Resumo: Os crimes contra a ordem tributária previstos em todos os incisos do art. 1º da Lei nº 8.137/90, tais quais foram legislados, são crimes materiais que apenas se consumam com a supressão ou redução de tributo ou acessório. Se não houver lançamento de ofício constituindo o crédito tributário, ou se o lançamento de ofício feito for invalidado, não terão acontecido os núcleos comuns à conduta típica de todos os incisos. Logo, além de não se tratar de condição de procedibilidade, a constituição definitiva do crédito tributária também não seria uma condição objetiva de punibilidade estrito senso. Trata-se, em verdade, de fato indispensável para a própria consumação do crime.
Palavras-chave: direito penal tributário, crimes contra a ordem tributária, tipicidade.
Abstract: Crimes against the tax system enacted in all itens of the first article of the Act nº 8.137/90, the way they were approved, are material crimes that only happen with the suppression or the reduction of the tax or the accessory. If there’s not ex officio constitution of the tax credit, or if the constitution that was made is invalid, there will not have been the verbs that are common to the typical conduct of all the itens. Hence, not only it’s not a condition to process, the definitive constitution of the tax credit also is not an objective condition to punish stricto sensu. Actually, it’s a fact that is necessary to the configuration of the crime.
Keywords: Penal tax law; crimes against the tax system; configuration.
Sumário: 1. Introdução. 2. Bem jurídico. 3. A ordem tributária como bem jurídico. 4. O ilícito penal tributário. 5. Análise dos tipos penais do art. 1º da Lei nº 8.137/90. 6. A posição do Supremo Tribunal Federal. 7. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho visa a analisar as característica típicas dos crimes previstos no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 – os crimes de sonegação fiscal por excelência, com o objetivo primordial de determinar a assertividade, ou não, da decisão do Supremo Tribunal Federal que considera o término do processo administrativo fiscal, com a constituição definitiva do crédito tributário, condição objetiva de punibilidade nos crimes contra a ordem tributária previstos no mencionado art. 1º.
Considera ainda o enunciado nº 24 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, analisando-o sob a ótica das decisões que serviram de precedente para a sua elaboração, de modo a demonstrar que a restrição nele contida – de que se refere aos incisos I a IV do art. 1º da Lei nº 8.137/90 – não significa a exclusão do caráter material, a exigir o resultado “supressão ou redução de tributo ou acessório”, da figura típica prevista no inciso V.
Analisa-se, ainda, sucintamente, o conteúdo do parágrafo único do art. 1º, de modo a espancar dúvidas quanto aos limites de sua incidência.
Após a análise dos cinco incisos, chega-se às conclusões sobre a real necessidade de aguardar-se o fim do processo administrativo fiscal para a promoção e instauração da ação penal.
2. Bem jurídico
O conceito e, mais importante, a imanência hermenêutico-concretizadora que subjaz ao conceito de bem jurídico possuem importância transcendental em toda a teoria científica do Direito Penal moderna. Isso é assim porque é o bem jurídico que determina o sentido material da existência da infração penal a partir do reconhecimento de que não existe conduta típica que não lesione ou ao menos exponha a perigo um bem jurídico relevante à vida humana e que, em razão dessa relevância, foi selecionado pelo sistema criminalizador de condutas para ser reprimido pelo aparelho estatal. E mais, com o bem jurídico, tal seleção criminógena não poderá prescindir de todos os pressupostos não apenas formais mas, ainda mais notável, também materiais estabelecidos na Constituição. E ainda, só tem sentido o bem jurídico em uma ordem jurídica cuja constituição seja informada pela concepção substancial do projeto constituinte e que seja conforme aos padrões civilizatórios dos direitos humanos lato sensu.[1]
O bem jurídico confere ao Direito Penal seu substancial sentido teleológico, especificando o “para quê?” do tipo, fazendo com que a tipicidade seja preenchida de sentido finalístico, na esteira do entendimento de Zaffaroni e Pierangeli: “Sem o bem jurídico, caímos num formalismo legal, numa pura ‘jurisprudência dos conceitos’”.[2]
Enquanto para Von Liszt bem jurídico é um interesse juridicamente protegido preexistente à norma, Welzel o entendia como sendo o estado social desejável que o Direito quer resguardar de lesões. Zaffaroni e Pierangeli adotam um conceito de bem jurídico segundo o qual “é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”. Em verdade, uma visão mais contemporânea acorda que é impossível conceber-se o bem jurídico desligado do contexto constitucional em que se assenta a norma jurídica. Nesse diapasão, Juarez Tavares arremata da seguinte maneira.
