidez em casos de
anencefalia fetal: a cobertura da imprensa sobre a liminar do STF e suas
repercussões
. Disponível em:
<http://www.ipas.org.br/arquivos/10anos/marisa_liminarstf2004.doc>.Acesso
em: 30 ago. 2005.

SANTOS, Marília Andrade dos. A
aquisição de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica. Revista
de Direito Médico e da Saúde
, ano II, n° 5,  março de 2006. Recife: Livro Rápido, 2006, pp. 05/46.

Notas:

[1]
Embora partilhe do entendimento de que inexista aborto de fetos anencefálicos
em razão da ausência de vida, é importante que a análise dos pensamentos
referentes à tipificação da conduta, eis que a maior parte dos juízes e
Tribunais partilha o entendimento de que há vida e que á necessário fazer o
contraponto entre a vida do feto e a saúde da gestante, somente permitindo o
abortamento em casos de evidente e comprovado risco à gestante – art. 128, I,
CP.

[2]
Para um aprofundamento sobre o tema interessante consultar o nosso A aquisição
de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica. In Revista
de Direito Médico e da Saúde
, Ano II, n° 5,  março de 2006.

[3]
As demais causas poderão ser encontradas em MARTÍNEZ, Roberto Cassís. Evaluación ecografica del
sistema nervioso central del feto.
Disponível em:
<http:/www.medicosecuador.com/sncfetal/articulos/anomalias_del_sistema_nervioso_central.htm>.
Acesso em: 31 ago. 2005.

[4]
RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal: uma releitura jurídico-penal
do aborto por anomalia fetal no Brasil. In
DINIZ, Débora & RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal.
p. 101.

[5]
Tais dados constaram no editorial da Folha de São Paulo de 03/07/04 e foram
transcritos por SANEMATSU, Marisa.  Interrupção
da gravidez em casos de anencefalia fetal: a cobertura da imprensa sobre a
liminar do STF e suas
repercussões. Disponível em:
<http://www.ipas.org.br/arquivos/10anos/marisa_liminarstf2004.doc>.
Acesso em: 30 ago. 2005.

[6]
CANTARINO, Carolina. Mulher ou sociedade: quem decide sobre o aborto.
Disponível em: <http://www.comciencia.br/rportagens/2005/05/05_impr.shtml>.
Acesso em: 10 abr. 2005.

[7]
Tais tipos penais atinem com a conduta da gestante (art. 124) e de terceiro
(art. 125 – sem consentimento da gestante; e art. 126 – com este consentimento)
que praticam o abortamento.

[8]
ROHDEN, Luiz. Hermenêutica metodológica e Hermenêutica filosófica. Filosofia
Unissinos
, vol. 04, n° 06. São Leopoldo: UNISSINOS, 2003, pp. 109/132.

[9] SCHELEIERMACHER, Friedrich. 2 –
Hermenêutica. Introdução ao compêndio de 1819, p. 111. apud ROHDEN,
Luiz. Op cit., p. 121.

[10] ROHDEN, Luiz. Op cit., p. 124.

[11]
FONTELES, Cláudio. Parecer do MPF na ADPF n° 54/DF. Disponível em:
<http://www.providaanapolis.org.br/parefont.htm>. Acesso em: 27 de julho
de 2006. Após a deduzir pela impossibilidade de interpretação extensiva da
norma do art. 128 do CP, o Procurador fez uma análise da colidência entre a
interpretação pretendida pelos autores da ADPF (no sentido da legalidade do
aborto de anencéfalos) e o direito à vida, concluindo pela
inconstitucionalidade da referida interpretação.

[12] Ibid, p. 127.

[13] Ibid, p. 130.

[14] Ibid.

[15] Ibid, p. 129.

[16]
Já que neste caso a gestação é mais longa, há grande aumento da pressão
arterial e aumento do líquido amniótico (que pode ocasionar dificuldades de
respiração e até levá-la a óbito).

[17]
Não há sequer um caso de fetos portadores de anencefalia que tenham sobrevivido
mais do que algumas horas após o parto. Relatos que dão conta desta
possibilidade referem-se erroneamente à anencefalia, quando, na verdade, o
cérebro está lesionado em uma pequena parte, mas com sua estrutura mantida,
permanecendo ilesa a estrutura do tronco cerebral. Lembre-se da definição da
anencefalia feita anteriormente, onde foi dito que nela o tecido cerebral é
inexistente ou é amorfo, ou seja, inexiste estrutura cerebral.

[18]
Conselho Federal de Medicina do Estado da Bahia. Anencefalia e Supremo
Tribunal Federal
. Brasília: Letras Livres, 2004, pp. 77/78.

[19]
Ibid, pp. 76 e 90.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marília Andrade dos Santos

 

 


 

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