Resumo: A evolução do processo como devido processo legal ocasionou um aumento na competência do Judiciário que passou a verificar, também, o conteúdo das leis e atos normativos. Nessa “nova” competência o magistrado assumiu papel fundamental, o de interpretar: extrair o sentido do texto e construir a norma. O juiz possui o poder de decidir os casos e dizer o direito, sempre voltado à proteção e concretização dos direitos fundamentais previsto na Constituição. Esse processo complexo de construção da norma envolve a percepção, sensibilidade, astúcia, valoração e experiência – pessoal e profissional – do juiz. Ele deve sair do estado de neutralidade para promover meios que efetivem as finalidades mediatas e imediatas do sistema jurídico. Em decorrência da ineficiência do Executivo ou do Legislativo, o juiz pode, ao sair da neutralidade, sempre visando a proteção das pessoas, assumir funções atípicas dentro da sua atividade essencial, a resolução de conflitos. Tal postura deve ser realizada excepcionalmente e somente quando a omissão dos demais Poderes atingir direitos fundamentais. Tal fato pode ocorrer no direito tributário, já que envolve diretamente o direito fundamental de propriedade. Nos casos de conflitos na relação jurídico-tributária o magistrado deve promover o devido processo legal e para isso pressupõe-se seu empenho na regular condução do processo, sob pena de prejudicar o contribuinte, parte, em regra, hipossuficiente da relação.
Palavras-chave: processo judicial. Magistrado. Postura ativa. Devido processo legal.
Abstract: The evolution of the process as due process caused an increase in judicial power which now also check the content of laws and normative acts. In this “new” power the magistrate assumed a leading role, to interpret: extract the meaning of the text and build the norm. The judge has the power to decide cases and say the right, always focused on the protection and realization of fundamental rights enshrined in the Constitution. This complex process involves building the standard perception, sensibility, shrewdness, valuation and experience – personal and professional – of the judge. He must leave the state to promote neutrality means that enforce the purposes mediate and immediate legal system. Due to the inefficiency of the Executive or the Legislature, the judge may, by leave of neutrality, always aiming at the protection of people, taking atypical functions within its core activity, the resolution of conflicts. This posture should be performed exceptionally and only when the omission of other branches reaching fundamental rights. This may occur in the tax law, as it directly involves the fundamental right to property. In cases of conflict in the legal and tax the magistrate should promote due process and it assumes its commitment to the regular conduct of the proceedings, the risk of impairing the taxpayer, part of a rule, disadvantaged party relationship.
Keywords: judicial process. Magistrate. Posture active. Due process of law.
Sumário: Introdução. 1. O devido processo legal. 1.1. Processo. 1.2. Breve relato sobre a evolução histórica do devido processo legal. 1.3 Conceito de devido processo legal. 1.3.1 Conceito versus definição. 1.3.2 “Devido” processo “legal”. 1.4. Devido processo legal substantivo. 1.5. Princípios constitucionais decorrentes do devido processo legal 2. O magistrado no processo judicial. 2.1 O juiz natural. 2.2 A imparcialidade do magistrado. 2.3 A independência do Poder Judiciário. 2.4 Neutralidade. 3. O ativismo judicial e o devido processo legal. 3.1 Século do Judiciário?. 3.2 Ativismo judicial. 3.3 Ativismo judicial no direito tributário. 3.4 A neutralidade e ofensa ao devido processo legal. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Há muito se tem questionado sobre o que é o direito, problema filosófico que repercute diretamente na aplicação das normas jurídicas. Para tentar responder essa questão é necessário ter em mente, que ele é um produto cultural, em constante movimento, dinâmico.
O direito reflete e regula as relações sociais, que também estão em constante mudança. Assim, ele se apresenta com características diversas a depender da época, local e sociedade a que se refere.
Com a crise do positivismo, pelo não atendimento das expectativas sociais, houve um processo de juridicização de valores. A moldura jurídica que impunha uma forma deixou de aceitar qualquer conteúdo, qualquer preenchimento.
O Judiciário passou a ser o principal crítico da “pintura”, da “arte” da moldura. A ele incumbiu-se a verificação da conformidade das normas jurídicas, em seu aspecto formal e substancial. E mais, a ele foi atribuída também a efetividade dessas normas, que implicam na concreta promoção dos direitos e preservação das garantias assegurados pelo sistema e principalmente pela Constituição.
A fundamental distinção entre texto e norma transforma a interpretação e aplicação do direito na própria construção da norma jurídica. Nessa perspectiva de construir a norma para sua aplicação, o magistrado ganha papel de destaque no mundo jurídico, porque o direito que ele diz não é mais apenas o direito que está literalmente na lei, abandona-se a visão reducionista da função do Judiciário.
O magistrado, ao resolver os conflitos sociais, ou até mesmo ao analisar as leis em tese, da competência do STF ou STJ, deve aproveitar de sua percepção, de sua experiência, ele deve conhecer das pretensões resistidas e das circunstâncias que a envolvem para interpretar os fatos e os textos normativos. Nesse processo de conhecimento do caso e de interpretação há nítida influência dos valores que o magistrado possui.
O juiz deve manter-se equidistante das partes, mas deve envolver-se no caso para decidi-lo, e para tanto não há como ele sustentar uma neutralidade axiológica, pois ele é ser humano e possui em si valores ínsitos que naturalmente, e até inconscientemente, irá atribuir às coisas que tiver contato.
Para evitar que o processo judicial seja instrumento de dominação e desvirtuamento do direito, o magistrado deve ser independente e imparcial, e não deve ser neutro.
Ele deve ser ativo, promovendo o devido processo legal, o que implica buscar a efetividade da decisão judicial e da proteção do homem através do processo. E diante da omissão inconstitucional prejudicial dos Poderes Executivo e do Legislativo ele deve adotar posturas excepcionais, que normalmente seriam atípicas em sua função, mas que após a devida ponderação, reste provado o maior prejuízo aos direitos fundamentais.
O trabalho examina inicialmente o processo, notadamente, o devido processo legal, com breve relato de sua evolução histórica e de sua finalidade primordial.
Depois é realizada uma abordagem sobre o juiz no processo, sua relação com as partes e com as demais pessoas que não são partes, bem como sua relação de independência relativamente aos demais Poderes.
Por fim trata-se da postura do magistrado para com o caso a ser decidido e as implicações de ele presidir e conduzir o processo.
1. O DEVIDO PROCESSO LEGAL
1.1. Processo
Processo, assim como a imensa maioria das palavras, é um termo que possui várias acepções. Etimologicamente, a palavra “processo” deriva do latim “procedere” que significa seguir adiante. Mas a depender do contexto ele também pode significar os autos (reunião de documentos), o rito procedimental, a forma de produção de algo, um direito subjetivo, entre tantas outras possibilidades.
Devido a tal ambiguidade é importante fixarmos como proposição inicial o sentido do vocábulo “processo” por nós utilizado. Processo é uma relação jurídica instaurada a partir de um conflito que tem, em regra, como finalidade imediata a resolução deste através da (re)construção de uma norma jurídica e finalidade mediata a efetivação dos preceitos constitucionais.
Essa relação jurídica possui suas linhas-mestras, seus pontos fundamentais, seus princípios, na Constituição de 1988, que é base de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Ela impõe normas ao legislador que irá disciplinar o processo, às partes que irão integra-lo, e ao julgador que irá conduzi-lo.
Todo o processo é informado por normas constitucionais e as normas constitucionais são efetivadas por processos. Ao falarmos efetivadas estamos nos referindo tanto a proteção (ações objetivas), quanto a concretização (ações subjetivas).
Paulo Cesar Conrado (2012, p. 16) afirma ser o processo “instrumento do instrumento”, já que ele é instrumento do direito, almejando solucionar conflitos e o direito, por sua vez, é instrumento de harmonização e regulamentação das condutas sociais.
Abordaremos especificamente o processo judicial. Nele há relação jurídica angular, estabelecida entre juiz, autor (requerente) e réu (requerido). Angular porque todas as ações das partes convergem ao juiz que cumpre o papel do Estado e é a pessoa competente para decidir e impor sua decisão aos conflitantes.
