A política brasileira de prevenção ao crime entre o simbolismo e o punitivismo/eficientismo: sobre a necessidade de uma adequação constitucional

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Resumo: O objetivo do presente trabalho é empreender uma análise da política de prevenção ao crime no Brasil, a fim de demonstrar, em um primeiro momento, que o discurso jurídico-penal que a orienta, conduzindo às reformas legislativas operadas no Direito Penal pátrio nas últimas décadas, é marcado, no que diz respeito à “megacriminalidade”, por um caráter meramente simbólico, e, no que concerne à delinqüência “clássica”, por um caráter punitivista/eficientista. Feitas estas considerações, parte-se, em um segundo momento, para a análise do modelo de intervenção penal que resulta da simbiose entre o simbolismo e o punitivismo/eficientismo penal, o qual, como se demonstra a partir de alguns textos legais infraconstitucionais, afronta o modelo preconizado pela Constituição Federal, apontando, conseqüentemente, para a necessidade de adequação da legislação infraconstitucional brasileira aos dispositivos constitucionais.


Palavras-chave: Política Criminal; Simbolismo; Punitivismo; Eficientismo.


Abstract: This paper aims to analyze the crime prevention politic in Brazil to demonstrate, in a first moment, that the juridical penal discourse which guides it, conducting to the legislative reforms operated in the native Penal Law in the last decades, is marked by a symbolic character, which is referent to the “mega criminality”, and the “classic” delinquency, which is referent to a punitive/effective character. In a second moment, it is analyzed the penal intervention model that results in a symbiosis between symbolism and the penal punitivism/effectiveness, which is demonstrated through infra constitutional legal texts, affronting the model announced by the Federal Constitution. As a consequence, it is pointed out the necessity of adequacy of the Brazilian infra constitutional legislation to the constitutional dispositive. 


Keywords: Criminal Politic; Symbolism; Punitivism; Effectiveness.


Sumário: 1. A política criminal brasileira contemporânea: a prevenção penal entre o simbolismo e o punitivismo/eficientismo. 2. O direito penal do inimigo como produto da simbiose entre simbolismo e punitivismo/eficientismo penal e a necessidade de adequação constitucional da legislação penal brasileira. Referencias. Bibliografia.


1. A política criminal brasileira contemporânea: a prevenção penal entre o simbolismo e o punitivismo/eficientismo


As transformações operadas na realidade social contemporânea diante do fenômeno da globalização econômica e do avanço tecnológico trazem em seu bojo a preocupação cada vez mais crescente com novas formas de criminalidade, ínsitas à sociedade de risco[1] que se configura. Neste contexto, tornou-se “senso comum” no discurso jurídico-penal brasileiro contemporâneo a afirmação de que a intervenção penal pautada na teoria “clássica” do delito mostra-se obsoleta e, portanto, incapaz de fazer frente às novas formas assumidas pela criminalidade, dado que cada vez mais, nas sociedades modernas, surgem interesses difusos, muitos deles intangíveis, a reclamar proteção do Estado. Em função disso o Direito Penal tem sido alvo de freqüentes reformas que derivam, segundo Díez Ripollés (2007), do entendimento de que a sua contundência e capacidade socializadora são mais eficazes na prevenção aos novos tipos delitivos do que medidas de política social ou econômica, ou, ainda, de medidas decorrentes da intervenção do Direito Civil ou Administrativo.


Por outro lado, é possível verificar, paralelamente à preocupação com as novas formas assumidas pela criminalidade, o surgimento de um discurso penal voltado à persecução da criminalidade “clássica” ou “tradicional” levada a cabo pelas camadas socialmente excluídas e que decorre, como salienta Díez Ripollés (2007, p. 92), de “equiparaciones conceptuales que, basándose em la equivocidad de certos términos, tratan como realidades idénticas unas que presentan caracteres muy distintos e incluso contrapostos.” O velho discurso da “lei e ordem” é retomado, assim, para a persecução daqueles delitos que são considerados “la dimensión no tecnológica de la sociedad del riesgo” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 92), estabelecendo “uma ecuación de igualdad entre el sentimiento de inseguridad ante los nuevos riesgos masivos que desencadena el progreso tecnológico, y el sentimiento de inseguridad callejera ligado al miedo a sufrir un delito en el desempeño de las actividades cotidianas.” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 93).


