A sociedade tecnocientífica e os limites éticos: uma análise pontual da lei brasileira de inovação

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Resumo: O presente artigo pretende, inicialmente, expor o avançado estado da técnica na sociedade tecnocientífica, que, ao mesmo tempo, supera obstáculos postos ao homem no presente e gera riscos ao futuro da humanidade. Ainda, neste cenário, o estudo tem a intenção de verificar os limites éticos existentes e ventilar a possibilidade de uma nova reflexão ética em relação ao processo de inovação científica e tecnológica. Ao final, será realizada uma avaliação em relação à Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004 – Lei Federal de Inovação -, evidenciando a (des)preocupação do legislador em relação aos limites éticos do processo de inovação brasileiro.

Palavras-chave: Sociedade Tecnocientífica, ética, inovação, Lei de Inovação.

Abstract: This article intends to initially expose the state of the art techno-scientific society, which at the same time, overcome the obstacles to the man in the present and creates risks to the future of humanity. Still, in this scenario, the study intends to verify the existing ethical boundaries and ventilate the possibility of a new ethical reflection on the process of scientific and technological innovation. At the end, there will be an evaluation in relation to Law No. 10,973, of December 2, 2004 – Federal Law of Innovation – showing the (dis) legislator's concern regarding the ethical limits of the innovation process in Brazil.

Keywords: Technoscientific society, ethics, innovation, Innovation Law.

1  INTRODUÇÃO

A sociedade tecnocientífica, formada no século XX e confirmada no século XXI, é um reflexo do avançado estágio da técnica atingida pelo homem. Num período muito curto da história, o homem atingiu superpoderes capazes de demonstrar sua própria vulnerabilidade. A humanidade conseguiu curar e extinguir doenças, encurtar distâncias, aumentar a expectativa de vida, há conforto, conhecimento e lazer disponíveis. No entanto, ao mesmo tempo, na mesma sociedade, viu-se um poder de autodestruição sem precedentes, com bombas atômicas que varrem cidades inteiras, uma poluição que aquece o planeta e derrete as geleiras, a contaminação da essência da vida – a água.

O problema e a solução – ou seria a solução e o problema, ou, talvez, o bem e o mal – são reflexos dos riscos assumidos pelo homem na sociedade tecnocientífica. A técnica tem viabilizado a superação de muitos desafios lançados à humanidade, sendo que o homem também não mede esforços na busca destas soluções, gerando resultados positivos impressionantes e que auxiliam na manutenção do planeta. Entretanto, ao mesmo tempo, em diversas situações, ao lado do resultado positivo, temos um resultado negativo, um efeito colateral gerado pela inovação, também conhecido como risco.

Na sociedade atual, o risco vem sendo minimizado e, diante dos benefícios da evolução tecnológica, muitas vezes, ofuscado. Na realidade, o homem, para atingir o desenvolvimento econômico, o poder, entre outras finalidades, utiliza-se da técnica sem qualquer limite. 

No presente artigo, pretende-se justamente expor a necessidade de uma reflexão ética sobre os limites da técnica na sociedade tecnocientífica, na qual o homem não mede esforços (nem consequências) para atingir seus objetivos, negligenciando todo e qualquer limite ético, pondo em risco toda a humanidade. Além disso, será objeto de estudo o marco legal da inovação no Brasil – Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004 – e a (des)preocupação do legislador em relação aos limites éticos do processo de inovação brasileiro.

2  A TÉCNICA SEM LIMITES NA SOCIEDADE TECNOCIENTÍFICA

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional vivenciou o tenso período da Guerra Fria, marcada por uma luta travada entre dois blocos econômicos, que mediam forças para conquistar adeptos ao redor do Mundo. Neste período, os dois principais representantes destes blocos, Estados Unidos e União Soviética, também travavam uma intensa luta tecnológica. Ambos queriam saber e demonstrar até onde o ser humano podia chegar? Pergunta clássica e repetida por muitas vezes na história, mas que nesta época, em especial, tinha um objetivo: a corrida ao espaço era o limite desejado.

Neste sentido, ao longo da história da humanidade, foram os fatores sociais, como a disputa pelo poder, os conflitos armados, a política, as epidemias, etc., os responsáveis por moldarem e desencadearem o processo de evolução e desenvolvimento da inovação tecnológica. Conforme referem FREEMAN e SOETE (2008), os investimentos em inovação foram mudando ao longo da história. Nas décadas de 1940 e 1950, os objetivos militares predominavam nos maiores países; durante as décadas de 1960 e 1970, predominaram objetivos de política econômica, quando o aumento da produtividade começou a adquirir prioridade, mesmo em países com fortes compromissos militares; nas décadas de 1980 e 1990, a maior parte dos gastos foi orientada para promover o desenvolvimento e a difusão das tecnologias da informação e das comunicações; cada período teve suas peculariedades e a inovação necessitou atender a situação pontual, adaptando-se a realidade premente.

Atualmente, neste início de século, qual seria o objetivo a ser alcançado pela nossa sociedade? Há tantas necessidades e prioridades universais – como o clima, o combate à poluição, a produção de alimentos, a escassez de água, entre outros –, ao mesmo tempo, há tantos outros problemas locais, que cada nação precisa priorizar e tentar solucionar. Na realidade, vive-se o mundo globalizado, onde todos tem o seu objetivo, mas dividem as angústias dos demais, numa mistura heterogênea, que expõe universos antagônicos espelhados e totalmente dependentes e em constante mudança, invertendo os pesos na balança com uma dinâmica inesperada e sem qualquer aviso.

Nesta sociedade global, um tanto confusa, mas totalmente interdependente, os objetivos, além de inúmeros, são dinâmicos, sendo superados diariamente pelo espetacular desenvolvimento científico e tecnológico. A técnica atingiu parâmetros inimagináveis há poucos anos, superando obstáculos e gerando soluções para o desenvolvimento do ser humano e do planeta, não tendo, aparentemente, limites.

