Resumo: Através de pesquisa bibliográfica e do emprego de técnicas de leitura analítica e fichamento, assim como estudo comparativo de diversas teorias, tal trabalho tem por objetivo defender, através de uma análise crítica, a relativização da coisa julgada contrária a carga valorativa da Constituição Federal, a qual violenta o princípio norteador e informativo da ordem jurídica interna, qual seja: princípio da supremacia da constituição. O referido princípio determina que todos os atos do poder público, assim como o ordenamento jurídico, devem estar em harmonia com a Carta Magna. Nessa via, a decisão judicial, ato do Poder Judiciário, também está submetida ao crivo da constitucionalidade, não se admitindo que seu comando seja desconforme ao texto constitucional. A idéia é demonstrar que o decisum contaminado pelo vício insanável da inconstitucionalidade é absolutamente nulo, não podendo ser tutelado pelo caráter imutável da coisa julgada. A ordem jurídica pátria não tolera que seus preceitos constitucionais sejam infringidos impunemente. Assim, a invalidade do pronunciamento judicial, a qual não está adstrita aos prazos prescricionais e decadenciais, se apresenta com uma sanção sui generis, haja vista recusar que se operem os efeitos do referido ato. Ademais, o fundamento da coisa julgada, conferir certeza e segurança jurídica às relações internas, não é suficiente para garantir a intangibilidade da coisa julgada inconstitucional. Este não é valor absoluto na ordem jurídica, devendo ceder quando valores maiores, como os da constitucionalidade e da justiça das decisões judiciais, são violentados, tudo em nome da harmonia do sistema jurídico nacional. Nesse sentido, lança-se mão dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, visando-se manter o equilíbrio legal. Comprovada a possibilidade de, em casos excepcionalíssimos e a qualquer tempo, se relativizar a coisa julgada, apresentam-se como meio idôneos a tal os seguintes mecanismos: ação rescisória, ação declaratória de nulidade, impugnação de cumprimento de sentença e exceção de pré-executividade.
Palavras-chaves: coisa julgada inconstitucional; princípio da supremacia da constituição ou da constitucionalidade; justiça; segurança jurídica; Constituição Federal; poder judiciário.
Sumário: 1. Introdução ; 2. Coisa julgada; 2.1. Conceito e fundamento; 2.2. Coisa julgada formal e coisa julgada material; 2.3. Limites objetivos e subjetivos; 2.3.1. Limites objetivos; 2.3.2. Limites subjetivos; 2.4. Tratamento legal da imutabilidade da coisa julgada; 3. Coisa julgada inconstitucional e sua realtivização; 3.1. O princípio da constitucionalidade ou da supremacia da constituição; 3.2. Coisa julgada inconstitucional; 3.3. Nulidade da coisa julgada inconstitucional; 3.4. Segurança jurídica: valor absoluto? 3.5. Conflito aparente de princípios; 3.6. Algumas decisões judiciais de relativização da coisa julgada;
4. Instrumentos idôneos a desconstituição da coisa julgada inconstitucional; 4.1. A ação rescisória e sua problemática; 4.2. Ação declaratória de nulidade; 4.3. Impugnação ao cumprimento de sentença; 4.4. Exceção de pré-executividade; Considerações finais; Referências;
1. INTRODUÇÃO[1]
A partir de pesquisa e estudo bibliográfico, o presente trabalho procura, através de uma análise crítica, defender a relativização da coisa julgada, sempre que esta for contrária a preceito ou princípio constitucional, sendo manifestamente injusta, e não mais exista a possibilidade de impugná-la por meio da ação rescisória; indicando, ainda, os mecanismos processuais idôneos a proposição de desconstituição da res iudicata.
Primeiramente, busca-se analisar o instituto da coisa julgada, discorrendo sobre seu conceito e seu fundamento; apontando as espécies pelas quais se manifesta no processo; traçando seus limites; estabelecendo seus efeitos; e, por fim, com base no tratamento legal que lhe conferem a CF/88 e o CPC, busca-se descobrir donde provém seu caráter imutável.
Em momento subseqüente, tenta-se tratar especificamente da relativização da coisa julgada, inicialmente abordando o princípio da supremacia da constituição; ato contínuo definindo a coisa julgada inconstitucional; após demonstrando que a coisa julgada inconstitucional não produz efeitos no mundo jurídico, sendo absolutamente nula; em seguida procurando expressar que, mesmo que a res iudicata eivada pelo vício insanável da inconstitucionalidade não fosse nula, ainda assim, o decisum poderia ser desconstituído, haja vista que a segurança jurídica não é valor absoluto na ordem jurídica pátria; a seguir, destacando que os princípios constitucionais da justiça e da segurança jurídica devem ser harmonizados pela aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, donde prevalece o primeiro; e, por fim, destacando algumas decisões judiciais, nas quais se relativizou a coisa julgada inconstitucional.
Finalmente, esforça-se para apresentar os instrumentos processuais idôneos a propositura da relativização da coisa julgada inconstitucional. Começando pela ação rescisória; passando para a ação declaratória de nulidade; tangenciando a esfera da novíssima impugnação ao cumprimento de sentença; e, finalizando na exceção de pré-executividade.
A grande problemática a ser abordada é o dilema enfrentado, por julgadores e doutrinadores, entre a manutenção da coisa julgada inconstitucional, em nome da segurança jurídica, ou a desconstituição da mesma com fulcro nos princípios da supremacia da constituição e, conseqüentemente, da justiçadas decisões judiciais.
Faz-se necessário o estudo de tal temática em virtude da necessidade de demonstrar-se que a “coisa julgada inconstitucional” não pode ser perpetuada em nome da segurança jurídica (fundamento da mesma), sobretudo quando vai de encontro da carga valorativa da Lei Fundamental. O Poder Judiciário deve, por intermédio de seus pronunciamentos, corresponder à expectativa social, promovendo, acima de tudo, o valor justiça, previsto no Preâmbulo e no art. 3º, ambos da CF, para, desta forma, atingir seu objetivo precípuo, qual seja: manutenção da paz social.
2. COISA JULGADA
2.1 Conceito e fundamento
O Estado, no exercício da prestação jurisdicional, tem como escopo solucionar os conflitos de interesses que eventualmente seus cidadãos levam até seu conhecimento, buscando manter a ordem, ou em outras palavras, salvaguardar a paz social. A decisão proferida pelo ente estatal na via jurisdicional que resolve o litígio, decidindo ou não o mérito, é denominada sentença. Impõe-se observar que, embora a Lei 11.232/05 tenha alterado o conceito legal de sentença, disposto no § 1º do art. 162 do CPC, a essência deste ato permaneceu inalterada, haja vista ter-se mantido a sistemática recursal. O que a lei nova fez foi estabelecer um novo critério para sua definição levando em conta não só a finalidade do ato, mas, também, seu conteúdo. Veja-se o ensinamento de Nélson Nery Jr. (2006; p.372):
[…] não se pode definir sentença pelo que estabelece o CPC 162 § 1º, literal e isoladamente, mas sim levando-se em conta o sitema do CPC, isto é, considerando-se também o CPC 162 §§ 2º e 3º, 267 caput, 269 caput, 475-H, 475-M, § 3º, 504 (alterado pela L 11276/06), 513 e 522. O pronunciamento do juiz só será sentença se a) contiver uma das matérias previstas no CPC 267 ou 269 (CPC 162 § 1º) e, cumulativamente, b) extinguir o processo (CPC 162 § 2º, a contrario sensu), porque se o pronunciamento for proferido “no curso do processo”, isto é, sem que lhe se coloque termo, deverá ser definido como decisão interlocutória, impugnável por agravo (CPC 522), sob pena de instaurar-se o caos em matéria de recorribilidade desse mesmo pronunciamento.
Em regra[2], a partir de sua publicação, a sentença torna-se irretratável, ou seja, o mesmo juízo que a proferiu não poderá revogá-la ou modificá-la. Entretanto, à parte vencida restará a possibilidade de impugná-la, dentro de um prazo hábil e por meio de uma das espécies de recursos arroladas no art. 496, do CPC, com base no princípio do duplo grau de jurisdição.
Todavia, a decisão não será indefinidamente passível de reforma, atingir-se-á um dado instante em que será impossível a interposição de qualquer recurso, seja pela preclusão (temporal, lógica ou consumativa), seja pela impropriedade do recurso manejado, seja por não haver mais recurso algum cabível. A partir deste momento a sentença se torna imodificável, tanto pelo judiciário (art. 471, CPC) como pelo legislativo (art. 5º, XXXVI, CF/88), passando a ser concebida como ficção da verdade ou verdade formal, e seus efeitos se projetam indefinidamente para o futuro. Essa estabilidade do decisum, denominar-se-á coisa julgada.
A Lei de Introdução ao Código Civil definiu o instituto ao dispor, em seu art. 6º, § 3º, “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.
Para o professor Vicente Greco Filho, coisa julgada é “a imutabilidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença, que decorre de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis”.
Carlos Valder do Nascimento (2005; p.36) leciona que:
A entidade coisa julgada é entendida como a sentença que alcançou patamar de irretratabilidade, em face da impossibilidade de contra ela ser intentado qualquer recurso. Em concepção objetiva é a que firmou, definitivamente, o direito de um dos litigantes após ter sido apurada pelas vias do devido processo legal.
Por fim, destaca-se a definição do mestre Ovídio Baptista da Silva (2001; p.484), segundo o qual:
[…] se pode defini-la como a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou discuta num processo subseqüente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo a “lei do caso concreto”.
E, continua o doutrinador (Ovídio, 2001; p.486):
[…] A coisa julgada deve ser entendida como uma maneira, ou uma qualidade, pela qual o efeito se manifesta, qual seja a sua imutabilidade e indiscutibilidade, como afirma LIEBMAN, ou simplesmente sua indiscutibilidade, como julgamos preferível dizer.