Os conceitos de “risco” e de “expansão”, assim, ocupam o centro do processo de “modernização” do Direito Penal, expressando a idéia de que a atenção à nova realidade delitiva – tanto em seu viés “tecnológico” (nova criminalidade) quanto “não tecnológico” (criminalidade tradicional) – perpassa pela ampliação do seu campo de atuação (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007). Meliá (2005a, p. 56), atento a esta realidade, refere que, na evolução atual das legislações penais do mundo ocidental, o fenômeno mais destacado é o “surgimento de múltiplas figuras novas, inclusive, às vezes, do surgimento de setores inteiros de regulação, acompanhada de uma atividade de reforma de tipos penais já existentes, realizada a um ritmo muito superior ao de épocas anteriores.”


Uma análise mais detida de tais “reformas” do Direito Penal revela que elas são tributárias, em grande parte, da influência cada vez maior dos meios de comunicação de massa na formação da opinião pública acerca do crime e da criminalidade, por meio do processo de “importação”[2] de discursos repressivistas gestados para atender a outros tipos de realidade social, mas que encontram alta receptividade na população brasileira. Com isso, os mass media promovem, em decorrência de interesses meramente mercadológicos, um falseamento dos dados da realidade social, gerando enorme alarde ao vender o “crime” como um rentável produto[3], o que redunda no aumento do clamor popular pelo recrudescimento da intervenção punitiva e na conseqüente pressão sobre os poderes públicos para que as reformas penais para tanto necessárias sejam efetivamente levadas a cabo. E os poderes públicos, por sua vez, “conocedores de los significativos efectos socializadores y, sobre todo, sociopolíticos que la admisión de tales demandas conlleva, no sólo se muestran proclives a atenderlas sino que con frecuencia las fomentan.” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2008, p. 66).


O Direito Penal vê-se, assim, transformado em um instrumento que passa a ser utilizado politicamente para a busca de fins que não lhe são próprios em um Estado Democrático de Direito, ou seja, quando manejado no sentido de dar respostas “eficazes” às novas formas de criminalidade, assume um caráter meramente simbólico[4], dado que proporciona resultados político-eleitorais imediatos a partir da criação, no imaginário popular, da “impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido” (SILVA SÁNCHEZ apud MELIÁ, 2005a, p. 59). Assiste-se, nesse contexto, ao processo de consolidação de uma legislação conveniente aos interesses políticos de curto prazo, na qual, conforme salienta Paul (1991, p. 122), “los símbolos jurídicos poseen […] una función manipulativa. Crean deslumbramiento, tranquilidad e ilusiones. Éstos representan uma fictícia realidade y estructuran una falsa conciencia forjadora igualmente de autoengaño.” Com isso, não se questiona a efetividade da norma, uma vez que se busca demonstrar que sua mera existência no ordenamento jurídico basta para a solução de um determinado problema social, encobrindo, assim, a incapacidade do Estado nesse sentido.


Por outro lado, também permeia o processo de expansão do Direito Penal, a par do simbolismo, a retomada do punitivismo/eficientismo, o que se verifica a partir da introdução de novas normas penais aos ordenamentos jurídicos no intuito de promover, efetivamente, a sua aplicação com toda firmeza, bem como a partir do endurecimento das penas cominadas às normas já existentes para a persecução da criminalidade “tradicional” (MELIÁ, 2005a). A tendência do legislador, aqui, sob a influência do discurso da “lei e ordem”, é reagir com “firmeza” no marco da “luta” contra a criminalidade, chegando-se, em alguns casos, a medidas repressivas tão drásticas que se configuram em mecanismos de inocuização do delinqüente (MELIÁ, 2005a).