“O bem jurídico não se confunde, assim, nem com os interesses juridicamente protegidos, nem com um estado social representativo de uma sociedade eticamente ideal, nem ainda com mera relação sistêmica. Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social e nesse sentido pode ser entendido, assim, como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de referência real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus demais componentes.”[3]
Pode-se identificar quatro funções básicas do bem jurídico: a função de garantia, a função teleológica ou interpretativa, a função individualizadora e a função sistemática.
A função de garantia refere-se ao bem jurídico como limite imposto à norma penal em um Estado Democrático e Social de Direito, conforme a teoria constitucional constitucionalmente adequada à dignidade humana real, substancial, exigindo que apenas condutas que lesionem ou ao menos ameacem de lesão os interesses e valores fundamentais da pessoa humana e da coletividade (em prol da pessoa humana).
A função teleológica ou interpretativa consiste no bem jurídico enquanto critério de concretização hermenêutica dos tipos penais fixados em lei. O sentido e o alcance da norma penal são estabelecidos a partir da identificação do bem jurídico, considerado o núcleo da norma penal, conferindo a interpretação a realização no caso concreto da função garantia (que prima facie é imposta ao legislador, aqui já em sua configuração efetivamente operacional-interpretativa).
A função individualizadora do bem jurídico o aponta como critério de fixação da dosimetria da pena, em função da gravidade da lesão ao bem jurídico.
A função sistemática é aquela em que o bem jurídico fundamenta a taxonomia das infrações penais.
Na síntese de Luiz Regis Prado: “Em suma, a função limitadora opera uma restrição na tarefa própria do legislador, a função teleológica-sistemática busca reduzir a seus devidos limites a matéria de proibição e a função individualizadora diz respeito à mensuração da pena/gravidade da lesão ao bem jurídico”.[4]
3. A ordem tributária como bem jurídico
Para o cumprimento de seus elevados objetivos, constitucionalmente determinados, o Estado precisa de recursos que são captados da sociedade que lhe é imanente. E o Direito Penal Tributário desempenha um papel garantidor e regulador do sistema tributário imbuído do que Anabela Miranda Rodrigues chama de “eticização do Direito Penal Fiscal”, na seguinte passagem: “É hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, uma vez que o sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também a realização de objetivos de justiça distributiva, tendo em conta as necessidades de financiamento das actividades sociais do Estado.”[5]
A fundamentação da existência da atividade tributária no Brasil encontra abrigo na própria Constituição Federal, que lhe reservou todo um Capítulo, inserido no Título VI, “Da tributação e do orçamento”, em que assenta as bases do “Sistema Tributário Nacional”, artigos 145 a 162. O complexo de regras legitimadoras da tributação enfeixa desde o poder de tributar até os limites deste poder, considerados verdadeiros direitos fundamentais oponíveis ao Estado. A Constituição se preocupa, ainda, em estabelecer a essencialidade da atividade de tributação à existência do Estado, por meio do disposto no art. 37, XXII
“XXII – as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio”.[6]
Os interesses que são defendidos pela penalização tributária referem-se ao Estado, diretamente, mas devem ser considerados, na esteira de uma concepção humanística e garantista, enquanto identificados com o interesse difuso da comunidade estatal. Não prevalecem concepções individualista-liberais diante da afirmação constitucional da essencialidade e da relevância do papel desempenhado pela tributação para a consecução de todas as finalidades estatais, globalmente consideradas.
Os crimes contra a ordem tributária, pois, consubstanciam tutela penal de interesses difusos, transindividuais, que apenas podem ser concebidos e entendidos sob a perspectiva comunitária.
