Aplicação das astreintes no direito brasileiro e no direito francês

logo Âmbito Jurídico

Sumário: Introdução. 1. Direito comparado: evolução histórica e natureza jurídica das astreintes. 2. Aplicação das astreintes no direito brasileiro e no direito francês. 3. Astreintes: instrumentos de preservação da dignidade da justiça. 4. Titularidade da execução do crédito resultante da multa. Conclusão

Resumo: As penas cominatórias (multas diárias), objeto deste estudo, conforme se verifica do próprio vocábulo qualificador astreintes, numa acepção de pressão ou constrangimento, é proveniente da criação pretoriana francesa. Possuem a função de obrigar o devedor a prestar a obrigação pactuada sem invadir direitos essenciais. Mas também de evitar o descumprimento e a subseqüente faculdade em princípio inexistente ao devedor de escolher resolvê-la através de perdas e danos, sobretudo em se tratando de obrigação personalíssima, afora questões procedimentais protelatórias. ) uso da astreinte tornou-se uma praxe na jurisprudência francesa, firmando, aos poucos, como medida coercitiva independente da indenização dos prejuízos decorrentes da inexecução de obrigação reconhecida por sentença.

Palavras-chave: Astreintes. Direito francês. Direito comparado. Execução indireta.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como fito expor de maneira didática e não exaustiva sobre o instituto de astreintes, de criação pretoriana francesa, que foi incorporada à legislação pátria e estão previstas nos arts. 287, 644 e 645 do Código de Processo Civil. No Brasil, as multas impostas judicialmente para coagir o devedor a cumprir as obrigações de fazer e não-fazer , pode ser requerida pelo exeqüente, segundo Calmon de Passos, com fundamento nos dispositivos legais mencionados acima pedir ao juiz que a estabeleça, levando em consideração, na sua fixação, a condição financeira do devedor e a expressão econômica da obrigação.

E passa a referir-se a um procedimento com a dupla vantagem de não violentar a pessoa física do devedor e de conduzir a um resultado concreto: o sistema das astreintes. Constata-se que as multas diárias punem as violações a deveres, mas com a característica determinante de conduzir ao cumprimento de outras normas. Sendo assim, as astreintes são uma espécie de multa anômala, uma vez que não decorrem da prática de um ato ilícito em sentido estrito, prestando-se, pois, a induzir ou a obrigar ao cumprimento de uma norma ou a uma conduta. Antes de adentrar no estudo comparado do Direito Francês e no Direito Brasileiro, é necessário fazer uma breve abordagem acerca da Evolução Histórica e natureza jurídica das Astreintes. Este é o objeto do primeiro tópico. No segundo tópico serão apresentados alguns aspectos da interface da aplicação deste instituto no Direito Brasileiro e no Direito Francês. No terceiro tópico as astreintes são analisadas como instrumentos de preservação da dignidade da Justiça. Em seguida será abordada a questão referente à titularidade da execução do crédito decorrente da multa. Por último, será oferecido um estudo de caso onde ratifica-se o entendimento de que em algumas situações a execução das astreintes deve ter como parâmetro a forma como é aplicado este instituto pela jurisprudência francesa.

A pesquisa realizada para a elaboração do trabalho tem como objetivo principal é analisar a natureza jurídica e a aplicação das astreintes pelo Poder Judiciário Brasileiro, fazen do uma abordagem deste instituto no Direito Francês. Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses foram investigadas através de pesquisa bibliográfica e documental. No que tange à tipologia da pesquisa é, segundo a utilização dos resultados, pura, pois não tem como objetivo mudanças na realidade, almeja-se apenas um acréscimo de conhecimento aos que dela venham a se utilizar. Segundo a abordagem é uma pesquisa qualitativa, pois seu critério não é numérico, visando apenas aprofundar e abranger os conceitos e teorias. Antes de adentrar no estudo comparado do Direito Francês e no Direito Brasileiro, é necessário fazer uma breve abordagem acerca da Evolução Histórica e natureza jurídica das Astreintes. Este é o objeto do primeiro tópico. No segundo tópico será apresentada, de forma sucinta, alguns trechos da doutrina francesa sobre as astreintes. Em seguida serão apresentados alguns aspectos da interface da aplicação deste instituto no Direito Brasileiro e no Direito Francês. No quarto tópico será oferecido um estudo de caso onde ratifica-se o entendimento de que em algumas situações a execução das astreintes deve ter como parâmetro a forma como é aplicado este instituto pela jurisprudência francesa.

