Acesso à terra e Arrendamentos rurais: Perspectiva comparada entre Brasil e Colômbia

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Resumo: Este artigo investiga a formação dos contratos de arrendamento rural, como instrumento de acesso à terra, enquanto direito fundamental, tomando por base uma perspectiva comparada entre Brasil e Colômbia. Considerando que Agricultura Familiar reúne conceitos que sintetizam sujeitos políticos e expressam processos sociais de luta pelo acesso à terra, discutimos o ambiente institucional e as motivações que condicionam os arrendamentos rurais naqueles países. A partir dos dados estatísticos (IBGE, 1995, 2006; Censos/Encuestas Agropecuários colombianos, 1988, 2004), à luz da interpretação econômica e sociológica do Direito, pesquisamos elementos relacionados às opções de arrendamento para o acesso à terra. O objetivo é discutir como as condicionantes jurídicas e econômicas são insuficientes para compreender a formação dos arrendamentos rurais no contexto da agricultura familiar latino-americana, bem como a importância dos valores intrínsecos à forma de viver e agir (“visões de mundo”) dessa categoria social, enquanto fator central para a decisão de acessar terras através do arrendamento.

Palavras-chave: arrendamentos; agricultura familiar; visões de mundo; acesso à terra.

Abstract: This article investigates the formation of rural lease contracts in Brazil. Whereas family farming and agribusiness are concepts referred to political subjects and express social processes of struggle for accessing land, it discusses the institutional environment and motivations that influence rural leases. Using the data of the Census of Agriculture (IBGE, 1995, 2006; Censos/EncuestasAgropecuárioscolombianos, 1988, 2004), in the light of economic and sociological interpretation of the law, it researches information related to options for lease in the countryside. The goal is to discuss how legal and economic constraints are insufficient to understand the formation oftenancies or leases in the context of family farming, as well as the importance of values intrinsic to the way of living and acting (“world vision”) of this social category, while a central factor in the decision to access land through the lease.

Keywords:land lease; family farming; worldvision;access to land.

Sumário: Introdução. 1.0 Breve panorama histórico dos Arrendamentos Rurais. 2.0 Marcos jurídicos dos Arrendamentos Rurais no Brasil e na Colômbia. 3.0 Condicionantes dos Arrendamentos Rurais no Brasil e na Colômbia. 4.0 Arrendamento Rural e Agricultura Familiar no Brasil e Colômbia. 5.0 Arrendamento Rural e Agricultura Familiar: comparações à luz do Habitus. Notas para uma conclusão.

Introdução

Os agricultores familiares foram reconhecidos e vêm se firmando como atores sociais responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos consumidos no Brasil. Compreender essa categoria social tornou-se fundamental, pois, sociologicamente, representam um forte elemento e componente da identidade nacional e, economicamente, consolidam-se como agentes estratégicos para a segurança alimentar do povo brasileiro.

Esse pequeno recorte histórico nos lembra que a multiplicidade de visões na agricultura brasileira não se reduz somente aos Ministérios do Executivo Federal – que, atualmente, são dois diretamente afeitos a temas agrários e à produção agropecuária. Mais que nuances da administração pública, existem lógicas e problemas que partem de sujeitos políticos com peculiaridades culturais, políticas e econômicas (CASTRO, 2013).

Tal importância e especificidade vão mais além, no sentido de que a agricultura familiar não se destaca somente no Brasil. Sua importância na América Latina é indiscutível, pois representa 60 milhões de pessoas que respondem por 81% das atividades agrícolas dos países latinos, algo entre 27% e 67% da produção de alimentos na região e a geração de 57% a 77% do emprego agrícola (FAO, 2013).

Diante desses números, não causa surpresa que 2014 tenha sido comemorado como o “ano internacional da agricultura familiar”, oportunidade em que vários países da América Latina e Caribe empreenderam iniciativas para visibilidade do tema, dentre os quais, a Colômbia, que lançou um novo programa de apoio à agricultura familiar. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2014), esse programa pode beneficiar 50 mil famílias em 18 estados, mobilizando 292 milhões de dólares para melhorias na agricultura familiar naquele país.

Para além do ano internacional da agricultura familiar, a temática tem pautado parte dos recentes diálogos entre Brasil e Colômbia. Ainda em 2014, técnicos do governo brasileiro foram convidados a acompanhar a formulação da política nacional para a agricultura familiar colombiana. Recentemente, em agosto de 2015, a Embaixada da Colômbia no Brasil e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA/Governo Brasileiro) sinalizaram parcerias em políticas públicas para a agricultura familiar. Tal contexto mostra que uma parte das relações mais recentes entre Brasil e Colômbia está sendo posta sob a ótica da valorização da agricultura familiar, enfatizando a importância de se compreender a dinâmica dessa categoria social em ambos os países.

Lançando um olhar sobre o perfil da agricultura familiar na América Latina, constatamos que na Colômbia cerca de 79% da produção de alimentos é proveniente da agricultura familiar, que representa 80% dos agricultores do país. O Brasil tem uma realidade similar: nossos agricultores familiares produzem 87% da produção nacional de alimentos e representam 84,4% dos estabelecimentos brasileiros (FRANÇA, DEL GROSSI E MARQUES, 2009).

A ideia do que seja a agricultura familiar também evidencia similaridades entre os dois países.[1] O Plano de Desenvolvimento da agricultura familiar na Colômbia (2014-2018) traz uma definição conceitual de agricultura familiar, considerando-a, basicamente, uma maneira de fazer a agricultura com base em mão-de-obra familiar. Há ainda, um conceito previsto na Lei nº 160/1994, qual seja, a de “unidad agricola familiar” (UAF), tida como célula de produção agrícola baseada na família.Essa visão é, sem dúvida, um dos elementos similares para conceituação do agricultor familiar no Brasil, que também adotou uma definição legal (Lei n° 11.326/06), em que a agricultura familiar possui dentre seus elementos constitutivos a mão-de-obra predominantemente familiar (IBGE, 2007; SALCEDO e GUZMAN, 2014).