Para Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 197-8) o juiz atua no processo com fundamento na jurisdição, o requerente com base na ação, enquanto o requerido exerce a defesa e a integração da jurisdição. Da ação e da defesa resulta no processo.
O processo judicial é garantia de proteção dos direitos fundamentais e dos direitos subjetivos, face ao Estado e aos demais particulares, porém, não é qualquer processo que atinge esse fim protetivo pugnado pela Constituição.
1.2. Breve relato sobre a evolução histórica do devido processo legal
Por não ser tema único deste estudo não pretendemos analisar minuciosamente a evolução da cláusula do devido processo legal, entretanto, é indispensável para que se apreenda sua “razão de ser” que se faça uma breve contextualização do seu desenvolvimento.
Atualmente o devido processo legal está consagrado na Constituição Federal, e a doutrina aponta o artigo 5º, inciso LIV como seu dispositivo correspondente, determinando que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Somente na CF/88 houve a consagração expressa do termo “devido processo legal”. As Constituições anteriores – embora algumas previssem certos direitos relativos a alguns processos específicos – não faziam essa referência de forma geral e abrangente como fez nossa Carta Magna.
Apesar de que somente com a nossa Constituição tenha havido a consagração expressa do referido princípio, já havia, antes, ampla discussão da doutrina pátria e a sua aplicação pelos Tribunais como se percebe, v.g., no RE 91246, julgado em 03/11/1981, e publicado no DJ 18-12-1981 e no MS 20656, julgado em 10/06/1987, publicado no DJ 26-06-1987.
No cenário internacional o princípio teve origem na Inglaterra (MOREIRA, 2010, p. 233) quando em 1215 foi assinada a Magna Carta objetivando assegurar a vida, a liberdade e a propriedade com a limitação dos poderes do Rei João Sem Terra que dispunha sobre a ideia do julgamento regular em sua cláusula 39 o seguinte:
“Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país”.
Bockmann (2010, p.230) ressalta que no direito inglês, por ser um modelo common law, o processo ganha ainda mais importância na salvaguarda de direitos fundamentais e na própria produção do direito.
Somente em 1354, também na Inglaterra, surge a famosa expressão “due process of law” quando no reinado de Eduardo III houve a edição do Estatuto de Westminster das Liberdades de Londres os termos assentados na Carta Magna (NERY JUNIOR, 2013, p. 93).
Por influência da Inglaterra, durante a colonização, tal noção de proteção pelo processo foi transportada para a América, tendo sido, inclusive, utilizada pelos norte-americanos contra os abusos dos seus colonizadores (2010, p. 232).
Foi a partir dessa ideia de julgamento de acordo com a lei do país – law of the land – que houve o desenvolvimento no direito norte-americano até a incorporação expressiva na Constituição estadunidense com as Emendas V (Bill of Rights – 1791) e XIV (1868).
Inicialmente o devido processo legal possuía a significação de observância das regras processuais estabelecidas na lei, destacando seu aspecto formal. A Corte Constitucional dos Estados Unidos ampliou essa noção formalista, fazendo com que fosse desprendido dele a observância, também, dos conteúdos dessas regras, para proteger os interesses e direitos protegidos dos atos estatais (aspecto substantivo).
1.3. Conceito de devido processo legal
1.3.1. Conceito versus definição
Para tentarmos apreender o conceito de devido processo legal é importante destacarmos a diferença técnica existente entre conceito e definição. Enquanto o conceito é formado pela ideia, pela noção, pela representação mental, a significação de algo, a definição é formada com maior precisão, expressando os fins, confins e os limites. “Isto porque definir é pôr em palavras o conceito” (CARVALHO, 2009, p. 54).
Renato Lopes Becho entende que tanto os conceitos jurídicos quanto as definições jurídicas são frutos do trabalho do cientista do direito que se debruça sobre os textos legais realizando descrições sobre os mesmos (2011, p. 102-4).
Desta forma não devemos esperar encontrar no direito positivo uma definição de devido processo legal, já que o direito positivo é prescritivo de condutas. Entretanto, através das normas constitucionais, interpretadas sistematicamente, podemos formar um conceito de tal cláusula. Esse “conceito constitucional” impõe uma série de regras e princípios que devem caso a caso, de acordo com a pertinência, atuar sobre a conduta das pessoas envolvidas na relação jurídica processual e no trâmite dessa relação.
Talvez seja por essa indeterminabilidade que a doutrina e a jurisprudência não formem consenso de uma definição do “devido processo legal”, que possui historicamente contornos vagos, e sendo assim, qualquer tentativa de definição poderia facilmente reduzir seu alcance e dimensão. Porém essa vagueza e indeterminabilidade não são absolutas. Se assim fosse sua aplicação seria inviabilizada.
1.3.2. O “devido” processo “legal”
O que caracteriza o processo como “devido” varia ao longo da história e do local. E há de se ressaltar que a tradução do termo “due process of law” deve ser feita com sua devida contextualização no sistema common law e necessária adaptação ao direito brasileiro. Isto posto que no sistema jurídico dos Estados Unidos o direito é fruto, quase que exclusivamente, da atividade do Poder Judiciário, ressaltando a importância do processo (devido processo) na sua formação.
Diferentemente, o direito brasileiro funda-se em princípios e regras positivados, decorrentes de decisão politica anterior à sua aplicação.
A mera tradução literal, talvez, de forma impensada – devido processo legal – poderia sugerir a intenção exclusiva de tratamento das normas processuais por texto votado pelo Congresso, limitando-se a forma “lei”. Tal postura legitimaria aberrações jurídicas que remetem ao excesso de cuidado com a forma e desapego com o conteúdo das normas, propiciando o poder absoluto do Legislativo.
No entanto, nos parece que “law” tem raízes nos termos “law of the land” e no “legem terrae”, expressões originadas na Carta Magna escrita originalmente em latim e posteriormente transcrita para o inglês e na época significava a principal forma de limitação da atuação do soberano (MOREIRA, 2010, p. 249).
Hoje o devido processo LEGAL não é somente o atendimento das condições estipuladas na legislação infraconstitucional, é, sim, primordialmente, o atendimento dos comandos constitucionais, já que todo processo está regido tanto pelos princípios constitucionais processuais como pelos princípios constitucionais gerais.
1.4. Devido processo legal substantivo
O aspecto substancial do devido processo legal, consagrado e ampliado na Corte Constitucional dos Estados Unidos, que permite a análise material das normas jurídicas e atos estatais em busca da concretização da proteção do homem, atribuiu ao Poder Judiciário um sólido fundamento para ampliação de seus poderes.
A partir do célebre caso Mabury versus Madson (1803), que deu início ao controle de constitucionalidade nomodinâmico, o Judiciário passou a, também, ter controle sobre direito material, sobre o conteúdo legislado pelo Legislativo.
Parece-nos que após esse caso, o que houve não foi uma supervalorização do Poder Judiciário, sobrepondo-o sobre os demais, mas sim, o reconhecimento dele “em pé de igualdade” para com os demais.
1.5. Princípios constitucionais decorrentes do devido processo legal
Sendo o devido processo legal um sobreprincípio, uma norma de alto grau de relevância no ordenamento, converge para ele vários outros subprincípios que lhe dão forma e conteúdo.
Ele envolve em sua noção:
(i) a isonomia, decorrente do próprio Estado Democrático, que iguala as partes e elimina as desigualdades porventura existentes;
(ii) a inafastabilidade do controle judicial, que exprime a garantia da ação e da efetiva tutela jurisdicional através da qual o Estado, representado pelo juiz, resolve juridicamente um conflito social. Não é o mero acesso ao Judiciário, mas o direito de obtenção e concretização de uma decisão;
(iii) o juiz natural que será analisado, mais detidamente, no próximo capítulo;
(iv) o contraditório e ampla defesa que implicam tanto a ciência do processo, quanto a oportunidade de manifestação, com produção de prova e contraprova, para influenciar na prolação da decisão;
(v) a proibição de provas ilícitas, bem como das provas derivadas da ilícita;
(vi) o duplo grau de jurisdição que remete a matéria à reapreciação por órgão distinto e de hierarquia superior ao órgão que proferiu a decisão;
(vii) a publicidade dos atos processuais;
(viii) a motivação das decisões judiciais;
(ix) a razoável duração do processo.