1 DIREITO COMPARADO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E NATUREZA JURÍDICA DAS ASTREINTES

Para melhor abordar o tema objeto deste breve estudo, qual seja, as astreintes, é necessário fazer uma explanação, mesmo que sucinta, acerca do histórico natureza jurídica deste instituto. Conforme o professor Marcelo Lima Guerra (1999, p. 108) a astreinte “constitui-se em um autêntico modelo de medida coercitiva judicial”, através dela realiza-se a execução indireta no direito francês, que veio a ser tomado como paradigma seguido em outros ordenamentos jurídicos, tais como o brasileiro.

Importante contextualizar quando se deu o surgimento deste importante instituto jurídico. Segundo lição de Marcelo Lima Guerra (1999, p. 108), o respeito à liberdade, um dos lemas da Revolução Francesa que entendia ser necessário o banimento de medidas de coação sobre a pessoa do devedor. Com a consolidação desta conquista, consagrou-se legalmente o princípio Nemo ad factum cogi potest no art. 1.142 do Code Napoléon.[1]

Acrescenta o professor Marcelo Lima Guerra (1999, p. 109):

“Todavia, o respeito à liberdade do devedor levou a doutrina francesa a exageros injustificáveis, na interpretação do mencionado no art. 1.142 do Código Civil. (…) Entendeu-se, assim, que uma obrigação de fazer ou de não fazer era uma obrigação facultativa, na qual o devedor se obriga, a título principal, ao equivalente pecuniário e pode, se assim desejar, liberar-se de realizar a prestação prevista no contrato.”

Os Mazeaud definem as astreintes como uma condenação pecuniária fixada pelo juiz, tendo por fim vencer a resistência de um devedor recalcitrante e de conduzi-lo a cumprir a decisão judicial.

O caráter de pressão sobre o devedor é bem realçado pelos doutrinadores franceses. Sobre o assunto Mazeaud (1966, p. 878) afirma: “Ce procédé de pression est souvent utilisé par les tribunaux”; Savatier(1074, p.381) afirma que: “Celle-ci (a astreinte) consiste à condamner ce débiteur, — refusant la prestation qu’il doit, — à une somme d’argent destinée à l’intimider”

O jurista Cândido Rangel Dinamarco(1995, p. 241), analisando o instituto em comento, aduz que:

“A profunda remodelação por que passou a tutela específica das obrigações de fazer ou de não-fazer repercutiu in executivis mediante nova formulação que a lei n. 8.953, de 13 de dezembro de 1.994, veio a dar aos arts. 644 e 645 do Código de Processo Civil. Constitui a síntese e lema dessa novidade o reforço das astreintes. Quis o legislador, visivelmente, revigorar o instituto e dotá-lo de maior eficácia para o combate aos notórios óbices à efetividade das decisões judiciais e das obrigações concertadas mediante títulos executivos extrajudiciais (óbices ilegítimos ao acesso à justiça). (…) O reforço do sistema de astreintes implantado pelo Código de Processo Civil em 1974 é o reconhecimento da valia psicológica desse meio de execução indireta, conforme expressa declaração contida na justificativa que acompanhou o projeto da lei n. 8.953. Sabe o legislador que os meios de pressão psicológica são particularmente eficientes e capazes de proporcionar ao credor mais rapidamente a satisfação do seu direito, mediante a retirada da resistência do obrigado”

Sobre o assunto discorre Luiz Fux (2001, p. 1082) que a multa diária “não é pena posto que não substitui o cumprimento da obrigação principal, mas meio de ‘coerção’ cuja origem remonta às ‘astreintes’ do direito francês, para compelir o devedor ao cumprimento das obrigações de fazer”.

Marcelo Lima Guerra (1999, p. 111) adverte que a história da astreinte não é linar, tendo ocorrido momentos de hesitação e contradições na própria jurisprudência, ressalta, como exemplo, que

“vale mencionar que durante um período que se estende de 1949 a 1959 ocorreu um retrocesso na orientação jurisprudencial predominante, quando se passou a vincular o valor da astreinte liquidada aqo valor real do prejuízo sofrido pelo credor, em virtude do inadimplemento do devedor.”