As similaridades são ainda mais evidentes quando analisamos historicamente as estruturas agrárias do Brasil e da Colômbia, sob a perspectiva de países com alta concentração fundiária. Em que pesem as especificidades e complementaridades institucionais variarem na realidade de cada país, como fatores capazes de gerar diferentes capacidades de adaptação e de planejamento (HALL E SOSKICE, 2001), destaca-se a predominância da propriedade privada no campo e a concentração de terras.

Por esse viés, a Colômbia possui uma estrutura agrária – resultante do processo colonial e suas dinâmicas posteriores – na qual uma minoria de proprietários de grandes extensões de terra (sobretudo as melhores terras agrícolas) convivem com uma maioria da população rural, detentora de pequenas glebas ou privada de terras (ARANGO, 1977; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998).

No Brasil, o processo histórico de aproveitamento das terras também se baseou em uma lógica similar (de raízes coloniais), na medida em que “a grande propriedade, dominante em toda a sua História, se impôs como modelo socialmente reconhecido”. Foi ela quem recebeu aqui o estímulo social expresso na política agrícola, que procurou modernizá-la e assegurar sua reprodução. Em tal cenário, a agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e subalterno e, quando comparado ao campesinato de outros países, foi historicamente um setor "bloqueado", impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social específica de produção (WANDERLEY, 1995).

Se, por um lado, aspectos históricos permitem um ponto de partida comum, a análise dos direitos de propriedade sobre a terra exige observar que mesmo com os atuais graus de homogeneização e indiferenciação (SAUER, 2003), “…as representações sociais dos espaços rurais e urbanos reiteram diferenças significativas, que têm repercussão direta sobre as identidades sociais, os direitos e as posições sociais dos indivíduos e grupos, tanto no campo quanto na cidade” (WANDERLEY, 2001, p. 33).

Esse processo de construção de identidades no meio rural envolve demandas que transcendem às lutas pela propriedade fundiária, pois a democratização do acesso à terra constitui um lugar de oportunidades e autodeterminação (SAUER, 2003).

Nesse sentido, a busca por um pedaço de terra, como lugar de vida, não se restringe à luta pelo acesso, necessariamente, via direito real de propriedade. Há que se considerar um espaço institucional mais amplo de lutas, que inclui outras formas de acesso, com processos sociais e políticos complexos interligados à luta por terra. Por esse viés, o arrendamento é mecanismo de natureza contratual, que reflete os novos aspectos e perspectivas do rural latino-americano, trazendo consigo velhos e novos dilemas, inclusive demandas por acesso digno e sustentável à terra como objeto de contratação. Para Girardi (2008b) a luta pela terra é uma forma de recriação do campesinato, o que pode ocorrer também através do arrendamento (CASTRO, 2013).

Tais cenários tem levado países, principalmente na América Latina, a dar “grande ênfase às políticas de reforma agrária e colonização” (OLINTO, 2003, p. 293). Discute-se, dentre essas políticas, se os arrendamentos rurais poderiam melhorar a alocação de recursos e otimizar a construção dos direitos de propriedade.

Quando se analisa a construção institucional dos direitos de propriedade sob a perspectiva dos arrendamentos rurais, é importante entender o que significa “subir a escada agrícola”. Esse conceito, oriundo da teoria da "escada de ascensão social agrícola” de Knight-Rao, parte do pressuposto de que é por meio das formas de acesso precário à terra (parceria e arrendamento) que agricultores sem terras poderiam ascender na escada, até se tornarem agricultores com terras (direito de propriedade). A administração eficiente da terra nessas formas seria o mecanismo para o indivíduo adquirir experiência e habilidades no meio agrícola (REYDON e PLATA, 2006, p.230).

No âmago dessas investigações, diversos autores nos convidam a repensar qual o papel dos arrendamentos rurais em países da América Latina, onde as terras agrícolas são tipicamente trabalhadas em condições de direitos de propriedade mal definidos (BASU, 1992; BINSWANGER et al., 1995; GHATAK e PANDEY, 2000; ASSUNÇÃO, 2003; OLINTO, 2003).

Nessa linha, o arrendamento rural não é apenas um negócio jurídico, já que suas limitações podem impactar um dos degraus para a construção e institucionalização do direito de propriedade. Em outras palavras, os contratos agrários estão permeados por cláusulas de uso, estipulação de multas, previsão de despejo e retenção de benfeitorias. Tratam de rendas a pagar, ganhos e perdas. Para além da segurança jurídica, esses termos são manejados segundo interesses e visões decorrentes da identidade sociopolítica dos agentes e manifestam desigualdades de recursos materiais, de poder político e de informação. Enquanto espaço para barganha, os contratos agrários têm interface com a luta pela terra, como disputa por reconhecimento legal e legitimação jurídica para a conquista de condições de vida, de produção e de desenvolvimento, traduzidos na construção institucional de direitos sobre a terra (CASTRO, 2013).

Por esse viés, a literatura colombiana considera os contratos de arrendamento como práticas socialmente complexas (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998, p. 09). Referida complexidade não se restringe a uma lide juridicamente posta, mas cria transbordamentos na prática cotidiana, como ocorre no burlamento dos contratos quando, por exemplo, os prazos são diluídos em favor de interesses pontuais dos grandes proprietários para a recuperação de pastagens e ocupação de áreas passíveis de conflitos agrários (CASTRO, 2013).

Portanto, o arrendamento rural está no contexto mais amplo dos históricos problemas de posse da terra e tem, por pano de fundo, a construção institucional dos direitos de propriedade.

Traduzindo essa relação em dimensões, no Brasil, das modalidades de acesso, os arrendamentos são os menos utilizados, ficando atrás da propriedade (direito real). Da mesma forma, na Colômbia, o arrendamento rural não predomina sobre o direito de propriedade, sendo relevante observar que a superfície de terras colombianas arrendadas recuou para 1,9% no fim do século XX (JARAMILLO, 2001; IBGE,2007; SALCEDO y GUZMAN, 2014).

Ainda que a obtenção do título de propriedade ocupe a centralidade do debate sobre a democratização do acesso à terra no Brasil e na Colômbia, é preciso observar que existem outras modalidades que também se inserem nesse contexto, criando ou agravando as condições de vida no meio rural.

Por isso, a compreensão jurídico-sociológica dessas estruturas é fundamental para o êxito de políticas públicas de combate à pobreza rural e para a construção da cidadania no campo. Essa complexidade pode ser investigada sob diversas temáticas e, neste trabalho, a opção é o acesso à terra por via contratual, e mais especificamente, através dos contratos de arrendamento rural (CASTRO, 2013).

