Ainda o Supremo Tribunal

Promulgado em 04 de julho de 1994, o
novo Estatuto da Advocacia encontrou resistências advindas de algumas áreas,
ressaltando-se a Associação Nacional dos Magistrados Brasileiros. Impugnaram tais setores a procedência do dispositivo
correspondente à imunidade do advogado tocante a desacato praticado contra
juízes, acrescendo-se a isso, já então por tendência jurisprudencial, a
permissão à instauração de procedimentos persecutórios atinentes, também em
relação a magistrados, às hipóteses de calúnia, injúria e difamação. Quanto ao
desacato, o Supremo Tribunal Federal, examinando a ação direta de
inconstitucionalidade interposta pela Associação referida, deferiu mandado
liminar suspendendo, quando visando os pretores, a incidência do artigo 7.º, parágrafo 2.º do Estatuto. Tal provimento jurisdicional
tem muitos anos. A Suprema Corte conserva, sem exame do mérito, a inconstância
do tratamento outorgado a essa porção importantíssima da lei número 8906/94.
Melhor será, evidentemente, a definição imediata do provimento jurisdicional
obtido pelos magistrados, em causa própria é certo, mas passível, ainda hoje,
de disputa nos pretórios brasileiros. Na verdade, não se protegem os
magistrados de retorsão agressiva usando o escudamento artificial advindo da suspensão parcial de executoriedade de dispositivo estatutário protetor da
advocacia. O fortalecimento dos poderes dos juízes advém de faceta diferente,
ou seja, do respeito outorgado ao advogado enquanto este exercita seu
ministério. As variadíssimas hipóteses de procedimentos
criminais instaurados contra defensores em múltiplas Comarcas
refletem, quase sempre, reação máscula a tratamento rude concretizado pelos
hipotéticos ofendidos enquanto administrando conflitos judiciais
(irritabilidade na condução de audiências, recusa injustificada de contato
pessoal com advogados, retardamento na prolação de despachos, utilização
imoderada do poder de império no exercício do cargo). Tais incidentes são em
princípio compreensíveis, pois a comunidade é economicamente instável, exceção
feita àqueles que se dão à dicção do Direito por mero diletantismo, provendo-se
de fontes financeiras advindas de hereditariedade ou simbioses familiares. Juiz
não pode exercer o comércio. Não pode negociar, sabendo-se que entre os gregos
a negação do ócio era atividade indigna dos patrícios. O magistrado precisa
acordar cedo, dormir regularmente, dedicar-se exclusivamente às coisas da
Justiça, ter vida imaculada, manter a emoção em níveis aceitáveis, mostrar-se à
comunidade, enfim, como um pretor quase santificado. É isso. É esta a imagem
que o povo, neste integrado o advogado, deve manter de um juiz. Certa vez
discuti com um deles. Disse-lhe, e não faz tempo, que não gostava dele.
Indagou-me o por quê. Respondi-lhe: “Vossa Excelência
não se parece com meu pai”. É estranho, mas, quarenta e dois
anos depois de iniciar a advocacia, procuro no juiz o retrato
psicológico de meu pai. A explicação é simples e complicada. Simples porque se
sabe que o ser humano tem necessidade de prestar obediência a alguém. Complicado
por ser difícil submeter-se o advogado, na conjuntura, a alguém
desprovidos de qualidades adequadas à imposição de obediência. Eis aí,
eminentes juízes, a causa fundamental do temor gerado na magistratura à prática
do desacato. Não será o Supremo Tribunal Federal o gestor desse desacerto. Somos no mínimo quatrocentos e cinqüenta mil advogados injuriados
pela incúria, desfaçatez, imprudência, omissão, desmazelo (para dizer o menos)
das autoridades que administram o ensino e o estudo do Direito no Brasil,
transformado o primeiro em cornucópia de lucro fácil desfrutados por dois ou
três empresários gigantescos, imitados por dezenas de seguidores entusiasmados
com a facilidade de implantação dos institutos captadores
das energias e esperanças de milhares de jovens levados a erro.
Parece-se o fenômeno com a estranha capacidade de “Blimunda”,
criação de Saramago em “Memorial do Convento”. Ela sugava as vontades dos
outros. As criminosas criaturas que dominam a disseminação das faculdades de
Direito no Brasil fazem o mesmo: chupam as energias e esperanças do moços, diluindo-as no dourado do engordamento
das algibeiras (Coisa feia, Ministro da Educação. Coisa horrível, integrantes
do respectivo Conselho Nacional). Quase meio milhão, eminentes magistrados e membros
da Suprema Corte. Do lado de lá, uma profusão de
juízes mal remunerados, vítimas de traumatismo emocional, desobedecidos e
diuturnamente preocupados com a sobrevivência. Não pode dar certo: de uma
parte, quatrocentos e cinqüenta mil destinatários do impulso desnaturado
outorgado às ciências jurídicas; de outro lado, vocês todos que não conseguem,
sequer, levar o Executivo ao cumprimento dos mandados judiciais. Aplica-se o
comentário ao juiz de 1.º Grau sim, estendendo-se às
mais altas Cortes da nação. Quando um magistrado se vê enfrentado por outra
repartição do Poder, não lhe adianta grande coisa usar o chicote contra aqueles
que vestem a beca. Estes são, no fim das contas, os mantenedores da dignidade
remanescente da magistratura, pois ainda apontam os caminhos a serem seguidos,
reclamando respeito à Jurisdição e exigindo do autoritário Poder Executivo
nacional submissão à ordem judicial. Na hipótese vertente, o uso da chibata
deve ter a direção certa. Os juízes têm dito o Direito a ser cobrado do rei.
Mas o rei tem demonstrado enorme dose de desrespeito ao mandamento
jurisdicional. No meio disso, não vale preocupar-se a família com o desacato ou
questiúnculas outras advindas da tristeza de cada qual nas respectivas
circunscrições. A direção das iras dos inconformados está errada. O problema
não reside na retorsão do advogado, mas na
incapacidade de os juízes assimilarem, neste triste pedaço da história do
Brasil, a imagem mística (mitológica sim) da paternidade. Eis a questão!

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Paulo Sérgio Leite Fernandes

 

Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.

 


 

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