Por isso, pode-se afirmar que o sujeito passivo dos crimes contra a ordem tributária, plasmados na Lei nº 8.137/90, é a coletividade comunitária, ou, se preferir, o povo. E não o povo meramente abstrato, figurativo, declinado no discurso como mera instância propagandista. Não o “povo ícone” sobre o qual nos adverte Friedrich Müller, segundo o qual:
“Diante de tal configuração não se trata nem do “povo” ativo nem também apenas do “povo” de atribuição [de legitimidade]; e muito menos aí o povo está exercendo a dominação real. Mas fala-se como se ele estivesse exercendo a dominação real, como se tivesse agido de forma mediada, como se legitimasse por meio de lealdade mediada por normas. Nesse caso usamos o povo como sucessor da justificativa pré-democrática, supra-mundana: eis o legitimismo “por obra e graça do povo”.
O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – “notre bom peuple”.[7]
A insurgência liberal contra a criminalização das condutas de sonegação fiscal tem como principal fundamento a iconização do povo, que alheia a atividade estatal das finalidades expendidas na Constituição, ao menos de uma constituição como a nossa Constituição, enfileirada às cartas mais progressistas e ocupadas em garantir a dignidade do ser humano.
O povo constituído pela Constituição, e que deve ocupar a tarefa concretizadora não só dos agentes públicos, mas da própria comunidade, e em especial na perspectiva do Sistema Tributário Nacional, é o “povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado” a que se refere Muller:
“O mero fato de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo menos irrelevante. Compete-lhes, juridicamente, a qualidade do ser humano, a dignidade humana, a personalidade jurídica. Elas são protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente, isto é, gozam da proteção jurídica, têm direito à oitiva pelos tribunais, são protegidas pelos direitos humanos que inibem a ação ilegal do Estado, por prescrições de direito da polícia e por muito mais. (…) Os habitantes não habitam um Estado, mas um território; isso vale tanto para titulares de outras nacionalidades como para apátridas, que pertencem à população residente. E vale igualmente para os que atravessam o território do respectivo Estado, ainda que com restrições não jurídicas, mas fáticas: assim e.g. não entrarão eles geralmente no círculo de regulamentação da legislação trabalhista e previdenciária”.[8]
A comunidade no sentido amplo de povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado é o sujeito passivo principal dos tipos de injusto contra a ordem tributária; e o Estado, na figura da pessoa dotada de capacidade tributante, e, se for o caso, também o particular diretamente afetado, são sujeitos passivos secundários.
4. O ilícito penal tributário
Ontologicamente, não há distinção entre o ilícito tributário e o ilícito penal tributário, pois ambos representam igualmente violações de mesma qualidade aos bens jurídicos tutelados. A distinção entre eles reside na gravidade das condutas atentatórias ao bem jurídico ordem tributária.
A simples inadimplência no pagamento dos tributos, ou, em linguagem mais técnica, a não promoção da extinção do crédito tributário por uma das maneiras autorizadas pelo Código Tributário Nacional e pela legislação pertinente, não representa jamais gravidade suficiente a ensejar a aplicação da ultima ratio que deve ser a pena de Direito Penal. Apenas as condutas dolosas tipificadas na Lei nº 8.137/90 fazem com que o ilícito transcenda a esfera estritamente tributária para repercutir também no âmbito penal.
A legislação respeita, e não poderia mesmo ser diferente a interpretação a ser feita à luz da Constituição, o caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal enquanto sistema de conformação social das condutas.
Neste ponto, vale a pena trazer à colação as palavras de Heleno Cláudio Fragoso:
“Estamos convencidos de que a incriminação da fraude fiscal constitui, num país como o nosso, importante elemento de uma séria política tributária. Esse tipo de ilícito, entre nós, não ofende o mínimo ético e o cidadão não tem consciência de que o cumprimento da obrigação tributária constitui um dever cívico, cuja transgressão ofende gravemente a economia pública, e, pois, interesses fundamentais da comunidade. A violação desse dever pode apresentar-se como simples atitude passiva de descumprimento da obrigação tributária, fato adequadamente sancionado através de medidas de natureza administrativa (multa). Todavia, pode apresentar maior gravidade, quando o descumprimento da obrigação tributária se realiza através do engano e da fraude, com o emprego de meios tendentes a induzir em erro a autoridade, iludindo o pagamento do tributo. Em tais casos é imperativa a sanção penal, que existe em muitos países, de longa data”.[9]
A violação a uma norma tributária pode ensejar, portanto, simplesmente um ilícito tributário ou, a depender da gravidade e desde que materialmente tenha exposto a perigo ou efetivamente lesionado o bem jurídico protegido por meio de uma das condutas tipificadas nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, também simultaneamente um ilícito penal (tributário). Ou seja, a existência de um crime tributário pressupõe a de um ilícito tributário, apenável na espera administrativa.