Não obstante tratarem-se o simbolismo e o punitivismo/eficientismo de fenômenos diversos, conforme salienta Meliá (2005b, p. 93), deve ficar claro que tanto um quanto o outro constituem “aproximações fenotípicas parciais de uma evolução que mistura ambos os aspectos, que não aparecem de maneira clinicamente ‘limpa’ na realidade legislativa.” Com efeito, a promulgação de uma lei “punitivista” gera imediato impacto nas estatísticas criminais e, paralelamente, sua mera promulgação gera efeitos “simbólicos” sobre a população em geral. Da mesma forma, uma lei que nasce para cumprir com um papel meramente simbólico pode efetivamente vir a desencadear um processo penal “real” (MELIÁ, 2005 a; 2005b).


Assim, ao contrário do que parece a partir de uma análise perfunctória, o Direito Penal simbólico e o punitivista/eficientista não se excluem mutuamente. Eles se integram. Meliá (2005a, p. 65) explica como se dá a intersecção:


“o Direito penal simbólico não só identifica um determinado “fato”, mas também (ou: sobretudo) um específico tipo de autor, que é definido não como igual, mas como outro. Isto é, a existência da norma penal – deixando de lado as estratégias técnico-mercantilistas, a curto prazo, dos agentes políticos – persegue a construção de uma determinada imagem da identidade social, mediante a definição dos autores como “outros”, não integrados nessa identidade, mediante a exclusão do “outro”. E parece claro, por outro lado, que para isso também são necessários os traços vigorosos de um punitivismo exacerbado, em escala, especialmente, quando a conduta em questão já está apenada. Portanto, o Direito penal simbólico e o punitivismo mantêm uma relação fraternal.”


E é justamente dessa simbiose entre o simbolismo e o punitivismo/eficientismo penal que exsurge o modelo de política de prevenção criminal que tem ocupado lugar de destaque no discurso jurídico-penal brasileiro contemporâneo, a enveredar para a implementação de um modelo de Direito Penal máximo que pode ser facilmente identificado com as teses do Direito Penal do Inimigo defendido por Günther Jakobs. Tal modelo de intervenção penal, em que pese ir de encontro àquele preconizado pela Constituição Federal, é o que vem sendo implementado no país por meio das alterações operadas nas últimas décadas na legislação penal infraconstitucional, razão pela qual se afigura de curial importância a sua adequação constitucional, como se procurará demonstrar a seguir.


2. O direito penal do inimigo como produto da simbiose entre simbolismo e punitivismo/eficientismo penal e a necessidade de adequação constitucional da legislação penal brasileira


O processo de expansão do Direito Penal, tanto pela via do simbolismo quanto do punitivismo/eficientismo, “implica reconsiderar o flexibilizar el sistema de imputación de responsabilidad y de garantías individuales vigentes, lo que se ha de hacer en función de la necesidad políticocriminal de mejorar la efectividad em la persecución y encausiamento penales.” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 85). Tal fenômeno expansivo representa, assim, segundo Prittwitz (2004), um aumento do poder do Estado, paralelamente à redução das liberdades civis, tornando-se, muitas vezes, difícil distinguir o Direito Penal da guerra civil e da própria guerra em si.


E a metáfora da “guerra contra a criminalidade” é justamente o ponto de partida da construção teórica do Direito Penal do Inimigo, categoria criada pelo penalista alemão Günther Jakobs (2005) para, em contraposição ao Direito Penal do Cidadão, designar as concepções de autor das quais deve partir o Direito Penal no enfrentamento da criminalidade contemporânea, diante da compreensão de que, na sociedade de risco, existem indivíduos que devem ser diferenciados como inimigos em relação aos demais cidadãos. Ou seja, “a ‘metáfora da guerra’ institui um sistema penal ‘paralelo’, onde a justiça criminal e as forças da ordem assumem uma forma bélica.” (DORNELLES, 2008, p. 47).


De acordo com a distinção operada por Jakobs (2005), o Direito Penal do Cidadão define e sanciona delitos cometidos pelos cidadãos de um modo incidental, sendo, geralmente, a expressão de um abuso pelos mesmos das relações sociais em que participam na condição de sujeitos vinculados pelo Direito, ou seja, na condição de sujeitos que fornecem garantias cognitivas de que se comportarão enquanto “pessoas” (MARTÍN, 2005). O delito de um cidadão, para Jakobs (2005, p. 32), “não aparece como princípio do fim da comunidade ordenada, mas só como infração desta, como deslize reparável.” A função da pena, destarte, é reafirmar, contrafaticamente, a vigência da norma infringida pelo cidadão, de forma a confirmar a identidade social (JAKOBS, 2005).