Os princípios citados acima são exemplificativos e decorrem do devido processo legal, mas o fato deles decorrerem do devido processo legal não lhes diminui sua importância. Todos também são decorrências do próprio Estado Constitucional Democrático que vivemos.
Ao regular o processo eles impõem deveres e consequências – não apenas direitos – a todos os atores envolvidos nessa relação jurídica instrumental, tendo vista a consagração da máxima da liberdade kantiana trabalhada por Renato Becho como compositora da “norma hipotética fundamental”: “cumpra-se a Constituição de modo que o seu cumprimento possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (2009, p. 242).
Assim, o exercício do direito de ação do autor, não pode desprezar e nem excluir o direito de defesa do requerido, e o exercício do direito de prova do requerido não pode anular o direito de prova do autor, tudo em harmonia, ou em consonância com uma lei universal. Seria essa lei universal a isonomia substancial?
2. O MAGISTRADO NO PROCESSO JUDICIAL: A IMPARCIALIDADE, INDEPENDÊNCIA E NEUTRALIDADE
Nesse ponto do estudo nosso foco será o magistrado, o julgador do processo judicial, que para nós é um dos pilares do Estado de Constitucional de Direito.
O direito (positivo) é um corpo de linguagem, elaborado por autoridade competente, que prescreve condutas que devem ser proibidas, permitidas ou obrigadas (CARVALHO, 2009, p. 103). Tal linguagem é composta de normas jurídicas que determinam a conduta que deve ser realizada por determinação do Estado, que impõe imperatividade e coercibilidade às normas.
A coercibilidade é uma característica determinante do direito, possui raízes sólidas, e simbolicamente é representada pela espada do Leviatã de Hobbes: “E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (1983, p. 104).
É a coercibilidade que possibilita o cumprimento forçado das normas, autorizando o Estado a ingressar no patrimônio do particular ou até privar-lhes da liberdade, visando o cumprimento forçado das normas. Pois “não se pode apenas ter liberdade, se não se pode ter alguém ou algum órgão que possa garantir o seu exercício” (OLIVEIRA, 1997, p. 83).
Tal característica é exercida precipuamente pelos órgãos do Judiciário nos termos constitucional e legalmente previstos e prescinde do devido processo legal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art.5, LIV).
O instrumento jurídico que legitima a imposição da vontade estatal na pacificação dos conflitos e na efetivação das normas jurídicas é o processo. Vê-se, então, quão expressivo é o poder daqueles que receberam a incumbência de resolver juridicamente os conflitos sociais gerados pelo descumprimento do ordenamento jurídico.
2.1 O Juiz natural
Por imposição constitucional “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (inciso XXXVII), e “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (inciso LIII).
Os referidos dispositivos expressam o princípio constitucional do juiz natural que protege o Estado (ente soberano) e as pessoas submetidas à sua Jurisdição. O referido princípio faz parte da tradição jurídica brasileira, pois esteve presente em todas as ordens constitucionais desde a Constituição Imperial em 1824, a exceção da Constituição de 1937, que se omitiu sobre o tema.
Este juiz natural – personalização do Estado – é o competente para conduzir o processo judicial e é peça fundamental para que o processo atinja suas finalidades.
O primeiro ponto a ser destacado é que o juiz natural não é qualquer juiz, e muito menos o juiz escolhido pelas partes. Ele será o juiz determinado legalmente de acordo com a competência fixada na Constituição. Esse é o magistrado do devido processo legal.
Esta norma jurídica concretiza a isonomia, pois todos serão julgados “igualmente” sem preferências, predileções ou preconceitos. E o sistema de distribuição dos processos, nos termos do artigo 251 e seguintes do CPC (com mais de um juízo), é um mecanismo que promove essa indiferença no tratamento dado a todas as causas.
Qualquer artifício legal, infralegal ou procedimental que burle o juiz natural ensejará um feito eivado de vício, pois o processo devido não pode ter o julgador escolhido ou rejeitado desmotivadamente pela parte.
Por artifícios como esse, que v.g. tenta fugir do procedimento de distribuição, fora acrescentado ao CPC o inciso II, do artigo 253, para coibir práticas fraudulentas do juiz natural, vejamos um julgado do STJ:
“PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DESISTÊNCIA. AÇÃO ANULATÓRIA. IDÊNTICO RESULTADO PERSEGUIDO. DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA. ART. 253, II, DO CPC.
1. O contribuinte, ora recorrente, ajuizou ação ordinária com o objetivo de ver reconhecida a nulidade de título executivo, o qual teria sido gerado em procedimento fiscal maculado pela equivocada negativa de seguimento a embargos declaratórios opostos em seu bojo, requerendo, ao final, a reabertura do processo administrativo a partir dessa decisão tida por desacertada.
2. Após a distribuição à 7ª Vara Federal de Curitiba/PR, o magistrado de primeira instância valeu-se da inteligência do art. 253, II, do CPC para determinar o envio dos autos por dependência ao Juízo da 20ª Vara Federal de Brasília/DF, no qual idêntico provimento jurisdicional já teria sido reclamado em mandado de segurança anteriormente impetrado e que findou extinto em razão de desistência do autor, ora recorrente.
3. O recorrente alega que não se verifica identidade entre os pedidos formulados (…)
4. Ao acrescentar o inciso II no art. 253 do CPC por meio da Lei nº 10.358/01, o legislador atendeu ao clamor da comunidade jurídica que reivindicava um instrumento capaz de coibir a prática maliciosa de alguns advogados de desistir de uma demanda logo após sua distribuição – seja em virtude do indeferimento da liminar requerida, seja em razão do prévio conhecimento da orientação contrária do magistrado acerca da matéria em discussão, ou qualquer outra circunstância que pudesse indiciar o insucesso na causa – para, logo em seguida, intentá-la novamente com o objetivo de chegar a um juiz que, ainda que em tese, lhes fosse mais favorável e conveniente.
5. A novel alteração promovida pela Lei nº 11.280/06 encaminhou-se tão somente a complementar a salutar regra e conferir maior proteção ao princípio do juiz natural, englobando não apenas os casos em que se formulou expresso requerimento de desistência do feito, como também aquelas hipóteses nas quais a extinção da ação originária decorreu de abandono do processo, negligência do autor, falta de recolhimento de custas ou mesmo inércia em providenciar nova representação processual após simulada renúncia ao mandato efetivada pelo causídico.(…)
10. Recurso especial não provido.” (REsp 1130973/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/03/2010, DJe 22/03/2010)
Para que a essencial naturalidade do juiz seja possível é necessário:
(i) A preexistência do órgão jurisdicional relativamente ao conflito, pois isto é um pressuposto de que o órgão não foi constituído exclusivamente para decidir um caso específico, e mais, garante às pessoas o conhecimento prévio de quem poderá vir a julgar suas lides (vedação de tribunal de exceção).
(ii) A atribuição de competência do órgão julgador seja imposta nos termos constitucionais e legais pré-definidos. Somente a Constituição pode criar justiça especializada ou selecionar fatos específicos dando-lhes julgadores também específicos.
(iii) O julgamento pelo juiz ou julgador de acordo com seu livre consentimento motivado.
(iv) A necessária independência funcional e jurídica para que o juiz não sofra influência de fatos e pessoas estranhas ao processo e decida segundo sua convicção formada a partir dos fatos e provas relativos ao processo. Para garantir que não haverá “influências estranhas”, a própria Constituição (art. 95) dotou os juízes de vitaliciedade, inamovibilidade (salvo por motivos de interesse público) e irredutibilidade de subsídios.
(v) A imparcialidade dos juízes.
2.2 A imparcialidade dos magistrados
Decorre do Estado Democrático de Direito que a Jurisdição – dever estatal imposto predominantemente ao Judiciário – será exercida quando houver provocação do Estado-Juiz, que mantem-se inerte até tal momento. O juiz não inicia e também não seleciona os casos que irá decidir, e esta posição de inércia inicial assegura a equidistância que deve haver entre ele e as partes (CONRADO, 2012, p. 38).