A baixa utilização dos arrendamentos rurais na América Latina, traz a lume a relação entre o arrendamento rural e estratégias de acesso à terra. Nessa discussão, os contratos de arrendamento rural ocorreriam, em tese, quando a terra não pudesse ser comprada (em razão da concentração fundiária, restrições legais, limitações da reforma agrária, etc.), quando os produtores preferissem não comprometer capital a longo prazo ou para evitar os custos do trabalho assalariado (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998).

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Tais circunstâncias são, a princípio, comuns nas realidades agrárias de Brasil e Colômbia, contudo, mesmo assim, o acesso contratual à terra é muito baixo nesses países, se comparados a outros (IBGE, 2007, CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001).

1. Breve panorama histórico dos Arrendamentos Rurais

A temática dos arrendamentos rurais pode, a princípio, parecer um tema novo. Contudo, ainda no século XVIII, alguns trabalhos de François Quesnay (1694-1774), a exemplo das obras “Arrendatários” (1756) e “Cereais” (1757), comparavam a agricultura capitalista aos cultivos feudais, incluindo discussão sobre a dinâmica de funcionamento dos arrendamentos rurais.

Embora o objetivo deste artigo não seja propor uma revisita ao pensamento clássico, é preciso lembrar que François Quesnay já identificava características peculiares no arrendamento de terras (ALMEIDA, 2009; BUAINAIN e ALMEIDA, 2011).

Posteriormente, Adam Smith (1723-1790) analisou o arrendamento de terras no âmbito de sua teoria da renda fundiária, enfatizando que existiria uma relação contratual entre partes desiguais (LENZ, 2007; ALMEIDA, 2009).

Por sua vez, Karl Marx (1818-1883) em análises sobre o desenvolvimento capitalista na agricultura, destacou formas de pagamento pelo uso da terra, ou seja, renda trabalho, renda produto e renda dinheiro (MARX, 2008), que guardariam relação com o arrendamento rural. Dessa forma, à medida que o arrendatário necessitasse mais recursos para manter e ampliar seu empreendimento, seria obrigado a fazer investimentos valorizando a terra e aumentando a renda fundiária (LENZ, 1985; ALMEIDA, 2009).[2]

No fim do século XIX, Alfred Marshall (1842-1924), com a obra “Princípios de Economia” (1890) adentrou a temática, comparando o arrendamento e a parceria (share), concluindo que a parceria seria menos eficiente que o arrendamento, pois o proprietário reembolsaria uma parcela menor da renda do que no arrendamento rural. Essa relação, conhecida como paradigma do “arrendamento sharecroppingmarshaliano”, colocou em destaque a questão da posse da terra, especificamente, a distinção entre o “sistema inglês de arrendamento” (arrendamento tipicamente capitalista) e a parceria (onshares) ou meação (metayer) (ALMEIDA, 2009, p. 22).

Desse breve panorama, destaca-se o fato de que Marshall (1982) enfatizou a importância do arrendamento como mecanismo de acesso à terra por parte dos produtores mais pobres. Discute-se até que ponto essa tese se aplicaria ao Brasil[3], país em que o arrendamento de terras vem se desenvolvendo nas áreas mais ricas e promissoras do agronegócio, ao passo em que se torna precário no caso de produtores mais pobres (CASTRO e SAUER, 2012, CASTRO, 2013).

Nos anos mais recentes, a preocupação teórica com o mau funcionamento dos arrendamentos rurais foi retomada. Cheung (1969) e Stiglitz (1974) consideraram a aversão ao risco um fator central. Laffont e Matoussi (1995), por outro lado, discutiram as restrições financeiras que obrigam o arrendatário a utilizar um esquema de parceria para complementar o aluguel das terras. Essas e outras análises foram aplicadas a estudos empíricos na Índia, México, Ghana, Tunísia e Itália, onde o arrendamento rural, no sentido da tese de Alfred Marshall, além de viabilizar o acesso à terra, aumentou a eficiência na agricultura (BASU, 1992; BINSWANGER, 1995; GHATAK e PANDEY, 2000; SALINAS, 2001; ASSUNÇÃO, 2003; ALMEIDA, 2009; REYDON, 2012).

As diversas abordagens sobre os contratos agrários e, especialmente sobre o arrendamento rural, evidenciam que fatores como uso de insumos, máquinas, monitoramento e habilidade administrativa influenciam a dinâmica contratual. Adicionalmente, existem riscos (intempéries climáticas, dificuldades de comercialização e crédito, etc.), que podem afetar negativamente os resultados da avença.

Por fim, não obstante o peso de todas essas variáveis, os estudiosos convergem mais ou menos no sentido de que o arrendamento rural ofereceria um método satisfatório de reduzir custos, como resposta organizacional às ineficiências e instrumento para o acesso à terra por parte de agricultores mais pobres (CASTRO, 2013).

2. Marcos jurídico dos Arrendamentos Rurais no Brasil e na Colômbia

O problema do acesso à terra tem sido importante nas discussões de políticas de desenvolvimento na América Latina. Nas últimas quatro décadas, governos deram grande ênfase às políticas de reforma agrária e colonização, deixando os arrendamentos rurais como contratos progressivamente desestimulados (OLINTO, 2003).

Enquanto “contratos”, os arrendamentos são acordos de vontades, com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar, transferir ou extinguir direitos. Na prática, o arrendamento rural permite que o arrendatário (aquele que acessa a terra) usufrua um bem imóvel pertencente ao arrendador (aquele que disponibiliza a terra).

No Brasil, o contrato agrário é gênero. Regula o uso e a posse temporária da terra, por parte de agricultores e pecuaristas, através das espécies arrendamento e parceria, conforme previstos no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964); na Lei nº 4.947 de 06 de abril de 1966; pelo Decreto nº 59.566 de 14 de novembro de 1966 e, subsidiariamente, pelo Código Civil de 2002 (BRASIL, 2013). Entre nós, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF e a Lei 11.326/2006 delimitam o uso operacional do conceito de agricultura familiar. Pela definição legal, agricultor familiar é aquele que não detém área maior do que quatro módulos fiscais, utiliza predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades do estabelecimento, tenha renda familiar predominantemente originada de atividades do próprio estabelecimento e o dirija com sua família (BRASIL, 2006; IBGE, 2007; SALCEDO e GUZMAN, 2014).