Diferentemente do cidadão que delinqüiu, o inimigo é aquele que se afasta do ordenamento jurídico de forma permanente, não oferecendo nenhuma garantia de fidelidade às normas. Assim,


“puesto que la existencia de enemigos en el sentido descrito es um hecho real, y puesto que la falta de seguridad cognitiva existente con respecto a ellos – esto es, el peligro que los mismos representam para la vigencia del ordenamiento jurídico – es um problema que no puede ser resuelto con el Derecho penal ordinario (del ciudadano) ni tampoco com medios policiales, de ahí resulta la necesidad – que no tiene ninguma alternativa posible – de configurar um Derecho penal del enemigo diferenciado em sus principios y en sus reglas.” (MARTÍN, 2005, p. 7).


O inimigo, portanto, ao contrário do cidadão, não pode ser tratado pelo Direito Penal enquanto “pessoa”, mas combatido enquanto “não-pessoa”, dado que “um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa.” (JAKOBS, 2005, p. 36). O inimigo, por constituir uma fonte permanente de perigo, não merece tratamento diverso da mera eliminação do tecido social, ou seja, da inocuização: eis a função da pena no Direito Penal do Inimigo, portanto.


O modelo de Direito Penal a ser implementado para a consecução deste objetivo – inocuização do inimigo – é dotado de características especiais, dentre as quais destaca-se, de acordo com Callegari e Motta (2007): a) incrementação da criminalização a partir da proliferação de bens jurídicos de natureza coletiva, intangíveis ou abstratos; b) criminalização de atos de mera conduta, que prescindem da efetiva lesão aos bens jurídicos tutelados; c) antecipação da intervenção penal ao estágio prévio à efetiva lesão do bem jurídico, generalizando-se a punição de atos preparatórios, como, por exemplo, a associação criminosa; d) ampliação da discricionariedade das autoridades policiais; e) aumento indiscriminado do limite de tempo da pena de prisão; f) alterações nas regras de imputação e no sistema de garantias penais e processuais, a partir da proliferação de tipos penais pouco precisos e de leis penais em branco, bem como da introdução da idéia de efetividade como princípio norteador do processo penal, ainda que à custa da flexibilização, senão da supressão, das garantias dos acusados.


Todas essas características são facilmente verificadas na legislação penal infraconstitucional que vem sendo produzida nas últimas décadas[5] no Brasil. Com efeito, em nosso ordenamento jurídico são encontradas inúmeras normas que podem ser identificadas, dentro do processo expansivo do Direito Penal, como Direito Penal do Inimigo, podendo ser citadas, a título exemplificativo: a) a Lei n. 7.492/1986 que, ao definir os crimes contra o sistema financeiro nacional, elencou como delito a “gestão temerária de instituição financeira” (art. 4º, parágrafo único), sem delimitar a tipicidade de tal conduta, limitando-se simplesmente a referir o nomen juris da figura típica; b) a Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90), que, ao definir como hediondas condutas já previstas no Código Penal, alterou consideravelmente as penas a elas cominadas e restringiu as garantias processuais dos autores de tais delitos; c) a Lei de Combate ao Crime Organizado (Lei n. 9.034/1995), que criou a figura do “juiz investigador”, permitindo a introdução de técnicas de escuta e de investigação altamente lesivas às liberdades individuais, bem como a figura do “flagrante retardado”, cuja inspiração parece ter sido hollywoodiana (art. 2º); d) a Lei n. 9.613/1998, que, ao dispor sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, tipifica condutas relacionadas ao terrorismo e ao crime organizado sem que tais condutas sejam descritas; e) o Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003), que ampliou as figuras típicas e passou a penalizar mais severamente as condutas de perigo referentes à posse e ao porte ilegal de armas, declarando-os como inafiançáveis e prevendo penas que, às vezes, ultrapassam as cominadas para crimes como lesões e até mesmo o homicídio; f) a Lei n. 10.792/2003, que alterou a Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984) instituindo o Regime Disciplinar Diferenciado na execução da pena de prisão, permitindo o isolamento do preso provisório ou do condenado por até um ano, buscando, assim, atingir os integrantes de organizações criminosas e prevendo, na prática, uma modalidade de pena cruel com fins notadamente inocuizadores.