Soma-se a esta constatação o fato de que os crimes contra a ordem tributária apresentarem-se como típicas normas penais em branco, repletas de conceitos que vão haurir diretamente no Direito Tributário o seu significado, em uma interdependência semântico-normativa bastante acentuada. Essa correlação é inevitável diante da própria natureza das infrações – contra a ordem tributária –, e não algo acidentalmente implementado pelo legislador pátrio.
E essa correlação entre (a) os conceitos operacionais do Direito Tributário, que são manejados operacionalmente pelas autoridades administrativas – os agentes fiscais – e (b) a necessidade de ocorrência do ilícito tributário não-penal com os tipos penais tributários ensejou, e ainda enseja, as mais acaloradas discussões a respeito da interligação entre a atividade administrativa (de lançamento e julgamento desse lançamento) e a atividade de acusação e processamento da ação criminal. Essa interligação será objeto de nossa análise mais a frente.
5. Análise dos tipos penais do art. 1º da Lei nº 8.137/90
Tendo sido assentadas as premissas necessárias, passamos agora à análise dos tipos penais estabelecidos pelo artigo 1º da Lei nº 8.137/90.
O art. 1º da Lei nº 8.137/90 apresenta cinco tipos penais de núcleos diferentes, os quais têm em comum estarem todos ligados aos elementos estabelecidos no caput, o qual apresenta uma definição genérica de requisitos dos crimes contra a ordem tributária, aplicável a todos os cinco incisos que determinam pormenorizada e casuisticamente as condutas incriminadas neles referidas.
“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:”
A doutrina em geral considera que os crimes estabelecidos no art. 1º são todos crimes materiais, exigindo a ocorrência de resultado naturalístico para a sua consumação, consubstanciado na supressão ou redução de tributo (incluindo as contribuições sociais, que definitivamente encartam-se na categoria “tributo”) ou de qualquer acessório. Por esta razão, são por vezes denominados de crimes de “sonegação própria”.
Atento ao princípio da tipicidade fechada, o legislador, além de incluir expressamente as contribuições sociais como elementar típica alternativa, inclui também a redução ou supressão de acessórios, que devem ser entendidos como sendo as obrigações pecuniárias – e estritamente as pecuniárias – que sejam decorrentes da inobservância das obrigações acessórias, na forma do art. 113 do Código Tributário Nacional.
O artigo prevê várias condutas delitivas, em seus incisos, por meio das quais o tributo poderá ser suprimido total ou parcialmente.
A exigência de supressão ou redução de tributo faz com que a consumação desses crimes pressuponha a ocorrência do fato gerador do tributo e/ou dos acessórios, se for o caso.
Há quem diga que a modalidade prevista no inciso IV seja crime de perigo e a modalidade do inciso V seja crime de mera conduta. Tais interpretações, além de dissonantes à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ouvidam que os verbos nucleares dos tipos previstos em todos os incisos é suprimir ou reduzir tributo ou acessórios. Isso significa que, no caso do inciso IV, o crime não é “elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, mas sim suprimir ou reduzir tributo mediante essas condutas, assim como o crime previsto no inciso V não pode ser considerado de mera conduta, pois apenas é crime “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação” se esta conduta consistir em supressão ou redução de tributo ou acessório.
Observa-se, outrossim, que a figura “fornecê-la” da parte final do inciso V não seria jamais crime de mera conduta.
Relembre-se que os empréstimos compulsórios, além das contribuições sociais de todos os matizes, são considerados tributos, conforme deixou assentada a jurisprudência do Pretório Excelso, a partir do voto proferido pelo Min. Moreira Alves no RE nº 146.733-9-SP.
