As Súmulas 237 e 350, do STJ: As vendas a prazo, as vendas financiadas e o ICMS

Resumo: O principal objetivo deste trabalho é explicitar as diferenças entre vendas a prazo e vendas financiadas para fins de incidência ou não do ICMS. Tomando como ponto de partida artigo clássico da lavra de Geraldo Ataliba e Cléber Giardino e a conceituação de contrato bancário, mais especificamente de contrato de financiamento, de Fábio Ulhoa Coelho, chega-se às Súmulas 237 e 350 do Superior Tribunal de Justiça que pacificaram o tema.


Sumário: 1. Introdução. 2. Da Venda a Prazo ou a Crédito e da Venda Financiada.  3. Dos Contratos Bancários: do Financiamento. 4. Do Julgamento do Recurso Especial 1.106.462/SP, Representativo de Controvérsia. 5. Do Julgamento do Recurso Especial n. 1.087.230/RS. 6. Conclusão.


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1 – Introdução


Entre os impostos de competência dos Estados e do Distrito Federal, insere-se o imposto sobre circulação de mercadorias e prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), nos termos do art. 155, II, da Carta Magna, cujos balizamentos encontram-se previstos, sobretudo no seu § 2º, destacando-se, para o tema abordado, o fato de  que certas matérias sejam disciplinadas por lei complementar, entre elas a base de cálculo (XII, alínea i).


Tal diploma é a Lei Complementar n. 87/96, que trata, em seu art. 13, da base de cálculo do ICMS nas operações normais, o qual prescreve que devem integrá-la “todas as importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como os descontos concedidos sob condição”, sendo citado, a título meramente exemplificativo, as verbas a título de seguros e juros.


Cada unidade da Federação, ao exercer a parcela do seu poder de tributar, institui o ICMS através de lei ordinária, a qual, em razão do princípio da supremacia da Constituição, deve necessariamente respeitar as diretrizes emanadas desta e da Lei Complementar n. 87/96.


Assim, embora já existisse desde 2000 enunciado de súmula do C. Superior Tribunal de Justiça a respeito da não-inclusão dos encargos financeiros em venda parcelada mediante cartão de crédito, o fato é que, em razão de julgamento de recurso especial, sob a sistemática do art. 543-C, do Código de Processo Civil, em 2009, nova súmula foi editada, desta vez  especificamente sobre a inclusão de encargos financeiros na base de cálculo do ICMS nas vendas a prazo.


Interessante assim, explicitar a diferenciação entre vendas a prazo e vendas financiadas, à luz das Súmulas 237 e 350, do C. Superior Tribunal de Justiça, sob o enfoque da doutrina de Geraldo Ataliba e Cléber Giardino e de alguns dos precedentes deste último verbete.


2 – Da Venda a Prazo ou a Crédito e da Venda Financiada


Em clássico parecer, exarado em 1981, mas ainda atual e sempre citado pelos Tribunais e pela doutrina, Ataliba e Giardino enfrentam o tema da compra e venda a prazo e da financiada, para fins de incidência do ICM (naquela época, a EC-1/69 só outorgava competência aos Estados para instituir imposto sobre circulação de mercadorias).[1]


Trata-se de consulta solicitada pela empresa Mesbla SA que então fornecia a clientes previamente selecionados, de acordo com sua idoneidade financeira, um cartão de credenciamento, denominado “cartão de crédito especial Mesbla”, mediante um contrato-padrão, chamado de “contrato cartão de crédito especial”.[2]


Ocorre que o fisco do Estado do Rio Grande do Sul entendeu que os encargos financeiros decorrentes de operações com tal cartão deviam compor a base de cálculo do ICM e passou a autuar a consulente.[3]


Em certo ponto de sua explanação, Ataliba e Giardino explicitam as cinco modalidades de compra e venda utilizadas pela Mesbla SA, merecendo destaque suas considerações sobre a “venda a prestação” e a “venda com o cartão de crédito especial Mesbla”.[4]


O procedimento da denominada “venda a prestação” é assim sintetizado:[5]


“É pressuposto desse regime […] – a prévia oferta de venda, sua aceitação pelo consumidor e a concomitante entrega da mercadoria, pela consulente, à vista do compromisso do cliente em saldar o preço, no futuro, em prestações de valores certos e determinados, vencíveis em datas preestabelecidas.” (destaques nossos.)