Em verdade, após seu nascedouro no direito francês, as astreintes passaram por fases de hesitação e anacronismo e quase deixaram de existir, pois, por mais de uma década (1949-1959), na França, passaram a ser utilizadas como uma espécie de indenização por perdas e danos, segundo Marcelo Lima Guerra e também lembrado por François Chabas.

Conforme precisa lição de Marcelo Lima Guerra (1999, p. 112) durante um período as astreintes passaram a “equivaler, pura e simplesmente, às perdas e danos”. Para melhor compreensão deste entendimento, o professor Marcelo Lima Guerra(1999, p. 112) explica como se deu a inserção de uma norma jurídica disciplinadora das astreintes para um caso específico, qual seja, ações de despejo, explica o referido professor que

“Durante o pós-guerra, a recusa de locatários despejados em desocupar os respectivos imóveis, por falta de lugar para onde irem, deu origem a um uso generalizado de astreintes para efetivar as sentenças de despejo. Esse quadro motivou o legislador a intervir e disciplinar especificamente o emprego de tais medidas nessas situações. Assim, a Lei de 21.07.1949, relativa às ações de despejo, estabeleceu a regra segundo a qual, a astreinte, quando decretada para compelir o cumprimento de sentença de despejo, não poderia ultrapassar o valor da quantia equivalente ao prejuízo causado pelo inadimplemento do locatário.”

Ocorre que apesar da legislação disciplinar exclusivamente a matéria específica referente a ações de despejo, a jurisprudência generalizou a toda e qualquer aplicação da astreinte a disciplina da Lei de 21.07.1949. Apenas em 1959, diante da pressão da doutrina e de juízes de instancias inferiores, a Cour de Cassation modificou seu entendimento e admitiu que valores arbitrários sejam fixados independentemente do prejuízo pelo não cumprimento da obrigação.

Na lição de Amílcar de Castro:

“Multa por dia de atraso é simples meio de coação. Multa-se o executado dia a dia, não para puni-lo, como se criminoso fosse, mas simplesmente para forçá-lo indiretamente a fazer o que não fez ou a não fazer o que não deve. Numa palavra: o Juiz é forçado a multar para conseguir um meio de desempenhar a sua função jurisdicional.”

O professor Marcelo Lima Guerra (1999, p. 115) define a astreinte como medida coercitiva destinada a induzir o devedor a cumprir uma obrigação que lhe é imposta por sentença e ao incidir concretamente tem a natureza jurídica de uma pena privada “uma vez que a quantia devida em razão de sua decretação é entregue ao credor.” Referido autor apresenta como características essenciais da astreinte: caráter acessório, já que é destinada a assegurar o cumprimento específico de outra condenação; caráter coercitivo: pois o único objetivo da mesma é pressionar o devedor para que ele cumpra o que lhe foi determinado por uma decisão condenatória; caráter arbitrário: dispensa de motivação a decisão concessiva da medida; caráter patrimonial: toda a quantia referente à apuração da medida será revertida em favor do próprio credor.

2. APLICAÇÃO DAS ASTREINTES NO DIREITO BRASILEIRO E NO DIREITO FRANCÊS.

Enrico Tullio Liebman(1968, p. 169) conceitua “Astreintes” nos seguintes termos:

“Chamam-se “astreintes” a condenação pecuniária proferida em razão de tanto por dia de atraso (ou qualquer unidade de tempo, conforme as circunstâncias), destinada a obter do devedor o cumprimento da obrigação de fazer pela ameaça de uma pena suscetível de aumentar indefinidamente”.

E mais adiante, arremata o mestre: “Caracterizam-se as “astreintes” pelo exagero da quantia em que se faz a condenação, que não corresponde ao prejuízo real causado ao credor pelo inadimplemento, nem depende da existência de tal prejuízo4. Constitui na realidade uma pena imposta com a finalidade cominatória, tendo como objetivo primeiro o cumprimento da obrigação no prazo fixado pelo juiz.

O instituto das ‘astreintes’ difundiu-se sobremodo no direito comparado: além da França, a Itália e a Alemanha são exemplos representativos bem sucedidos de aplicação deste mecanismo. Aliás, o próprio direito processual brasileiro anterior já admitia esse regime para a execução das obrigações de fazer e não-fazer, tanto que instituiu um procedimento especial para abrigar tais pretensões: ação cominatória, art. 302, XII do CPC/39. E, com base nesse dispositivo, foi elaborada a Súmula nº 500 do STF, segundo a qual “não cabe a ação cominatória para compelir-se o réu a cumprir obrigação de dar.” E não cabe porque a obrigação de dar pode ser exigida ‘manu militari’ sem ofensa à pessoa do devedor (pela subtração da coisa e entrega ao credor).