Tal instituto encontra fundamento no princípio da segurança jurídica, uma das pilastras do Estado Democrático de Direito, que tem por finalidade evitar a perpetuação dos conflitos sociais, por intermédio da atuação do judiciário, no sentido de fazer justiça pela aplicação da vontade da lei ao caso sub judice.
Nota-se, ser esse um fundamento de caráter prático, uma exigência de ordem pública, pois, ao impedir que uma mesma demanda seja proposta várias vezes, o Estado evita a existência de decisões contraditórias sobre uma mesma situação fática, conferindo a tão desejada estabilidade dos direitos coletivos e individuais. Quer-se dizer com isso que a coisa julgada existe pela imposição social de se obter certeza e segurança no gozo dos bens da vida, valores essenciais a qualquer ordem jurídica.
Pertinente colacionar os escritos de Humberto Theodoro Junior e Juliana Cordeiro de Faria (NASCIMENTO, 2005; P. 85):
[…] a incerteza jurídica provocada pelo litígio é um mal não apenas para as partes em conflito, mas para toda a sociedade, que se sente afetada pelo risco de não prevalecerem no convívio social as regras estatuídas pela ordem jurídica como garantia de preservação do relacionamento civilizado.
Daí a importância da função jurisdicional que é desempenhada pelo Estado como parcela de sua própria soberania. Assim é que para realizar, a contento, a pacificação dos litígios entendeu-se necessário dar ao provimento jurisdicional uma condição de estabilidade, de definitividade. Do contrário, mal encerrado o processo, as partes restabeleceriam as divergências e, indefinidamente, a jurisdição voltaria sucessivas vezes a se ocupar da mesma divergência entre os mesmo litigantes. Em síntese, o litígio nunca seria realmente composto.
Entretanto, vale lembrar que o sistema jurídico nacional é regido pelo princípio da supremacia da constituição[3], o qual determina que os atos emanados dos poderes típicos do Estado[4] devem guardar absoluta fidelidade ao texto da Constituição Federal. Nesse diapasão, as decisões judiciais, expressão do exercício da função estatal jurisdicional, devem adequar-se aos ditames constitucionais para que sejam válidas e, por conseguinte, adquiram o caráter de imutabilidade.
2.2 Coisa julgada formal e coisa julgada material
Para a perfeita compreensão do tema abordado deve-se partir da seguinte premissa: coisa julgado é gênero do qual coisa julgada material e coisa julgada formal são espécies. E, é precisamente sob essas duas espécies que o instituto irá se manifestar no processo, por vezes somente na modalidade formal e por outras em ambas as modalidades.
Candido Rangel Dinamarco (2002, p. 7-8), aduz que coisa julgada formal e coisa julgada material não são institutos autônomos, mas, “dois aspectos do mesmo fenômeno de imutabilidade”. Para em seguida explicar que “coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito”, enquanto a espécie formal refere-se à imutabilidade da própria sentença considerada como ato jurídico processual.
O art. 467, do CPC, dispõe que “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Insta esclarecer, oportunas as lições de Vicente Greco Filho (1999; p. 246) e José Frederico Marques (1991; p. 236). O primeiro assevera que coisa julgada formal é “a imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo por falta de meios de impugnação possíveis”, ou seja, naquela demanda já não cabe mais recurso algum, é representação da preclusão máxima, entretanto, a decisão será passível de modificação em ação ulterior. Já o segundo, define coisa julgada material como “a imutabilidade do julgamento fora do processo em que se constituiu, a fim de que se impeça, no futuro, qualquer indagação ou reexame de que se contém na prestação jurisdicional ou julgamento”, outrossim, a decisão não poderá ser modificada neste ou em qualquer outro litígio posterior, é aqui que encontra-se o máximo grau da imutabilidade do decisum.
Para explicar singelamente, na coisa julgada formal não há apreciação de mérito, a demanda é extinta em virtude de defeito de forma (instrumental), por meio de sentença terminativa (art. 267, CPC); verificar-se-á coisa julgada material quando, preenchidos os pressupostos processuais, ocorrer análise de mérito, situação em que teremos sentença definitiva (art. 269, CPC). Donde se conclui que aquela é pressuposto desta. Extremamente importante que se tenha claro a seguinte assertiva: configurada a coisa julgada material, obrigatoriamente tem-se coisa julgada formal.
Para melhor entender, se o julgador na análise do caso concreto entender que ali não estão presentes os pressupostos legais para a perfectibilização da relação processual, ou que existe um vício quanto à forma do processo, ele extinguirá o feito sem apreciar o mérito. Nesta situação a decisão jurisdicional sequer tangenciou a esfera do direito material das partes, restringindo-se ao âmbito meramente instrumental, portanto, haverá apenas a formação de coisa julgada formal. Fato este que permitirá à parte autora, sanado o vício processual, ingressar com nova demanda para que se decida a cerca do mérito. Entretanto, se algum dos litigantes experimentou alteração (quantitativa ou qualitativa) na seara de direito material, estará configurada a ocorrência do instituto tanto no aspecto formal como no material.
Nesse sentido, ensina o professor Daniel Carneiro Machado (2005; p. 61):
A coisa julgada formal é inerente à coisa julgada material, estando contida nesta. Como colocado anteriormente, são graus de um mesmo fenômeno, considerando que a primeira estaria abaixo da última. A coisa julgada material é um plus em relação às sentenças não mais sujeitas a recurso, sendo que a sentença de coisa julgada material é, impreterivelmente, sentença de coisa julgada formal, vez que aquela é um plus.
2.3 Limites objetivos e subjetivos
Estabelecida sua definição e demonstradas as formas pelas quais se manifestará no processo, cumpre agora investigar-se a cerca do alcance da coisa julgada, ou seja, seus limites objetivos e subjetivos. Vejamos para onde nos conduz o Código de Processo Civil que assim dispõe:
Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance dispositivo da sentença;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo;
Art. 470. Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5º e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide.
Art. 471. Omissis…
Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.
A limitação estipulada pelo art. 468, embora se dirija à sentença, tocará tacitamente a coisa julgada, haja vista que esta não pode ultrapassar os limites daquela. Nesse dispositivo se encontra a regra geral: “limites da lide e das questões decididas”.
2.3.1 Limites objetivos
Ao se estabelecer os limites objetivos da coisa julgada, cuida-se da parte da sentença albergada pelo caráter da imutabilidade. Em outras palavras, se quer saber qual parcela da decisão se tornou intocável. Sabendo-se que a sentença é constituída por três partes: relatório, fundamentação e dispositivo.
O art. 469 c/c 468 supracitados nos revelam que somente sobre o dispositivo, parte que contém o comando concreto emitido pelo julgador, se formará coisa julgada. É exatamente aí que o magistrado se pronunciará, acolhendo ou rejeitando o pedido formulado na inicial. Nessa linha de raciocínio encaminhou-se majoritariamente a doutrina. Assim, pronuncia-se Leonardo de Faria Beraldo (2005; p.162) que “em princípio, dos três requisitos essenciais da sentença, somente o dispositivo passa em julgado”. Na mesma via, Ovídio Baptista (2001; p.509):
[…] apenas o decisum adquire a condição de coisa julgada, nunca os motivos e os fundamentos da sentença que, como elementos lógicos necessários ao julgador, para que ele alcance o decisum, devem desaparecer ou tornar-se indiferentes ao alcance da coisa julgada, não obstante continuem a ter utilidade como elementos capazes de esclarecerem o sentido do julgado.
Entretanto, conforme Ada Pellegrini Grinover (2002; p.22/24), os limites objetivos são determinados em vista do objeto do processo, consubstanciado no pedido e na causa de pedir (fato constitutivo da pretensão) e, citando José Frederico Marques, defende que também a causa petendi é abrigada pela imutabilidade. Comunga desse entendimento, apoiado na doutrina de Chiovenda, Ovídio Baptista da Silva (2001; p. 510) que aduz ser “a demanda de mérito” o limite objetivo da coisa julgada, e a causa petendi como parte integrante dessa demanda transita em julgado. Filia-se a essa corrente, Daniel Carneiro Machado (2005; p.76) asseverando que sendo “pressuposto da decisão, esta deve ser considerada como parte integrante, ainda que implicitamente, do dispositivo da sentença, e, portanto, abarcada pela coisa julga […]”.
Algumas decisões judiciais começam a adotar, ainda que muito comedidamente, o entendimento acima exposto. Senão vejamos:
Acordão Origem: STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: RESP – RECURSO ESPECIAL – 11315. Processo: 199100103136 UF: RJ Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA. Data da decisão: 31/08/1992 Documento: STJ000028531. Fonte DJ DATA:28/09/1992 PÁGINA:16425 LEXSTJ VOL.:00043 PÁGINA:132 RSTJ VOL.:00037 PÁGINA:413. Relator(a) EDUARDO RIBEIRO. Decisão POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO ESPECIAL E LHE DAR PROVIMENTO.
Ementa COISA JULGADA – LIMITES OBJETIVOS. A IMUTABILIDADE PROPRIA DE COISA JULGADA ALCANÇA O PEDIDO COM A RESPECTIVA CAUSA DE PEDIR. NÃO, ESTA ULTIMA ISOLADAMENTE, PENA DE VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 469, I DO C.P.C.. A NORMA DO ART. 474 DO C.P.C. FAZ COM QUE SE CONSIDEREM REPELIDAS TAMBEM AS ALEGAÇÕES QUE PODERIAM SER DEDUZIDAS E NÃO O FORAM, O QUE NÃO SIGNIFICA HAJA IMPEDIMENTO A SEU REEXAME EM OUTRO PROCESSO, DIVERSA A LIDE. (Grifei)
Acordão Origem: TRIBUNAL – QUINTA REGIAO. Classe: AMS – APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 2042. Processo: 9005051906 UF: PB Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA. Data da decisão: 11/10/1990 Documento: TRF500001426. Fonte DJ DATA:23/11/1990 PAGINA:28231. Relator(a) JUIZ CASTRO MEIRA. Descrição DECISÃO UNANIME.