Acrescentam que o quê normalmente ocorre na prática dessa modalidade de venda é que o preço da mercadoria é normalmente acrescido em relação ao preço à vista, como contrapartida do favorecimento financeiro que o contrato oferece.[6]


Infere-se, pois, que entre o vendedor e o consumidor não existem intermediários, sendo, portanto, o próprio alienante quem financia o preço final, incluídos os eventuais encargos financeiros da operação, razão pela qual, nesses casos, tais encargos integrarão a base de cálculo do ICMS.


Com relação à “venda com cartão de crédito especial Mesbla SA”, o procedimento é assim descrito:[7]


“a) a consulente oferece suas mercadorias e o cliente aceita a oferta, aperfeiçoando-se o contrato; b) a entrega dos bens ocorre nesse mesmo momento; c) o preço, por outro lado, e da perspectiva jurídica, é imediatamente liquidado pelo comprador, no próprio ato da venda. Isso se dá mediante a exibição e apresentação de um “cartão” que cumpre a função de atribuir à consulente o direito de haver o preço, diretamente da instituição financeira da qual o cliente, previamente à compra, já obteve promessa de financiamento.”


Da exposição fica claro, em outro trecho, que tanto o credenciamento do cliente junto a uma instituição financeira, que lhe promete a outorga de crédito, como a entrega do cartão, são serviços gratuitos prestados pela consulente.[8]


Os consultores afirmam, então, que “todavia, esse credenciamento e entrega [do cartão] nada têm a ver com a operação mercantil de compra e venda. Diz com outra relação – o negócio de financiamento – do qual a consulente é mera intermediária (e não parte interveniente)”.[9] (destaques nossos.)


Mais à frente, explicitam que, para fazer jus ao cartão, o cliente adere a um instrumento contratual, celebrado com a consulente, cujas cláusulas facultam-lhe o financiamento automático da compra, bastando para isso a exibição daquele. Por obra desse contrato de adesão, a consulente, na qualidade de procuradora do cliente, em razão de cláusula de mandato nele inserta, já obteve, até previamente à compra, o financiamento em nome do consumidor com uma instituição financeira. Apenas se por algum motivo tal promessa de financiamento se frustrar, a consulente financiará a venda com recursos próprios.[10]


Afimam que nesta modalidade existem dois negócios jurídicos distintos: a compra e venda e o financiamento. Dessa forma, o preço, na operação de compra e venda, é da venda à vista; os acréscimos que onerarão o cliente são custos financeiros, já que correspondem ao preço do dinheiro mutuado, decorrentes do contrato de financiamento.[11]


Ressaltam ainda que, dada a repartição constitucional de competência tributária, sobre a operação de compra e venda mercantil incide o ICM, destinado ao Estado; ao passo que sobre a operação de financiamento incide o IOF, de competência da União.[12]


Conclui-se, assim, que, quando entre o alienante e o consumidor houver a intermediação de uma instituição financeira, a qual, por força de contrato previamente firmado, empreste numerário suficiente para que o adquirente quite o preço como se à vista fosse junto ao vendedor, os encargos financeiros decorrentes desse financiamento não comporão a base de cálculo do ICMS, mas remunerarão o capital mutuado, podendo sobre eles incidir o IOF, de competência da União.


A diferença entre venda a crédito e venda financiada é posta nos mesmos termos pelo Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Ruy Rosado Aguiar Júnior:[13]


“a venda a crédito é o negócio de compra e venda em que o comerciante, entregando o bem, oferece diretamente ao seu cliente certo prazo para o pagamento. Se houver financiamento por financeira dedicada ao atendimento do consumidor, muitas vezes com posto de atendimento na própria loja, então o contrato será bancário. Se a relação é apenas entre fornecedor e comprador, não há mútuo, mas simples crédito concedido pelo comerciante. Nesse caso, o comerciante, que não realiza financiamento, nem é uma instituição financeira, pode cobrar juro.” (destaques nossos.)