Prescreve o art. 461 do Código de Processo Civil em sua nova redação:

Art. 461 – Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5º – Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

§ 6º – O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.”

As astreintes (multas diárias) tem por objetivo coagir o devedor a satisfazer, com maior retidão, a prestação de uma obrigação, fixada em decisão judicial. É significativo o confronto entre as legislações brasileira e estrangeira. No direito francês, as astreintes são reguladas pelo direito material, enquanto que, na legislação pátria, as astreintes estão previstas no direito processual (461 CPC). No Brasil, como dito, As astreintes têm natureza processual, com a finalidade de forçar o devedor a cumprir decisão judicial que determinou à prestação de uma obrigação. Trata-se de relação entre o Estado-Juiz e o devedor.

3. ASTREINTES: INSTRUMENTOS DE PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA JUSTIÇA

Os atos comportamentais que tipificam o atentado à dignidade da justiça, na legislação pátria, estão relacionados em quatro incisos, no art. 600 do CPC.

Referido elenco, porém, assim como o do art. 17 do CPC, não exaure as hipóteses de sua ocorrência, sendo meramente exemplificativo, e não taxativo. In casu, a reclamada está incorrendo em todos os incisos, senão vejamos: Considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato de devedor que:

a) frauda a execução (CPC, art. 600, inc. I). Fraudar a execução, nos termos do art. 600, inciso I, do CPC,segundo DINAMARCO (In: Instituições de Processo Civil, São Paulo: Malheiro2001, P. 268) tem “significado bastante amplo de agir fraudulentamente, com dolo, de modo a prejudicar o credor”, nele inserindo-se o conceito em sentido estrito do art. 593 do CPC.

b) se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos (CPC, art. 600, inc. II). Não é lícito nem ao executado nem a terceiro opor-se injustificada ou maliciosamente à função jurisdicional executiva.

c) Resistir injustificadamente às ordens judiciais é conduta que em tudo se assemelha à oposição maliciosa, tipificadora da litigância de má-fé (CPC, art. 17, inc. IV).Segundo Manoel Antônio Teixeira Filho, sempre “que o devedor resistir, sem motivo justificável, às ordens emanadas do juiz, o seu ato será legalmente interpretado como atentatório à dignidade da justiça” (Execução no Processo do Trabalho. 3ª Ed. SP: LTr, 1992, p. 194). Consiste a resistência injustificada no ato de não atender, sem justo motivo, qualquer ordem emanada do juiz,confomr lição de DINAMARCO (2001, P.268) com escopo de embaraçar ou retardar a efetividade da tutela executiva. Por isso, a severidade da reação se impõe porque os atos dessa natureza, segundo Teori Albino Zavaski (Comentários ao Código de Processo Civil. SP: RT, 2000, vol. 8, p. 312) “atentam, não apenas contra o litigante adversário, mas sobretudo contra a autoridade e a dignidade da função jurisdicional”.

Verifica-se que o uso das astreintes pode ser decisivo para compelir o réu a cumprir a obrigação, situação que se enquadra perfeitamente no inciso III do artigo 600 do Código de Processo Civil. A aplicação deste instituto nestes casos demonstra como a astreinte pode representar um instrumento de preservação da dignidade da Justiça. A partir do momento em que o Estado atrai para si a responsabilidade de exercer o monopólio da jurisdição, assume o compromisso social de prestar um serviço jurisdicional que vai além do conceito do justo.

A aplicação das astreintes tem o intuito de agilizar o cumprimento da obrigação por quem de direito, o que, por fim, dignifica a Justiça, pois devolve-lhe a credibilidade.

4. TITULARIDADE DA EXECUÇÃO DO CRÉDITO RESULTANTE DA MULTA

As astreintes servem como meio de compelir o comportamento do devedor quando se tratar de obrigações de fazer ou não fazer, as quais dependem diretamente de uma conduta do devedor para a satisfação completa do credor.