Ementa MANDADO DE SEGURANÇA. IMOVEIS. RURAIS. EXCLUSÃO DO PLANO DE REFORMA AGRARIA. DL 2363/87 REJEITADO PELO DECRETO LEGISLATIVO 02/89. EFEITOS.
Omissis…
– A COISA JULGADA ESTA CONTIDA NOS LIMITES OBJETIVOS DA RESOLUÇÃO DA LIDE, IDENTIFICADA ESTA NOS TRES ELEMENTOS ( PARTES, CAUSA DE PEDIR E PEDIDO).
– INOCORRENCIA, TAMBEM, DE OFENSA AO ATO JURIDICO PERFEITO OU AO DIREITO ADQUIRIDO.
– APELAÇÃO IMPROVIDA. (Grifei)
Porém, não é objetivo do presente trabalho enfrentar tal temática, apenas evidenciar uma nova tendência que vem ganhando corpo tanto na doutrina, como em nossos tribunais, e enriquecer o conhecimento técnico sobre o instituto da coisa julgada.
Ponto pacífico é que não se estende o caráter de intangibilidade aos motivos e fundamentos da sentença (art. 469), os quais fazem parte da atividade cognitiva, sendo utilizados pelo magistrado na solução do caso concreto. Quanto às questões prejudiciais, que nos dizeres de Moacyr Amaral Santos (2001; p.65) “são aquelas que, além de constituírem premissas lógicas da sentença, reúnam condições suficientes para ser objeto de ação autônoma”, o legislador fez uma ressalva no art. 470, do CPC, que trata da ação declaratória incidental, determinando que tornando-se litigiosa no curso do processo e se de sua solução depender o julgamento da lide, o juiz a declarará por sentença, situação em que fará coisa julgada. Nas demais ocorrências, o incidente segue a regra do art. 469, III, do CPC.
2.3.2 Limites subjetivos
Os limites subjetivos determinam quais sujeitos serão alcançados pela coisa julgada. De pronto, o art. 472, antes transcrito, expressa que somente às partes litigantes serão atingidas com a imutabilidade do julgado, reforçando que terceiros não poderão ser prejudicados nem beneficiados por ela.
Tal restrição encontra seu fundamento no art. 5º, LIV e LV da CF/88, os quais estabelecem:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Ora, resta evidente a partir do texto constitucional a impossibilidade daquele que não foi parte no litígio ser prejudicado ou beneficiado pelo decisum passado em julgado. É fácil perceber o motivo: se não participou do contraditório, não pode apresentar suas alegações, juntar as provas, enfim, fornecer elementos que ajudassem a formar a convicção do magistrado.
Entretanto, é importante que não se confunda o instituto da coisa julgada com os efeitos da sentença. Estes podem, mesmo que reflexamente, tocar a terceiros estranhos a lide, posto que, a sentença, como expressão máxima do monopólio jurisdicional estatal, deve ser respeitada por todos. De outra banda, a imutabilidade e/ou a irrecorribilidade provenientes da res iudicata não poderão penetrar a esfera de direitos de terceiros, pois, se assim fosse, estar-se-ia tolhendo o direito fundamental do cidadão de acesso à via jurisdicional.
Importa ressaltar, ainda, que na seara dos direitos individuais homogêneos e coletivos lato sensu ocorre um alargamento nos limites subjetivos, nas demandas que versarem sobre tais direitos, a coisa julgada poderá atingir todos os seus titulares, mesmo aqueles que não participaram do contraditório. Nestas demandas a res iudicata se estabelece secundum eventum litis.
Daniel Carneiro Machado (2005; p.71) esclarece:
[…] sendo o direito individual homogêneo, a autoridade da coisa julgada, nos casos de procedência da demanda, será erga omnes; sendo direito de natureza coletiva, que abranja determinada classe ou organização definidas de pessoas, ressalvada a hipótese de improcedência por ausência ou insuficiência de provas, a autoridade da coisa julgada será ultra partes; e, tendo o direito posto em causa natureza difusa, salvo nos casos de improcedência por ausência de provas, a autoridade da coisa julgada projetar-se-á erga omnes.
2.4 Tratamento legal da imutabilidade da coisa julgada
Ao discorrer a cerca dos fundamentos legais do instituto, enfocar-se-á o tratamento conferido pela Constituição Federal e pelo Código de Processo civil, por ser estabelecido nos referidos diplomas legais o grande equívoco a respeito do caráter imutável da coisa julgada.
A Constituição Federal, no Título II dos direitos e garantias fundamentais, capítulo I dos direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º, XXXVI, previu que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. (Grifei)
A regra não deixa margem a dúvidas. Contrariamente a interpretação que muitos autores pretendem conferir ao comando, o texto constitucional limitou-se a proteger a coisa julgada, assim como fez com o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, contra os efeitos produzidos pela edição de lei nova que regulasse a matéria decidida judicialmente, materializando, assim, o princípio da irretroatividade da lei. É precisamente esse o entendimento de Leonardo de Faria Beraldo (NASCIMENTO, 2005, p. 176), que assim se posiciona:
Somos filiados à corrente que entende que o legislador, ao tratar da coisa julgada na CR/88 [CF/88], apenas quis colocá-la a salvo da lei nova, ou seja, uma decisão passada em julgado não poderia ser desfeita se uma lei posterior desse tratamento jurídico diferente àquele dispositivo utilizado pelo juiz em seu pronunciamento.
A impossibilidade legal do poder judiciário desconstituir uma decisão judicial albergada pela coisa julgada não provém da Lei Maior, então, veja-se, como o CPC cuida da matéria.
No livro I, título VIII, capítulo VIII, a seção II é intitulada “DA COISA JULGADA”, nesta o art. 467, já transcrito, expressa “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença […]”.
Portanto, a intangibilidade da res iudicata é conferida pelo Código de Processo Civil, lei infraconstitucional. De sorte que, sendo hierarquicamente inferior, deve harmonizar-se aos preceitos e princípios constitucionais, em face do princípio da supremacia da constituição. Oportuno o comentário de Theodoro Júnior e Cordeiro (NASCIMENTO, 2005; P. 89/90):
A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional, traz como consectário a idéia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme a constituição. Se desconforme estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional.
Entretanto, aqueles que defendem ser o decisum tutelado pelo instituto em voga intocável, como por exemplo, Nelson Nery Júnior (2006; p.598-599), alegam que a coisa julgada é alicerce do Estado Democrático moderno, na medida em que confere certeza e segurança às relações jurídicas.
Ora, por certo que a Constituição da República Federativa do Brasil é o bem jurídico de máxima relevância, sendo o ponto de apoio e equilíbrio do Estado, é ela que dá validade e existência a todos os valores e princípios que sustentam o ente jurídico estatal. Este é o corpo para onde convergem e se concentram todos elementos vitais do Estado. Muito mais do que a res iudicata, a Carta Magna é o instrumento que garante a certeza e a segurança tão necessárias às relações jurídicas e sociais estabelecidas entre os cidadãos e, por isso, o grau máximo de ofensa que se pode chegar é a violação da Constituição Federal da nação.
3. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E SUA RELATIVIZAÇÃO
3.1 O princípio da constitucionalidade ou da supremacia da constituição
Nas palavras de José Afonso da Silva (2002; p.37), o termo constituição possui diversas acepções, dentre às quais, “a lei fundamental de um Estado”. Assim sendo, o sistema jurídico nacional possui característica piramidal, tendo no topo da pirâmide legislativa a Carta Magna.
Nesse lastro, a Constituição Federal é o fator determinante da organização dos elementos vitais do Estado, estabelecidos em um corpo normativo permeado por um conjunto de valores provenientes da realidade social na qual está inserido. Em suma, é a expressão da vontade soberana do ente estatal. Portanto, a supralegalidade de suas regras e princípios, decorre de sua própria essência e, é refletida na ordem jurídica interna. Outrossim, é ela que estabelece a validade aos atos emanados dos poderes típicos do Estado.
Resulta daí o princípio da supremacia da constituição, o qual determina que todos os atos do poder público, assim como o ordenamento jurídico, devem estar em consonância com o texto máximo, em outras palavras, eles só se legitimam na medida em que se conformam aos valores superiores abrigados pela Constituição.
Daniel Carneiro Machado (2005; p.44), ao discorrer sobre a matéria, afirmou categoricamente ser este o princípio de maior expressão na ordem jurídica, senão vejamos:
Esse princípio, também denominado de princípio da constitucionalidade, sem dúvida se destaca como o mais importante de todos no ordenamento jurídico, sendo que sua ausência e mesmo sua ofensa implicam a própria subversão ou mesmo rompimento da Ordem Constitucional em vigor.
Com efeito, esta Ordem Constitucional deve prevalecer sobre quaisquer atos praticados, sejam do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário. Todos os atos devem se adequar, devem ser pertinentes, precisam se conformar com a constituição, que é o parâmetro, o valor supremo, o nível mais elevado do direito positivo
Denota-se, então, que o princípio da constitucionalidade é uma espécie de princípio informador do ordenamento jurídico nacional, o referencial seguido ao se praticar qualquer ato no exercício da função pública. Não se observando o citado preceito e agindo-se contrariamente aos comandos emanados da Lei Fundamental, tem-se um ato inconstitucional.
Entretanto, verifica-se uma tendência mundial e histórica, dos juristas e intérpretes da lei, de só se preocuparem com a inconstitucionalidade dos atos legislativos e administrativos, esquecendo dos atos judiciais, especificamente, da decisão sob a aparente proteção da coisa julgada.
O português Paulo Otero (NASCIMENTO, 2005; p.75) tenta explicar essa inclinação de se imunizar a res iudicata, mesmo que contenha certa carga de inconstitucionalidade, apontando para o fato de ser o Poder Judiciário o órgão responsável por fazer cumprir a lei e nesse sentido suas decisões iriam sempre ao encontro dos ditames constitucionais.