3 – Dos Contratos Bancários: do Financiamento


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Neste ponto, e a fim de que fique bem demarcada a questão da venda financiada, são importantes algumas considerações sobre os contratos bancários e, mais especificamente, sobre o de financiamento.


A atividade típica bancária é a intermediação de recursos monetários, ou seja, dinheiro. Em outros termos, a função dos bancos é captar, no mercado, o excedente das unidades superavitárias e disponibilizá-lo às unidades deficitárias.


A Lei n. 4.595/64, que dispõe sobre o sistema financeiro nacional, prescreve que este é constituído pelas seguintes instituições: Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil, Banco do Brasil SA, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e demais instituições financeiras públicas e privadas (art. 1º).


Referida lei define instituições financeiras e estabelece normas para seu funcionamento, especialmente em seus arts. 17 e 18:


“Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.


Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.


Art. 18. As instituições  financeiras  somente poderão  funcionar  no País  mediante  prévia autorização do Banco Central  da República do Brasil ou decreto do  Poder  Executivo, quando forem estrangeiras.


§ 1º Além dos estabelecimentos bancários oficiais ou privados, das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, das caixas econômicas e das cooperativas de crédito ou a seção de crédito das cooperativas que a tenham, também se subordinam às disposições e disciplina desta lei no que for aplicável, as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer forma, e as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de ações e outros quaisquer títulos, realizando nos mercados financeiros e de capitais operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras.


[…]” (Destaques nossos.)


Segundo Fábio Ulhoa Coelho, decorre da lei que “a atividade de intermediação de moeda é exclusiva de sociedades empresárias revestidas da forma de companhias e especificamente autorizadas a operar pelo Banco Central, se nacionais, ou pelo Presidente da República, quando estrangeiras”.[14]


Do exposto, pode-se definir contratos bancários como sendo:[15]


“os veículos jurídicos da atividade econômica de intermediação monetária, encontrados tanto no pólo de captação (recolhimento de superávits) como no de fornecimento (cobertura de déficits). Em outros termos, são os contratos que só podem ser celebrados por um banco. Qualquer pessoa física ou jurídica, que, não estando autorizada a operar na atividade bancária, realiza contratos de intermediação de dinheiro incorre em conduta ilícita. A participação necessária de um banco em pelo menos um dos pólos da relação contratual é, assim, da essência do contrato bancário.”


Dentre os contratos bancários, o mais usual é o de mútuo, que pode ser compreendido como “o contrato pelo qual o banco empresta certa quantia de dinheiro ao cliente, que se obriga a pagá-la, com os acréscimos remuneratórios, no prazo contratado”.[16]


Diga-se, também, que uma das várias espécies de contrato de mútuo bancário é o de financiamento, que pode ser definido como “o mútuo bancário em que o mutuário tem a obrigação de conferir ao dinheiro emprestado determinada finalidade.” Assim, o mutuário não é inteiramente livre para dar o destino que entender aos recursos, devendo sujeitar-se aos balizamentos da operação, podendo o banco, inclusive, em razão de cláusula contratual proceder a vistorias ou entregar o valor emprestado diretamente a terceiro.[17]


4 – Do Julgamento do Recurso Especial 1.106.462/SP, Representativo de Controvérsia


A propósito das diferenciações acima expostas entre venda a prazo e venda financiada, cumpre destacar que, em setembro de 2009, a 1ª Seção do C. Superior Tribunal de Justiça julgou recurso especial representativo de controvérsia, nos termos do art. 543-C, do Código de Processo Civil, o qual restou assim ementado:


TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. ICMS. ENCARGOS DECORRENTES DE FINANCIAMENTO. SÚMULA 237 DO STJ. ENCARGOS DECORRENTES DE “VENDA A PRAZO” PROPRIAMENTE DITA. INCIDÊNCIA. BASE DE CÁLCULO. VALOR TOTAL DA VENDA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356 DO C. STF.