Como o processo não se esgota com a provocação, a equidistância necessária entre o juiz e o requerente e o juiz e o requerido, deve-se manter, também, durante toda a relação processual.
Essa equidistância reflete a imparcialidade do magistrado que é condição de validade da relação jurídica processual (ALVIM, 2010, P. 177). O juiz não pode ser nem impedido e nem suspeito relativamente às partes e à causa.
O juiz será impedido se incorrer em alguma das hipóteses do artigo 134 do CPC: quando ele for parte; ou já tiver intervindo como mandatário da parte, perito, ou Ministério Público, ou tiver sido testemunha; ou tiver proferido sentença ou decisão em primeiro grau; ou quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu em linha reta, ou na linha colateral até o segundo grau; ou quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.
Em todos esses casos o impedimento é estabelecido legalmente, e não há prorrogação da competência por preclusão (inércia do requerido), pois é uma presunção iure et de iure (NERY JUNIOR, 2013, p. 157). O interessado poderá arguir a qualquer tempo, sendo fundamento, inclusive, para ação rescisória (art. 485, II, CPC) e o próprio juiz deve reconhecer de ofício.
O mesmo não ocorre quando há suspeição do juiz, quando ele for: amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; ou alguma das partes for credora ou devedora do juiz ou de seu cônjuge; herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes; interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes, entre outras situações descritas no artigo 135 do CPC.
Em qualquer das hipóteses do dispositivo acima mencionado, assim como nos casos de impedimento, o juiz pode reconhecer-se suspeito de ofício, entretanto, se ele não o fizer, caberá às partes alegar a suspeição na primeira oportunidade que lhes couber falar, sob pena de preclusão, já que a presunção de suspeição é iures tantum (NERY JUNIOR, 2013, p. 157).
A imparcialidade do juiz refere-se à sua relação com alguma das partes e pode ter como consequência a alteração do julgador da causa. É o que Nelson Nery denomina de neutralidade subjetiva (2013, p. 154).
Em um trecho da ementa do HC 95009, o Ministro Eros Roberto Grau, de forma bastante elucidativa e sucinta, expõe a independência, a imparcialidade e a neutralidade do juiz:
“A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em situação exterior ao conflito objeto da lide a ser solucionada. O juiz há de ser estranho ao conflito. A independência é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo — quando o exijam a Constituição e a lei — mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que fossem adotadas. A imparcialidade é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes das partes nos processos judiciais a ele submetidos. Significa julgar com ausência absoluta de prevenção a favor ou contra alguma das partes.” (HC 95009, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-06 PP-01275 RTJ VOL-00208-02 PP-00640).
O sistema jurídico brasileiro, de forma coerente com sua base principiológica, prevê a exceção de incompetência, de impedimento e de suspeição, para que a parte possa se opor ao juiz que não for competente ou for parcial – impedido ou suspeito – já que ambos desmoronam a estrutura constitucional processual prevista: o devido processo legal.
2.3 A independência do Poder Judiciário
A independência do Poder Judiciário, antes de ser um benefício e uma prerrogativa conferida aos magistrados, é uma condição para a existência do processo justo, que sirva de garantia aos cidadãos.
Ela não é um fim em si mesmo, a autonomia do Judiciário assegura a imparcialidade do julgador e faz parte da consolidação e concretização da Democracia. A independência, não só do Judiciário, mas de todos os três “Poderes” é condição para o funcionamento harmônico.
É independente o Poder que possui competências próprias e possui estrutura para desempenhar essas competências de forma insubordinada relativamente a outro. Ou seja, o Estado precisa garantir ao Judiciário os meios para o livre exercício de sua função.
A Constituição da República dispõe no art. 99 que “ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira”. A autonomia administrativa e financeira é fundamental para anular as pressões internas e externas que poderiam interferir no livre convencimento e nas decisões judiciais.
Por ser independente o Judiciário muitas vezes toma decisões impopulares, ou ainda, contrárias ao Governo.
Antes da CF de 1988 “o Judiciário não tinha verbas próprias, dependendo, em tudo e por tudo, do Executivo. Este repassava a verba quando queria ou quando estava disponível” (OLIVEIRA, 1997, P. 76).
O atentado contra a independência e o livre exercício do Poder Judiciário pode ensejar intervenção federal (art. 34, IV, CF) e responsabilização do Presidente da República (art. 85, II,CF).
2.4 Neutralidade
A neutralidade impõe ao juiz que não se “envolva pessoalmente” no processo, que faça a análise do caso com “abstração de sua própria pessoa” (DINAMARCO, 2005, p. 220), com abstração de seus sentimentos, vontades e demais conceitos pessoais.
O juiz neutro, então, é aquele que na decisão, diante da perfeita previsão legal de todos os fatos, com todas suas circunstancias e peculiaridades, reproduz, avalorativamente, o preceito legal, tal e qual está no suporte físico (no texto) da lei.
A crença de que o direito emana somente do detentor do Poder Legislativo, de que o texto legal é bastante e suficiente para resolver todos os casos, de que a interpretação autêntica é a interpretação literal, de que a aplicação demanda apenas o conhecimento do texto legal e a realização do silogismo, coadunam com a noção de neutralidade.
Assim, a neutralidade pressupõe o “juiz mecânico”, aquele que poderia ser substituído por máquinas que receberiam as informações da lide e com total celeridade proferiria uma decisão. Porém os problemas levados ao Judiciário não se resumem a problemas matemáticos.
“O juiz é a peça fundamental na administração da justiça, por ser o centro de todo debate judiciário: é a ele que as partes devem convencer da realidade dos fatos, da escolha e da interpretação da regra de direito a ser aplicada ao caso litigioso. Sendo assim, como assegurar sua imparcialidade e sua independência? Ao analisar um raciocínio matemático, ninguém se interessa pela honestidade e independência daquele que o realiza, porque sua demonstração é impessoal e sua validade impõe-se a todos que tiverem condições de acompanhá-la. Mas, a imparcialidade e a independência dos juízes são essenciais ao bom funcionamento da justiça. São indispensáveis para a proteção de todas as pressões a que estão sujeitos aqueles que exercem o poder” (PERELMAN, 1990, p. 5).
Perelman, ao criticar os autores, v.g., Georges Kalinowsy, que identificam a lógica com a lógica formal, que desconsideram a existência da lógica jurídica (“estudo do modo de pensar específico dos juristas”), afirma que os argumentos redutíveis a esquemas puramente formais são insuficientes para resolver os problemas sociais, já que neles o mesmo texto pode favorecer uma parte, ou a outra. E aduz ainda que
“A lógica jurídica não se limita à analise dos esquemas argumentativos que podem ser utilizados para o acolhimento de uma outra tese jurídica. Antes, ela é uma forma de argumentação que se desenvolve no interior de um contexto, o judiciário no mais das vezes, em que o respeito às regras de direito, sejam as de fundo, sejam as relativas ao procedimento, é essencial. Em uma sociedade democrática, a segurança jurídica, o respeito pelas regras e a busca da verdade, devem se conciliar com o respeito à pessoa humana, com a proteção dos inocentes e com a salvaguarda das relações de confiança, valores indispensáveis à vida em sociedade. Tal preocupação, totalmente estranha à lógica formal, faz com que a lógica jurídica (a lógica da controvérsia) tenha como objetivo o estabelecimento, caso a caso, da predominância de um ou de outro valor”. (PERELMAN, 1990, p. 7).
Aduzimos essas ideias para concluir que o juiz mecânico, aquele que utiliza a lógica formal, que decide por silogismo com as disposições normativas expressas, não se coaduna com os complexos problemas sociais existentes e com as atribuições que o cargo requer.
O magistrado situa-se em uma posição central na lide, observando todos os acontecimentos e alegações, tanto do autor quanto do réu, e essa posição – entre eles, e acima deles – que lhe fornece o melhor ângulo para ponderar os direitos em conflitos, valorar, decidir e impor sua decisão. “O Poder Judiciário (especialmente a justiça constitucional), deve assumir uma postura intervencionista, longe da postura abstencionista, própria do modelo liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira” (STRECK, 2007, p. 50).