Conceitualmente, o Decreto 59.566/66 define arrendamento rural como o contrato pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo ou não outros bens, benfeitorias e ou facilidade com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agropastoril, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel (BRASIL, 2013).

Na Colômbia, o “arrendamiento de tierras” é um termo geral para definir contratos realizados entre duas partes, para dar acesso à terra em troca do pagamento de uma renda. Diferentemente do Brasil, essa renda pode ser entregue na forma de dinheiro, produtos e/ou mão-de-obra, além de ser fixa ou variável. Além disso, o arrendamento rural colombiano é mais amplo que o conceito legal brasileiro, incluindo distintos arranjos de posse, tais como: “aparcería”, “peonaje” e renda fixa. Essa amplitude permite que as cláusulas (“relaciones involucradas”) variem enormemente (GYANENDRA Y PANDEY, 1995; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998).

A Lei nº 160/1994, da Colômbia, instituiu o Sistema Nacional de reforma agrária e desenvolvimento rural campesino, definindo agricultura familiar a partir do termo “unidad agrícola familiar” (UAF). A UAF é um estabelecimento de produção de base agrícola, pecuária, aquicultora ou silvicultora, trabalhada pela mão-de-obra do proprietário e sua família. Uma Junta Diretiva estabelece critérios metodológicos para caracterizar a UAF, considerando que sua extensão deve permitir que a família remunere seu trabalho e produza um excedente para a formação da herança do grupo familiar (SALCEDO e GUZMAN, 2014, p. 32).

Ao contrário do Brasil (em que o arrendamento rural, via de regra, possuiu um corpo de normas especiais), o arrendamento na Colômbia esteve marcado pela falta de normas jurídicas específicas, que só foram instituídas à sombra de leis que tratavam prioritariamente da reforma agrária e colonização (GYANENDRA Y PANDEY, 1995; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; CASTRO 2013).

Nesse particular, é curioso observar que, em 1964, enquanto o Brasil aprofundava a regulamentação dos contratos agrários no Estatuto da Terra, a Colômbia – por todo o período de 1962 a 1972 – limitou-se a tratar os arrendamentos rurais em leis como a de nº 135 de 1961, conhecida como “lei da reforma agrária”. Buscava-se converter arrendatários em proprietários, focando não na regulamentação dos contratos em si, mas na distribuição de terras (DÍAZ, 1977). Em contrapartida, diversos estudos discutem se não haveria “um caminho médio” (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998, p. 07) entre a desregulamentação e a legiferação.

Essas breves digressões nos mostram práticas contratuais circunscritas a uma trajetória histórica iniciada no período pré-colonial e, portanto, inserida no quadro mais amplo do uso da terra dentro de pactos de poder na América Latina. Por esse caminho, a tradição autoritária do Estado constituiu uma barreira à construção da ação coletiva na luta por direitos. Ao findar o período da ditadura, a implementação desses direitos, conquistados por ocasião da Constituição brasileira de 1988, foi dificultada no início do período neoliberal em toda a América Latinha, nos anos 1990 (BALESTRO, MARINHO E WALTER, 2011a).

Em outras palavras, os arrendamentos rurais – como parte da construção institucional dos direitos de propriedade –  nasceram nessa estrutura econômica atrelada à organização político-social, na qual existiram condições, originalmente mercantil-coloniais, propícias a que o detentor de grandes glebas exercesse plenamente o domínio sobre a terra. Exemplos clássicos da estreita relação contrato/latifúndio/minifúndio são o parceiro, o meeiro, os moradores “de condição” e os foreiros no Brasil (ALMEIDA, 2002), além das figuras da “aparcería”, “pejonarias” e arrendamentos reversos na Colômbia (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; LORENTE, SALAZAR Y GALLO, 2000).

Postas essas peculiaridades, é preciso levar em conta outros elementos para a formação dos contratos de arrendamento, que se desenvolvem em um ambiente com variáveis sociais e econômicas complexas, as quais o Direito positivo não pode prever e regular em sua totalidade. É preciso compreender mais, indo em busca da racionalidade que instrumentaliza contratos na construção institucional da propriedade.

3. Condicionantes dos Arrendamentos Rurais no Brasil e na Colômbia

Embora seja de baixa incidência no Brasil (FAO/INCRA, 2000), o arrendamento rural é praticado desde a época da pré-colonização, quando foi concedido a Fernão de Noronha o arrendamento para exploração de pau-brasil nas costas da Terra de Santa Cruz, mediante contrato de 1502 (ARRUDA E PILETTI, 2007).

Também na Colômbia, a prática do arrendamento rural data do período colonial e, tradicionalmente, esses arrendamentos foram usuais nas “haciendas”, em que o dono da propriedade tinha poder político e legal para impor prazos e condições contratuais aos arrendatários (MEERTENS, 1985; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998).

Apesar de registros históricos antigos os arrendamentos não predominam hoje, dentre as formas de modalidade de uso da terra, tanto entre agricultores brasileiros, quanto entre agricultores colombianos.

Traduzindo essa realidade em números, no Brasil, os arrendamentos rurais totalizam 2,5% do total de hectares, representando 5,7% do total das modalidades de uso pelos agricultores familiares. Entre 1970 e 1995, houve uma queda vertiginosa no uso dessa modalidade: o total de 20% de terras arrendadas recuou para 11%, chegando a 2,5% na década de 1990 (IBGE, 2007).

Na Colômbia, as terras trabalhadas com base no direito de propriedade subiram do patamar de 77% para 91% das glebas, entre as décadas de 1960 a 1990. De maneira inversa, a área arrendada foi reduzida de 2,3 milhões de hectares (em 1960) para 1.1 milhão (em 1988). As “aparcerías” (tipo de arrendamento comum entre agricultores familiares) sofreram um recuo de 74% entre 1960 e 1990 (JARAMILLO, 2001).

Em termos comparativos, por volta do ano 2000, cerca de 23% de terras no mundo eram arrendadas. Em 2007, nos Estados Unidos 38,5% das terras agrícolas eram acessadas via arrendamento (MUELLER, 2011).