1.  A “venda financiada” e a “venda a prazo” são figuras distintas para o fim de encerrar a base de cálculo de incidência do ICMS, sendo certo que, sobre a venda a prazo, que ocorre sem a intermediação de instituição financeira, incide ICMS.


2.  A “venda a prazo” revela modalidade de negócio jurídico único, cognominado compra e venda, no qual o vendedor oferece ao comprador o pagamento parcelado do produto, acrescendo-lhe um plus ao preço final, razão pela qual o valor desta operação integra a base de cálculo do ICMS, na qual se incorpora, assim, o preço “normal” da mercadoria (preço de venda à vista) e o acréscimo decorrente do parcelamento. (Precedentes desta Corte e do Eg. STF: AgR no RE n.º 228.242/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/10/2004; REsp 1087230/RS, Rel. Ministro  HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 20/08/2009; AgRg no REsp 480.275/SP, Rel. Ministro  Herman Benjamin, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/04/2008, DJe 04/03/2009; AgRg no REsp 743.717/SP, Rel. Ministro  HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/03/2008, DJe 18/03/2008; EREsp 215.849/SP, Rel. Ministro  LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/06/2008, DJe 12/08/2008;  AgRg no REsp 848.723/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 10/11/2008;


REsp n.º 677.870/PR, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 28/02/05).


3. A venda financiada, ao revés, depende de duas operações distintas para a efetiva “saída da mercadoria” do estabelecimento (art. 2º do DL 406/68), quais sejam, uma compra e venda e outra de financiamento, em que há a intermediação de instituição financeira, aplicando-se-lhe o enunciado da Súmula 237 do STJ: “Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no cálculo do ICMS.”


4. In casu, dessume-se do voto condutor do aresto recorrido hipótese de venda a prazo, em que o financiamento foi feito pelo próprio vendedor, razão pela qual a base de cálculo do ICMS é o valor total da venda.


5. A questão relativa à inaplicabilidade do art. 166 do CTN ao caso sub judice resta prejudicada, em face da incidência do ICMS sobre as vendas a prazo. […]


8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008. Proposição de verbete sumular.


(REsp 1106462/SP, Rel. Ministro  LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 13/10/2009. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1106462&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=7#. Acesso em 01/07/10)”. (Destaques nossos.)