Referidas leis, em que pese integrarem o ordenamento jurídico-penal brasileiro, vão frontalmente de encontro ao modelo de intervenção penal preconizado pela Constituição Federal, o qual se expressa por meio de um Direito Penal mínimo, “ou seja, através do espaço residual que se reserva para a intervenção punitiva dentro dos limites impostos pelos dispositivos constitucionais nos marcos de uma política integral de proteção dos direitos humanos.” (DORNELLES, 2008, p. 52). Não obstante isso, tais leis são recepcionadas pela maioria da população e da comunidade jurídica nacional como “avanços legislativos”, uma vez que respaldadas por discursos político-midiáticos falaciosos que criam imagens distorcidas da realidade, propondo como estratégia primeira de segurança pública o endurecimento das penas aliado à supressão de garantias e à busca pela superação da impunidade, olvidando-se de que o aumento do número de condutas definidas como criminosas, assim como o maior rigor na aplicação da pena, significam tão somente mais pessoas encarceradas e não necessariamente menos conflitos sociais em um país profundamente marcado pela desigualdade social desde os primórdios de sua história.


Como salienta Díez Ripollés (2007, p. 101), no processo expansivo do Direito Penal, “el énfasis […] se coloca en los síntomas y no em las causas de la criminalidad, y el control penal adquiere primacía sobre cualquier otro tipo de política social o jurídica.” Esquece-se, assim, segundo Prittwitz (2004), seja pela importação de ideologias penais, seja pela influência dos meios de comunicação de massa na formação de opinião, que não se pode, por meio do Direito Penal, resolver todos os problemas sociais, mas, algumas vezes, até mesmo piorá-los, quando este Direito é aplicado de maneira muito freqüente, rígida ou incorreta.


Pelo contrário, a expansão do Direito Penal redunda na redução da capacidade do sistema punitivo de efetivamente perseguir e punir todos os delitos conforme o preconizado pelo legislador, de forma que a impunidade e a seletividade tornam-se as principais regras da sua atuação, deslegitimando-o. Neste sentido, deve-se frisar que a função de prevenção geral, ou seja, de intimidação à prática de novos delitos, somente funciona caso o sistema penal alcance a maioria dos crimes, o que, na atualidade, em face das inúmeras possibilidades de intervenção punitiva previstas, é impossível, até por questões de insuficiência de recursos operacionais (quadro deficitário de pessoal na polícia e no Judiciário, falta de espaço nas prisões, etc), o que resulta em um processo de banalização da resposta punitiva que muito pouco contribui para a resolução dos conflitos sociais por meio da intervenção penal.


Paralelamente a isso, há o perigo representando pela flexibilização/supressão das garantias penais estabelecidas pela Constituição Federal que se tem verificado na legislação penal brasileira, instituídas sob o argumento de que é conveniente flexibilizar/suprimir tais garantias a fim de que o sistema punitivo possa desempenhar mais fácil e eficazmente sua função de proteção social diante das novas formas assumidas pela criminalidade. Com isso, para a proteção da sociedade contra tais “riscos”, criam-se novos riscos, quais sejam, os político-criminais, que se manifestam precipuamente nas teses do Direito Penal do Inimigo e que são insustentáveis por estarem diretamente relacionadas a uma visão simbólica do Direito Penal, ou seja, da sua compreensão enquanto instrumento de estabilização social e não de defesa de bens jurídicos.