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Na Europa, em 1995, registrou-se 12% do total de terras como arrendadas, chegando-se a 60% no caso de Bélgica, França e Alemanha (DE JANVRY, MACOURS E SADOULET, 2002).

Estudos mais recentes mostram também que na Europa e nos Estados Unidos somente 61% e 33%, respectivamente, da área cultivada é acessada mediante direitos de propriedade. Na América Latina a proporção chega a 86%, e no Brasil a 96% (ASSUNÇÃO, 2003).

É instigante como o arrendamento ainda não se disseminou como alternativa de acesso ao recurso produtivo terra, havendo terras ociosas e produtores sem terra ou com glebas em quantidade insuficiente para produzir.

Permanece, em aberto e com diversas hipóteses, a indagação sobre por que o mercado de arrendamento não está sendo um instrumento eficaz de acesso à terra. Nesses estudos, poder-se-ia destacar o medo de perda da terra por parte dos proprietários e seu temor sobre o abuso no uso. Alega-se também que os contratos são socialmente segmentados (BUAINAIN, 2007; SALINAS, 2009; CASTRO 2013) e que o fator determinante do baixo índice seja também a insegurança jurídica (MUELLER, 2011). Pelo lado da demanda, aponta-se o nível de riqueza (REYDON E PLATA, 2006a). A confluência de fatores – oferta, demanda, crédito, preços, trabalho – para compreender os arrendamentos, reforça a tese da heterogeneidade e regionalidade desses contratos.

Em linhas gerais, há um contexto de múltiplas racionalidades, indicando que o arrendamento de terras vem se tornando um fenômeno geograficamente e socialmente cada vez mais localizado (BUAINAIN, 2007; CASTRO, 2013).

No caso do Brasil, a concentração é mais evidente no Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Maranhão. Na Colômbia, as áreas atlântica, oriental, de Antioquia e de San Andrés são regiões onde a prática do arrendamento está mais condensada. Em ambos os países, a concentração não é apenas geográfica, mas também denota predominância de polos contratuais dotados de capital, tecnologia e informação (BUAINAIN, 2007; ÁVILA, 2009).

Portanto, existe um contexto de condicionantes múltiplas que regem a lógica heterogênea da construção institucional de direitos de propriedade através dos arrendamentos. Assim, argumentos puramente econômicos (renda da terra) ou argumentos somente jurídicos (insegurança) não são suficientes para compreender as limitações do contrato agrário (CASTRO, 2013) na construção institucional dos direitos de propriedade sobre a terra.

4 Arrendamento Rural e Agricultura Familiar no Brasil e na Colômbia

O arrendamento rural na América Latina nem sempre segue um padrão de desenvolvimento linear ou parâmetros jurídicos bem definidos. Essa dinâmica é variável e se move de acordo com múltiplas condicionantes, tais como disponibilidade de mercados, fatores de produção, políticas agrárias, etc. Por isso, é comum que os agricultores familiares pratiquem os arrendamentos rurais combinados com outras formas de acesso à terra, originando contratos híbridos. Por exemplo, podem coexistir em uma região, a “aparcería” combinada com o trabalho assalariado, a meação com arrendamento por renda fixa, etc (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; CASTRO 2013).

A imensa capacidade criativa e adaptativa do agricultor familiar torna instigante o estudo dos arrendamentos rurais na perspectiva da construção institucional dos direitos de propriedade, como também difícil a tarefa de reduzir a categoria social a um só conceito.

Ademais, o termo agricultura familiar, neste trabalho, recupera o pensamento de Wanderley (2001), para quem a conceituação de agricultura familiar assume ares de novidade e renovação para designar conceitos já enraizados na sociedade brasileira como o tradicional camponês, agricultor de subsistência e pequeno produtor rural e incorpora conceitualmente os desafios da modernidade.

A agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar-se a um contexto socioeconômico próprio dessas sociedades, as quais levam a modificações importantes na sua forma de vida social tradicional. Essas transformações não significam, contudo, uma ruptura total e definitiva com as formas anteriores, devendo o agricultor familiar moderno adaptar-se às novas exigências da sociedade, sem desvincular-se das tradições camponesas (WANDERLEY, 2001).

Segundo Sauer (2008), na luta pela terra, enquanto resistência aos processos de dominação e exclusão, termos como agricultura familiar e agronegócio surgem enquanto “conceitos-síntese” ou mais que simples categorias empíricas, à medida que teriam uma construção, apropriação e uso voltados para a expressão de identidades sociais.

Posta essa delimitação, observamos que no Brasil os agricultores familiares produzem altos percentuais dos produtos mais importantes para a alimentação da população, possuindo propriedades de pequenas dimensões.

Existem cerca de 4.367.902 estabelecimentos de agricultores familiares (84,4% dos estabelecimentos brasileiros), ocupando 80,25 milhões de hectares (24,3% da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros). Em áreas médias de 18,37 ha, esses agricultores produzem 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, possuindo 59% do plantel de suínos, 50% do de aves, 30% dos bovinos e 21% da produção de trigo (FRANÇA, DEL GROSSI E MARQUES, 2009).

Na Colômbia, os agricultores familiares ocupam 51% da área total agrícola e respondem por grande parte da produção de alimentos, em especial 47% dos cultivos transitórios, 56% dos cultivos permanentes, 17% dos bovinos, 17% das aves, 35% dos suínos e 38% de espécies menores. A produção camponesa é predominantemente andina e, do total de 2.021.895 estabelecimentos agrícolas, cerca de 1.584.892, isto é, 78,4%, são de agricultores familiares (CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001; GARAY, BARBERI Y CARDONA, 2010; SALCEDO Y GUZMAN, 2014).

Essa imensa capacidade de produzir alimentos, tem no direito de propriedade a principal forma de acesso à terra pelo agricultor familiar. Dos 4,3 milhões de estabelecimentos brasileiros dessa categoria, 3,2 milhões de produtores acessam glebas na condição de proprietários, o que representa 74,7% dos estabelecimentos familiares e 87,7% das suas áreas, nos números de França, Del Grossi e Marques (2009).