A partir dessa idéia, a imutabilidade da coisa julgada consolidou-se como valor absoluto dentro da ordem jurídica, sendo, o instituto, transformado em instrumento de legitimação das decisões judiciais inconstitucionais, tudo em nome da certeza e segurança jurídicas, bases para a sobrevivência do Estado de Direito.
Ora, admitir-se tal realidade, seria aceitar a concepção equivocada de que o poder judiciário não está submetido ao princípio da constitucionalidade, situando-se dessa forma, em posição hierarquicamente superior em relação aos demais poderes do Estado. Porém, como bem registra a doutrina não há hierarquia entre os atos estatais.
Definitiva a lição de Carlos Valder do Nascimento (2005; p.26):
O controle dos atos do poder público não exclui, de modo algum, aqueles emanados do Poder Judiciário, mesmo porque não se trata de poder acima da Constituição, sendo a ela submisso, sem qualquer demérito para sua independência. Os valores constitucionais hão de ser cultuados, porquanto eles são que permeiam a convivência em sociedade. De maneira que todos os atos de qualquer natureza ou procedência devem guardar conformidade com a Constituição, sob pena de invalidade da sentença que com ela colidir devido a impossibilidade de sua sobrevivência.
3.2 Coisa julgada inconstitucional
Tem-se por coisa julgada inconstitucional, a decisão judicial, proferida por juiz singular ou órgão colegiado, imutável e irrecorrível, contrária à Constituição Federal, ofendendo, assim, o princípio da constitucionalidade ou supremacia da constituição.
Theodoro Jr. e Cordeiro (NASCIMENTO; 2005; P.97) assinalam, ao tratar do assunto, que a violação à Carta Magna poderá ocorrer por meio de afronta direta ou indireta ou de regra, ou de princípio, ou de garantia constitucional; de aplicação de lei declarada inconstitucional; e, finalmente, quando o julgador, sob o equivocado pretexto de inconstitucionalidade, não aplica a norma constitucional.
Importante que não se confunda a coisa julgada inconstitucional com a ilegal, a primeira, conforme explicou-se, ataca a Lei Máxima, enquanto a segunda violenta uma lei infraconstitucional. A ilegalidade trata-se de vício de menor gravidade, posto que não atinge o texto constitucional. Por isso, a decisão imutável eivada pela ilegalidade, poderá ser apenas rescindida, por intermédio da ação rescisória6 e dentro do prazo legal de 2 (dois) anos. Transcorrido esse interregno é concebível que ela se consolide na órbita jurídica, pois, neste ponto, a segurança jurídica, valor hierarquicamente superior à lei ordinária, agasalha os efeitos do ato judicial. O que deve imperar é a legitimidade constitucional.
3.3 Nulidade da coisa julgada inconstitucional
A Constituição Federal de 1988 ficou conhecida como a constituição cidadã, expressão criada pelo presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, por ser um documento moderno que contou com a participação do povo e outorgou uma série de garantias visando assegurar o pleno exercício da cidadania.
Entretanto, insuficiente que a Lei Maior previsse essas garantias, sem que primeiramente fosse ela garantida. Note-se que essa garantia jurídica se impõe por intermédio do princípio da constitucionalidade, o qual revela a força normativa e vinculativa da Carta Magna.
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria ( Nascimento; 2005; p.79-80) lecionam que:
Com efeito, há um princípio geral que não pode ser ignorado de que todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição.
O princípio da constitucionalidade, que exige para a validade do ato sua conformidade com a Constituição, funciona, nas precisas lições de Jorge Miranda, “como a ratio legis da garantia jurisdicional da Constituição”. É, pois, o princípio da constitucionalidade que resume a garantia de observância da Constituição, pois a ele se encontra agregada a sanção para o seu desrespeito: a inconstitucionalidade do ato, o que importa em sua invalidade. (Grifei)
Portanto, em decorrência do princípio da supremacia da constituição, tem-se que qualquer ato do poder público que venha violentar a carga valorativa da Lei Maior será nulo. É a partir do diploma fundamental que os atos estatais retiram sua validade. De sorte que, a decisão judicial contaminada pela inconstitucionalidade restará inválida, tal qual acontece com a lei declarada inconstitucional.
Sendo a inconstitucionalidade uma ilicitude, a qual infringe a ordem constitucional, a nulidade do ato contaminado impõe-se como uma sanção sui generis, posto que atinge os efeitos do referido ato.
Marcos Bernardes de Melo (2000; p.46 e 50) explica que:
A invalidade, por isso, tem o caráter de uma sanção que o ordenamento jurídico adota para punir certa espécie de ato contrário ao direito (= ilicitude). […] Em qualquer da espécies há punição ao infrator da norma, só que a invalidade, se não o alcança em sua pessoa, diretamente, ou em seus bens, o atinge, recusando-lhe possa obter o objetivo colimado com a prática do ato jurídico invalidado. […] Se constitui um revide do ordenamento à violação de suas normas, é evidente que se trata de uma sanção. […] Os negócios jurídicos8 são inválidos sempre que infringem uma norma jurídica cogente, quando a própria norma não prevê sanção de outra natureza para a espécie. A nulidade por ilicitude […] decorre de infração contra o próprio ordenamento jurídico, que tem na ilicitude sua negação.
Nesse diapasão, sob um enfoque estritamente técnico, o vício da inconstitucionalidade, não permite que o decisum produza qualquer efeito, logo, tem-se mera aparência de coisa julgada, conseqüentemente a decisão não será albergada pelo caráter imutável do instituto processual e finalmente, não há que se falar em segurança jurídica.
3.4 Segurança jurídica: valor absoluto?
Pelo acima exposto, não prospera a coisa julgada inconstitucional, sob o argumento da segurança jurídica, haja vista que, eivada pelo vício da inconstitucionalidade, a decisão judicial não se reveste do caráter da imutabilidade. Todavia, por amor ao debate, demonstrar-se-á, que mesmo o princípio da segurança jurídica é insuficiente para garantir a eternização do decisum contrário a Carta Magna.
Já aduziu-se que o fundamento da res iudicata é a segurança jurídica, estabelecida como uma das pilastras do Estado Democrático de Direito. Partindo-se dessa premissa, aqueles que defendem seu caráter absoluto, alegam que o instituto assume status constitucional.
Nery Jr. (2006; p. 598) vai além e, na tentativa de elevar o instituto a categoria de valor constitucional, aponta que “a supremacia da Constituição é a própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito”. Pretendendo que a coisa julgada seja o “elemento de existência” do Estado Moderno.
Notório que a segurança jurídica é elemento fundamental em qualquer Estado Democrático, haja vista conferir estabilidade as relações jurídicas internas, entretanto, maxima venia, seria absurdo aceitar-se que os efeitos de um ato do judiciário, poder constituído, estariam no mesmo patamar hierárquico do documento que institui o Estado de Direito, resultante do poder constituinte originário. Não se afigura razoável desejar que um aspecto, entre tantos, do Estado Democrático esteja em posição de afrontar a expressão máxima do ente estatal, que é a carta constitucional.
Segundo evidenciou-se no capítulo I, a imutabilidade da res iudicata é figura processual, ou preferindo-se infraconstitucional, todavia, a segurança jurídica é, indubitavelmente, um princípio constitucional, ainda que implícito e, a desconstituição da decisão judicial trânsita em julgado, atinge a referida garantia. É sob este argumento que parte da doutrina sustenta a intangibilidade do instituto da coisa julgada.
Entretanto, o princípio da segurança jurídica não é um valor absoluto em nosso ordenamento, não possui esse caráter que tentam lhe emprestar. Com muita propriedade Cândido Rangel Dinamarco (2002; p. 8 e 22) se pronuncia:
[…] o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é, portanto, a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciarias, constitucionalmente prometido mediante a garantia de acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV) […] se salienta a necessidade de estabelecer uma convivência equilibrada entre os princípios e garantias constitucionais, a partir da idéia de que todos eles existem para servir o homem e oferecer-lhe felicidade, sem que nenhum seja absoluto ou constitua um valor em si mesmo. Não há uma garantia sequer, nem mesmo a da coisa julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação das demais ou dos valores que elas representam. Afirmar o valor da segurança jurídica (ou certeza) não pode implicar desprezo ao da unidade federativa, ao da dignidade da pessoa humana e intangibilidade do corpo, etc. É imperioso equilibrar com harmonia as duas exigências divergentes, transigindo razoavelmente quanto a certos valores em nome da segurança jurídica, mas abrindo-se mão desta sempre que sua prevalência seja capaz de sacrificar o insacrificável.
[…] conclui-se que é inconstitucional a leitura clássica da garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura com a crença de que ela fosse algo absoluto e, como era hábito dizer, capaz de fazer do preto, branco e do quadrado, redondo.
Impende observar-se, conforme aponta José Afonso da Silva (2002; p431), que o princípio da segurança jurídica diz respeito, também, a proteção dos direitos individuais ou coletivos, adquiridos sob a luz de determinada lei. Isso quer dizer, mesmo que a norma seja substituída, aquelas relações realizadas sob sua tutela continuarão valendo.
Porém, contrariamente ao que se dá em relação à coisa julgada, não se protege um direito que tenha se incorporado ao patrimônio de alguém com base em lei inconstitucional, fundamentando-se na segurança jurídica. E assim não se poderia proceder. Não se vê, qualquer tribunal, até porque não estaria correto, ao julgar uma demanda, defender que a situação perfectibilizada sob o manto do diploma inconstitucional deva ser eternizada, para se preservar a segurança jurídica das relações.
Ora, a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, receberam da Carta Magna idêntica proteção. O objetivo é o mesmo: conferir certeza e segurança jurídica às relações. O entendimento do STF é que o ato jurídico desconforme a Constituição não será perfeito e, que não se tem direito contrário aos preceitos fundamentais, quiçá adquirido. Veja-se:
(Acordão Origem: STF – Supremo Tribunal Federal. Classe: ADI-QO – QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Processo: 652 UF: MA – MARANHAO Órgão Julgador: Data da decisão: Documento: Fonte DJ 02-04-1993 PP-05615 EMENT VOL-01698-03 PP-00610 RTJ VOL-00146-02 PP-00461. Relator(a) CELSO DE MELLO. Decisão Por votação unânime, o Tribunal, resolvendo questão de ordem, julgou prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade. Votou o Presidente. Plenário, 02.04.92.)
