Resumo: O presente estudo analisa a possibilidade jurídica do aborto, considerando as questões éticas, morais, religiosas e jurídicas que envolvem o problema. O estudo se inicia com uma análise a respeito do início da vida, seguindo para o tratamento dado ao direito à vida na Constituição Federal e ao aborto na legislação penal brasileira.
1 INTRODUÇÃO
A questão do aborto envolve três grandes pilares: o Direito, a Moral e a Religião.
Na antiguidade, entre os gregos e hebreus, a pratica do aborto era lícita em determinada época. Licurgo e Sólon a proibiram. Sócrates o renegava, com a declaração “A nenhuma mulher darei substância abortiva”.
A primeira referência legal histórica ao aborto aparece no Digesto. O aborto era punido com o desterro, a principio, por razões ligadas à indignidade da mulher de não dar herdeiros ao marido. O mesmo Digesto passou então a punir o aborto por razões morais, condenando seus praticantes à pena de morte.
Com a influência do Cristianismo, leis muito severas foram editadas. A Igreja Católica sempre negou licitude ao aborto, em qualquer condição. A Igreja não o autoriza para interromper a gravidez resultante de estupro e nem mesmo para salvar a vida da gestante: o médico deve então entregar nas mãos de Deus seus destinos.
Para analisar a possibilidade jurídica do aborto é necessário estabelecer quando se dá o inicio da vida. Há que admita como início da vida o momento da concepção, ou seja, o exato momento em que ocorre a união entre o óvulo e o espermatozóide, porém, há aqueles que admitem a vida somente após a viabilidade, ou seja, a partir do 24º dia. Outros entendem que o caráter humano não está vinculado a uma quantidade de células, mas sim a uma questão de valor.
A seguir, realiza-se uma análise do tratamento do direito à vida na Constituição Brasileira e o tratamento do aborto na legislação penal brasileira através da história.
A partir disto, pretende-se criar uma base para a discussão da possibilidade de legalização do aborto.
2 O ABORTO
Flamíneo Fávaro define o aborto em seu sentido genérico como “a interrupção da gestação, com morte do produto da concepção.
Tardieu conceitua o aborto como
“A expulsão prematura e violentamente provocada do produto da concepção, independentemente, de todas as circunstancias de idade, viabilidade e mesmo de formação regular do feto.”
Para Lydio de Machado Bandeira de Mello
“É a ejeção provocada (voluntária ou intencional) de um feto, antes de terminada a gestação normal, e em estado de inviabilidade. Ou: É a ejeção dolosa de um feto em estado de não poder vir a ser uma criança.”
Já para Caetano Zamitti Mammana
“À luz médico-legal e jurídica, o abortamento é a interrupção da gravidez antes de ter logrado o limite fisiológico normal, entendendo-se por fruto da concepção o ovo em sua evolução normal, desde o momento da concepção até o parto a termo, isto é, o fim do ciclo da vida intra uterina.”
A definição exata do aborto criminoso é dada por Hélio Gomes:
“É a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção, até momentos antes do parto”. Hélio Gomes fala em interrupção ilícita, isto é, não autorizada por lei, conceituando assim, a conduta criminosa.
3 O ABORTO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA
A legislação penal brasileira contemplou o aborto pela primeira vez em 1830, com a promulgação do Código Criminal. Em seu artigo 199, este código trazia duas figuras, a do aborto consentido e do aborto sofrido. O aborto procurado não era punido, de forma que, a gestante era excluída de sanção penal, e a punição somente era imposta a terceiros, responsáveis pela prática do abortamento.
No aborto procurado a própria mulher é responsável pela interrupção do ciclo normal da gravidez. No aborto sofrido, há recusa da mulher na prática da intervenção, esta não dá consentimento, não colabora, não coopera para o resultado ilícito, repudiando a utilização dos métodos abortivos. No aborto consentido a mulher consente com o aborto praticado por terceiro.
No Código de 1890, o assunto era tratado com maior profundidade. Tanto o aborto com expulsão ou sem expulsão do produto da concepção eram punidos como ilícitos penais, de forma que quando houvesse a expulsão a pena era mais rigorosa. O aborto consentido e o aborto procurado, se praticados para ocultar desonra, tinham atenuação da pena. O aborto sofrido, no caso de morte da gestante, tinha sua pena majorada, da mesma forma que o crime praticado por quem tivesse título científico.
O Código Penal de 1890 permitia a prática do aborto quando fosse necessário para salvar a vida da gestante de morte inevitável. Era punida a imperícia do médico ou da parteira que culposamente causassem a morte da mulher.