Na Colômbia, 88% das terras de agricultores familiares é trabalhada com base nos títulos de propriedade e 12% com fulcro nos contratos de arrendamentos rurais. Cabe frisar que esses agricultores colombianos possuem pequenas propriedades (tamanho médio de 4,48 hectares), mas representam no universo de produtores cerca de 46,5% em 1995, 49,1% em 1996 e 78,4% em 2001. Ademais, a superfície acessada pela agricultura familiar colombiana é de cerca de 7.105.601 hectares, ou seja, apenas 0,14% do total de 50.705.453 hectares em mãos do setor agrícola como um todo (CENSO AGROPECUÁRIO DA COLÔMBIA, 2001; SALCEDO Y GUZMAN, 2014).

Esses números confirmam tendências de concentração de terras e existência de minifúndios, já indicadas em estudos dos anos 1990, em que foram pesquisadas 1.200 pequenas, médias e grandes glebas, distribuídas por 55 municípios em 11 regiões da Colômbia. No universo pesquisado, 88% das terras arrendadas incluíam áreas de menos de 5 hectares e representavam 21% da amostra. Apenas 1,7% era acessada via “aparcería” e 4,3% na forma de arrendamento por renda fixa (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001).

Assim, a realidade brasileira e colombiana retratam parte de um cenário maior, haja vista que na América Latina somente 23% da superfície agrícola está nas mãos da agricultura familiar. Essa proporção varia entre 13,2% em países andinos e 34,6% em países do Cone Sul (LEPORATI et al, 2014, p.38). Além disso, mesmo com as diferenças metodológicas, os diversos estudos estatísticos são unânimes em atestar que os arrendamentos rurais apresentam baixa incidência na agricultura familiar brasileira e colombiana (IBGE, 2007, CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001).

Por esse caminho, estudos teóricos e trabalhos de campo, especialmente os de DeJanvry, Macours e Sadoulet (2002), Olinto (2003), Reydon e Plata (2006a), Buainain (2007), Salinas (2009), Mueller (2011), Castro e Sauer (2012), Castro (2013) e Salcedo e Guzman (2014) permitem um ponto de partida para a busca das respostas. Os elementos citados por esses estudiosos (oferta, demanda, preço, acesso a crédito, trabalho, cultura, dimensões e lógicas) se combinam num quadro de heterogeneidade da produção e dos ganhos de eficiência dos arrendamentos, conforme cada região, o que nos permite ver dualismos, de locadores e locatários, capitalizados e não-capitalizados, mão-de-obra familiar e não-familiar, agronegócio e agricultura familiar: arrendatários do agronegócio que submetem proprietários de terra e proprietários que submetem pequenos produtores.

No Brasil, essa dinâmica pode ser exemplificada no sudoeste de Goiás, onde existem agricultores familiares impossibilitados de utilizar o arrendamento como recurso para a reprodução social de suas formas de agir. Na Colômbia, também é comum que a “família campesina” invista a mão-de-obra familiar em sua gleba combinando-a com trabalhos na forma de parcerias com outras famílias proprietárias. Há ainda parte da mão-de-obra familiar que é absorvida no trabalho assalariado em empresas agrícolas da região ou que, nos momentos de picos dos ciclos agrícolas, é contratada de forma complementar por outras famílias campesinas (LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; LORENTE, SALAZAR Y GALLO, 2000; CASTRO, 2013).

Diante dessa multiplicidade, a questão central para compreender a baixa incidência dos arrendamentos passa pela racionalidade intrínseca à forma de agir e viver do agricultor familiar. Ou seja, a percepção da oferta, demanda, crédito e limites do trabalho estão submetidos a um arranjo de cosmovisões[4] que se insere em uma unidade que, ao mesmo tempo, é estrutura de produção, de consumo e de reprodução sociocultural.

Por fim, as valorações acerca da relação de trabalho, do grupamento afetivo e da visão da terra como lar são racionalidades adicionais, hipóteses consideradas na decisão contratual de arrendar. Portanto, ao tornar-se arrendatário ou arrendador, o agricultor familiar não faz somente uma opção econômica, mas social e cultural (CASTRO, 2013). Ele centraliza sua decisão em elementos para além do lucro, da renda ou da segurança da propriedade, racionalidades específicas a serem investigadas na construção institucional do direito de propriedade.

5.Arrendamento Rural e Agricultura Familiar: comparações à luz do “Habitus

A alta concentração fundiária, ao lado de um grande número de agricultores com pouca ou nenhuma terra, são realidades marcantes da América Latina e, de forma especial, de Brasil e Colômbia. Mesmo assim, nesses países, os arrendamentos rurais não se constituíram como via alternativa (contratual) para o acesso à terra. Dentre as categorias sociais privadas de acesso estão os agricultores familiares, que produzem altos percentuais de alimentos em propriedades de pequenas dimensões (IBGE, 2007; CASTRO, 2013; SALCEDO e GUZMAN, 2014; LEPORATI et al, 2014).

Observando essa dinâmica, é preciso salientar que a literatura sobre arrendamento rural, direito de propriedade e agricultura familiar é vasta. Porém, poucos estudos, como os de Reydon e Plata (2006a), abordam diretamente os arrendamentos rurais praticados pelos agricultores familiares. Nesse sentido, o presente artigo, em sequência temática à dissertação, emerge relacionado a um espaço ainda aberto nas investigações sobre a agricultura familiar e sua prática de contratos agrários.

Não obstante tal lacuna, o tema foi trabalhado na dissertação de mestrado (CASTRO, 2013), em que investigamos as condicionantes do arrendamento rural na agricultura familiar, enfatizando as percepções da categoria social acerca da prática de arrendar. Os resultados obtidos, com base em casos do sudoeste goiano, reforçam a tese da heterogeneidade e regionalidade dos arrendamentos rurais na agricultura familiar.

Nesse sentido, percebemos uma combinação reflexiva e multidirecional de fatores que culminam em estratégias que privilegiam o acesso direto à terra pelo direito de propriedade, em detrimento dos arrendamentos rurais. Porém, essas fronteiras não são rígidas, pois são recorrentes as formas alternativas de acesso (contratos atípicos, garantias extrajurídicas e concentração da prática no seio da própria categoria), pelas quais se manifestam “uma mãnha”, ou ainda, “uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares” (BOURDIEU, 2009, pp. 208/209).