“No entanto, mesmo hoje a humanidade não está à altura do evento técnico por ela mesma produzindo e, quem sabe pela primeira vez na história, a sua sensação, a sua percepção, a sua imaginação, o seu sentimento se revelam inadequados ao que está ocorrendo. De fato, a capacidade de produção, que é ilimitada, superou a capacidade de imaginação, que é limitada, de modo a não nos permitir mais compreender e, no limite, de considerar como “nossos” os efeitos que o irreversível desenvolvimento técnico é capaz de produzir” (GALIMBERTI, 2006, p. 23).

Assim, apesar do atual estágio da técnica da inovação gerada pela comunidade científica e tecnológica, a humanidade ainda encontra muitos obstáculos no seu desenvolvimento pleno. Problemas básicos, como a falta de alimentos, a escassez de água potável, problemas de saneamento, entre tantos outros, assolam a comunidade internacional. Conforme refere ZUBEN (2006, p. 21), a transcendência dos limites por meio da operatividade das tecnociências, da técnica, não encontra correspondência, em igual efetividade, na transcendência simbólica. Assiste-se, assim, a um período paradoxal: em virtude da inédita operatividade das tecnociências o homem é contemplado com superpoderes, o que lhe propicia intenso sentimento de euforia pela conquista, levando ao paroxismo a ideia moderna do progresso. Como resultado surge a crença ingênua de que as tecnociências resolverão os problemas que assolam a humanidade.

O enfrentamento dos desafios lançados à comunidade científica, essenciais para o desenvolvimento da inovação, agregam, muitas vezes, além dos resultados positivos, consequências ou reflexos negativos, chamados por muitos doutrinadores como riscos.

A palavra “risco”, no sentido de perigo, vem do francês do século XVIII, quando passou a significar “perigo com algum elemento de azar ou acaso”. O risco relativo a inovações tecnológicas, mais precisamente o risco à saúde, à vida e ao meio ambiente, parece ter surgido com a Revolução Industrial, ou seja, com a invenção da máquina a vapor, que tinham um potencial de causar um número maior de acidentes do que outras invenções humanas criadas até o final do século XVIII (SCHULTZ, 2009).

Na modernidade tardia, conforme refere BECK (2010), a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos. O autor vai mais longe, afirmando que, primeiro, intensifica-se a cientificização dos riscos e, segundo, a comercialização do risco se intensifica.

“Erra-se o alvo ao se considerar o assinalamento de ameaças e riscos do desenvolvimento civilizacional como mera crítica; ele é também – mesmo com toda a resistividade e as acrobacias da demonização – um fator de fomento econômico de primeira ordem. Isto torna-se patente no desenvolvimento dos setores e ramos econômicos correspondentes, assim como no aumento dos gastos públicos com a proteção do meio ambiente, o combate às enfermidades civilizacionais etc. O sistema industrial tira proveito dos inconvenientes que produz, e não é pouco proveito” (BECK, 2010, p. 67).

Neste contexto, para BECK (2010), autor da expressão “sociedade de risco”, o risco é produzido através da própria evolução tecnológica, ou seja, os reflexos negativos, também conhecidos como efeitos colaterais, são consequências da inovação. Estes “novos” riscos, segundo o autor, são reaproveitados pelo sistema, gerando novas demandas e soluções, em um processo cíclico de evolução tecnológica.

A história recente também ilustra muito bem os riscos que podem ser provocados pela inovação tecnológica. Um exemplo que é possível resgatar refere-se à energia nuclear, que passou de arma de destruição em massa, durante a Segunda Guerra Mundial, para uma alternativa energética, citada por muitos como energia limpa, mas que, com acidentes como o de Chernobyl (1986) e Fukushima (2011), expõe os riscos inerentes à tecnologia.

Referindo-se ao desastre de Chernobyl, BECK (2010, p. 8) afirma que:

“Longe daqui, no oeste da União Soviética, ou seja, de agora em diante, em nosso entorno próximo, aconteceu um acidente – nada deliberado ou agressivo, na verdade algo que de fato deveria ter sido evitado, mas que, por seu caráter excepcional, mas também é normal, ou mais, é humano mesmo. Não é a falta que produz a catástrofe, mas os sistemas que transformam a humanidade do erro em inconcebíveis forças destrutivas. Para a avaliação dos perigos, todos dependem de instrumentos de medição, de teorias e, sobretudo: de seu desconhecimento – inclusive os especialistas que ainda há pouco haviam anunciado o império de 10 mil anos da segurança probabilística atômica e que agora enfatizam, com uma segurança renovada de tirar o fôlego, que o perigo jamais seria agudo”.

Ao longo da história, os riscos tem sido negligenciados ou ignorados o máximo possível por líderes políticos para evitar o pânico e a paralisia. Hoje, em dia, eles são ofuscados pelo debate sobre a mudança climática ou outro debate genérico e ideológico, que representa outra prova da nossa incapacidade de pensar sistematicamente (RAICH; DOLAN, 2010). No entanto, por sua dimensão cósmica, por seus efeitos cumulativos e irreversível, os riscos produzidos pelo desenvolvimento da técnica introduzem distorções tão definitivas que criam uma periculosidade sem precedentes na história da vida. A preservação da vida sempre teve um custo, todavia com o homem moderno esse custo, esse preço a ser pago pode ser a destruição total. De maneira proporcional ao incremento da periculosidade do homem, cresce em importância sua responsabilidade como tutor de todas as formas de vida (SIQUEIRA, 1998).

A negligência aos riscos é motivada especialmente pela ganância instaurada na atual sociedade internacional. Tanto a iniciativa pública como a privada enxergam na inovação tecnológica a ponte para o seu desenvolvimento econômico, ofuscando-se os riscos gerados com o processo tecnológico e deixando-se de lado o aspecto social.