Ementa AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – NATUREZA DO ATO INCONSTITUCIONAL – DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – EFICACIA RETROATIVA – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO “LEGISLADOR NEGATIVO” – REVOGAÇÃO SUPERVENIENTE DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO – PRERROGATIVA INSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO – AUSÊNCIA DE EFEITOS RESIDUAIS CONCRETOS – PREJUDICIALIDADE.
– O REPUDIO AO ATO INCONSTITUCIONAL DECORRE, EM ESSENCIA, DO PRINCÍPIO QUE, FUNDADO NA NECESSIDADE DE PRESERVAR A UNIDADE DA ORDEM JURÍDICA NACIONAL, CONSAGRA A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO. ESSE POSTULADO FUNDAMENTAL DE NOSSO ORDENAMENTO NORMATIVO IMPÕE QUE PRECEITOS REVESTIDOS DE “MENOR” GRAU DE POSITIVIDADE JURÍDICA GUARDEM, “NECESSARIAMENTE”, RELAÇÃO DE CONFORMIDADE VERTICAL COM AS REGRAS INSCRITAS NA CARTA POLITICA, SOB PENA DE INEFICACIA E DE CONSEQUENTE INAPLICABILIDADE. ATOS INCONSTITUCIONAIS SÃO, POR ISSO MESMO, NULOS E DESTITUIDOS, EM CONSEQUENCIA, DE QUALQUER CARGA DE EFICACIA JURÍDICA.
– A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA LEI ALCANCA, INCLUSIVE, OS ATOS PRETERITOS COM BASE NELA PRATICADOS, EIS QUE O RECONHECIMENTO DESSE SUPREMO VÍCIO JURÍDICO, QUE INQUINA DE TOTAL NULIDADE OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO, DESAMPARA AS SITUAÇÕES CONSTITUIDAS SOB SUA EGIDE E INIBE – ANTE A SUA INAPTIDAO PARA PRODUZIR EFEITOS JURIDICOS VALIDOS – A POSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO DE QUALQUER DIREITO. (Grifei)
Não se pode adotar posicionamento diferente a cerca da coisa julgada. Portanto, a segurança jurídica, elemento basilar no Estado Democrático, apenas poderá garantir àquelas relações jurídicas conformes ao texto máximo nacional, em virtude da prevalência do princípio da supremacia da constituição.
3.5 Conflito aparente de princípios
A segurança jurídica é fator importante na árdua tarefa do estado moderno de estabilizar as relações jurídicas internas e incutir em seus cidadãos a confiabilidade nas instituições estatais. Porém, segundo asseverou-se, ela não possui valor absoluto, devendo ceder sempre que valores constitucionais hierarquicamente superiores sejam violentados por uma decisão judicial, mesmo que consolidada pelo decurso do tempo.
E isso é assim, em virtude do princípio da supremacia da constituição, ou como preferem alguns, princípio da constitucionalidade. O decisum não pode ofender o texto constitucional, norte de todo o ordenamento jurídico pátrio. O Judiciário não está acima do Legislativo, nem do Executivo. Não lhe é dado o poder de ferir a Constituição, de julgar contrariamente aos ditames proclamados e albergados por ela.
A Carta Magna em seu preâmbulo dispõe:
Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos […] (Grifei)
É fato que o preâmbulo não possui caráter normativo, entretanto, como bem destaca Alexandre de Moraes (2005;p.28), “não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem”.
No preâmbulo estão incutidos os princípios que servem de norte aos preceitos constitucionais, quer dizer: o ordenamento jurídico deve observar e ir ao encontro do disposto no texto preambular.
Tanto que a referida carta política, já no seu art. 3º, cláusula pétrea, determina como um dos objetivos fundamentais da República do Brasil, “constituir uma sociedade livre, justa e solidária”. É fácil perceber-se a relevância que o valor justiça assume na ordem jurídica nacional e, por conseguinte, no exercício da função jurisdicional.
Ora, as normas ou regras constitucionais têm por fim último fazer com que os objetivos do texto máximo sejam concretizados, sejam atingidos, assim, qualquer dispositivo constitucional deve visar a consecução dos objetivos insertos na Carta Excelsa, portanto, o texto fundamental há de ser harmônico.
Sob essa ótica, o Poder Judiciário no exercício do monopólio jurisdicional, tem por escopo a pacificação justa dos conflitos; o devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV, CF/88, que deve observar outras garantias, tais como o contraditório e a ampla defesa, imperativo seja justo; a garantia de acesso ao judiciário, prevista no inciso XXXV do citado artigo, nada mais é do que acesso à justiça das decisões.
Justiça vislumbrada sob um enfoque objetivo e constitucional, a Justiça do Estado Democrático de Direito, essa sim valor absoluto, entendida como a aplicação eqüitativa dos princípios e normas constitucionais e legais, “atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum”7.
Os termos “fins sociais” e “bem comum”, evidenciam a obrigatoriedade que o julgador, no exercício da função jurisdicional, possui de ater-se aos valores sociais, ele não pode se distanciar daquela sociedade na qual está inserido, não basta que aplique a técnica processual simplesmente, na verdade é mister que ele interprete as regras jurídicas em consonância com os valores sociais vigentes à época.
Esclarecedor é o ensinamento de Cândido Rangel Dinamarco (1998; p. 24-25):
[…] A idéia-síntese que está a base dessa moderna visão metodológica consiste na preocupação pelos valores consagrados constitucionalmente, especialmente a liberdade e a igualdade, que afinal são manifestações de algo dotado de maior espectro e significação transcendente: o valor justiça. O conceito significado e dimensões desse e de outros valores fundamentais são, em última análise, aqueles que resultam da ordem constitucional e da maneira como a sociedade contemporânea ao texto supremo interpreta as suas palavras […] O processualista moderno adquiriu a consciência de que, como instrumento a serviço da ordem constitucional, o processo precisa refletir as bases do regime democrático, nela proclamados; ele é, por assim dizer, o microcosmos democrático do Estado-de-Direito, com as conotações da liberdade, igualdade e participação (contraditório), em clima de legalidade e responsabilidade. (Grifei)
Portanto, tem-se que a segurança jurídica, tida como garantia, somente perdurará enquanto esteja conforme ao valor constitucional da justiça, um dos objetivos do Estado Democrático e em posição hierarquicamente superior àquela. Não é admissível que a segurança jurídica seja um obstáculo na persecução da justiça. Assim, ofendendo preceito constitucional (sentido amplo), a segurança jurídica deve ceder, aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, visando a harmonia da ordem jurídica interna.
No direito pátrio defende-se que proporcionalidade e razoabilidade são valores intimamente ligados, ou mesmo, indissociáveis. Tais princípios estabelecem uma escala hierárquica dos valores constitucionais presentes no caso concreto prevalecendo aqueles de maior relevo e expressão, em verdade, cria-se um juízo de ponderação e adequação entre os meios utilizados e os fins perseguidos, tentando-se evitar lesão desnecessária a direitos fundamentais. Importante destacar, que eles se tornaram um limite a atuação do poder público.
Então, resta cristalino que não existe um conflito de princípios e, nem poderia existir, tendo em vista que o ordenamento jurídico deve ser harmônico, não sendo possível que seus valores, princípios ou normas se contraponham. Os princípios devem ser interpretados de modo que se harmonizem, buscando atingir a finalidade da lei maior.
3.6 Algumas decisões judiciais de relativização da coisa julgada
Os juristas brasileiros vêm admitindo a mitigação do instituto da coisa julgada, sobretudo quando a decisão judicial vai de encontro à preceitos constitucionais (sentido amplo). O Poder Judiciário deve, por intermédio de suas decisões, corresponder à expectativa social, promovendo, acima de tudo, os valores insertos na Norma Fundamental, para desta forma atingir o seu fim precípuo, qual seja: a pacificação social mediante o critério de justiça.
Tem sido, prática crescente nos tribunais nacionais a desconstituição de decisões que violentam a carga valorativa do texto constitucional, sob o fundamento de preservar-se a força normativa e vinculativa da Constituição Federal. A seguir colacionam-se algumas decisões judiciais, emitidas pelos eméritos julgadores do Tribunal Regional Federal (1ª e 4ª regiões) e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, esclarecedoras quanto a matéria ora discutida. Veja-se:
Ementa PROCESSUAL CIVIL, CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE VEÍCULO ALIENADO FIDUCIARIAMENTE CONVERTIDO EM AÇÃO DE DEPÓSITO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DETERMINANDO A ENTREGA DO BEM SOB PENA DE PRISÃO CIVIL NOS TERMOS DO ART.904 DO CPC. DECISÃO POSTERIOR À COISA JULGADA QUE INDEFERE REQUERIMENTO DA EXPEDIÇÃO DO MANDADO DE PRISÃO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.
1.O negócio jurídico de financiamento de bem móvel em alienação fiduciária não passa de contrato civil envolvendo dívida. A previsão de prisão civil sob o fundamento de que havia contrato de depósito não passa de desvirtuamento violentador da Constituição Federal para propiciar meio coercitivo de prisão civil por dívida, o que agride a consciência jurídica dos povos civilizados.
2. Se a sentença passada em julgado não atenta para fazer prevalecer a Constituição frente à lei, é possível relativizar a coisa julgada, desconsiderando-a para fazer prevalecer a Constituição Federal e preservar a liberdade individual.
3. Agravo improvido.9 (Grifei)
Ementa PROCESSUAL E PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. INEXISTÊNCIA DO DIREITO SUBSTANCIAL. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL. RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA COISA JULGADA.