Existe uma divisão na doutrina quanto a quem deveria ser o destinatário do valor arrecadado com a aplicação das astreintes. Para Barbosa Moreira deveria ser entregue aos cofres públicos, senão veja-se: “já que ela não tem caráter ressarcitório, mas visa assegurar a eficácia prática da condenação, constante de ato judicial, não parece razoável que o produto da aplicação seja entregue ao credor, em vez de ser recolhido aos cofres públicos”

Marcelo Guerra(1999) anota as diferentes destinações dadas às verbas arrecadadas com a aplicação da sanção pecuniária: no sistema alemão, o valor é atribuído integralmente ao Estado; em Portugal, metade da quantia é destinada ao credor e metade ao Estado; no direito francês, as astreintes são devidas ao autor, cumulativamente com o valor das perdas e danos.

No Brasil a questão ainda não foi decidida no plano legislativo. Há uma lacuna quanto ao destino da multa por descumprimento da ordem judicial. O artigo 461 do CPC apenas diz que a imposição da multa pode vir a requerimento da parte ou de ofício e que “a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287)”.

Para Eduardo Talamini (2003, p. 257) A circunstância da parte – e não o Estado ou um fundo público – ser a beneficiária da multa contribui, sob certo aspecto, para a eficiência da função coercitiva do mecanismo. Isso deve-se a dois motivos.”

Arremata o autor (2003, p. 258-259) nos seguintes termos:
“Primeiro, a aptidão de a multa pressionar psicologicamente o réu será tanto maior quanto maior for a perspectiva de que o crédito dela derivado venha a ser rápida e rigorosamente executado. E não há melhor modo de assegurar a severidade da execução do que atribuindo o concreto interesse na sua instauração e desenvolvimento ao próprio autor – mediante a destinação do resultado nela obtido.”

Ocorre que para que a verba seja destinada ao Estado, seria indispensável expressa menção legislativa a esse respeito. Ante a inexistência de tal norma, a legislação pátria não permite outra opção a não ser a incorporação dos valores ao patrimônio do credor, o que se faz, inclusive, com suporte analógico no quanto disposto no art. 601 do Código de Processo Civil: “nos casos previstos no artigo anterior [atos atentatórios à dignidade da justiça], o devedor incidirá em multa fixada pelo juiz, em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material, multa essa que reverterá em proveito do credor,exigível na própria execução.”

CONCLUSÃO

As astreintes devem cumprir a missão de buscar a efetividade da decisão judicial, deve levar em consideração o direito buscado e a capacidade econômica da empregadora. A multa arbitrada é unicamente para o caso de descumprimento da obrigação de fazer com observância ao princípio da razoabilidade. A função das astreintes é vencer a obstinação do devedor ao cumprimento da obrigação, e incide a partir da ciência do obrigado e da sua recalcitrância.

A aplicação de tal medida é necessária para que dê efetividade à justiça e consiga estabelecer, no caso concreto a dignidade da Justiça. Conforme Antonio Mazzuca, as astreintes se justificam na dignidade e no poder de império do Estado em ação e a multa imposta é o instrumento que faz prevalecer esse poder e dignidade, para o bem comum. Daí por que a tradução da palavra astreintes encontra dificuldades, por não ser simplesmente sinônimo de multa, porque há uma causa maior a ser preservada, apesar de ocasionar esse efeito

 

Referências
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao código de processo civil. v. 3, 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005
CHABAS, François. L’astriente en Droit Français. In: Revista de Direito Civil, n.69, p.50..
DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil, Malheiros, 1995, p. 241, nº 204).
FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
LIEBMAN, Enrico Túlio. Processo de Execução. São Paulo: Saraiva, 1968.
_________. Curso de Direito Processual Civil – Processo de Execução – Processo Cautelar. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005, v. II.
GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. 1. ed. São Paulo: RT, 1999.
MAZEAUD E MAZEAUD. Leçons de Droit Civil — Obligations. Paris: Ed. Montchrestien, 4ème ed.. Paris, 1966.
TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer a não fazer e sua
extensão aos deveres de entrega de coisa. São Paulo: RT, 2003.
Nota:
[1] “Toda obrigação de fazer ou de não fazer se resolve em perdas e danos, no caso de inexecução por parte do devedor.”

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Vanessa Batista Oliveira Lima

 

Advogada em Fortaleza/Ce. Especialista em processo civil. Mestranda em Direito Constitucional – PPGD – UNIFOR