Embora a ausência de transição entre o acesso contratual e o definitivo não fosse o objeto central da dissertação (CASTRO, 2013), os resultados da pesquisa colocaram em evidência aspectos teóricos da “escada agrícola”.

Não é demais frisar que “subir a escada agrícola” é uma ideia oriunda da teoria da "escada de ascensão social agrícola” de Knight-Rao. Pressupõe-se que é por meio das formas de acesso precário à terra (parceria e arrendamento) que agricultores sem terras poderiam ascender na escada, até se tornarem agricultores com terras (propriedade). A administração dessas formas seria o mecanismo para o indivíduo adquirir experiência e terras (REYDON e PLATA, 2006, p.230). Como apontaram De Janvry e Sadoulet (2002), o arrendamento da terra serviria de "escada" em direção ao direito de propriedade, especialmente para o agricultor familiar mais pobre.

Essa relação cria desdobramentos práticos, pois o arrendamento rural ao influenciar a obtenção de direitos de propriedade bem definidos torna-se parte de um processo que, em última análise, implica: a) do ponto de vista econômico: aumento da segurança da ocupação e dos incentivos ao investimento, custos de transação mais baixos e ganhos com o comércio, além de aumento do valor do ativo como colateral e diminuição da restrição ao crédito (FIELD, 2003, p. 5) e, ainda, b) do ponto de vista social e cultural: atribuição de segurança à ocupação, reafirmação de identidades sociais, integração e inclusão social, fortalecimento de políticas de gênero, melhor planejamento de estratégias de saúde e educação, entre outros (BESLEY, 1995, FIELD, 2003). Esses fatores guardam interface com os desafios da agricultura familiar, em especial o acesso digno e sustentável à terra, como lugar de vida, através de instrumentos contratuais.

Além disso, tais elementos enfatizam a necessidade de se compreender a racionalidade da categoria social (CASTRO, 2013), de verificar se esses contratos, como expressão da legalidade e da formalização do Direito, são suficientes para garantir o passo em direção ao direito de propriedade. Procura-se entender percepções sobre o arrendamento rural, como decorrência de um processo decisório que, embora seja produto das pessoas, é ao mesmo tempo, decorrência de um habitus (BOURDIEU, 1992, 2008a, 2008b).

A noção de habitus permite romper com o paradigma estruturalista, sem cair na filosofia do sujeito ou na racionalidade da economia, pois atribui às pessoas a função de elaboradoras do real e não apenas a de reflexos de estruturas sociais, econômicas, culturais. Portanto, os agricultores familiares são agentes sociais que lutam e atuam construindo a realidade social a partir de estruturas estruturantes, mediadas pelo habitus (BOURDIEU, 1998).

Tais questões, à primeira vista, parecem indicar um tema restrito ao âmbito nacional. Contudo, tal percepção é superficial, uma vez que as respostas ao problema proposto exigem uma análise comparada, à medida que “la agricultura familiar constituyelavariable universal que predomina enelpaisaje rural de America Latina e Caribe” (LEPORATI, SALCEDO, JARA, et al. 2014, p. 53).

Prova disso é que na maioria dos países em desenvolvimento o problema de acesso contratual à terra tem sido importante nas discussões de políticas de desenvolvimento. Em muitos países da América Latina, as terras agrícolas são trabalhadas em condições de direitos de propriedade mal definidos, que geram agravamento da pobreza rural. Nas últimas quatro décadas, governos, principalmente na América Latina, deram grande ênfase às políticas de reforma agrária, colonização e restrição ao mercado de arrendamento, como os principais mecanismos de equalização do acesso à terra (OLINTO, 2013).

Dado o fraco desempenho no combate à pobreza rural, as visões latinas do “agro” nos convidam a repensar paradigmas e, um deles, é a construção dos direitos de propriedade – postos para além da noção jurídica de direitos sobre a coisa (direitos reais), mas como desdobramentos de instituições, agentes e lutas que se inserem nosprocessos mais amplos de desenvolvimento, globalização e regionalização que abarcam o Rural.

Além disso, a investigação guarda profundo diálogo com a questão agrária que, longe de estar superada, se reatualiza através de disputas territoriais na América Latina. Segundo o Banco Mundial (2010), a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global (LEITE e SAUER, 2011), onde se incluem os meios contratuais de acesso à terra. Assim, entender o arrendamento rural e sua relação com o direito de propriedade traz a reboque a discussão sobre a necessidade de se promover a posse por vias não-contratuais (por exemplo, a reforma agrária[5]), ao tempo em que se reconhece que a busca por um pedaço de terra não se restringe à luta pelo acesso, necessariamente, via direito real de propriedade.

Por outro lado, a disputa por terra na trajetória da construção do direito de propriedade envolve cenários novos e fragmentários, que complexificam ainda mais a decisão sobre acessar terras contratualmente. Isto é, apesar de fronteiras nacionais, novos atores e discursos surgem e expandem as narrativas para além das molduras juridicamente postas do “agricultor familiar” e do “empresário rural”. Surgem os “investidores que atuam como arrendatários”, os agentes do “fideicomisso de grãos” e os negociantes do “leasing fundiário” (CASTRO, 2013), que evidenciam como os temas de natureza contratual e agrária –  a exemplo deste trabalho –  estão cada vez mais ligados a processos de regionalização e globalização do Rural na América Latina e Caribe.

Diante dessa evidente vocação do tema para a pesquisa comparada, é importante lembrar que Brasil e Colômbia são países em que os agricultores familiares representam uma categoria social estratégica para a segurança alimentar e emprego (CEPAL/FAO/IICA, 2013), portanto, são de indiscutível importância para as políticas de desenvolvimento dessas nações.

Em ambos os casos os agricultores familiares estão expostos, em maior ou menor medida, à pobreza rural. Apesar de produzirem a maior parte dos alimentos para as mesas de brasileiros e colombianos, esses agricultores sofrem a escassez de terras e demais recursos produtivos, seja pela progressiva minifundização e fragmentação de suas glebas, seja pelos processos históricos de concentração fundiária presentes no Brasil e Colômbia (LEPORATI, SALCEDO, JARA, et al; 2014). Tal contexto, embora guarde particularidades nacionais, propicia uma leitura reflexiva da construção institucional do direito de propriedade à luz de similaridades históricas dos países.