No Código Penal de 1940, ainda em vigor, são puníveis os três tipos de aborto citados: o aborto procurado, o aborto sofrido e o aborto consentido.
Na legislação penal brasileira existem duas formas de aborto que não são reprimidas. Uma delas é o chamado aborto terapêutico, quando a intervenção é imprescindível para salvar a gestante de morte certa, contemplado no artigo 128, inciso I do Código Penal. Segundo Mirabete
“O aborto necessário (ou terapêutico) que, no entender da doutrina, caracteriza caso de estado de necessidade (que não existiria no caso de perigo futuro). Para evitar qualquer dificuldade, deixou o legislador consignado expressamente a possibilidade de o medico provocar o aborto se verificar ser esse o único meio de salvar a vida da gestante. No caso não é necessário que o perigo seja atual, bastando a certeza de que o desenvolvimento da gravidez poderá provocar a morte da gestante. O risco de vida pode decorrer de anemias profundas, diabetes, cardiopatias, tuberculose, câncer uterino etc. Tais riscos, porém atualmente podem ser superados tendo em vista a evolução da medicina e cirurgia.”
O inciso II, do artigo 128, torna isento de pena o aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro, com o prévio consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Segundo Nelson Hungria:
“Nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida. Trata-se do aborto também denominado aborto sentimental. Sua permissão originou-se nas guerras de conquista, quando mulheres eram violentadas por invasores execrados, detestados, e deveriam, caso não interrompida a gravidez decorrente da cópula forçada, arcar com a existência de um filho que lhes recordaria sempre a horrível experiência passada.”
4 A POSSIBILIDADE JURÍDICA DO ABORTO
Sobre o direito à vida e o aborto, discorre Maria Helena Diniz:
“A vida é igual para todos os seres humanos. Como então se poderia falar em aborto? Se a vida humana é uma bem indisponível, se dela não pode dispor livremente nem mesmo seu titular pra consentir validamente que outrem o mate, pois esse consenso não terá o poder de afastar a punição, como admitir o aborto, em que a vitima é incapaz de defender-se, não podendo clamar por seus direitos? Como acatar o aborto, que acoberta em si, seu verdadeiro conceito jurídico: assassinato de um ser humano inocente e indefeso? Se a vida ocupa o mais alto lugar na hierarquia de valores, se toda vida humana goza da mesma inviolabilidade constitucional, como seria possível a edição de uma lei contra ela? A descriminalização do aborto não seria uma incoerência do sistema jurídico? Quem admitir o direito ao aborto deveria indicar o princípio jurídico de qual ele derivaria, ou seja, demonstrar cientifica e juridicamente qual principio seria superior ao da vida humana, que permitiria sua retirada do primeiro lugar da escala de valores? A vida extra-uterina teria uma valor maior que a intra-uterina? Se não se levantasse a voz para defesa da vida de um ser humano inocente, não soaria falso tudo que se dissesse sobre os direitos humanos desrespeitados? Se não houver respeito a vida de uma ser humano indefeso e inocente, por que iria alguém respeitar o direito a um lar, a um trabalho, a alimentos, à honra, à imagem etc. . .Como se poderá falar em direitos humanos se não houver a preocupação com a coerência lógica, espezinhando o direito de nascer?”
Contraposto ao interesse jurídico instituído no artigo 5º da Constituição Federal, que garante o direito à vida, encontra-se o direito da gestante à intimidade, á privacidade, e o direito de dispor do próprio corpo.
Há, portanto, um conflito de interesses. De um lado, está o ser que está sendo gerado, e no outro, a gestante, que não tem interesse em levar a termo a gravidez por motivos próprios que para ela são relevantes.
Este é o ponto chave da discussão uma vez que pontos de vista religiosos, legislativos e filosóficos entram em conflito. Colidem o princípio do direito à vida, do viver, que é garantido ao nascituro pela Constituição Federal e o direito à autonomia, à liberdade, à privacidade, ao determinar e gerir o próprio corpo reivindicado pela gestante.
Em face ao choque de dois direitos garantidos por princípios e regras constitucionais, o julgador deverá fazer a valoração de cada qual de per si. Tarefa árdua onde valores éticos, sociais, morais, religiosos e legais deverão ser analisados de forma a se obter como produto final a justiça.
Ocorrendo a “colisão de princípios”, necessariamente, um deverá suplantar o outro. Observe-se, entretanto que não haverá jamais a invalidação do princípio suplantado, mas apenas o seu preterimento justificado frente ao outro princípio, preterição esta que tem como base a “regra da ponderação” onde o preterimento de um princípio em relação a outro só se justifica quando o grau de importância de satisfação do princípio oposto é maior.