O i. relator Ministro Luiz Fux, ao cabo de seu voto, propôs edição de verbete sumular, o qual, ao final restou assim enunciado: “O ICMS incide sobre o valor da venda a prazo constante da nota fiscal.” (Súmula 395, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 07/10/2009.) Tal verbete, como ressaltado no julgamento em questão, não confronta o verbete sumular n. 237, da mesma Corte: “Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no cálculo do ICMS.” (Súmula 237, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/04/2000, DJ 25/04/2000 p. 44.) E assim é porque, nas operações de venda e compra com cartão de crédito, existe subjacente a figura da Administradora, como instituição financeira, que se encarrega da transação de financiamento, de forma que há dois negócios jurídicos distintos, não sendo o fornecedor da mercadoria ou o prestador do serviço quem disponibiliza recursos para o consumidor pagar o preço daquela ou deste. Já na venda efetivamente a prazo, a figura da instituição financeira, distinta da do fornecedor, não existe.5 – Do Julgamento do Recurso Especial n. 1.087.230/RSEmbora não julgado nos termos do art. 543-C, do Código de Processo Civil, e decidido antes do REsp n. 1.106.462/SP, tendo sido inclusive um dos precedentes em que este se fundamentou, é interessante destacar também a ementa do REsp n. 1.087.230/RS:“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. JULGAMENTO ANTECIPADO. NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVAS. ART. 330, I, DO CPC. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. SÚMULA 5/STJ. ICMS. VENDA A PRAZO. INCIDÊNCIA SOBRE O PREÇO TOTAL.1. Hipótese em que se discute a incidência do ICMS sobre vendas a prazo. A recorrente argumenta que há financiamento por meio de instituição financeira, razão por que o tributo estadual não incide sobre os acréscimos financeiros.2. Ausência de cerceamento de defesa, pois as instâncias de origem entenderam, de forma fundamentada, que basta a análise dos contratos firmados para aferir a natureza das operações realizadas e, portanto, a incidência tributária. Inviável rever a questão, pois demandaria reexame dos instrumentos contratuais (Súmula 5/STJ).”3. É incontroverso que o ICMS incide sobre o preço total da venda quando o acréscimo é cobrado pelo próprio vendedor (venda a prazo). De maneira diversa, quando a operação é efetivamente financiada, ou seja, o acréscimo é cobrado por instituição financeira distinta, o imposto estadual não incide sobre o valor do financiamento, aplicando-se, por analogia, o disposto na Súmula 237/STJ.4. No caso dos autos, as instâncias de origem aferiram a inexistência de venda por meio de cartão de crédito administrado por instituição financeira.5. Consta que a recorrente abriu uma linha de crédito diretamente com o Banco Santander. Lastreada por esses recursos, a empresa, em nome próprio, parcela as vendas realizadas a seus clientes por meio do “Cartão ENY CDCI”, por ela emitido.6. Ficaram bem demonstrados dois fatos jurídicos distintos: a) a compra e venda a prazo realizada pela recorrente a seus clientes; e b) a abertura de crédito, negócio entre a empresa e a instituição bancária de sua eleição.7. Nos termos do acórdão recorrido, “em realidade, o referido contrato [entre a recorrente e o banco] prevê a abertura de linha de crédito à Apelante de acordo com as vendas  realizadas a prazo ao consumidor final.” 8. Para fins de incidência do ICMS, importa a circulação de mercadoria entre a recorrente e seus clientes. O pagamento é efetuado diretamente à vendedora, de forma parcelada.9. O financiamento que a recorrente conseguiu na instituição financeira diferencia-se da relação jurídica de compra e venda das mercadorias. Trata-se de decisão empresarial-financeira que não interfere na realidade aferida pelas instâncias de origem: caracteriza-se venda a prazo, e não financiamento da instituição financeira ao adquirente dos bens.10. Sendo inviável reexaminar cláusulas contratuais (Súmula 5/STJ), a conclusão jurídica a que se chega é incontroversa: incide ICMS sobre o valor total da operação por se tratar de venda a prazo, conforme jurisprudência pacífica do STJ.11. Recurso Especial não provido. (REsp 1087230/RS, Rel. Ministro  HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 20/08/2009. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1087230&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3. Acesso em 01/07/10)”. (Destaques nossos.)

O ponto que torna o caso singular, conforme se verifica do voto condutor do julgamento, é o fato de que o consumidor efetuava o pagamento de suas compras com cartão de crédito emitido pelo próprio fornecedor, o qual contratara previamente uma linha de crédito com instituição financeira, de forma que aquele, isto é, o próprio alienante, lastreado nesses recursos, parcelava as vendas realizadas a seus clientes. Transcreve-se trecho do acórdão combatido, citado no referido voto, extremamente elucidativo da operação:[18]


“Fica claro que nas vendas através do ‘Cartão ENY CDCI’ ocorre um único negócio jurídico, o de compra e venda entre o cliente e a Empresa. Posteriormente a empresa negocia, através de uma linha de crédito específica, com o sistema bancário, parte dos títulos originados por estas vendas.[…]


O crédito, conforme cláusula primeira do contrato, é aberto pela financiadora à Empresa para que esta facilite a venda de mercadorias a seus clientes. Não se trata, portanto, de contrato de financiamento entre o consumidor e a financeira.”


Esclareça-se que, embora aparentemente similar à venda com cartão de crédito especial Mesbla SA, nos termos do parecer apresentado por Ataliba e Giardino, são situações muito diversas, porque ali a Mesbla era simples intermediária, mediante serviço inteiramente gratuito, sendo que os recursos ofertados aos consumidores eram oriundos de instituição financeira, enquanto que aqui, o fornecedor vendia e parcelava o preço com seus próprios meios, buscando, depois, crédito para si (e não para o consumidor), junto à instituição financeira.