Diversos doutrinadores, como MOURA E SILVA (2003), afirmam que a evolução tecnológica é hoje reconhecida como um dos principais motores do crescimento econômico devido ao seu impacto no aumento da produtividade. A inovação de processos e a introdução de novos produtos no mercado geram efeito direto sobre a economia, quer dos países industrializados quer dos países em vias de desenvolvimento.

Diante deste panorama e prevendo uma evolução na área do conhecimento, muitas nações e instituições privadas investem pesado na inovação tecnológica, focando especialmente a solução para problemas internos e estimulando a competitividade de suas indústrias no mercado nacional e internacional.

“Hoje em dia, sem esta ação coordenando esforços, investindo, estimulando o desenvolvimento industrial e particularmente o tecnológico, a economia corre sérios riscos de declínio e de ser levada à situação de satélite de economias mais poderosas, a ponto do comprometimento da independência nacional não só no plano econômico e técnico, como no político” (BARBOSA, 2011, p. 04).

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O foco no aspecto econômico exclusivamente prossegue o processo de deteriorização do meio ambiente e minimiza a importância do próprio ser humano, conforme refere CASAGRANDE JR. (p. 2, 2012):

“Aliado a isto se vê um processo de globalização que acelerou o aumento da pobreza mundial e suas consequências como deteriorização da saúde e da dignidade humano. Esta não tem trazido à maioria dos trabalhadores uma melhor qualidade de vida, ao contrário, tem colaborado para o aumento da diminuição de renda entre os mais pobres. A despeito da economia mundial ter produzido quase US$ 41 trilhões em bens e serviços durante 1999, 45% da receita ficou para os 12% da população mundial que vive nos países industrializados do ocidente”.

A mudança tecnológica é um processo social e institucionalmente incorporado. Os modos de utilização das tecnologias são condicionados pelo respectivo contexto socioeconômico. No mundo atual, isso significa basicamente os valores e as motivações de empreendimentos comerciais capitalistas operando dentro de um sistema muito competitivo. As escolhas e utilizações das tecnologias são influenciadas pela busca de lucros, acúmulo de capital e investimento, aumento da fatia do mercado etc. (DICKEN, 2010).

Além disso, conforme refere FREITAS (2003), a emergência dos procedimentos científicos para a avaliação e o gerenciamento de risco, mais do que uma resposta técnica às preocupações coletivas, converteu-se também numa determinada resposta política à formação de consenso nos processos decisórios. Baseado tanto na perspectiva utilitarista e no paradigma do ator racional, como na concepção elitista de democracia, seu desenvolvimento se deu com o objetivo subjacente de transformar determinadas escolhas sociais, políticas e econômicas em “problemas” puramente técnicos e científicos. Assim, torna-se um elemento estratégico para despolitizar os debates, envolvendo a aceitabilidade do risco, e os processos decisórios envolvendo o desenvolvimento, difusão e controle de tecnologias consideradas perigosas, encobrindo, assim, tanto as grandes incertezas sobre suas consequências em larga escala social, como valores subjetivos e os interesses sociais, políticos e econômicos que determinam seus resultados.

A dependência do desenvolvimento econômico e o condicionamento das decisões políticas à evolução tecnológica vem comprometendo os limites morais estabelecidos na sociedade, gerando riscos a nossa civilização e comprometendo nosso ecossistema. Neste sentido, JUNGES (2004), utilizando o modelo da “nave espacial” de K. Boulding, alerta sobre a produção dos riscos da evolução tecnológica, expondo que a Terra um sistema fechado, finito e auto-reprodutor, onde a natureza e os seres humanos estão intimamente relacionados. Um incidente na nave porá todos em perigo. Não se pode sacrificar a estabilidade e integridade do nosso meio de transporte, a nave Terra, com a satisfação de interesses privados. Por isso é necessário criar as condições para chegar a consensos que submetam as preferências individuais aos interesses do ecossistema Terra. Diferente da primeira, que é deontológica, essa é utilitarista porque tenta maximizar os benefícios, em parte empíricos, mas também valorativo-espirituais.

Assim, conforme refere ENGELMANN (2011), o conhecimento deve ter um papel fundamental na sociedade, assegurando a tomada de decisões favoráveis ao ser humano e ao meio ambiente, pelo ingresso da razão prática, que deverá agir dentro de um determinado espaço de tempo. A inovação tecnológica deve ser vista como uma aliada do ser humano na construção do seu futuro. Para isso, ela necessita ser gerenciada considerando valores éticos essenciais, que visam justamente promover e proteger o ser humano e o meio ambiente.

Numa sociedade de risco, como refere BECK (2010), há necessidade de questionar os limites possíveis para o processo de inovação ou deve-se questionar se é necessário realizar tudo que a técnica viabiliza? Se tudo que a técnica viabiliza deve ser acessível ao consumidor? Ou, quem pode ter acesso a esses produtos inovadores?

3  A SOCIEDADE TECNOCIENTÍFIA E OS LIMITES DA TÉCNICA

A técnica avança a fronteira de seus limites continuamente. A sociedade internacional necessita, principalmente sob o aspecto econômico, desta inovação tecnológica, tornando-se o homem um refém do novo. Criam-se novos problemas – como acima é mencionado, através dos riscos e efeitos colaterais das soluções de outros problemas – para alimentar a ânsia desta cíclica sociedade tecnocientífica.