Com base no direito à liberdade e à intimidade, acredito ser possível a descriminalização do aborto no Brasil.
Foi apresentado ao Congresso Nacional, em 27 de setembro de 2005, um projeto de lei, que está tramita na Câmara dos Deputados sob a denominação de Substitutivo do PL nº 1.135/91. O texto define o aborto como um direito da mulher, ao mesmo tempo em que extingue todos os artigos do Código Penal brasileiro que o definem como conduta típica. O projeto prevê a permissão do aborto até a 12ª semana da gravidez, e prevê que os hospitais públicos realizem o aborto mediante simples consentimento da gestante ou de seu responsável legal.
Na justificativa do projeto de lei
“O presente projeto de lei tem por objetivo atualizar o Código Penal, adaptando-o aos novos valores e necessidades do mundo atual, particularmente no sentido do reconhecimento dos direitos da mulher como pessoa humana. Com a apresentação dessa proposta damos continuidade ao projeto de lei apresentado em outra legislatura pelo ex. deputado Eduardo Jorge.”
“O artigo que suprime penaliza duramente a gestante que provoca aborto ou consente que outro o realize. Esta é uma disposição legal ultrapassada e desumana.”
“Código Penal data de 1940 e, nestes últimos 50 anos, nossa sociedade passou por profundas transformações, notadamente no que se refere ao papel da mulher. Sua participação tem-se caracterizado, entre outros aspectos, pela crescente sobrecarga de trabalho, associando suas funções domésticas às do trabalho assalariado, quase sempre em condições desfavoráveis em relação aos demais trabalhadores.”
“São essas mulheres, em sua maioria de classe social baixa, obrigadas a submeter-se a prática do aborto, que vão compor a triste estatística de cerca de 4.000.000 (quatro milhões) de casos em todo Brasil. Essa Prática realizada sem as condições técnicas necessárias tem provocado um alto índice de mortalidade, contribuindo fortemente para levar o País a uma taxa de mortalidade materna várias vezes superior às dos países da Europa.”
“Portanto, a lei não pode pretender punir baseando-se apenas na compreensão isolada e individual do ato e desconsiderando toda a realidade social a que está submetida a mulher brasileira.”
“Ademais, é absolutamente desnecessário e desumano querer aplicar penalidade a uma pessoa que já foi forçada a submeter-se a tamanha agressão. A gestante, quando provoca aborto em si mesma ou permite que outro o faça, está tomando uma providência extrema que a violenta física, mental e moralmente.”
“Pelo exposto e no sentido de reparar mais uma entre as várias injustiças contra a mulher, conclamamos os ilustres pares a aprovar este projeto de lei.”
CONCLUSÃO
Segundo estimativas do Ministério da Saúde, cerca de 200 mil brasileiras realizam abortos todos os anos, em clínicas clandestinas, em condições precárias, correndo grande risco de vida. Muitas delas morrer por complicações decorrentes de procedimentos mal realizados. Segundo o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a questão é um problema de saúde pública. O aborto no Brasil é uma realidade, e os legisladores precisam se adaptar a ela.
A Constituição Federal, que garante o direito à vida, não deveria também garantir o direito à vida destas mulheres que, marginalizadas, não tem outra opção senão a de arriscar suas vidas em clínicas clandestinas? E, não fosse suficiente a violência física, mental e até mesmo moral que enfrentam, ainda são consideradas criminosas pela legislação em vigor, que se encontra ultrapassada em relação à sociedade atual, principalmente no que diz respeito ao papel da mulher.
Assim, a norma penal se torna ineficaz, pois com o intuito de se proteger a vida do feto, acaba por se violar as garantias da gestante, como a garantia à saúde, à dignidade, à liberdade e até mesmo à vida, tendo em vista que as intervenções abortivas realizadas em clínicas abortivas muitas vezes apresentam alto risco de mortalidade.
Com base nestes princípios – a garantia à saúde, á liberdade, à intimidade e ao direito de dispor do próprio corpo – entendo possível a descriminalização do aborto no Brasil, de forma que os direitos da mulher possam ser reconhecidos e que ela possa dispor de assistência integral e apoio no tocante à decisão de não levar a termo uma gravidez indesejada. Creio que deve haver, no entanto, um limite temporal para a interrupção da gravidez, uma vez que o risco para a gestante aumenta conforme o decurso do tempo, como prevê o projeto de lei nº 1.135/91, que autoriza o aborto até a 12ª semana de gravidez.
Informações Sobre o Autor
Cláudia Franco.
Acadêmica de Direito da Universide Presbiteriana Mackenzie