Interessante pensarmos no tradicional símbolo de representação do Poder Judiciário: A Deusa Themis, uma figura bela, que possui uma venda nos olhos, em uma mão uma balança, e na outra uma espada.
A espada representa a força, a coercibilidade; a balança representa a análise dos pesos para promoção do equilíbrio e decisão do que é justo, e a venda nos olhos implica o tratamento isonômico, pois a justiça não vê a quem está servindo. Hoje nos parece que a venda deve ser retirada, pois o Judiciário deve estar bem atento aos casos que ele decide.
“Conta a lenda que a deusa Themis tem os olhos vendados para não saber a quem deve julgar, para não ser impressionada e para que não haja injustiça na decisão. Outra versão conta que o manejo da espada e da balança não se pode fazer com os olhos vendados. A venda é uma burla à Justiça. Em um quadro que ilustra a edição A Nave dos insensatos, de Sebastian Brant, de 1945, vê-se o bufão tapando, por detrás, os olhos da Justiça. Em Barbegensis, de 1517, o Tribunal aparece com capas de bufão e olhos cobertos de venda. Está escrito embaixo: “tudo o que fazem estes néscios é dar sentenças contrárias ao direito”
A venda serviria, então, para que a Justiça assinasse tudo o que fosse colocado à frente, cometendo as mais torpes injustiças! Tanto assim é que no símbolo existente no Palácio da Paz, em Haia, a deusa tem os olhos bem abertos, para não se deixar iludir nem vender, e para que saiba fazer justiça” (OLIVEIRA, 1997, p. 72).
Regis Fernandes indaga-se se a neutralidade não é uma posição que por ser confortável – em virtude do alheamento – quer-se preservar (1997, p. 81).
A própria etimologia das palavras “sentença” e “acórdão”, nos parece bastante expressivas: “sentença”, que vem de “sentire”, isto é, sentir, experimentar uma emoção, uma intuição emocional. E “acórdão” do latim accordare, cor, de acordo com o coração. (PRADO, 2010, p. 18).
No acórdão a seguir transcrito o Órgão de cúpula do Judiciário afirma que deve o juiz primeiramente idealizar a decisão justa, para posteriormente buscar fundamento na dogmática. Nesse caso, efetivamente haverá uma decisão fundamentada e não o inverso, um fundamento (v.g., artigos de lei) que origina a decisão.
“OFICIO JUDICANTE – POSTURA DO MAGISTRADO. Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer a dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formaliza-la. 2. DESAPROPRIAÇÃO – JUSTA INDENIZAÇÃO – CORREÇÃO MONETÁRIA – TERMO INICIAL. (…)” (RE 111787, Relator(a): Min. ALDIR PASSARINHO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 16/04/1991, DJ 13-09-1991 PP-12490 EMENT VOL-01633-02 PP-00158 RTJ VOL-00136-03 PP-01292) (destaques nossos).
O buscar da decisão justa pressupõe a valoração, a reflexão e percepção do magistrado, principalmente do juiz (magistrado de primeira instância) que, normalmente, mantêm contato direto com os envolvidos no processo.
É o magistrado de primeira instância que faz pela primeira vez a valoração das provas. E como bem assenta Fabiana Del Padre Tomé (2005, p. 256) “a valoração, própria das condutas humana, inclusive da interpretação do direito, é determinada pela máxima da experiência”, e completa a autora que a “máxima da experiência” nada mais é do que o corpo de conhecimentos do julgador (não apenas jurídicos), com sua experiência ao longo da vida profissional e também social.
Por isso, ele não deve se manter omisso, inerte, diante dos conflitos levados ao juízo de sua competência, ele deve buscar a justiça. E ainda que justiça seja um ideal, e que como tal, seja inatingível em sua totalidade, os atos do Judiciário certamente devem almejá-la.
Assim o julgador deve se manter indiferente (neutro) ao conflito até o momento que a lide for levada à sua decisão, e durante todo o tramite processual deve-se manter imparcial.
Mas não há julgador sem memória, sem sentimentos, sem anseios, sem problemas, e após ter conhecimento dos fatos ele tem o “dever-poder” de decidir sobre eles, então, não é possível manter-se estranho ao conflito nos termos propugnados no HC 95009 de relatoria do Eros Graus (transcrito anteriormente): “A neutralidade impõe que o juiz se mantenha em situação exterior ao conflito objeto da lide a ser solucionada. O juiz há de ser estranho ao conflito”.
Luiz Streck, discorrendo sobre a complexa crise do Direito, que para nós reflete a crise da própria sociedade, faz dura crítica ao atual processo de interpretação, que segundo ele é um “jogo de cartas (re)marcadas”, em que ainda “se acredita na ficção da vontade do legislador, do espírito do legislador, da vontade da norma” (2007, p. 84-86).
Tal cultura jurídica tem início nas próprias universidades e nos manuais jurídicos com um ensino do tipo prêt à porter (pronto para uso) que reforça o modelo positivista e que, paradoxalmente, convive com uma Constituição dirigente que impôs um Estado Democrático de Direito.
Felizmente já é perceptível uma mudança na atividade (da maioria) dos magistrados (e também de vários outros aplicadores do direito). Essa mudança é fruto da alteração do próprio conceito de direito: “o Direito não pode (mais) ser visto como sendo tão-somente uma racionalidade instrumental” (STREK, 2007, p. 28), ele “deve ser visto como instrumento de transformação social” (STRECK, 2007, p. 33).
Dessa postura ativa do juiz, que, sem ser tendencioso a qualquer das partes, busca a verdade, a maior proximidade possível com a verdade material, ordenando diligências, questionando as partes e praticando atos para o regular tramite processual que impulsionem o processo, surge o que se tem chamado de ativismo judicial.
O juiz sai da condição de neutralidade (que talvez na prática nunca tenha existido), se envolve com a causa posta para decisão e dirige o processo, velando pelo seu bom andamento.
Nessa posição, pode o juiz determinar a produção de provas que as partes não tenham pleiteado? Pode ele determinar a produção de provas mesmo após a preclusão do direito de aduzir as provas das partes? Pode o juiz na ausência expressa de prazo para a Fazenda se manifestar criar um prazo? Deve o Judiciário ficar inerte diante da reiterada omissão pelo Legislativo nos casos de mandado de injunção? Deve sumular entendimentos jurisprudenciais, ainda que reiterados, sem correspondente com dispositivo legal?
3. O ATIVISMO JUDICIAL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL
3.1 Século do Judiciário?
A visão clássica e rígida da separação dos poderes, apesar de ter contribuído para a limitação e desconcentração do poder e proteção da liberdade, há muito tempo não é mais suficiente para controlar as contingências sociais.
Atualmente é incompleta a concepção de que ao Poder Legislativo cumpre apenas a edição dos atos normativos, ao Executivo a execução dos atos normativos, restando ao Judiciário a mera utilização desses atos normativos na decisão de conflitos.
Mas tal isolamento rígido das funções estatais, em Órgãos diferentes, era necessário quando da articulação por Montesquieu da separação dos poderes, pois em sua época (absolutismo francês em que a vontade do Rei e a vontade do Estado eram confundidas) havia total concentração do poder nas mãos do soberano que o exercia sem limites. E para Montesquieu
“Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou mesmo o senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder de legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou um mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos” (1973, p. 157).
A reunião em uma só pessoa dos Poderes de Julgar e de Legislar restringia a liberdade, já que o próprio julgador estaria, também, impondo as normas abstratas. Desta forma não haveria controle sobre estas.
Com a concepção de que não havia normas na natureza, de que elas eram somente as postas pela autoridade competente e com o início das codificações (Código francês napoleônico), houve o desenvolvimento do formalismo e do positivismo.
O ordenamento jurídico, então, passou a ser visto como um sistema cientificamente autônomo, fechado e completo, sem lacunas. A partir dessa completude, a atividade do juiz passou a ser a aplicação automática das leis, e sua decisão era “escrava dessa subsunção silogística” (GUERRA FILHO, 2009, p. 40).