Assim, sob uma perspectiva crítica, é possível afirmar que o “mérito” de Jakobs, a partir da formulação teórica do Direito Penal do Inimigo, é justamente revelar a “face oculta” do modelo de Direito Penal que vem sendo implementado há longa data no Brasil. Segundo Callegari e Motta (2007, p. 11), “embora a obra de Jakobs possa ser criticada sob uma ótica, demonstra, por outro lado, processos legislativos de exceção já existentes, apenas não reconhecidos por este nome.” Tal panorama acena, conseqüentemente, para a premência de um processo de filtragem constitucional do Direito Penal pátrio que lhe restitua a legitimidade, permitindo que permaneçam vigentes tão somente aquelas normas que possuam fundamentação antropológica e que, em decorrência disso, priorizem a vida e a dignidade da pessoa humana, ensejando, assim, uma atuação racional do sistema punitivo, em consonância com o modelo preconizado pela Carta Magna.


Para além disso, faz-se também necessária “a vigência de uma política de desenvolvimento social e proteção integral dos direitos humanos […] que contenha a violência estrutural e a desigualdade, possibilitando o desenvolvimento humano.” (DORNELLES, 2008, p. 53). Afinal, toda e qualquer resposta à deslegitimação enfrentada pelo sistema penal importa em repensar o próprio modelo de sociedade no qual o mesmo se assenta. E parece ser justamente essa a proposta constitucional: a construção de uma sociedade isonômica na qual um modelo de Direito Penal mínimo é o único que se justifica, haja vista que, uma vez identificadas e sanadas as origens sociais da criminalidade, a intervenção penal somente se realiza em casos extremos, quais sejam, os de fracasso das políticas sociais. Somente assim, a partir da implementação de uma política de prevenção à criminalidade orientada em políticas sociais públicas que atuem nas suas origens, é que se poderá implementar no país um modelo de Direito Penal mínimo e garantista, reduzindo-se o alto grau de arbitrariedade, desigualdade e seletividade que marcam a história do sistema punitivo brasileiro.


 


Referências:

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CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Trad. Luís Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. De la sociedad del riesgo a la seguridade ciudadana: um debate desenfocado. In. CALLEGARI, André Luís (org). Política Criminal, Estado e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 81-128.

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DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombos e falcões. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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MELIÁ, Manuel Cancio. “Direito Penal” do Inimigo? In. CALLEGARI, André Luís; GIACOMOLLI, Nereu José (org. e trad.). Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005a, p. 51-81.

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PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n. 47, 2004, p. 31-45.

 

Notas:

[1] Segundo Beck (1998), o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial, impondo-se a necessidade de considerar a questão da autolimitação do desenvolvimento que desencadeou essa sociedade. A potenciação dos riscos da modernização caracteriza, assim, a atual sociedade de risco, que está marcada por ameaças e debilidades que projetam um futuro incerto.

[2] Meliá (2005b, p. 105) salienta, nesse sentido, que o processo de globalização, por meio de vias formais e informais, faz com que os ordenamentos penais nacionais se tornem cada vez “mais porosos à incorporação de elementos jurídico-penais provenientes de tradições distintas.”

[3] Christie (1998, p.1) alerta para o crescimento da indústria do controle do crime, a qual, no seu entender, ocupa uma posição privilegiada, haja vista “que não há falta de matéria-prima: a oferta de crimes parece ser inesgotável. Também não tem limite a demanda pelo serviço, bem como a disposição de pagar pelo que é entendido como segurança. E não existem os habituais problemas de poluição industrial. Pelo contrário, o papel atribuído a esta industria é limpar, remover os elementos indesejáveis do sistema social.”

[4] De acordo com Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 293), afirmar “que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não empírica) destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à qual serve de complemento e sua eficácia reside na aptidão para produzir um certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função de ‘engano’.”

[5] Dornelles (2008, p. 8) identifica o início do recrudescimento punitivo brasileiro com a implantação, no país, do modelo neoliberal, a partir da década de oitenta do século passado.


Informações Sobre os Autores

Maiquel Dezordi Wermuth

Mestrando em Direito pela UNISINOS- Universidade do Vale do rio dos Sinos. Professor da Universidade Regional do Noroeste do estado do RioGrande do Sul – UNIJUI. Advogado.

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela UFPR. Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), professora do Programa de Mestrado em Direito da FURG. Professora responsável pelo Grupo de Estudos da FURG sobre o Constitucionalismo Latino-Americano. Advogada. Membro da Comissão de avaliação dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Capes (2014)