Vale divisar, por outro lado, que os crimes de sonegação de contribuições previdenciárias não foram absorvidos pela Lei nº 8.137/90, estando atualmente previstos na Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000. E aqui um ponto que costuma ser confundido por boa parte da doutrina. Os artigos 168-A e 337-A do Código Penal, inseridos pela Lei nº 9.983/00, aplicam-se exclusivamente às contribuições à Seguridade Social incidentes sobre a folha de salários, que até a Lei nº 11.457, de 16 de março de 2007, eram administradas pela Secretaria da Receita Previdenciária do Ministério da Seguridade Social e anteriormente eram administradas pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, razão pela qual até hoje continuam sendo vulgarmente conhecidas como “contribuições ao INSS”, ainda que sejam hoje também administradas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Não é demais relembrar que os crimes de sonegação fiscal, todos, apenas admitem a modalidade dolosa.
Em regra, o sujeito ativo dos crimes em foco é contribuinte, sujeito passivo da obrigação jurídico-tributária principal. Mas também o substituto (ou responsável por substituição) e o responsável tributários podem sê-lo.
Já o sujeito passivo dos crimes contra a ordem tributária é, primeiramente, a comunidade como um todo, difusamente, na medida em que é a titular do bem jurídico lesado ou ameaçado; secundariamente, também o Estado instituidor do tributo e, se distinto, o ente personalizado dotado de capacidade tributária ativa delegada.
A pena prevista para todas hipóteses é de reclusão de dois a cinco anos, e multa.
Passemos agora à análise dos cinco incisos englobados pelo art. 1º.
“I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;”
Os dois verbos previstos no inciso I referem-se a duas modalidades especiais de falsidade ideológica. O primeiro – omitir – consiste na ocultação da informação sobre a ocorrência do fato gerador à autoridade fiscal por meio de conduta omissiva; e o segundo – prestar –, de caráter comissivo, acontece com a prestação de informação errônea, adulterada, que não representa a realidade dos fatos.
A falsidade ideológica difere da material em razão de, naquela, a falsidade residir no conteúdo intrínseco do documento, enquanto nesta o falsum incide sobre a própria confecção do documento.
A modalidade omissiva pressupõe a existência de um dever de prestar a informação. Esse dever obrigatoriamente deve estar previsto em norma primária, respeitando o princípio da legalidade estrita, de maneira que a determinação meramente infralegal, regulamentar, será inábil a estabelecer o dever de agir.
Além disso, a informação omitida deve revestir idoneidade suficiente para iludir a autoridade fiscal sobre a ocorrência do fato gerador.
Na modalidade “prestar declaração falsa”, o crime corresponde a uma falsidade ideológica por comissão com a especificidade de ter sido cometida com a intenção de suprimir ou reduzir tributo ou acessório.
Sendo crimes materiais, de resultado naturalístico, a mera prática da conduta não é suficiente para caracterizar a consumação do crime, devendo obrigatoriamente haver a supressão ou redução do tributo.
A modalidade omissiva não admite tentativa, até porque se o agente efetua o pagamento integral do tributo e/ou acessório, não haverá nem mesmo tipicidade. Por outro lado, a modalidade comissiva admite tentativa desde que o meio utilizado possa ser fracionado, o que é perfeitamente admissível em tese.
“II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;”
Com rigor na análise, as condutas descritas no inciso II já se encontram englobadas pelas do inciso I. A omissão de operação de qualquer natureza oculta informação da autoridade fiscal e a prestação de declaração falsa insere elementos inexatos em documento ou livro exigido pela lei fiscal.
O primeiro verbo do tipo apresenta conduta comissiva, consistente em inserir elementos inexatos que, além de enganar a autoridade tributária, em semelhança ao que acontece no estelionato, seja tendente a suprimir ou reduzir tributo ou acessório. A modalidade “omitindo”, evidentemente, é de natureza omissiva, devendo a omissão ser relevante para a identificação, pela autoridade fiscal, da ocorrência do fato gerador.
O tipo tutela a credibilidade dos livros contábeis e fiscais do contribuinte, de modo a que reflitam os fatos que realmente aconteceram.