  Evidente, que não há como menosprezar os benefícios trazidos pela inovação tecnológica ao ser humano e também para o seu meio. No entanto, os custos e os riscos assumidos pela nação universal foram altos e, em muitos casos, irreversíveis. Neste sentido, JUNGES (2004, p. 52), tentando alertar sobre os riscos e conseqüências da industrialização, afirma:

“É inegável que a industrialização melhorou significativamente a vida dos seres humanos, mas provocou igualmente efeitos desastrosos, que agora ameaçam aqueles que ela própria procurou beneficiar. As conseqüências negativas não são fruto da própria ciência e técnica, mas da falta de uma cultura mais sistêmica do ambiente e de um igualitarismo em relação rurais. A civilização industrial provocou a acentuação do dualismo ser humano e natureza, a exploração dos recursos naturais para atender às crescentes necessidades humanas, o desenvolvimento de tecnologias com impacto sobre o meio ambiente, o uso e a exploração de novas fontes de energia, o aumento exponencial da população, o aumento da complexidade dos sistemas sociais pelo surgimento de classes sociais e pelo desaparecimento de modos alternativos de vida devido à massificação cultural. Tudo isso levou a um dissídio crescente entre a sociedade humana e o meio ambiente, a divisões e discriminações na sociedade humana.”

Tanto os riscos, como os dissídios provocados no interior da sociedade humana e desta e o seu meio pelos avanços da ciência e da técnica, sobretudo nos últimos cinquenta anos, bem como a intervenção desta ciência cada vez mais crescente em domínios até então inalcançáveis pela ação do homem tem, conforme refere BRAGATO (apud ENGELMANN, 2011, p. 20) suscitado grandes preocupações éticas, uma vez que a hegemonia do discurso tecnocientífico vem constituindo, de forma penetrante, o paradigma a partir do qual a humanidade tem se movido desde a modernidade.

O ser humano assiste, nos últimos tempos, a um crescente despertar de consciência ética em relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo progresso econômico e técnico. A humanidade começa a dar-se conta de que nem toda descoberta científica e nem toda vantagem tecnológica trazem sempre efeitos puramente benéficos para as pessoas e a sociedade. Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses espúrios e de uma técnica limpa e benéfica (JUNGES, 1999).

Conforme refere JONAS (2006), a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública, que tenham por objetivo conservar o mundo físico, de modo que as condições para a presença humana permanecem intactas, e a vulnerabilidade do ser humano.

“O poder tecnológico transformou aquilo que costumava ser exercícios hipotéticos da razão especulativa em esboços concorrentes para projetos executáveis. Na escolha entre eles devemos escolher entre extremos de efeitos distantes, em sua maioria desconhecidos. A única coisa que realmente podemos saber sobre eles é o seu extremismo propriamente dito: que eles dizem respeito à condição geral da natureza em nosso planeta e ao tipo de criaturas que devem ou não habitá-lo. A escala inelutavelmente “utópica” da moderna tecnologia leva a que se reduza constantemente a saudável distância entre objetivos quotidianos e últimos, entre as ocasiões em que podemos utilizar o bom senso ordinário e aquelas que requerem uma sabedoria iluminada” (JONAS, 2006, p. 63).

Na realidade, o agir coletivo-cumulativo-tecnológico é de um tipo novo, tanto no que se refere aos objetos quanto à sua magnitude, sendo que, para seus efeitos, deixou de ser eticamente neutro[1], exigindo a determinação de uma resposta. Outrossim, conforme refere BARRETTO (2013), com a técnica moderna, a ação humana alcançou novas formas de poder, que desenvolveram capacidades, antes desconhecidas pelo homem, de manipular as leis da natureza humana e extra-humana, tornando o homem extremamente vulnerável na sua individualidade, ameaçando, assim, toda existência humana futura do planeta.

A imposição de limites éticos à sociedade tecnocientífica é necessária e urgente. A sua reflexão definirá e determinará o futuro da sociedade internacional, especialmente sob o aspecto econômico e social. A proteção do ser humano e do seu meio ambiente não pode ser desprezada em favor de reflexos econômicos e políticos. No atual modelo, sem limites claros, conforme refere SIQUEIRA (1998), a técnica se converte na essência do poder e passou a ser a manifestação natural das verdades contidas na ciência. Se a ciência teórica podia ser chamada de pura e inocente, a tecnociência, ao ser intervencionista e modificadora do mundo, não o é. 

A práxis – que, conforme JONAS (2006), reduziu-se a poiesis, transformando a ética em política e, por consequência, dando legitimidade para que o homem atuasse de acordo com os interesses implícitos nas relações de poder – deve sempre ser passível de uma reflexão ética, ainda mais quando a pergunta ética que está ligada ao futuro e à tecnociência de uma forma especial é a seguinte: O que vamos fazer do homem?

O questionamento acima pode ser respondido e observado de vários pontos de vista, como, por exemplo, o desenvolvimento social ou econômico, o aspecto ambiental, o reflexo humanitário, a soberania dos povos, entre outros. Na realidade, estes aspectos sociais serão (ou deveriam ser) a base para a resposta construída pela necessária e urgente reflexão ética a ser realizada em relação à sociedade tecnocientífica.

Além disso, conforme refere de forma pontual BRAGATO (apud ENGELMANN, 2011), os problemas e impasses éticos gerados pela tecnociência devem tomar a dignidade humana como valor-fonte a ser invocado como freio às possíveis intervenções ilimitadas que coloquem definitivamente em risco a continuidade da espécie humana. Porém, para isso, é necessária a remodelação de antigos conceitos e o principal deles é o de pessoa humana, na medida em que esferas do humano, até então imunes a outros tipos de ação que não a da natureza, necessitam de tutela. A pergunta sobre os limites da ação humana pressupõe, antes, a redefinição do que conta como efetivamente humano e, portanto, do que é digno de respeito e proteção.

Outro aspecto que deve ser observado antes de evoluirmos na reflexão sobre a limitação ética da sociedade tecnocientífica, invocado por BECK (2010), ainda na década de 1980, é definir que tipo de ciência já vem sendo praticada no que diz respeito à previsibilidade de seus efeitos colaterais supostamente imprevisíveis.