Assim, muito embora houvesse a separação entre as pessoas que editavam as leis e as que aplicavam as leis, estas últimas não eram livres:
“Por idolatrar a lei, seus adeptos se atêm à interpretação literal, alguns mais radicais pregam, inclusive, a desnecessidade da interpretação. O texto se revela na sua gramaticalidade, suas palavras são e dizem tudo, dispensando, assim, outro entendimento que não o positivado pelo legislador. Neste sentido, como a lei contêm todo o “direito” e este é certo e completo, o processo de aplicação passa a ser mero silogismo. O trabalho do julgador resume-se apenas em aplicar a lei e o do jurista em revela-las. Ambos atêm-se com rigor absoluto ao texto legal, exercendo função meramente mecânica” (CARVALHO, 2009, p. 69).
Nesse sentido, reforçando a característica limitadora da atividade do Judiciário durante o positivismo, Riccardo Guastini afirma que para uma das versões da teoria do direito no positivismo científico, o normativismo, o direito é o produto da legislação, as normas já estão feitas e acabadas e por isso ele – o normativismo – “supõe que a interpretação jurídica seja conhecimento de normas”. (2005, p. 355).
Talvez nesse contexto de “aplicação silogística” do direito seja possível falar-se em neutralidade, isso é claro, pressupondo que sempre haverá um texto de lei expresso que preveja todos os casos que cheguem ao Judiciário. Mas nós sabemos que o sistema jurídico não é nem perfeito e nem completo, é um produto do homem, e assim como seu criador, é falho.
Diante da submissão, existente até pouco tempo, do Poder Judiciário aos demais Poderes, e diante da liberdade que começa a brotar em seu âmbito, podemos afirmar – somente nessa perspectiva – que estamos no século do desenvolvimento do Judiciário.
“Não foram poucas as autoridades de diferentes áreas do conhecimento e de atuação que se referiram ao terceiro milênio como o século do Judiciário.
E assim também eu o estimo, porque as crises e controvérsias de toda ordem, nestes tempos de globalização, liberalismo econômico e afirmação crescente de uma sociedade plural e democrática, já tinham exigido que o Estado Administrador e o Estado Legislador se reorganizassem e capacitassem para realizar o bem comum, em velocidade mais próxima daquela que pauta a agenda das demandas da sociedade. Ficava, pois, ao Estado Juiz, por iniciativas próprias, mas em arranjo harmônico, aviar o que fosse necessário para distribuir justiça mais ampla, adequada, efetiva e em tempo razoável” (STF – CEZAR PELUSO, Discurso de abertura do ano judiciário 2011, p. 11).
Essa fase de transição, que está consolidando (ou tentando consolidar) a real “independência harmônica” do Poder Judiciário, tem como ponto marcante o célebre caso Marbury versus Madson, ocorrido em 1803 no Estado Unidos da América, em que houve rompimento com os tipos de decisões anteriores que se limitavam à análise procedimental, e não substancial da lei, como se deu no referido leading case.
Com o desenvolvimento do controle de constitucionalidade e do substantive due process of law, o Poder Legislativo, até então, preponderante sobre os demais, foi contido e seus atos legislativos contrários à Constituição passaram a ser expulsos do sistema jurídico como forma de proteção dos cidadãos, daí a atribuição ao Judiciário de “legislador negativo”, hoje, pacificamente aceita.
A expressão “século do Judiciário” pode soar muito pejorativa, e pode, também, implicar a superioridade deste em relação do Executivo e Legislativo, situação que nos parece não condizente com a realidade, havendo somente uma aproximação da necessária “independência harmônica” entre eles.
3.2 “Ativismo judicial”
Diante das ampliações das competências do Judiciário, voltamos nossos esforços à atitude, à conduta, ao comportamento do juiz, que busca dar a máxima efetividade possível ao processo, almejando a concretização do direito.
Para tanto, muitas vezes é necessário que ele saia da posição passiva, de mero recebedor de informações e fatos, e assuma uma posição ativa, de ele próprio procurar meios de promover o devido processo legal, procurando a proximidade da verdade dos fatos e construindo normas, é o que se tem chamado de “ativismo judicial”.
Surgem, então, opiniões doutrinárias favoráveis e contra a postura ativa dos julgadores.
Para Luís Roberto Barroso (2009, p. 9) “o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandido o seu sentido e alcance”, que iniciou nos Estados Unidos, mas, em sentido contrário, surgiu com natureza conservadora nos casos de segregação racial (caso Dred Scott versus Sanford em 1857).
Com visão mais abrangente, Renato Lopes Becho (2012, p. 870) entende por ativismo “a construção de soluções jurídicas, por parte de membros do Poder Judiciário, que preencham lacunas identificadas no direito positivo, buscando no ordenamento jurídico elementos que auxiliem na solução de litígios”.
Como afirmado no início do texto, o Judiciário, através do processo, tem a dupla função de solucionar conflitos e efetivar e concretizar as normas constitucionais.
De que vale a pessoa ter uma decisão que confirme o seu direito previsto no ordenamento, se tal direito não puder ser fruído ou efetivado?
Assim como o Poder Público pode oprimir impondo normas jurídicas incompatíveis com os valores sociais – crise de representação, por exemplo – ele também pode oprimir inviabilizado o gozo dos direitos constitucionalmente assegurados, ou pela não edição medidas concretizadoras – atos legislativos ou administrativos – ou pela não implementação de serviços essenciais.
A exclusão da competência do Poder Judiciário para decidir e suprimir os abusos de direito e de poder realizados por omissão dos Poderes Públicos (inviabilizando o exercício de direitos fundamentais) viola a inafastabilidade do controle jurisdicional, viola a liberdade, a dignidade das pessoas e reflete o esquecimento da cidadania.
E a forma mais efetiva do Poder Judiciário resolver os casos de omissão do Poder Público é suprimindo a lacuna existente ou obrigando a atuação. São cediços os vários casos de Mandados de injunção ou ADOs que declaram a omissão e “determinam” a edição das normas necessárias para o exercício de direitos fundamentais.
Também é cediço que por não haver sanção, ou alguma implicação coercitiva pela mora na edição dos atos normativos, muitas vezes esses instrumentos (MI, ADO) são totalmente esvaziados. O Judiciário declara a omissão inconstitucional, a mora do Legislativo e é só.
Essas pessoas que tiveram uma decisão judicial favorável, mas que continuaram com os seus direitos obstruídos, tiveram um processo justo, o devido processo legal? Partindo da concepção de que o devido processo legal não se esgota na mera decisão, mas sim, na satisfação dessa decisão, parece-nos que não houve o devido processo.
Leading case da alteração desse resultado foi o MI nº. 670, que após sucessivas declarações da mora sobre a necessária legislação regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos civis, o Supremo decidiu tomar medidas alternativas, aplicando a legislação do setor privado até que advenha a lei em questão:
“EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUNDAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISO LXXI). DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. EM OBSERVÂNCIA AOS DITAMES DA SEGURANÇA JURÍDICA E À EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NA INTERPRETAÇÃO DA OMISSÃO LEGISLATIVA SOBRE O DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS, FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGISLE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos 7.701/1988 E 7.783/1989.
1. SINAIS DE EVOLUÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DO MANDADO DE INJUNÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). (…)
3. DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS. HIPÓTESE DE OMISSÃO LEGISLATIVA INCONSTITUCIONAL. MORA JUDICIAL, POR DIVERSAS VEZES, DECLARADA PELO PLENÁRIO DO STF. RISCOS DE CONSOLIDAÇÃO DE TÍPICA OMISSÃO JUDICIAL QUANTO À MATÉRIA. A EXPERIÊNCIA DO DIREITO COMPARADO. LEGITIMIDADE DE ADOÇÃO DE ALTERNATIVAS NORMATIVAS E INSTITUCIONAIS DE SUPERAÇÃO DA SITUAÇÃO DE OMISSÃO”. (MI 670, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007, DJe-206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL-02339-01 PP-00001 RTJ VOL-00207-01 PP-00011)
O caso tornou-se paradigmático pela atuação positiva do STF preenchendo uma lacuna do Legislativo (ausência de lei regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos civis).