“III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;”
Da mesma maneira que o inciso anterior, o inciso III trata de uma falsidade. Na opinião de Correa, tal poderá ocorrer tanto na modalidade material quanto na modalidade ideológica[10]; já sob a ótica de Silva, a falsidade ideológica teria sido abrangida apenas nos incisos anteriores, remanescendo apenas o falsum material para a configuração do tipo inserto no inciso III.[11] A maioria da doutrina parece trilhar este último caminho.
A falsidade material, como nos avisa Sylvio do Amaral:
“(…) incide sobre a integridade física do papel escrito, procurando deturpar suas características originais através de emendas ou rasuras, que substituem ou acrescentam no texto letras ou algarismos – é a modalidade de falso material consistente na alteração de documento verdadeiro. Ou pode consistir na criação, pelo agente, do documento falso, quer pela imitação de um original legítimo (tal como na produção de um diploma falso), quer pelo livre exercício da imaginação do falsário (como na produção de uma carta particular apócrifa) – e o caso será daqueles para os quais o legislador reservou, com sentido específico, o termo falsificação (art. 297 e 298), que, se assim não fora, significaria genericamente todos os modos de falso documental.”[12]
Algumas das modalidades mais famosas e encontradiças na prática dos sonegadores referem-se a (a) nota calçada – quando a primeira via aponta um valor e as demais apresentam valor menor, determinando o engano da autoridade fiscal e o pagamento de tributos a menor; (b) nota sanfona – uma mesma nota fiscal lastreia diversas operações envolvendo o mesmo tipo e quantidade de mercadoria; (c) nota fria – emissão de nota fiscal sem que tenha havido efetivamente a operação, de maneira a criar um custo ou despesa inexistente.
“IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;”
O inciso IV apresenta modalidades de falsidade ideológica, material e de uso de documento falso, em redação que pode ser criticada pela falta de uso da correta técnica de redação legislativo-penal.
A primeira parte do inciso refere-se a condutas que constituem, no mais das vezes, pressupostos cuja ocorrência é necessária para a caracterização dos crimes estabelecidos nos primeiros incisos deste artigo. Parte da doutrina elabora, diante desta perplexidade que “é forçoso considerar a primeira parte do tipo, consubstanciada nos núcleos verbais “elaborar”, “distribuir”, “fornecer”, “emitir”, crimes de mera atividade e de perigo concreto, praticados por terceiro estranho à relação jurídica tributária”.[13]
Nesta esteira, o tipo teria o condão de alargar o aspecto subjetivo da sujeição ativa dos crimes previstos no art. 1º. Enquanto nos incisos anteriores os sujeitos ativos seriam o contribuinte, o substituto ou, ainda, o responsável tributário, aqui, terceiros alheios à relação obrigacional também estariam submetidos à incidência da norma penal, já que, sendo as figuras do inciso IV antecedentes lógicos dos primeiros incisos, seriam por eles absorvidos, tendo aplicação residual apenas para os terceiros aqui mencionados.
Roberto dos Santos Ferreira chega à conclusão, a partir da incidência do tipo a terceiros, de que o inciso em comento não exigiria a ocorrência do resultado naturalístico.
“Dessa forma, independem da produção de resultado para a respectiva consumação, pois não exigem a efetiva supressão ou redução de tributo, contribuição social ou qualquer acessório. Interpretação diversa não cabe, pois a efetiva supressão ou redução de tributo, contribuição social ou qualquer acessório, mediante as condutas descritas na primeira parte do inciso sob comento, são subsumíveis, em tese, aos tipos penais dos incisos I, II, III.”[14]
No entanto, apesar dos argumentos do notável mestre, o Supremo Tribunal Federal acabou por considerar também o inciso IV inequivocamente como sendo crime material, conforme restou expresso no enunciado nº 24 da sua Súmula Vinculante. Em verdade, o raciocínio expendido por Roberto dos Santos Ferreira parte de uma operação a contrario sensu, olvidando a positividade da determinação do caput, no sentido de que o crime é a supressão ou redução de tributo ou acessório mediante uma das condutas enunciadas nos incisos. Portanto, acerta a Corte Suprema.