“O fiel da balança nesse contexto é saber: se persistirá a superespecialização que produz efeitos colaterais a partir de si mesma e que parece, com isto, confirmar sempre de novo sua inevitabilidade, ou se será possível reencontrar e desenvolver a força necessária para uma especialização voltada para o contexto; se a capacidade de aprendizado no relacionamento com efeitos práticos será recuperada ou se, em vista dos efeitos práticos, serão geradas irreversibilidades que se baseiam na suposição da infalibilidade e que tornam, já de saída, impossível o aprendizado a partir dos erros práticos; em que medida, justamente ao lidar com os riscos da modernização, é possível substituir o tratamento dos sintomas por uma eliminação das causas; em que medida as variáveis e causas apontadas fazem com que os tabus práticos em torno dos riscos “autoinfligidos em termos civilizatórios” sejam cientificamente reproduzidos ou rompidos; enfim, se riscos e ameaças serão metódica e objetivamente interpretados a contento ou serão cientificamente multiplicados, menosprezados ou encobertos” (BECK, 2010, p. 238).

No mesmo sentido, KUHN (apud ENGELMANN, 2011) afirma que a revolução científica é um episódio de desenvolvimento não-cumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior, sendo que estes momentos revolucionários precisam ser percebidos e colocados ao dispor do progresso humano em diversos níveis, e podem ser expressos na seguinte capacidade humana: “se pudermos aprender a substituir a evolução-a-partir-do-que-sabemos pela evolução-em-direção-ao-que-queremos-saber”. Dar-se conta do saber e do aprender, será fundamental para que a revolução científica possa ter seus resultados focados nas necessidades do ser humano. Além disso, para que uma revolução científica alcance resultados ambientais e humanamente aceitáveis deverá ser perspectivada por meio de planejamento e gestão dos riscos e das possibilidades. Além do mais, a mencionada passagem traz à colação a aprendizagem humana da tradição, ou seja, é fundamental lançar-se mão do já sabido a fim de projetar o pretendido, aquilo que se busca alcançar.

Uma das possíveis soluções, indicada por BECK (1999), para o futuro das inovações tecnológicas poderia ser encontrada, por exemplo, em uma tentativa de apoiar politicamente o desenvolvimento de técnicas em suas zonas de risco tendo em vista a criação de alternativas. A ideia é desenvolver uma nova concepção do processo de inovação tecnológica, que se voltasse para a indicação de caminhos alternativos e não para a produção de fatos irreversíveis.

Deixando a projeção da futura reflexão ética sobre a sociedade tecnocientífica e ingressando efetivamente na atual realidade desta, JONAS (2006) refere que os pressupostos da ética clássica se tornaram insuficientes para tratar os problemas da ação técnica, exigindo-se uma reflexão sobre o desenvolvimento de um paradigma ético fundado em uma nova dimensão de responsabilidade. Neste sentido, BARRETTO (2013) afirma que o problema moral central na contemporaneidade talvez se encontre no cerne das indagações éticas a respeito do progresso científico e técnico, principalmente, no campo das ciências da vida. E esse problema nuclear consiste no embate entre duas concepções de responsabilidade. Trata-se da construção de uma concepção humanista da ética, que seria caracterizada pela subsistência de duas responsabilidades, que não seriam excludentes, a responsabilidade do bem – que obriga a preservação – e a responsabilidade do melhor – que determina o progresso ou o aperfeiçoamento qualitativo da vida humana.

“Dessa forma, teríamos uma ética que refletisse e fornecesse argumentos para preservar o ritmo do progresso científico e técnico, próprio da contemporaneidade, e o bem maior que reside na qualidade de vida da pessoa humana. O componente propriamente ético dessa cultura, que se constrói em torno da ciência, servirá, assim, não como limitador do progresso científico, mas como elemento humanizador. A teoria da responsabilidade contemporânea, especificamente levando em conta a realidade tecnocientífica, deverá privilegiar essas duas faces de uma mesma moeda” (BARRETTO, 2013, p. 93).

Além disso, neste contexto da responsabilidade, desenvolvida especialmente por Hans Jonas, o poder humano deve ser restringido pelo dever de cuidado diante da vulnerabilidade da natureza. Ou seja, o homem torna-se responsável pelo que estiver no âmbito do seu poder de interferência na natureza e, em consequência, pela repercussão da sua ação atual nas gerações futuras (BARRETTO, 2013).

A natureza, como fonte geradora do ser humano, é a base de nossa subsistência, sendo impossível separar o homem da natureza sem uma desconfiguração da vida humana.

“Mesmo que fosse possível separar as duas coisas – ou seja, mesmo que em um meio ambiente degradado (e em grande parte substituído por artefatos) fosse possível aos nossos descendentes uma vida digna de ser chamada humana, mesmo assim a plenitude da vida produzida durante o longo trabalho criativo da natureza e agora entregue em mãos teria direito de reclamar nossa proteção. Mas, como é impossível separar esses dois planos sem desfigurar a imagem do homem, e como naquilo que é mais decisivo – a saber, na alternativa “preservação ou destruição” – os interesses humanos coincidem com o resto da vida, que é sua pátria terrestre no sentido mais sublime da expressão, podemos tratar as duas obrigações sob o conceito-chave de dever para com o homem, sem incorrer em um reducionismo antropocêntrico” (JONAS, 2006, p. 229).

Assim, a responsabilidade moral, representada pela responsabilidade do bem e do melhor – que, para JONAS (2006), aponta para o bem humano, o qual concebido em sua generalidade é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento e seu lugar completo é sempre o presente – conjugada com o dever de cuidado diante da vulnerabilidade da natureza (ou seja, do próprio homem e do seu meio) implicam na limitação da ciência e orientam as ações do ser humano para o futuro.