6 – CONCLUSÃO


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De tais breves considerações extraem-se as seguintes conclusões:


a) de fato, não há que se confundir venda a prazo com venda financiada, residindo a principal diferença entre ambas na circunstância de haver envolvida nesta, efetivamente, a figura de um terceiro, no caso a instituição financeira, que disponibiliza recursos para que o consumidor pague o preço da mercadoria ou do serviço;


b) bem por isso, não faz diferença se a compra é realizada com cartão de crédito ou mediante recursos captados através da instituição financeira por meio de linhas de créditos ofertadas ao público. Isso explica o fato de a Súmula n. 237/STJ ser aplicada às vendas financiadas por analogia;


c) não obstante isso, não podem receber o tratamento de vendas financiadas, para fins de não-inclusão do ICMS na base de cálculo, operações apenas aparentemente feitas com cartão de crédito. É imprescindível que, ao fim e ao cabo, existam efetivamente duas operações distintas: a de compra e venda entre o fornecedor e o consumidor e a de financiamento entre a financeira e o consumidor;


d) de forma que, em não havendo a efetiva intermediação da financeira, os encargos devidos, por força do arcabouço constitucional do ICMS, configurado também pela Lei Complementar n. 87/96, comporão a base de cálculo sobre a qual o imposto em questão incidirá, nos exatos termos da Súmula n. 350/STJ.


 


Referências bibliográficas

ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. ICM: base de cálculo. Revista de Direito Tributário, São Paulo, v. 41, p. 91-116, jul.-set./1987.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 7. ed. rev. e atual.  São Paulo: Saraiva, 2007.

PFFEIFFER, Roberto Augusto Castelhanos; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de defesa do consumidor e o código civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Biblioteca de direito do consumidor, v. 26.)

REsp 1106462/SP, Rel. Ministro  LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 13/10/2009. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1106462&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=7#. Acesso em 01/07/10

REsp 1087230/RS, Rel. Ministro  HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 20/08/2009. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1087230&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3. Acesso em 01/07/10.

 

Notas:

[1] ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cléber. ICM: base de cálculo. Revista de Direito Tributário, São Paulo, v. 41, p. 91-116, jul.-set./1987.

[2] Id., Ibid., p. 91-116.

[3] Id., Ibid., p. 91-116.

[4] Id., Ibid., p. 91-116.

[5] Id., Ibid., p. 91-116.

[6] Id., Ibid., p. 91-116.

[7] Id., Ibid., p. 91-116.

[8] Id., Ibid., p. 91-116.

[9] Id., Ibid., p. 91-116.

[10] Id., Ibid., p. 91-116.

[11] Id., Ibid., p. 91-116.

[12] Id., Ibid., p. 91-116.

[13] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Os juros na perspectiva do código civil. p. 165. In PFFEIFFER, Roberto Augusto Castelhanos; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de defesa do consumidor e o código civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Biblioteca de direito do consumidor, v. 26.). p. 153-177.

[14] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 7. ed. rev. e atual.  São Paulo: Saraiva, 2007. p. 126. A questão da organização de tais instituições sob a forma de companhia decorre do art. 25, da Lei n. 4.595/64, cuja redação é a seguinte: “Art. 25. As instituições financeiras privadas, exceto as cooperativas de crédito, constituir-se-ão unicamente sobe a forma de sociedade anônima, devendo a totalidade de seu capital com direito a voto ser representada por ações nominativas.”

[15] Id., Ibid., p. 126.

[16] Id., Ibid., p. 127-128.

[17] Id., Ibid., p. 133-134.

[18] REsp 1087230/RS, Rel. Ministro  HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 20/08/2009. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1087230&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3. Acesso em 01/07/10. Destaques nossos.


Informações Sobre o Autor

Lucília Isabel Candini Bastos

Mestra em Direito Público pela Universidade de Franca, Pós-graduanda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Procuradora da Fazenda Nacional, Ex-Auditora da Receita Federal do Estado de Minas Gerais


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