Outro fator relevante é que as estatísticas censitárias desses países, além de existentes, foram desenvolvidas em datas razoavelmente próximas entre si e do tempo presente desta pesquisa. Uma parte considerável dos levantamentos ocorreram nas décadas de 1990 e 2000, a exemplo dos trabalhos do IBGE (1995, 2006) e dos Censos/Encuestas Agropecuários colombianos (1988, 2004), dando-nos panoramas distribuídos quase que paralelamente da realidade de cada país. E ainda, são estudos com abordagens, ainda que variáveis, sobre a agricultura familiar, que favorecem um cruzamento de dados quantitativos e qualitativos na pesquisa.

Por fim, no tocante aos elementos que permeiam diretamente o problema, os censos mostram que os agricultores familiares desses países acessam a terra prioritariamente através do direito de propriedade, em detrimento aos arrendamentos rurais (CENSO AGROPECUÁRIO DE COLOMBIA, 2001; IBGE, 2007). Portanto, Brasil e Colômbia reúnem os contextos agrários essenciais atinentes à problematização, viabilizando um enfoque do arrendamento rural no desafio da construção institucional da propriedade fundiária.

Notas para uma conclusão

A investigação sobre as condicionantes dos arrendamentos rurais entre agricultores familiares e suas percepções sobre o acesso à terra por via contratual tem se tornado relevante na América Latina, onde o acesso contratual às terras, como estratégia para obtenção de novas glebas, não é uma realidade comum.

No Brasil, das modalidades de acesso, os arrendamentos são os menos utilizados, ficando atrás da propriedade (direito real). Da mesma forma, na Colômbia, o arrendamento rural não predomina sobre o direito de propriedade, sendo relevante observar que a superfície de terras colombianas arrendadas recuou para 1,9% no fim do século XX (JARAMILLO, 2001; IBGE,2007; SALCEDO y GUZMAN, 2014).

Embora existam fatores multidirecionais e reflexivos, é importantefrisar que o contrato de arrendamento, segundo Castro (2013), é uma prática evitada por uma parte dos agricultores familiares por ser percebido e vivido como um acordo eminentemente comercial e excludente (frente a outras categorias), incapaz de dar posse definitiva da terra para que a família garanta o horizonte das gerações, com uma organização própria do tempo e do espaço.

Portanto, o arrendamento rural está no contexto mais amplo dos históricos problemas de posse da terra e tem, por pano de fundo, a construção institucional dos direitos de propriedade (CASTRO e SAUER, 2012; CASTRO, 2013).

Essa dinâmica necessita maiores investigações comparadas para se compreender sua aplicação e extensão no caso do Brasil e Colômbia.Porém, ela coopera com o entendimento sobrea opção direta pelo direito de propriedade e o afastamento das vias contratuais (arrendamento rural).

Embora a ausência de transição entre o acesso precário e o definitivo não fosse o objeto central da dissertação (que se ateve às condicionantes e percepções da categoria social), os resultados colocaram em evidência aspectos teóricos da “escada agrícola”, especialmente as limitações dos arrendamentos rurais na agricultura familiar (CASTRO, 2013).

Conclui-se que respostas à baixa utilização dos arrendamentos rurais passam pela investigação sobre as valorações acerca da relação de trabalho, do grupamento afetivo e da visão da terra como lar, enquanto racionalidades adicionais, consideradas na decisão contratual de arrendar.

Ao tornar-se arrendatário ou arrendador, o agricultor familiar não faz somente uma opção econômica, mas social e cultural. Ele centraliza sua decisão em elementos para além do lucro, da renda ou da segurança da propriedade – fatores que orientam os arrendamentos em geral, se considerarmos a legislação ordinária.

Assim, argumentos puramente econômicos (renda da terra) ou argumentos somente jurídicos (segurança ou insegurança do direito de propriedade) não são suficientes para compreender o problema desta pesquisa (ainda em andamento), qual seja, as razões da baixa incidência dos arrendamentos rurais entre os agricultores familiares do Brasil e da Colômbia

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Notas:
[1]Não ignoramos a vasta literatura que discute as diferenças entre “agricultura familiar” e “agricultura camponesa”. Serão tratadas oportunamente no desenvolvimento da pesquisa. Por ora, face à limitação de espaço, apenas a título de pré-projeto, os termos devem ser tratados como sinônimos, isto é, postos sob a perspectiva conceitual comum de que são formas de viver e agir no campo calcadas na mão-de-obra familiar.

[2]Sem a pretensão de revisitar as ideias desses pensadores, percebe-se, especialmente em Adam Smith e Karl Marx (cada um a seu modo, caracterizavam relações de desigualdade nos arrendamentos rurais), um esforço para compreender desajustes nos contratos agrários.

[3] Nesse sentido: Buainain (2001); Salinas (2001); Reydon (2006); Almeida, Silveira e Buainain (2007); Almeida (2009); Reydon (2012), Olinto (2013) e nossa dissertação de mestrado defendida no Propaga/UnB, Castro (2013).

[4]Neste caso, é o modo pelo qual o agricultor familiar vê ou interpreta a realidade. A palavra alemã é weltanschau-ung, que significa um ‘mundo e uma visão da vida’, ou ‘um paradigma’. É a estrutura por meio da qual a pessoa entende os dados da vida. (Geisler, 2002).

[5]Uma vertente de estudos colombianos destaca que a queda dos arrendamentos rurais teria ocorrido por uma série de fatores, mas, em especial, em razão do avanço da reforma agrária (leis nº 135 de 1961 e a Lei Primeira de 1968), bem como de programas de colonização, que centraram políticas públicas na “tenência directa” (ENCUESTA NACIONAL AGROPECUÁRIA, 1995 Y 1996; LASTARRIA-CORNHIEL, 1998; LORENTE, SALAZAR Y GALLO, 2000).


Informações Sobre o Autor

Luis Felipe Perdigão de Castro

Mestre em Agronegócios Universidade de Brasília Bacharel em Direito Universidade Federal de Ouro Preto advogado OAB/DF professor do Centro Universitário de Desenvolvimento do Planalto Central UNIDESC e ex-assessor de Juiz na Comarca de Luzinia/GO


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