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A definição acima é apenas um passo inicial de uma discussão dos limites éticos da sociedade tecnocientífica. A proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente são condições inegociáveis sob o ponto de vista ético, mas, ao mesmo tempo, também servem de suporte ao próprio processo de inovação. Neste sentido, a delimitação “fina” das fronteiras éticas da sociedade tecnocientífica, considerando os parâmetros de proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente, necessitam ser deliberados e acordados pela comunidade internacional. Ou seja, há necessidade de determinar qual a proteção e a promoção do ser humanos e do meio ambiente necessária e possível? Qual é o ser humano e o meio ambiente que necessita de promoção e proteção?

4  A TÉCNICA E A ÉTICA NA LEI BRASILEIRA DE INOVAÇÃO

A história da humanidade demonstra que a liberdade técnica, ou seja, sem a determinação de limites éticos, pode levar a extremos que são capazes de comprometer o ser humano e o seu meio. A determinação de fronteiras éticas nos liames da técnica é indispensável diante do atual progresso científico do homem.

No atual estágio do desenvolvimento tecnológico, a liberdade humana alcançou tamanhas proporções que passou a atingir a liberdade dos organismos e a colocar em risco o dinamismo da vida e a existência de toda natureza. A presença desta ameaça fica obscurecida por um niilismo que trata a matéria exterior como um mecanismo disponível ao domínio do ser humano, sem qualquer valor e sem finalidade. Nesta concepção niilista do mundo, o homem compreende que possui legitimidade para violentar a natureza e dela se apoderar segundo seu interesse (BARRETTO, 2013).

Conforme refere SIQUEIRA (1998), a sociedade está acostumada a conviver com problemas de limites definidos que pouco servem para atender as complexas indagações éticas que ora se apresentam. A falta de sintonia entre o extraordinário progresso da tecnociência e os tímidos avanços dos mandamentos éticos podem gerar resultados desastrosos para o homem. A tecnociência somente enxerga o preto e o branco, onde a ética percebe o cinza e suas diferentes tonalidades.

Trabalhar com perspectivas como, por exemplo, a prudência – definida no Catecismo da Igreja Católica como a virtude que dispõe a razão prática a discernir em qualquer circunstância nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados a realizá-lo, ou por Aristóteles, em Ética Nicômaco, como recta ratio agibilium (a reta razão do agir), a virtude da razão prática ordenada à direção das ações humanas –, que difere, porém, da arte em sentido próprio, que visa à perfeição de coisas exteriores, no sentido que tende à perfeição do próprio agente: visa a tornar boa, honesta, a própria vontade (NEDEL, 2000), não é suficiente para inibir a ganância da atual sociedade, que explora a ciência para atingir objetivos específicos, sem medir consequências em relação aos riscos. Apesar de filósofos, como Kant, afirmarem que em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples. Que não é necessária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para se ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. A inteligência comum pode ambicionar alcançar o bem tão bem quanto qualquer filósofo pretenda para si. O autor refere ainda que mesmo inexperiente na compreensão do percurso do mundo, incapaz de preparar-me para os incidentes sucessivos do mesmo, ainda assim posso saber como devo agir em conformidade com a lei moral (JONAS, 2006).

Na realidade, os cientistas, que habitualmente preferem dedicar-se a seus microscópios e desprezam as reflexões filosóficas, permanecem distantes da realidade humana e social do homem, conforme o próprio Einstein chegou a dizer, que avaliados pela ética de filósofos e epistemológicos sistemáticos, os cientistas não passariam de “uns oportunistas sem escrúpulos”. A verdade é que, do ponto de vista sociológico, o discurso científico é hoje, para o cidadão comum, um discurso obscuro no seu conjunto (SIQUEIRA, 1998).

Para frear a liberdade e a imprudência humana na sociedade científica a imposição de limites éticos faz-se necessária. O modo de impor estes limites é amplamente discutido pela sociedade internacional. A transferência do discurso ético para o universo jurídico é a solução desejada pelos filósofos contemporâneos, especialmente pela eficácia que o direito é capaz de determinar para os princípios éticos.

“Existe uma interdependência necessária entre ética e direito. São dois âmbitos do conhecimento sobre o agir humano. O enfoque e a metodologia divergem, mas o objetivo é o mesmo. Um vê a ação humana referida à intencionalidade da consciência moral e o outro toma em consideração os resultados externos de uma ação avaliados por um ordenamento legal. Tendo o mesmo objeto de análise, as duas ordens do conhecimento prático exigem-se mutuamente. A ordem jurídica remete à ordem moral para fundamentar a validade e a vigência das normas e dos processos jurídicos e justificar os valores que sustentam a ordem constitucional. Ordenações jurídicas que não têm base ética não conseguem impor-se. A ordem moral remete à ordem jurídica para ter força jurídica e eficácia prática no sentido de possibilitar a convivência social e educar para as exigências éticas de uma ordem democrática. Princípios éticos que não recebem uma configuração jurídica são inócuos na incidência sobre a realidade” (JUNGES, 1999, p.123).

Neste sentido, surge o questionamento se é legítimo legislar sobre a prática científica. Provavelmente, os cientistas oportunistas e inescrupulosos referidos por Einstein teceriam longas considerações sobre a premissa de que a pesquisa científica deveria ser inteiramente livre, não se devendo opor qualquer barreira ao desejo de conhecimento. No entanto, na ótica das responsabilidades do bem e do melhor, referidas por Hans Jonas, há a necessidade de norteadores comuns para a sociedade tecnocientífica, que necessariamente devem ter como base a ética, e parâmetros que assegurem a proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente.

Diante da necessidade destes norteadores comuns, o presente artigo propõe um exercício inverso, verificando-se, na Lei de Inovação Brasileira (Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004), considerada como o marco da inovação no Brasil, a existência de parâmetros éticos que determinem e assegurem a proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente.

A Lei Federal de Inovação, conforme refere o seu art. 1º, estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação e ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do País, nos termos dos arts. 218 e 219 da Constituição.