1) Não mais se discute que descabe qualquer tipo de revisão em hipóteses como a presente, seja pelo critério da súmula 260 do TFR, aplicável apenas aos benefícios concedidos antes da Constituição de 1988, seja pela equivalência salarial, aplicável apenas aos benefícios já em manutenção em outubro de 1988 (STJ, EDAGA 470686, DJ 31/03/2003).
2) O juiz pode invocar fundamentos não mencionados na demanda, pois o limite à sua atividade é restrito à matéria fática, nos termos da regra iura novit curia, aplicável in casu.
3) A garantia da coisa julgada não é absoluta, devendo ser mitigada quando a incompatibilidade com o direito substancial for manifesta, como no caso em testilha, em que temos uma sentença transitada em julgado que condenou o INSS a reajustar o benefício pelo critério da equivalência salarial, não obstante ser a DIB 26/02/1992, data que extrapola o período em que a vinculação ao salário-mínimo era juridicamente possível, qual seja de abril de 1989 até 24 de julho de 1991, segundo a pacífica jurisprudência do STF (STF, RREE 239899-RJ; 242746-RJ; 242759-RJ; 242879-RJ; ARRE 235078-0-RJ; 238073-9-RJ).
4) Estamos diante de verdadeira “coisa julgada inconstitucional”, hipótese cada vez mais debatida por modernas doutrina e jurisprudência que, com propriedade, propõem uma reconstrução dogmática do princípio da coisa julgada, admitindo sua mitigação em casos extraordinários, em que a execução do título transitado em julgado se faz fortemente irrazoável, ante a inexistência do direito substancial. Afinal, é fato induvidoso que a ora apelante não tem direito a qualquer reajuste em seu benefício, e a sentença veio justamente assegurar um direito substancial que não existe e, ipso facto, há de ser considerado inexigível.
5) Nego provimento ao recurso.10 (Grifei)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE JULGADA PROCEDENTE. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL. PROPOSITURA DE NOVA AÇÃO. O valor que a coisa julgada visa resguardar é justamente o da segurança jurídica, e esse valor deve ser posto em cotejo com um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 1.º, inc. III, da Constituição, ou seja, o da dignidade da pessoa humana. Logo, ante a absoluta excepcionalidade do caso concreto, em que resta flagrante que a tramitação processual da ação julgada procedente não observou os dogmas constitucionais da ampla defesa, e em respeito ao direito à correta atribuição da relação paterno-filial ligado à preservação da dignidade pessoal – valor que deve ser sobreposto a qualquer outro princípio, inclusive o da segurança jurídica ¿ adequada a relativização da coisa julgada, viabilizando a propositura de nova ação com o mesmo objeto, para na instrução probatória ser realizada perícia genética, devendo ser desconstituída a decisão que extinguiu a demanda, sem julgamento de mérito. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70008102378, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 29/09/2004)11 (Grifei)
Tem-se por apropriado colacionar-se trecho do voto do desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, da sétima câmara cível, do Tribunal de Justiça gaúcho, relator da apelação cível nº 70008102378. Nessa demanda o pai atacava a paternidade reconhecida judicialmente, em processo distinto, sob a tutela da coisa julgada. Assim asseverou o relator:
[…] A vida apresenta ao magistrado circunstâncias especiais em que não é possível serenar a consciência diante da dúvida sobre a estrita observância de dos dogmas constitucionais que são o sustentáculo do devido processo legal.
Acredito que somente após a segura tramitação do feito, com rigorosa obediência a todos os postulados processuais, é possível se chegar a decisões que efetivamente prestem a tutela jurisdicional aos cidadãos do estado democrático de direito com produção de resultados justos que, então, podem ser selados com a imutabilidade da coisa julgada. Não se concebe imunizar sentença cujos efeitos, in casu, a eventual atribuição indevida de paternidade ao autor, firam a ordem jurídica.
A justiça da decisão não é aquela assim considerada aos olhos do vencedor, mas é um qualificativo que deve responder ao compromisso do julgador com a jurisdição constitucional.
Assim, unicamente em face da absoluta excepcionalidade do caso concreto, e palas razões supra deduzidas, é que aceito relativizar a coisa julgada […] em face dos princípios de primeiríssima grandeza que são o da justiça das decisões judiciais e do respeito à dignidade da pessoa humana, inseridos nos arts. 1º e 5º da Constituição Federal. (Grifei)
Finalmente, merece destaque o seguinte fragmento do voto do desembargador César Lacerda, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na apelação cível nº 882.506-0/6 – São Bernardo do Campo – 28ª Câmara de Direito Privado – em 15.12.05 , ao revisar o valor de uma indenização por erros médicos, fixada em R$ 12.3 milhões, reduzindo-a para R$ 1 milhão, embora a sentença condenatória já houvesse transitado em julgado:
[…] o estratosférico valor alcançado comporta alguma reflexão, conduzindo à aplicação da tese da relativização ou flexibilização da coisa julgada, que em casos excepcionalíssimos vem sendo admitida pela doutrina e jurisprudência, como mecanismo para corrigir situações injustas ou indesejáveis. […] a sentença prevaleceu sem que os tribunais tivessem examinado o mérito dos recursos interpostos, contaminada pelos vícios acima apontados, consubstanciando os seus efeitos verdadeiro desequilíbrio na balança da justiça, então é o caso de se relativizar a coisa julgada, desconsiderando-a sem receio de quebra do sistema, e com a confiança de que isso é feito antes para harmonizá-lo. […] com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, tem-se que no caso concreto só é possível afastar o enriquecimento sem causa e alcançar o equilíbrio do sistema mediante a flexibilização da coisa julgada, medida que se adota para o fim de fixar a indenização pelo dano moral em patamar condizente com o justo valor e a realidade jurídica em comento.
Com efeito, cristalizado está que, frente a decisões absurdas e desproporcionais, às quais violentam a carga valorativa da CF/88, os tribunais nacionais têm relativizado o caráter imutável da coisa julgada, para dar prevalência à preservação da Lei Fundamental.
4. INSTRUMENTOS IDÔNEOS A DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Importa ressaltar que a preocupação tanto da doutrina como da jurisprudência, em geral, no tocante ao controle de constitucionalidade, sempre se deu relativamente aos atos dos poderes Legislativo e Executivo, relegando-se o controle dos atos judiciais a segundo plano, como se o Poder Judiciário não produzisse decisões desconformes aos valores contemplados pela Carta Magna. Pertinente a lição de Leonardo de Faria Beraldo (NASCIMENTO; 2005;p.197):
Há mais de 200 anos, as atenções dos legisladores, doutrinadores e juristas em geral têm enfocado o controle dos atos públicos (Executivo e Legislativo) pelo Poder Judiciário. No entanto, ficou totalmente esquecido no limbo uma questão muito pertinente e de extrema importância para a consolidação do Estado Democrático de Direito, qual seja, o controle de constitucionalidade das decisões judiciais.
Após demonstrar-se, por meio de argumentação jurídica relevante, que a decisão judicial contaminada pelo vício da inconstitucionalidade não pode prosperar juridicamente, sob pena de fragilizar-se a Constituição Federal e subverter o ordenamento jurídico, no presente capítulo tratar-se-á de apresentar os mecanismos processuais de controle da coisa julgada inconstitucional, ou, como exposto acima, o controle de constitucionalidade das decisões judiciais.
4.1 A ação rescisória (AR) e sua problemática
A ação rescisória é uma ação autônoma, que visa desconstituir uma decisão judicial, de mérito, proferida em demanda anterior, que esteja sob o abrigo da coisa julgada. Ocorre a formação de relação processual distinta daquela em que a decisão impugnada foi emitida. Segundo Nelson Nery Jr. (2006; p. 678), tal ação possui “natureza constitutiva negativa quanto ao juízo rescindendo”.
O art. 485 CPC arrola, taxativamente, em seus incisos as hipóteses legais nas quais a rescisória terá cabimento. Ao presente trabalho importa aquela prevista no inciso V, que assim dispõe “Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: […] V – violar literal disposição de lei;”.
É imperativo que se faça algumas considerações a cerca do caput do indigitado artigo. Primeiramente, onde está escrito “sentença” deve ser entendido decisão judicial, haja vista que tanto a sentença, quanto o acórdão, podem ser rescindidos por meio da AR. E, por fim, há que se observar que apenas a decisão de mérito enseja a referida ação. Então, tem-se que o objeto da rescisória é a decisão judicial que julgou o mérito da demanda.
Superadas essas questões iniciais, passa-se à interpretação do inciso V, do artigo 485 do CPC. Por óbvio que quando se refere à lei, a citada regra o faz em sentido amplo, querendo abarcar inclusive e obrigatoriamente a Constituição Federal. A decisão pode ofender cláusulas gerais do diploma legal, v.g., boa-fé objetiva (art. 422, CCB), função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF); normas específicas, tais como, impenhorabilidade do bem de família (art. 1º da Lei 8.009/90); ou, ainda, fontes de direito previstas em lei, como por exemplo, a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4º da LICC). Insta asseverar, que em se tratando da Lei Fundamental, se ocorrer ofensa ao espírito do texto constitucional ou a princípio intrínseco à carga valorativa da Carta Magna, a AR terá cabimento.
O colendo Superior Tribunal de Justiça, já se pronunciou sobre o tema:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 485, V, CPC. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL., DE PRECEITO LEGAL NO QUAL SE LOUVARA O ARCÓRDÃO RESCINDENDO.
Cabível a desconstituição, pela via rescisória, de decisão com trânsito em julgado que “deixa de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional ou a aplica por tê-la de acordo com a Carta Magna. Ação procedente.” (AR nº 870/PE, 3ª seç., Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 13.3.2000, p.123)
Mostrou-se até aqui ser a referida ação meio idôneo à desconstituição da coisa julgada inconstitucional, contudo, a lei processual estipulou um limite temporal ao manejo da rescisória, dispôs no seu art. 495 que “o direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão”. Portanto, transcorrido o interregno de 2 (dois) anos, inviável a interposição da ação rescisória. Nery Jr. (2006; p. 699) afirma que tal prazo é decadencial, em virtude de ser a rescisória “ação descontitutiva com prazo de exercício previsto em lei”, e que este não se interrompe nem se suspende.