É claro que, a partir da interpretação dada pelo STF, o inciso deixa de ter razão de existir. E isso porque quando o terceiro pratica a conduta e efetivamente acontece uma supressão ou redução de tributo ou acessório, o crime será cometido em co-autoria (lato sensu) entre o contribuinte ou responsável e o terceiro. Exceto se pudermos imaginar uma hipótese em que a ação do terceiro fosse tendente à supressão/redução e não contasse com a participação do contribuinte/responsável, hipótese bastante improvável, senão impossível.
Concluímos, então, que as figuras do inciso IV restam incluídas nos tipos anteriormente arrolados no mesmo artigo 1º.
“V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.”
Apesar da semelhança do inciso V com o art. 172 do Código Penal, cuja redação foi alterada justamente pela Lei nº 8.137/90, não devem ser confundidos, na medida em que este protege a propriedade privada, enquanto aquele destina-se à tutela do interesse difuso-comunitário consistente da preservação da ordem tributária.
A ocorrência do crime independe de qualquer intimação fiscal, referida no parágrafo único, como decidem os nossos tribunais, destacando-se a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“O crime definido no inciso V do art. 1º da Lei 8.137/90, sob a modalidade de omissão quanto à expedição de nota fiscal ou documento obrigatório, pode consumar-se independentemente da pretendida providência administrativa de intimação prévia do contribuinte, para que, em prazo não excedente de dez dias, venha a atender sua obrigação fiscal, a que se refere o parágrafo único do citado dispositivo”. (TJSP, Rel. Des. Djalma Lofrano, 5ª C. RT 708/309)
Aliás, o parágrafo único causa estranheza à comunidade jurídica, sendo difícil interpretar-se o seu real significado.
“Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.”
Prima facie, o parágrafo único teria o condão de incriminar a conduta de o contribuinte desatender à intimação feita pela autoridade fiscal, no prazo de dez dias, acrescentando-se mais uma figura delitiva às já especificadas no inciso V (ou seja, não é condição para a ocorrência do crime do inciso V a prévia intimação fiscal, como já mencionado).
O problema é que dificilmente tal conduta criminosa será caracterizada ou comprovada na prática, porque o contribuinte teria que propiciar a supressão ou redução do tributo por meio da conduta de não atendimento da intimação do fiscal. Acontece que a conduta de sonegação consistente na ocultação da ocorrência do fato gerador normalmente já terá sido antecedente, quando da não-declaração ao Fisco, de maneira que no momento da ação fiscal, em que ocorre a intimação, a conduta do contribuinte não será lídima a ensejar supressão/redução de tributo, que já teriam acontecido anteriormente.
Se o legislador pretende incriminar o desatendimento às intimações fiscais, precisaria, para ter eficácia, criar dispositivo assemelhado ao parágrafo único em comento de maneira a consubstanciar crime formal, desconexo ao caput do art. 1º.
6. A posição do Supremo Tribunal Federal
Após muita discussão, o Supremo Tribunal Federal acabou definindo que os crimes previstos no artigo 1º da Lei nº 8.137/90, todos eles, são crimes materiais que apenas se consumam com a supressão ou redução de tributo ou de acessório. Ao menos esse é estado atual da discussão, que ensejou até mesmo a publicação de um verbete na súmula vinculante do STF, nº 24.
“Súmula Vinculante nº 24. Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
Apesar de o verbete fazer referência expressa apenas aos incisos I a IV, dando margem à interpretação, por meio de raciocínio a contrario sensu, de que o inciso V estaria de fora, os precedentes nos quais o STF se baseou para estabelecer a súmula vinculante consideram que todos os incisos do art. 1º são crimes materiais. Assim se depreende da ementa do HC 81.611-8/DF, verdadeiro leading case, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, in verbis:
“EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.”
1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado –, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo do tipo.
2. Por outro lado, admitida por Lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe proporciona para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal.
3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.
Muita celeuma medrou, e ainda permanece, em razão de o STF exigir o fim do processo administrativo fiscal, com a manutenção do crédito tributário constituído, ao menos em parte, como condição para que possa o Ministério Público oferecer (e o Juiz possa receber) a denúncia. Os argumentos contrários centram-se na independência funcional do parquet e na independência e distinção entre as instâncias administrativa e judicial, as quais impediriam que pudesse o órgão da acusação ficar dependente de conclusão da ação administrativa. Seria incabível, assim, uma tal “condição de procedibilidade”.