No atendimento aos preceitos da Constituição Federal de 1988, a Lei de Inovação, atende os propósitos do desenvolvimento científico, de um lado, e os propósitos da pesquisa e capacitação tecnológica, de outro lado.

“A CF/88 reconhece e identifica duas formas de pesquisa: a pesquisa científica básica, art. 218, parágrafo primeiro, recebendo tratamento prioritário do Estado, não dirigida à solução de questões técnicas específicas vinculadas à atividade econômica e tendo como objetivo o bem público e o progresso das ciências; e a pesquisa tecnológica, art. 218, parágrafo segundo, voltada preferencialmente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. Com este fito o Estado apoiará a formação e a capacitação dos necessários recursos humanos – art. 218, parágrafo terceiro” (VEGA GARCIA, 2008, p. 110).

Assim, enquanto que a pesquisa científica é direcionada para toda a humanidade e para o progresso científico, a pesquisa tecnológica é um instrumento de desenvolvimento social, atendendo à população na medida em que resolva, prioritariamente, os problemas brasileiros, voltando-se para o desenvolvimento econômico nacional e regional.

Neste sentido, deve-se ressaltar que o enfoque principal da Constituição Federal é o interesse e a solução dos problemas brasileiros, assim como o efetivo desenvolvimento nacional e a diminuição das diferentes e enormes desigualdades e contrastes sociais e espaciais, além da defesa intransigente da soberania política (VEGA GARCIA, 2008).

Neste contexto, o conteúdo da Lei Federal de Inovação destaca alguns objetivos específicos, como: a) constituição de um ambiente propício às parcerias estratégicas entre as universidades, institutos tecnológicos e empresas, b) estimulo à participação de instituições de ciência e tecnologia no processo de inovação, c) normas de incentivo ao pesquisador-criador, d) incentivo à inovação na empresa e e) apropriação de tecnologias.

Além dos objetivos acima, BARBOSA (2006) apresenta outros, denominados de extrajurídicos, e com o propósito de incentivar a inovação, visando o aumento da competitividade empresarial nos mercados nacionais e internacionais:

“a) Possibilitar o uso do potencial de criação das instituições públicas, especialmente universidades e centros de pesquisa, pelo setor econômico, numa via de mão dupla;

b) Facilitar a mobilidade dos servidores públicos, professores e pesquisadores, da Administração para a iniciativa privada e para outros órgãos de pesquisa; e

c) Para tais fins, alterar a legislação de pessoal, a de licitações, e prever certos subsídios e incentivos fiscais.”

A estrutura da Lei de Inovação, segundo FEKETE (apud ABRÃO, 2006), parece adequada para atingir os propósitos de criar um ambiente favorável à inovação e à cooperação, possuindo poder educativo de difundir uma nova cultura com relação à propriedade intelectual, tanto na proteção quanto na sua implementação no mercado produtivo.

A edição da Lei de Inovação repercutiu de forma positiva em todas as esferas econômicas nacionais, trazendo consigo o objetivo principal de mudar o rumo do desenvolvimento nacional, tentando incutir na mentalidade dos agentes econômicos brasileiros a necessidade do desenvolvimento tecnológico.

No entanto, não há como focar ou vincular a inovação tecnológica somente ao aspecto econômico. Conforme refere BOCCHINO (2010), a pesquisa e o desenvolvimento devem ser direcionados para atender às necessidades humanas e desta forma cumprir um importante papel no desenvolvimento social e tecnológico do país. Assim, a inovação, necessariamente, deve ter como base e princípio a necessidade e manutenção do ser humano, há necessidade de observar o aspecto econômico e o aspecto social.

Neste contexto, a Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004, em seu art. 2º, IV, define a inovação como a introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços. Importante salientar a lição de BARBOSA (2011), que refere que a inovação será um passo no procedimento que desde a criação até o uso social desta; representa o estágio em que essa criação chega ao ambiente produtivo ou social ou, também, a chegada de uma utilidade no ambiente social, com ou sem efeitos no sistema produtivo. Salienta ainda BARBOSA (2011, p. 41), que, ainda “que imprecisa, a definição é crucial para definir o alcance, limites e interpretação da Lei. O fim de suas normas é propiciar esse processo que leva as criações tecnológicas ao estágio de utilidade social”.

Outrossim, conforme ressalta GRIZENDI (2011), a definição de inovação na Lei de Inovação federal é genérica, e, ao citar também o ambiente social e serviços, a lei federal tenta estender a lei à inovação não necessariamente tecnológica, porém, sem explorar tal viés ao longo dos seus artigos.

Considerando o conceito de inovação extraído da Lei Federal de Inovação percebe-se claramente que o foco está integralmente voltado ao aspecto industrial e, consequentemente, econômico. A Lei não contempla qualquer referência ao ser humano ou ao meio ambiente no seu conceito de inovação e, mais preocupante, não menciona, igualmente, nenhum aspecto relacionado com a proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente em todo o seu teor.

A omissão da Lei Federal de Inovação, não prevendo qualquer preocupação com a promoção e proteção do ser humano e do meio ambiente, expõe claramente as preocupações apontadas nos capítulos anteriores, quais sejam: 1) a possibilidade de inovação sem limites; 2) a ausência de limites éticos para a inovação.

Entretanto, a omissão da Lei também não quer dizer que não existam parâmetros éticos para o processo de inovação brasileiro, pois há direitos fundamentais constitucionalizados que nos condicionam este suporte ético. O que é necessário apontar, é que a Lei Federal de Inovação poderia ou, talvez, deveria ser o norteador comum, referido no capítulo anterior, que com base na ética determinaria os parâmetros de proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente.