Nery Jr. (2006; p. 600/601) e Arakén de Assis (NASCIMENTO; 2005; p.238) debruçam-se nesse prazo decadencial para defender o caráter absoluto da imutabilidade da coisa julgada, alegando que a lei prevê a possibilidade de rescisão da res iudicata, justamente por intermédio da rescisória, todavia, essa hipótese restringe-se ao lapso temporal de 2 (dois) anos, transcorrido esse interregno ter-se-ia a chamada coisa soberanamente julgada.
O fundamento não merece prosperar, primeiro porque a inconstitucionalidade é questão de ordem pública, a qual o juiz deve conhecer de ofício, logo, não se sujeita aos prazos prescricionais e decadenciais previstos no ordenamento jurídico. Segundo, se os atos do Legislativo e do Executivo podem, a qualquer tempo, serem declarados inconstitucionais, o mesmo se tem em relação aos atos do Judiciário, em virtude de situarem-se todos no mesmo grau hierárquico e estarem, assim, submetidos ao princípio da supremacia da constituição. E, finalmente, aceitar-se que a coisa julgada inconstitucional possa se convalidar pelo decurso temporal, seria erigí-la na ordem jurídica a patamar superior a Constituição, fato inaceitável.
Entende-se que a questão a ser enfrentada é: versando sobre inconstitucionalidade da decisão judicial, a rescisória estará sujeita ao prazo decadencial do art. 495 do CPC?
Em obra conjunta, Cordeiro e Theodoro Jr. (Nascimento; 2005; p.99-101), exprimem a idéia de que a ação rescisória, visando impugnar a coisa julgada inconstitucional, não estará sujeita ao prazo decadencial, em virtude da gravidade do vício albergado pela decisão. Dinamarco (2002; p.27), na mesma via, considera viável a rescisória a qualquer tempo, sugerindo uma alteração nos pressupostos de admissibilidade desse instrumento.
Em sentido contrário, tem-se por mais acertado o entendimento de Leonardo de Faria Beraldo (Nascimento; 2005; p.198-199) que aduz, “na nossa opinião, a ação rescisória (AR) não seria o meio hábil a desconstituir uma sentença, após o prazo decadencial de dois anos a que faz alusão o art. 495 do CPC”, em face da existência de outros meios adequados a argüição de nulidade “não seria necessário repensar ou reinterpretar as regras de utilização da AR para o caso em tela”.
Nessa via, postula-se que a ação rescisória será ferramenta capaz de rescindir a coisa julgada inconstitucional, desde que intentada dentro do prazo legal de 2 (dois) anos, após esse lapso temporal, deve-se manejar outra ferramenta processual.
4.2 Ação declaratória de nulidade (ADN)
Insta asseverar que, por se tratar de nulidade absoluta, a decisão contaminada pelo vício da inconstitucionalidade, poderá ser impugnada a qualquer tempo. Como a ação rescisória sofre uma limitação temporal, não sendo apta passados 2 anos do trânsito em julgado do decisum, apresenta-se outro mecanismo idôneo a desconstituição da coisa julgada inconstitucional, qual seja: a ação declaratória de nulidade.
A ADN é ação autônoma, processada pelo rito ordinário, a ser ajuizado em 1º de jurisdição, com a finalidade de atacar o caráter imutável da decisão judiciária e declarar a ineficácia do decisum, promovendo sua desconstituição e restaurando o direito lesado. Ela tem suas raízes na actio querela nullitatis, ação proveniente do direito romano influenciado pelo direito germânico, usada na Idade Média com vistas a refutar a sentença contaminada por vício insanável, baseada na idéia de que alguns vícios são tão graves que nem o esgotamento dos recursos ou o transcurso do tempo seriam aptos a convalidá-lo.
Dúvida não há quanto à possibilidade de ingresso em juízo por meio da querela nullitatis, visando declaração de nulidade do processo no qual não houve citação do réu ou tendo esta ocorrido, restou manifestamente nula. O egrégio STJ há muito pronunciou-se nesse sentido, pacificando a matéria, senão veja-se:
Ementa PROCESSUAL CIVIL – NULIDADE DA CITAÇÃO (INEXISTENCIA) – QUERELA NULLITATIS.
I. A tese da querela nullitatis persiste no direito positivo brasileiro, o que implica em dizer que a nulidade da sentença pode ser declarada em ação declaratória de nulidade, eis que, sem a citação, o processo, vale falar, a relação jurídica processual, não se constitui, nem validamente se desenvolve. Nem por outro lado, a sentença transita em julgado, podendo, a qualquer tempo, ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução, se for o caso.
Omissis…12 (Grifei)
A discussão se opera a respeito das demais nulidades que podem se verificar na relação processual. Esclarecedor é o entendimento do STJ, que admite utilização da ação declaratória de nulidade para desconstituir a decisão judicial:
Ementa PROCESSO CIVIL – COISA JULGADA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA: ADEQUABILIDADE – LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
1. Os defeitos processuais das decisões judiciais são corrigidos por via da ação rescisória, mas os defeitos da base fática que retiram da sentença a sua sedimentação, tornando-a nula de pleno direito ou inexistente, podem ser corrigidos, como os demais atos jurídicos, pela relatividade da coisa julgada nula ou inexistente.
2. Se a sentença transitada em julgado, sofre ataque em sua base fática por parte do Estado, que se sente prejudicado com a coisa julgada, pode o Ministério Público, em favor do interesse público, buscar afastar os efeitos da coisa julgada.
3. O ataque à coisa julgada nula fez-se incidenter tantun, por via de execução ou por ação de nulidade. Mas só as partes no processo é que têm legitimidade para fazê-lo.
Omissis…13. (Grifei)
4.3 Impugnação ao cumprimento da sentença
Primeiramente, mister tecerem-se algumas considerações acerca da Lei 11.232/05 que alterou a execução de título judicial, transformando o que era ação autônoma e independente – liquidação e execução de sentença – em procedimentos ou fases de uma mesma ação. Com a nova lei, os processos de conhecimento, liquidação de sentença e execução passam a ser processados em seqüência, formando-se apenas uma relação processual, um único processo. Com isso, a execução de título judicial dá lugar ao procedimento de cumprimento de sentença, normatizado pelos arts. 475-I e seguintes do Código de Processo Civil.
Nessa via, o art 741 do CPC que previa os embargos a execução fundada em sentença restou revogado pela referida Lei 11.232/05, fazendo desaparecer os embargos à execução judicial. Com o novo regramento, a defesa na fase executiva é a impugnação ao cumprimento da defesa, regrada no art. 475-L do CPC, além, é claro da exceção de pré-executividade a ser tratada posteriormente.
Contudo, é preciso ter-se em mente que, embora transformado em procedimento, não perdeu seu caráter satisfatório, conforme leciona Nery Junior (2006; p.639):
Evidentemente que não se muda a natureza das coisas por simples alteração legislativa, de modo que execução continua sendo execução, ainda que topicamente localizada no Livro de Processo de Conhecimento do CPC. Continuam existindo as características inatas da execução, como por exemplo: a) possuir atividade jurisdicional; b) ter natureza jurídica de ação; c) a ação de execução (pretensão executória) ser exercitável por meio do processo de execução, não autônomo, mas como continuação da ação de conhecimento, em cúmulo objetivo e superveniente de ações. O que a Reforma da L 11232/05 fez foi desburocratizar, simplificar, informalizar a ação e o processo de execução, que continuam revestindo a atividade jurisdicional satisfativa.
Feitos tais esclarecimentos, apresenta-se o incidente da impugnação ao cumprimento de sentença como instrumento viável à desconstituição da coisa julgada inconstitucional, fundamentando-se no inciso II e no § 1º do citado art. 475-L, que assim dispõem sobre o tema:
Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre:
Omissis…
II – inexigibilidade do título;
Omissis…
§ 1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
Portanto, tem-se duas situações arroladas acima: a primeira, expressa no inciso II, que se refere a nulidade absoluta da decisão judicial contaminada pelo vício da inconstitucionalidade, a qual não produz efeito algum no mundo jurídico e, por conseguinte, não há como se pretender conferir exigibilidade ao ato viciado. No tocante a esta, a matéria não merece maiores digressões, em virtude de ter restado, no capítulo 3, subtítulo 3.3, cristalina a nulidade absoluta da coisa julgada inconstitucional.
Já a segunda hipótese, nada mais é do que a decisão judiciária inconstitucional, configurada pela aplicação ou interpretação de lei ou ato normativo desconformes com a Carta Magna, protegida ou não pelo instituto da coisa julgada. Importante notar-se que nesse parágrafo o legislador reconheceu a possibilidade da relativização da coisa julgada, ao expressar que será inexigível o título judicial quando o julgador, ao interpretar ou aplicar disposição legal, contrariar a Constituição Federal. Há que se destacar que, como o procedimento de cumprimento de sentença poderá ser requerido pelo credor a qualquer momento, observado o prazo prescricional, a impugnação, na mesma via, pode ser argüida a qualquer tempo.
A regra constante do § 1º é de suma relevância ao tema ora abordado, haja vista que transporta a relativização da coisa julgada inconstitucional da esfera doutrinária e jurisprudencial, para o plano normativo. Em última análise, declara explicitamente, para quem tinha dúvidas, que o Poder Judiciário está submetido ao princípio da supremacia da constituição e que a decisão judicial, mesmo sob o manto da coisa julgada, não pode ser convalidada quando violentar a carga valorativa do texto maior.
4.4 Exceção de pré-executividade
De acordo com o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, o contraditório e a ampla defesa são garantias constitucionais de qualquer processo jurídico, constituindo expressões do princípio político que assegura ao interessado o direito de influir na decisão de uma autoridade, cujo ato irá atingí-lo; sendo fundamental ao Estado Democrático de Direito em que vivemos.