Esse tipo de atuação vem se repetindo em diversas outras situações. Nesse sentido é o trecho do voto do relator, Min. Marco Aurélio (página 28 do voto) na Ação Direta de Inconstitucionalidade que trata da representatividade dos partidos políticos minoritários e da “cláusula de barreira”:
“(…) é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais européias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional. O presente caso oferece uma oportunidade para que o Tribunal avance nesse sentido.
O vazio jurídico a ser produzido por uma decisão simples de declaração de inconstitucionalidade/nulidade dos dispositivos normativos impugnados – principalmente as normas de transição contidas no artigo 57 – torna necessária uma solução diferenciada, uma decisão que exerça uma “função reparadora” ou, como esclarece Blanco de Morais, “de restauração corretiva da ordem jurisdicional afetada pela decisão de inconstitucionalidade”. (ADI 1351, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2006, DJ 30-03-2007 PP-00068 EMENT VOL-02270-01 PP-00019 REPUBLICAÇÃO: DJ 29-06-2007 PP-00031 RTJ VOL-00207-01 PP-00116).
Esse mesmo posicionamento pode ser encontrado em outros julgados importantes, como na ADI 4.277 que trata da união homoafetiva, entre outros.
Sobre essa postura de “legislador positivo” e de substituição do Legislativo pelo Judiciário, Lenio Streck (2009, p. 79) adverte dos riscos que se corre, quando o STF possui o poder de alterar a Constituição sem que haja o processo legislativo previsto constitucionalmente para tanto.
O autor enfatiza que a discussão gira em torno da distinção entre “texto e norma” e que, muito embora haja entre eles grandes diferenças, ambos não são independentes, do texto não pode ser extraída qualquer norma, sob pena de subversão da função legislativa, e grave ameaça à democracia (ibidem, p. 79).
Mas nos parece que a competência para decidir e suprimir as omissões dos Poderes Públicos foi conferida, sim, ao Poder Judiciário, tanto que a Constituição prevê a Ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, principalmente este último previsto no artigo 5º, LXXI, CF: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Além disso, a Constituição de 1988 é uma constituição principiológica, que visa a promoção dos valores eleitos na Assembleia Nacional Constituinte, valores que possuem a característica de historicidade e sofrem alterações de acordo com o contexto e época sociocultural.
Isto permite que lhe seja atribuído, com o passar do tempo, novas interpretações, e permite também que o sistema jurídico acompanhe e atenda as necessidades sociais.
Mas será se tal atuação (alteração da interpretação da Constituição) desarmoniza a separação dos poderes? Ou a própria teoria da separação dos poderes autoriza essa interferência de um “Poder” sobre o outro?
Se a separação dos poderes tiver sido pensada para impor um autocontrole do próprio Estado sobre sua atuação em prol da defesa dos cidadãos, refletindo na desconcentração do poder para evitar abuso de poder, essa postura “invasora” do Judiciário deve ser admitida quando o Legislativo, ou Executivo, forem desidiosos em suas atuações, e quando a atuação do Judiciário for essencial para o bem comum.
O Estado está passando por um período de “redefinição” ou “reconhecimento” de suas funções, uma “fase” de transição decorrente das contingências sociais. O Judiciário está ocupando posição de destaque nessa transição por falha no Legislativo, que se omite e não legisla, nas matérias importantes, e, também, por falha do Executivo que não consegue uma efetivação satisfatória dos serviços públicos básicos.
Desta forma, resta ao Judiciário a solução dos inúmeros conflitos resultantes dos problemas gerados pelos outros Poderes, além é claro dos conflitos individuais, porém, nessa atividade ele jamais deve se distanciar dos princípios constitucionais, sob pena e corromper o próprio Estado.
“De duas maneiras um Estado pode transforma-se: ou porque a constituição se corrige ou porque ele se corrompe. Se conservou seus princípios e a constituição modifica-se, é porque ela se corrige; se perdeu seus princípios e a constituição vem a ser modificada, é que ele se corrompe” (MONTESQUIEU, 1973, p. 166).
Essa forma de alteração da (interpretação da) Constituição pelo Judiciário através do instrumento “processo judicial” é apenas um reflexo do atual reconhecimento da importância da pragmática jurídica. Os julgados hoje nos dizem e nos explicam o que é o direito, e além de aplicá-lo ao caso concreto, eles nos comprovam quão diferentes são o direito “estático” e o direito “dinâmico”.
Atualmente, com a súmula vinculante, a repercussão geral e os recursos repetitivos, a interpretação jurídica conferida na análise dos casos vincula os demais processos, havendo uma ampliação ainda maior da atuação positiva do Judiciário. O que preocupa, porém, é rápida alteração desses entendimentos, que causam insegurança jurídica.
3.3 Ativismo judicial no direito tributário
3.3.1 O direito tributário e o processo judicial
Cientes da unicidade do direito e da Ciência do Direito, destacamos daquele, para melhor compreendermos, o direito tributário, utilizado aqui na acepção de normas jurídicas válidas e vigentes em um local, que regem a relação jurídico-tributária existente entre o Estado-fisco e o contribuinte, e que tem por objeto o tributo.
Podemos afirmar que nessa relação jurídica há uma parte hipossuficiente: o contribuinte. Ele é o compelido, por lei, a entregar ao Estado parcela de seu patrimônio, mediante atuação estatal dotada de presunção legalidade, sob pena de ser executado por um título constituído unilateralmente pelo Fisco.
Nesse contexto, vê-se o quanto é importante o devido processo legal e todos os seus consectários. O processo é um instrumento de proteção da liberdade e da propriedade do contribuinte, através do qual se impõe a jurisdição.
Dos mais variados conceitos de direito tributário, de vários autores, nota-se o foco dessas normas para a efetivação da obrigação tributária, a satisfação do direito do Fisco, a legitimação da atuação do Estado em apropriar-se do patrimônio do particular. Vejamos alguns conceitos que expressam essa ideia:
“o direito que disciplina o processo de retirada compulsória, pelo Estado, da parcela de riquezas de seus súditos, mediante a observância dos princípios reveladores do Estado de Direito. É a disciplina jurídica que estuda as relações entre o fisco e o contribuinte” (HARADA, 2004, p. 308).
“O Direito Tributário é assim um direito de levantamento pecuniário entre os jurisdicionados, porém, disciplinado sobre a base dos princípios do Estado de Direito” (NOGUEIRA, 1990, P. 30)
“O ramo do direito público que rege as relações jurídicas entre o Estado e os particulares, decorrentes da atividade financeira do Estado no que se refere à obtenção das receitas derivadas que correspondem ao conceito de tributos” (SOUSA, 1952, p. 22).
“O direito tributário positivo é o ramo didaticamente autônomo do direito, integrado pelo conjunto das proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos” (CARVALHOb, 2012, p. 47).
“É o ramo do direito público que abriga as normas reguladoras das relações entre o Estado, como impositor de tributos, penalidades tributárias e deveres instrumentais, e as pessoas que se sujeitam a tais imposições” (LOPES, 2009, p. 3).
O direito tributário, então, é comumente visto como meio de obtenção de recursos pelo Estado. Uma visão que relega ao contribuinte uma posição desprestigiada dentro do sistema jurídico – mero devedor do tributo.
Mas considerando que o direito é um meio de promoção da paz social e do bem estar comum, e considerando, também, que a Constituição estabeleceu um Estado Democrático de Direito fundado na soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana, entendemos o direito tributário como ramo do direito didaticamente autônomo, que tendo por objeto a relação jurídico-tributária, impõe limites ao Fisco em sua atuação arrecadatória, assegurando direitos e garantias ao contribuinte.
Nesse contexto, o processo judicial é uma garantia do contribuinte, que ao sentir-se lesado (ou ameaçado) em sua vida, liberdade ou propriedade, pode socorre-se no Poder Judiciário, e este, atuando com independência e imparcialidade, decidirá, fundamentalmente, reprimindo os abusos ilegítimos de forma coercitiva.