Neste sentido, conforme refere NEDEL (2000), a humanidade tem de reinventar, a cada passo, o seu caminho, redirecionar o seu agir, agora inclusive por uma questão de sobrevivência, ante as múltiplas perspectivas, nem todas promissoras, que o avanço do saber teórico e prático lhe propicia, sendo que não há tempo a perder, as discussões éticas necessitam tomar o centro das discussões no universo jurídico da sociedade tecnocientífica. Além disso, ENGELMANN (2011) sustenta, com razão, que o ser humano e o meio ambiente são dois elementos inegociáveis na criação dos marcos regulatórios e na gestão da inovação. Conforme exposto anteriormente, o processo de inovação, em diversos aspectos, pode direcionar riscos para o ser humano e o meio ambiente, motivo da preocupação necessária com a proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente.

O momento de se estabelecer a relação entre o presente e o futuro, para que se possa estabelecer um sistema de deveres e direitos, é agora. As políticas públicas, conforme refere BARRETTO (2013) com base no imperativo de Hans Jonas, devem ser trabalhadas, tendo em vista o longo prazo, mas que ao mesmo tempo sejam aplicáveis no presente, tempo real para decidir o futuro. Deste modo, e para que assim possa ser feito, não somente os governantes, mas principalmente os legisladores tem papel fundamental no estabelecimento desta nova ética. O legislador deverá aspirar ao estabelecimento duma forma política viável que tenha duração, se possível inalterada, promovendo e zelando o melhor para o futuro.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução tecnológica do século XX não teve precedentes na história da humanidade. Num período curto, a técnica teve um desenvolvimento impar, gerando inúmeros benefícios à sociedade internacional. No entanto, junto com os resultados positivos, a evolução tecnológica também expôs diversos riscos, sendo que alguns representam uma grande preocupação para a manutenção do ser humano no planeta.

No atual estágio da técnica, concedendo superpoderes ao homem, os riscos gerados na sociedade tecnocientífica tem o potencial de comprometer a existência do ser humano. A pretensão e ganância do homem explorando a técnica ao máximo para atingir o desenvolvimento econômico e o poder, deixaram em alerta a humanidade sobre a necessidade uma reflexão ética na nova sociedade tecnocientífica. A técnica sem limites trouxe graves problemas e riscos evidentes ao ser humano e ao seu meio, gerando uma preocupação com os atuais parâmetros éticos (não) utilizados no processo de inovação científica e tecnológica.

Os atuais limites éticos estão sendo ultrapassados diante do veloz progresso científico e tecnológico. Uma nova reflexão é necessária, o homem precisa de limites para a sua técnica, aparentemente, sem limites. Neste contexto, alguns autores como Hans Jonas e Vicente P. Barretto, afirmam que há necessidade de parametrizar o risco no extremo, gerando o que chamam de heurística do temor ou do medo. Ou seja, há necessidade da sociedade tecnocientífica temer os riscos que gera através de seu processo de inovação.

No atual estágio, não há mais espaço para discussões sobre a liberdade da pesquisa científica ou tecnológica, no sentido da estipulação de limites éticos inibir o desenvolvimento da técnica. A sociedade tecnocientífica transformou-se efetivamente na sociedade do risco, referida por Ulrich Beck, não tendo mais espaço e tempo há perder com discussões supérfluas, pois, agora, é o futuro do ser humano que está em jogo.

No entanto, a construção de um limite ético para a sociedade tecnocientífico não é uma tarefa simples, mas exige uma profunda reflexão, que, necessariamente, deve consagrar, além do conteúdo ético, a posição da própria técnica. A determinação de parâmetros éticos, além de não inibir a técnica, deve ter como base a real necessidade do ser humano no presente conjugada com a dosimetria dos riscos para as gerações futuras. Ou seja, tudo que o homem necessita, não deve prejudicar as gerações futuras.

Nesta lógica, há de se concordar com a maioria dos filósofos, que definem o próprio ser humano e o seu meio ambiente como os parâmetros de proteção e promoção que devem nortear o novo discurso ético. Além disso, também defendem a positiva desta nova realidade ética da técnica na era da sociedade tecnocientífica.

Diante destas constatações, o presente artigo propôs um exercício de avaliação da atual Lei Federal de Inovação – Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004. Nosso marco legal da inovação no Brasil, infelizmente não contempla qualquer menção em relação à proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente. Na realidade, a Lei apresenta um conteúdo totalmente técnico e direcionado exclusivamente para o aspecto econômico da inovação, destoando do discurso dominante, que direciona a necessidade dos legisladores observarem os limites éticos da técnica, justamente para conseguir fixar norteadores necessários para os processos de inovação vinculados a alçada do instrumento legal.

Apesar de ser difícil compreender a posição e opção do legislador, omitindo-se em relação à qualquer limite ético à técnica, também é compreensível, haja vista que a legislação é complementar e recepciona os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal do Brasil. No entanto, perdeu-se uma ótima oportunidade de expor reflexões éticas, no âmbito jurídico, como limites à inovação, pois, conforme refere Wilson Engelmann, o ser humano e o meio ambiente são condições inegociáveis.

 

Referências
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BARBOSA, Dênis B. Direito da Inovação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
BARBOSA, Dênis B. Direito da inovação: Comentários à Lei n. 10.973/2004, Lei Federal de Inovação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006
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FREEMAN, Chris e SOETE, Luc. A Economia da Inovação Industrial. Campinas: Unicamp, 2008.
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ZUBEN, Newton Aquiles Von. Bioética e tecnociências: a saga de Prometeu e a esperança paradoxal. Bauru: EDUSC, 2006.
 
Nota:
[1]  Na sua concepção, JONAS (2006, p. 35) afirmava que todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era – à exceção da medicina – eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a techne, como atividade compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engajam-se o máximo de esforço e a participação humanos.


Informações Sobre o Autor

Júnior Roberto Willig

Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Advogado e Professor do Centro Universitário UNIVATES


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