Acontece que o exaurimento da instância administrativa contenciosa, uma vez que essa tenha sido provocada pelo contribuinte, não se insere no rol das condições de procedibilidade. E mais, talvez não seja adequando nem mesmo chamar essa exigência de “condição objetiva de punibilidade”, como faz parte dos Ministros do STF, pois não se trata exatamente de uma condição de punibilidade como estas costumam se apresentar na dogmática.
O que acontece é bastante simples. A partir do momento em que se fixa que os crimes contra a ordem tributária estabelecidos no art. 1º são crimes materiais, só existirá conduta típica se houver supressão ou redução de tributo ou acessório. E o tributo existe a partir do momento em que há a constituição do crédito tributário. Como se sabe, e a despeito de autorizadas vozes em contrário, o Código Tributário Nacional cindiu os momentos consumativos da obrigação tributária e do crédito tributário. Não importa se já aconteceu o fato gerador da obrigação tributária, o tributo só existe a partir do momento em que o crédito tributário foi constituído. E a atividade de constituição do crédito tributário que enseja a incidência dos crimes do art. 1º só pode ser a modalidade de lançamento de ofício, pois se o próprio contribuinte antecipa o pagamento e o lançamento é por homologação, expressa ou tácita, evidentemente não pode ter havido supressão ou redução de crédito tributário constituído. Pode até ter havido obrigação tributária que não se converteu em crédito tributário lançado, mas não crédito tributário constituído, logo, não tributo ou acessório suprimido ou reduzido.
Não vingam os argumentos de que quando o lançamento é anulado por vícios formais a infração penal restaria caracterizada. E isso porque, ainda que efetivamente tenha havido a conduta descrita nos cinco incisos do art. 1º, não terá havido supressão ou redução de tributo! E o núcleo de todos os crimes elencados é sempre o mesmo: a supressão ou redução.
Essas conclusões partem, é claro, da premissa de que todos os crimes são materiais, que exigem o resultado, sob pena de atipicidade da conduta.
O argumento de que tal interpretação levaria a segregar as condutas entre aquelas descobertas pela autoridade fiscal e aquelas outras não descobertas, é argumento político, de lege ferenda. Pode-se criticar a lei existente, porém, não se pode ir além dos limites hermenêuticos possíveis a partir da gramática legislada para se legislar por meio da interpretação jurídica.
7.Conclusão
Os crimes contra a ordem tributária previstos em todos os incisos do art. 1º da Lei nº 8.137/90, tais quais foram legislados, são crimes materiais que apenas se consumam com a supressão ou redução de tributo ou acessório. Se não houver lançamento de ofício constituindo o crédito tributário, ou se o lançamento de ofício feito for invalidado, não terão acontecido os núcleos comuns à conduta típica de todos os incisos, quais sejam, suprimir ou reduzir.
Na pendência de processo administrativo fiscal em que se impugna o crédito tributário lançado de ofício, se, e apenas se, for possível (por ter sido incluído como objeto da impugnação) a invalidação do crédito tributário ou a descaracterização, pela própria autoridade administrativa julgadora, da ocorrência de conduta criminosa, em razão da invalidação de parcela do crédito tributário (por exemplo, desqualificação de multa de ofício em razão de ser sustentada exclusivamente em presunção legal), não há ainda a ocorrência da consumação do crime.
E isto porque o crime só se consuma com a constituição do crédito tributário; constituição definitiva, e não provisória e submetida a legítima impugnação pelo contribuinte. Logo, além de não se tratar de condição de procedibilidade, a constituição definitiva do crédito tributária também não seria uma condição objetiva de punibilidade estrito senso. Trata-se, em verdade, de fato indispensável para a própria consumação do crime, de maneira que faltará a existência de elemento típico enquanto não concluído o processo administrativo fiscal, confirmando o lançamento, no todo ou em parte. Então, é melhor falar-se em atipicidade da conduta até então.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Sérgio Valladão Ferraz
Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil. Mestre em Direito pela PUCPR.