O conflito na verdade possui visão dupla: enquanto o Fisco utiliza o processo para concretizar a arrecadação e tributação, o contribuinte utiliza para evitar a arrecadação que julga ser indevida, ou ainda, para que ela seja realizada da forma menos prejudicial possível.
Nesse meio, entre os opostos, está o magistrado responsável pela decisão que sempre deverá ser construída com fundamento no sistema jurídico e sempre protegendo os direitos do contribuinte (por certo, que não havendo direito a ser protegido pelo contribuinte, que apenas tenta se furtar do seu dever de pagar tributo, deve também o magistrado efetivar o pleito do Fisco, respeitado o devido processo legal).
3.3.2 A atuação positiva do juiz para efetividade da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana face aos interesses arrecadatórios do Estado
É cediço que ao juiz, e demais julgadores, cumpre promover o princípio da isonomia, o que processualmente falando, reflete no tratamento isonômico e na paridade de armas das partes. Não é demais anotar, de forma sucinta, que a igualdade em questão diz respeito ao tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades.
Em virtude desse necessário tratamento diferenciado para os desiguais, o legislador atribuiu, por exemplo, prazos distintos para atuação da Fazenda Pública em juízo.
Renato Lopes Becho (2012, p. 870), discorrendo sobre sua própria experiência na magistratura federal, relata a dificuldade vivenciada, no âmbito das execuções fiscais, pela ausência de fixação de prazo na LEF para manifestação do exequente.
Segundo o autor, na prática, quando o processo depende de alguma informação essencial a ser prestada pelo exequente, tanto o magistrado quanto os serventuários, advogados e contribuintes ficam a mercê da oportunidade e conveniência da Fazenda, que reiteradamente pede sucessivos prazos, o que torna o tramite processual infindável (BECHO, 2012, p. 871).
Ora, uma execução fiscal demasiada e desnecessariamente longa causa sérios prejuízos ao Judiciário, à própria Fazenda Pública e principalmente ao contribuinte, vai contra o devido processo legal e contra o princípio da duração razoável do processo.
Em uma execução fiscal determinada (processo n. 0074579-70.2003.4.6182) que tramitou no juízo onde atua, Becho afirma que após a intimação da Fazenda Pública para se manifestar sobre a satisfação do crédito tributário realizada pelo contribuinte, esta se restringiu a pedir “prazos longos e sucessivos para apresentar sua manifestação conclusiva” (ibidem, p. 871).
Visando alterar esse estado de desequilíbrio de armas e a situação insustentável a qual estava submetido o contribuinte, que esperava o levantamento do saldo da quantia depositada em juízo, o juiz fixou prazo específico – 60 dias, a partir da combinação de dispositivos 177, 188 e 297 do CPC (prazos inexistentes na LEF), para o exequente manifestar-se, sob pena de extinção do processo por abandono, fato que ocorreu diante da inércia do autor (ibidem, p. 871).
Importante fundamentação para esse tipo de postura ativa assumida por Renato Becho, é que a razoável duração do processo, a dignidade da pessoa humana e o devido processo legal, que são direitos fundamentais, e assim sendo, possuem eficácia imediata, “é despiciendo aguardar-se leis ou providencias administrativas para aplicação do Texto Constitucional. Ele será aplicado assim que seus intérpretes e aplicadores tiverem condições pessoais de fazê-lo.” (ibid, p. 881).
No caso exposto por Renato Lopes Becho, a atitude de busca efetiva de solução para um problema processual concreto foi determinante para resguardar os direitos do contribuinte e coibir o abuso da parte exequente.
Consideramos que esse tipo de atuação, ativa, é louvável, pois se coaduna com a principal função do Judiciário: a efetivação das normas constitucionais e a resolução judicial dos conflitos, ambas realizadas por meio do processo judicial.
3.4 A neutralidade e ofensa ao devido processo legal
Já encaminhando ao final do estudo, faremos análise do exposto no tópico específico sobre neutralidade do magistrado paralelamente com o exposto sobre o devido processo legal, notadamente em seu aspecto substancial.
Com o desenvolvimento do devido processo legal e a redefinição das competências e atribuições do Judiciário houve uma mudança no papel do Juiz. Este passou a ter função de construção da decisão judicial a partir da interpretação das normas e da verificação de sua compatibilidade com as normas fundamentais – constitucionais.
Para Streck (2007, p. 311) a interpretação deve deixar de ser simples “métodos ou técnicas de interpretação” que exoneram de responsabilidade as decisões do juiz, e imputam a responsabilidade unicamente ao legislador.
O juiz que resume sua atuação em mera reprodução do texto legal, sem a individualização da norma ao caso concreto, e sem a valoração dos fatores do caso concreto, está conduzindo o processo, mas não o devido processo legal. Sua função é resolver, juridicamente, o conflito e para isso ele precisa formular uma “opinião” sobre o caso levado ao seu juízo, não poderá se omitir de proferir a decisão judicial.
E no processo de formação dessa opinião do magistrado, no processo de formação do convencimento do juiz, ele pode agir ativamente para solver dúvidas que tenham ficado pendentes. Assim, ele pode, com base no poder instrutório, determinar produção de provas, determinar diligências, requisitar informações, isso de ofício.
E mais, na omissão dos outros Poderes cumpre ao juiz a proteção dos direitos e garantias fundamentais. O processo deve ser justo e ele próprio é garantia de direitos, isso pode gerar o ativismo judicial pela realização de algumas atribuições típicas dos outros Órgãos do Estado, como a produção de normas que por sua ausência causam lesão às pessoas.
Esse tipo de atuação do Judiciário é atípica e deve adotada em caráter excepcional, porém é menos ofensivo à Constituição que haja essa atuação elasticizada do que a manutenção de um estado de prejuízo e lesão ao direito fundamental.
No direito tributário essa postura ativa e positiva do magistrado deve ser promovida, pois envolve a invasão legal na propriedade do particular, invasão esta que só é legal se realiza nos termos do sistema jurídico, com fundamento básico na Constituição.
É comum a visão tradicional de que as execuções fiscais sejam instrumentos de concretização da norma que constitui o crédito tributário, que sejam meio de imposição coercitiva ao contribuinte do dever de adimplir a prestação pecuniária, entretanto, não se pode olvidar que esses processos não podem escapar do devido processo legal e nem podem submeter o contribuinte a situação degradante e que atinja sua dignidade.
CONCLUSÃO
O processo judicial é garantia fundamental prevista pela Constituição Federal para proteger os direitos do particular da ameaça ou de lesão por parte de outros particulares e do próprio Estado. Esta é sua função imediata: a resolução de conflitos.
Mas também é através do processo que o Judiciário exprime o sentido dos textos e normas jurídicas, dizendo como devem ser as condutas intersubjetivas aceitas pelo sistema jurídico.
A função mediata do processo é a realização dos valores constantes nos princípios da Constituição. Tais valores que antes eram tidos como exteriores ao direito, hoje são determinantes na interpretação dos textos jurídicos e na decisão dos casos levados ao Judiciário.
O papel do juiz no processo é conduzir o procedimento ativamente, participando de todas as fases, de modo que forme seu livre convencimento fundamentado e que sua decisão seja a melhor, fática e juridicamente, possível.
Nessa formação das decisões judiciais, o juiz não consegue abster-se de seus sentimentos e valores, e seu empenho, bem como sua experiência, pessoal e profissional, são muito importantes para a resolução do caso.
A condução automática e irrefletida do processo, o que normalmente ocorre diante do volume de lides levada ao Judiciário, não concretiza o direito e nem dá aos particulares o devido processo legal constitucionalmente assegurado, porque nessa automaticidade o juiz distancia-se da causa.
O juiz deve ser ativo, e se inexistir solução jurídica, ele deve construí-la, pois não é possível a ausência de decisão judicial por eventual lacuna no direito.
Informações Sobre o Autor
Bruna Oliveira Fernandes
Bacharel em Direito pela Faculdade Piauiense, Advogada, Mestranda em Direito Tributário pela PUC-SP, Bolsista CAPES