Embora o cumprimento de sentença tenha o caráter específico de realizar a sanção, e sua índole não esteja voltada ao contraditório, o devedor possui o direito de defesa, previsto no art. 475-L do CPC. Contudo, o § 1º do art. 475-J, do diploma processual, aduz que somente depois de seguro o juízo, haverá a possibilidade de impugnação do procedimento executivo.
Seria demasiadamente perverso, exigir-se que o suposto devedor submeta seu patrimônio à constrição abusiva da penhora para poder, por intermédio do incidente, apontar os vícios constitucionais, os quais o magistrado deveria reconhecer ex officio. Nestes casos, inexistindo mecanismo de defesa legalmente previsto, a doutrina e a jurisprudência aceitam a utilização da exceção de pré-executividade, sem necessidade de assegurar o juízo, sempre que a defesa referir-se à matéria de ordem pública. Embora seja de construção doutrinária, a exceção de pré-executividade vem ganhando corpo em nossos tribunais, senão vejamos:
Ementa PROCESSO CIVIL – RECURSO ESPECIAL EM AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO – RETENÇÃO LEGAL – AFASTAMENTO – PROCESSO EXECUTIVO – EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE – CABIMENTO – MATÉRIA CONHECÍVEL DE OFÍCIO PELO JUIZ E DISPENSÁVEL DILAÇÃO PROBATÓRIA – TÍTULO EXTRAJUDICIAL INEXIGÍVEL – NULIDADE DA EXECUÇÃO – EXTINÇÃO – MEDIDA CAUTELAR – EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL – JULGAMENTO DESTE – PERDA DE OBJETO – PREJUDICIALIDADE – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO.
1 – Tratando-se de recurso especial proveniente de decisão interlocutória proferida no curso de execução de título extrajudicial, configura-se indevida a respectiva retenção,
porquanto não caracterizadas as hipóteses taxativas do art. 542, § 3º, do CPC. Precedentes (REsp nº 598.111/AM e MC nº 4.807/SP).
2 – A doutrina e jurisprudência têm admitido a apresentação da exceção de pré-executividade para argüição de vícios em ação de execução, cuja análise possa ser realizada de ofício pelo juiz e prescinda de dilação probatória. É cabível, assim, a exceção de pré-executividade apresentada para alegar a nulidade de execução, por falta de exigibilidade do título executivo extrajudicial, matéria conhecível ex officio pelo juiz e que dispensa a produção de provas. Precedentes (REsp nºs 419.376/MS e 442.448/SP).
3 – Com o alongamento do lapso temporal para o pagamento da dívida rural, na forma da Lei nº 9.138/95 c/c Res. nº 2.471/98-BACEN, o título executivo (instrumento público de confissão de dívida, com garantia hipotecária) tornou-se inexigível, sendo nula a execução, nos termos do art. 618, I, do CPC. Precedentes (REsp n°s 252.891/SP, 329.937/SP e AgRg no Ag nº 476.337/RS).
4 – Recurso conhecido e provido para, reconhecendo o cabimento da exceção de pré-executividade apresentada, extinguir a execução, por inexigibilidade do título executivo. Custas e honorários advocatícios fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais) pelo vencido.
5 – Tendo sido julgado, nesta oportunidade, o presente recurso especial, a Medida Cautelar nº 9.279/DF perdeu o seu objeto, porquanto foi ajuizada, exclusivamente, para conferir-lhe efeito suspensivo.
6 – Prejudicada a Medida Cautelar nº 9.279/DF, por perda de objeto, restando extinta, sem exame do mérito, nos termos do art. 808, III, c/c o art. 267, IV, ambos do CPC. Este acórdão deve ser trasladado àqueles autos.14 (Grifei)
Ementa PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. POSSIBILIDADE.
1. A possibilidade de verificação de plano, sem necessidade de dilação probatória, delimita as matérias passíveis de serem deduzidas na exceção de pré-executividade, independentemente da garantia do juízo. Precedentes: EResp 614272/PR, Primeira Seção, Min. Castro Meira, DJ de 06.06.2005; Resp 717250/SP, Segunda Turma, Min. Eliana Calmon, DJ de 26.04.2005; Resp 611617/RJ, Primeira Turma, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 23.05.2005.
2. Recurso especial a que se nega provimento. 15 (Grifei)
Ementa EXECUÇÃO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. – A exceção de pré-executividade é cabível para discutir matérias de ordem pública, os pressupostos processuais, as condições da ação, os vícios objetivos do título executivo, atinentes à certeza, liquidez e exigibilidade, mostrando-se inadequada quando sua interposição envolve questão que necessite de dilação probatória. 16 (Grifei)
Assim, o devedor pode atacar a execução forçada por exceção de pré-executividade, através de petição nos autos do processo, em qualquer tempo, independente da propositura do incidente de impugnação, especialmente tratando-se de violência à lei máxima do ordenamento jurídico, ferindo o princípio da constitucionalidade, fato que gera a nulidade absoluta do julgado.
Determina o art. 475-R, do CPC, que “aplicam-se subsidiariamente ao cumprimento da sentença, no que couber, as normas que regem o processo de execução de título extrajudicial”. E, segundo o art. 618, I, do CPC, é nula a execução se o título executivo não for líquido, certo e exigível. Ora, se a execução pressupõe essas exigências e é notório o vício extintivo, modificativo ou impeditivo do direito material do credor, por certo deve ser facultado à parte, argüir a matéria, evitando submeter-se a uma constrição-punição injusta e abusiva.
Para argüição da exceção não se exige forma ou procedimento especial, porém a sua tramitação não pode tumultuar a fase executiva, sendo que a matéria contida no incidente deve ser suscetível de apreciação com base em prova preconstituída, isto é, deve versar sobre questões comprovadas documentalmente.
Corroborando com os argumentos aqui expostos, colaciona-se o ensinamento de Daniel Carneiro Machado (2005; p.137-138):
Diante da nulidade da sentença inconstitucional, entendemos ser cabível também, como mecanismo processual de controle, a chamada exceção de pré-executividade – incidente não previsto na legislação, mas extremamente acolhido pela jurisprudência e doutrina pátrias. A exceção de pré-executividade tem por escopo dotar o magistrado de um instrumento jurídico que lhe permita, nas hipóteses de comprovada existência de vícios materiais ou formais do título executivo que aparelha a execução, admitir a sua alegação pela parte executada e decidir a questão, independentemente da garantia do juízo pela penhora[…] Tais alegações devem ser de tal monta inibitórias da pretensão do credor que sua comprovação prescinda de qualquer outra prova que não sua mera alegação[…] Vale dizer, quando a irregularidade que impede o prosseguimento da execução não for manifesta, de tal modo que independa de discussão e dilação probatória, não se pode tolerar que o executado se insurja por meio de exceção de pré-executividade[…].
Considerações finais
Após a análise de todos os fatos e teorias expostas resulta cristalizado que a decisão judicial contrária à carga valorativa da Constituição Federal é absolutamente nula, podendo ser desconstituída a qualquer tempo, haja vista não estar submetida aos prazos prescricionais e decadenciais. Em virtude do vício da inconstitucionalidade o decisum não produz qualquer efeito no mundo jurídico, assim, tem-se mera aparência de coisa julgada, por conseguinte o ato decisório não é protegido pela imutabilidade conferida pelo instituto.
Não prospera a alegação de que a coisa julgada será passível de impugnação apenas nas hipóteses de cabimento da ação rescisória, limitada pelo lapso temporal de dois anos.
Ora, a ordem jurídica pátria não tolera que se violente a Carta Magna, tanto que o princípio da supremacia da constituição aparece como princípio informador do ordenamento jurídico. A CF deve ser observada e respeitada por todos os poderes típicos do Estado. O Poder Judiciário, assim como o Legislativo e o Executivo, está submetido ao crivo de constitucionalidade dos atos estatais, pressuposto básico do Estado de Direito.
Inadmissível aceitar-se que uma decisão judiciária se convalide quando ferir o texto constitucional, com base na segurança jurídica, sob pena de erigir-se o instituto da coisa julgada e garantia da segurança jurídica a nível acima da Lei Fundamental. A coisa julgada somente poderá conferir imutabilidade às decisões enquanto estejam em conformidade aos preceitos (amplo sentido) constitucionais. Isso porque nenhuma garantia pode tutelar ato inconstitucional.
Mister lembrar que o Poder Judiciário deve, por intermédio de suas decisões, corresponder à expectativa social e atingir seu objetivo precípuo, qual seja: manutenção da paz social. Entende-se que isso somente será possível, se os julgadores estiverem adstritos aos valores, explícitos e implícitos, contidos na Constituição da República, dentre os quais está o da justiça. Justiça das decisões judiciais, justiça do processo legal, justiça do contraditória e da ampla defesa, enfim, justiça enfocada sob a perspectiva objetiva-constitucional, voltada para garantir os direitos constitucionais do cidadão.
Não se pode ter o Judiciário como um poder intocável e infalível. É inconcebível que decisões absurdas, não condizentes com o espírito da Lei Máxima da nação, possam produzir efeitos sob o manto da segurança jurídica. Nesse sentido, Cândido Rangel Dinamarco (2002; p.09) asseverou que “não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas”.
Ressalta-se que a ação rescisória, intentado dentro do prazo legal de dois anos; a ação declaratória de nulidade; a impugnação ao cumprimento de sentença; e a exceção de pré-executividade são mecanismos processuais idôneos a proposição de relativização da coisa julgada inconstitucional.
Por fim, há que se destacar, ainda, o caráter excepcionalíssimo da relativização da coisa julgada. O presente trabalho de pesquisa não tem por finalidade aniquilar o instituto da coisa julgada, a regra deve continuar sendo o respeito à “imutabilidade da decisão transitada em julgado”, porém, não se pode aceitar seu caráter absoluto.
Informações Sobre o Autor
Everson Antunes Lobo